Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0616/02
Data do Acordão:07/04/2002
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:PAIS BORGES
Descritores:ACTO ADMINISTRATIVO.
FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:O nosso ordenamento jurídico não consagra uma concepção substancialista ou objectivista da fundamentação, que confunde esta com a justificabilidade objectiva da decisão ou a conformação desta com a normação jurídica, mas sim uma concepção formalista ou instrumentalista, no sentido de que a exigência de fundamentação diz respeito ao modo de exteriorização formal do acto administrativo e não à validade substancial do respectivo conteúdo ou pressupostos, sendo relevante o esclarecimento das razões da decisão, no sentido da sua determinabilidade e não no sentido da sua indiscutibilidade substancial ou da sua convincência.
Nº Convencional:JSTA00057914
Nº do Documento:SA1200207040616
Data de Entrada:04/11/2002
Recorrente:A...
Recorrido 1:B...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC DO PORTO DE 2001/11/23.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:CPA91 ART125 N1.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
(Relatório)
I. A..., com os sinais dos autos, recorre jurisdicionalmente para este Supremo Tribunal Administrativo do acórdão do TAC do Porto, de 23.11.2001 (fls. 112 e segs.), que, concedendo provimento ao recurso contencioso interposto por B..., anulou, por falta de fundamentação, o despacho da Vereadora da Câmara Municipal de Matosinhos, de 18.04.2000, que lhe ordenara a realização de obras num prédio de sua propriedade, arrendado ao ora recorrente, sito na Rua ..., nº ..., em S. Mamede de Infesta.
Na sua alegação, formula as seguintes
CONCLUSÕES:
1ª O acto que se impugna encontra-se amplamente fundamentado;
2ª Quer no próprio auto de vistoria;
3ª Quer nas informações técnicas fornecidas pelos serviços competentes;
4ª A Sentença em apreço não merece, pois, o mínimo acolhimento.
II. Contra-alegou a recorrente contenciosa, ora recorrida, concluindo nos seguintes termos:
1ª - O despacho recorrido padece de falta de fundamentação, não a remetendo sequer para as informações de serviço, o que também não poderia ser feito, uma vez que estas padecem da mesma omissão, por não se explicar nele, as razões de facto e de direito, pelas quais as obras a executar são ordenadas à recorrida.
2ª - Estamos, pois, perante um vício de forma, por falta de fundamentação, sendo o despacho recorrido contenciosamente anulável, por violar o disposto nos arts. 123°. nºs. 1 e 2 als. c) e d), 124°. nº.1 al. a) e 125°., todos do C.P .A. e o artº. 268º da C.R.P.
3ª - As competências da Câmara Municipal estão definidas na Lei nº. 169/99, de 18 de Setembro e, no que ao caso compete, na al. c) do nº.5 do artº. 64°., de acordo com o qual compete à Câmara Municipal “Ordenar, precedendo vistoria, a demolição total ou parcial ou a beneficiação de construções que ameacem ruína ou constituam perigo para a saúde ou segurança das pessoas”.
4ª - As obras cuja execução se ordenou à recorrida são reparar a rede de esgotos, reparar a rede de águas pluviais, reparar ou substituir janelas em madeira, impermeabilizar o terraço e reparar e pintar tectos e paredes afectados; ora, tais anomalias não ameaçam ruína nem constituem perigo para a saúde ou segurança das pessoas.
5ª - E, se à primeira vista assim parece ser, também não consta do processo administrativo (nem do despacho recorrido, nem das informações de serviço, nem do Auto de Vistoria) que estejam verificados, “in casu”, os requisitos de ameaça de ruína ou de constituição de perigo para a saúde ou para a segurança das pessoas, que legitimem a actuação da recorrida, ao abrigo da al. c) do no.5 do artº. 64°. da Lei nº. 169/99, de 19/09 - pelo que, também, nesta parte, o acto enferma de falta de fundamentação.
III. O Exmo magistrado do Ministério Público neste Supremo Tribunal emitiu o seguinte parecer:
« 1.
Com o respeito devido pela douta sentença, afigura-se-me que assiste razão ao recorrente.
A decisão anulatória, com base no vício de falta de fundamentação, decorre de um juízo em que são discerníveis dois motivos associados de anulação.
Na verdade, em primeiro lugar, o ilustre julgador considerou que o acto, e passo a citar, " incorre em falta de fundamentação, por insuficiente fundamentação, já que a entidade recorrida não indagou a quem pertencia a obrigação de realizar as obras assinaladas e ao decidir com decidiu fê-lo sem ter conhecimento desse pressuposto fáctico essencial e igualmente não se pronunciou quanto à questão do abuso do direito".
Em segundo lugar, como motivo outro, diz-se na sentença que:
"(..) Dispõe o art. 64º n° 5, al. c) da Lei n° 169/99 de 18/9 que compete à Câmara Municipal ordenar, procedendo vistoria, a demolição total ou parcial ou a beneficiação de construções que ameacem ruína ou constituam perigo para a saúde ou segurança das pessoas.
Como resulta do acto impugnado as obras a realizar tratam-se de “correcção de anomalias”, sendo certo que em nenhum momento é referido que tais anomalias constituam perigo para a saúde ou segurança das pessoas. É que mesmo do auto de vistoria não resulta com clareza que o facto das instalações de águas pluviais e esgotos estarem degradadas, as janelas apodrecidas, o estore (???) danificado e deficiente impermeabilização do terraço, constituam perigo para a saúde ou segurança das pessoas.
O acto não é claro em definir tal parâmetro legal que permitiria a intervenção da entidade recorrida no presente caso. Assim, também, nesta parte o acto enferma de falta de fundamentação, pois fica-se sem saber se as obras a realizar se enquadram no âmbito daquele normativo, não se podendo, por isso, concluir pela violação do mesmo. "
Ora, este discurso justificativo da sentença mostra que o ilustre julgador perfilha uma concepção estritamente substancialista da fundamentação, em que esta se confunde "com a justificabilidade objectiva ou com a conformidade ao direito" Vieira de Andrade, “O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos”, p. 11.. Todavia no nosso ordenamento jurídico "a exigência de fundamentação diz respeito ao modo de exteriorização formal do acto administrativo e não à validade substancial do respectivo conteúdo ou pressupostos", sendo que o que importa é o "esclarecimento das razões da decisão, no sentido da sua determinabilidade e não no sentido da sua indiscutibilidade substancial ou da sua convincência" Acórdão STA de 2001.12.19 – recº nº 47 774..
Nesta outra perspectiva, temos que a fundamentação contextualmente externada, apreciada à luz do critério da compreensibilidade do destinatário médio, esclarece com suficiência as razões que determinaram o conteúdo e o sentido da decisão. Em face das anomalias verificadas no prédio, que concretizou, a autoridade recorrida entendeu, que se tratava de uma situação em que, de acordo com as normas de competência invocadas, se impunha notificar o senhorio para realizar obras que as reparassem.
Os motivos da decisão estão determinados. Saber se o responsável pelas obras é o senhorio ou o inquilino, se a notificação deveria ter sido feita a este ou àquele ou se as deficiências constituem, ou não, perigo para a saúde e segurança das pessoas, releva já no âmbito da validade substancial do acto e /ou na motivação dos motivos e não afecta a correcção da fundamentação.
Portanto, na minha óptica, a douta sentença recorrida, por ter anulado o acto impugnado por falta de fundamentação, enferma do erro de julgamento que lhe vem assacado.
2.
Pelo exposto, sou de parecer que o recurso merece provimento. »
**
(Fundamentação)
OS FACTOS
A sentença recorrida considerou assente, com interesse para a discussão da causa, a seguinte factualidade:
- O recorrido particular requereu à entidade recorrida em 3/8/1999 que fosse realizada uma vistoria de salubridade ao prédio onde reside por força de contrato de arrendamento, propriedade da recorrente, cfr. doc. de fls. 2 do PA apenso;
- No seguimento de tal requerimento foi realizada vistoria em 21/10/1999 que concluía pela necessidade de realização de várias obras, conforme consta do teor do doc. de fls. 6 do PA apenso, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido, ficando a fazer parte integrante desta sentença;
- Na posse de tal vistoria a entidade recorrida ouviu a recorrente nos termos do art. 100º e ss. do CPA, cfr. doc. de fls. 7 do PA apenso;
- Em 10/1/2000 a recorrente veio pronunciar-se nos termos daquele art. 100º do CPA alegando que a posição do recorrido particular se configurava como abuso de direito, as obras indicadas eram da responsabilidade do inquilino nos termos contratuais e ainda que o valor da renda paga mensalmente não dava para proceder à realização de quaisquer obras, cfr. doc. de fls. 10 a 12 do PA apenso;
- Seguidamente foi proferido parecer sobre tais questões e a entidade recorrida proferiu o despacho impugnado com fundamento em tal parecer em 18/4/2000, cfr. doc. de fls. 14 do PA apenso cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido ficando a fazer parte integrante desta sentença;
- Tal despacho foi notificado à recorrente nos termos de fls. 17 cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido ficando a fazer parte integrante desta sentença;
- Dá-se aqui integralmente por reproduzido o teor do doc. de fls. 15 dos autos - contrato de arrendamento - ficando a fazer parte integrante desta sentença.
O DIREITO
A sentença impugnada, depois de julgar inverificados os vícios de usurpação de poder, de violação de lei (normas do RAU), e de abuso de direito – segmento decisório que não foi objecto de impugnação –, anulou, por considerar ferido de falta de fundamentação, o despacho da Vereadora da Câmara Municipal de Matosinhos, de 18.04.2000, que ordenara à recorrente contenciosa a realização de obras num prédio de sua propriedade, arrendado ao ora recorrente, sito na Rua ..., nº ..., em S. Mamede de Infesta.
O agravante insurge-se contra tal decisão, considerando que o acto em causa está suficientemente fundamentado.
E assiste-lhe inteira razão.
A fundamentação dos actos administrativos traduz a exigência de externação das razões ou motivos determinantes da decisão administrativa, tendo como objectivos essenciais os de habilitar o destinatário a reagir eficazmente contra a respectiva lesividade, e assegurar a transparência e imparcialidade das decisões administrativas.
Um acto estará devidamente fundamentado sempre que um destinatário normal possa ficar ciente do sentido dessa mesma decisão, e das razões que a sustentam, permitindo-lhe optar conscientemente entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação.
Não deve, porém, confundir-se a suficiência da fundamentação com a exactidão ou a validade substancial dos fundamentos invocados. Como adverte Sérvulo Correia (Noções de Direito Administrativo, I, p. 403), "a fundamentação pode ser inexacta e ser suficiente, por permitir entender quais os pressupostos de facto e de direito considerados pelo autor do acto. Deste modo, a inexactidão dos fundamentos não conduz ao vício de forma por falta de fundamentação. Ela pode sim revelar a existência de outros vícios, como o vício de violação de lei por erro de interpretação ou aplicação de norma, ou ... por erro nos pressupostos de facto".
Ora, contrariamente ao que foi decidido, o despacho contenciosamente recorrido satisfaz com suficiência o dever legal de fundamentação.
Como resulta dos autos, o ora recorrente dirigiu à Câmara Municipal de Matosinhos um pedido de vistoria de salubridade ao prédio onde reside ao abrigo de contrato de arrendamento, e que é propriedade da recorrente contenciosa, ora recorrida.
Na sequência de tal requerimento, foi realizada pelos serviços camarários uma vistoria que concluiu pela necessidade de realização de diversas obras no prédio em causa, como consta do doc. de fls. 6 do PA apenso, dado como reproduzido na matéria de facto.
Como ali se refere expressamente, as referidas obras eram impostas pela existência de diversas deficiências a nível de salubridade do edifício, designadamente de humidades interiores provenientes da degradação da rede de drenagem de águas pluviais e de esgotos, bem como da deficiente impermeabilização do terraço.
Em face da exposição apresentada pela proprietária do prédio, depois de informada da intenção da autarquia em ordenar-lhe a realização das obras, foi o processo submetido aos serviços técnicos da Câmara Municipal, tendo merecido a seguinte informação (conforme doc. do PA, igualmente dado por reproduzido):
O exposto em nada altera a necessidade de se proceder às obras determinadas pela Comissão de Vistoria, quer elas sejam da responsabilidade do inquilino, quer do proprietário”.
Esta informação dos serviços técnicos mereceu, por seu lado, dos serviços administrativos o seguinte parecer:
À consideração da Exmª Vereadora, proponho face à informação supra (...) a notificação do proprietário para a realização das obras indicadas no respectivo Auto de Vistoria”.
Sobre este parecer, foi exarado no processo administrativo o despacho da Sra. Vereadora, contenciosamente impugnado, com o seguinte teor: “Proceda-se conforme Informação dos Serviços”.
Dúvidas não restam, pois, de que a recorrente contenciosa apreendeu com toda a clareza os motivos determinantes da decisão administrativa (necessidade de obras no prédio, face às deficiências apontadas no auto de vistoria), tendo pois ficado ciente das razões que determinaram a autoridade recorrida à prolação do acto.
Contrariamente ao que foi decidido, o facto de a autoridade recorrida não ter indagado a quem cabia a obrigação de realizar as obras assinaladas, bem como o facto de alegadamente não estar esclarecido se as referidas anomalias constituem perigo para a saúde pública ou para a segurança das pessoas, não constitui de modo algum falta de fundamentação do acto recorrido.
A decisão impugnada adoptou, na verdade, um conceito substancialista ou objectivista da fundamentação, confundindo esta com a justificabilidade objectiva da decisão ou a conformação desta com a normação jurídica, concepção de todo contrária à concepção formalista ou instrumentalista do nosso ordenamento jurídico, e há muito adoptada pela jurisprudência, no sentido de que “a exigência de fundamentação diz respeito ao modo de exteriorização formal do acto administrativo e não à validade substancial do respectivo conteúdo ou pressupostos”, sendo relevante o “esclarecimento das razões da decisão, no sentido da sua determinabilidade e não no sentido da sua indiscutibilidade substancial ou da sua convincência" (Ac. STA de 19.12.2001 – Rec. 47.774).
E, nesta perspectiva, é, como se disse, manifesto que as razões externadas nas informações para que remete o acto recorrido, e que dele fazem parte integrante (art. 125º, nº 1 do CPA), são, à luz do critério da compreensibilidade do destinatário médio, suficientemente esclarecedoras dos motivos que determinaram o conteúdo e o sentido da decisão administrativa impugnada.
A validade substancial, ou mesmo a pertinência objectiva, dos pressupostos em que assentou o acto administrativo é matéria que não tem a ver com a fundamentação, mas sim com a legalidade intrínseca ou substancial do acto.
Como bem refere o Exmo magistrado do Ministério Público, no seu douto parecer, “Os motivos da decisão estão determinados. Saber se o responsável pelas obras é o senhorio ou o inquilino, se a notificação deveria ter sido feita a este ou àquele ou se as deficiências constituem, ou não, perigo para a saúde e segurança das pessoas, releva já no âmbito da validade substancial do acto ... e não afecta a correcção da fundamentação”.
Procede, por conseguinte, a alegação do recorrente, impondo-se a revogação da decisão anulatória.
(Decisão)
Com os fundamentos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, revogando a sentença impugnada, e negar provimento ao recurso contencioso.
Custas pela recorrente contenciosa, fixando-se a taxa de justiça e a procuradoria, respectivamente, no TAC em 150 € e 75 €, e neste STA em 300 € e 150 €.
Lisboa, 4 de Julho de 2002.
Pais Borges – Relator – Adérito Santos – Rui Botelho