Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01051/09
Data do Acordão:11/17/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:RECURSO SUBORDINADO
RECURSO PRINCIPAL
ORDEM DE CONHECIMENTO DOS RECURSOS
ORDEM DE CONHECIMENTO DE VÍCIOS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Sumário:I - O recurso subordinado encontra-se, por via de regra, dependente do recurso principal, razão por que o conhecimento deste precede, em geral, o conhecimento daquele. Todavia, sempre que a questão a decidir no âmbito do recurso subordinado tenha prioridade ou precedência em relação às questões a decidir no recurso independente, condicionando o conhecimento destas, então deve conhecer-se prioritariamente do recurso subordinado.
II - Apesar de a mais eficaz tutela dos interesses do recorrente impor, em princípio, o conhecimento prioritário dos vícios substanciais ou de fundo em relação aos vícios de forma, tal regra não é absoluta, podendo essa tutela passar pelo conhecimento prioritário dos vícios de forma, mais concretamente do vício de falta de fundamentação, sempre que a descoberta da motivação do acto possa oferecer elementos necessários ao juízo de verificação dos vícios de fundo, o que acontece sempre que ocorra uma absoluta falta de fundamentação (de facto e/ou de direito), por isso implicar a impossibilidade de conhecimento dos factos em que assentou o acto e/ou o seu enquadramento jurídico, inviabilizando o controlo jurisdicional dos vícios de fundo.
III - Para que a fundamentação de direito de um acto administrativo ou tributário se considere suficiente não é sempre necessária a indicação dos preceitos legais aplicáveis, bastando a referência aos princípios pertinentes, ao regime jurídico ou a um quadro legal bem determinado, devendo considerar-se fundamentado o acto quando ele se insira num quadro jurídico-normativo perfeitamente cognoscível por um destinatário normal colocado na posição em que se encontra o seu real destinatário.
IV - Não pode considerar-se fundamentado o acto de liquidação de uma taxa municipal agravada se ele se funda num quadro jurídico-normativo que não é referenciado nem cognoscível e o Impugnante revela desconhecê-lo.
Nº Convencional:JSTA00066692
Nº do Documento:SA22010111701051
Data de Entrada:10/22/2009
Recorrente:A... E OUTRO
Recorrido 1:A... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TT1INST LISBOA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - TAXA.
DIR PROC TRIBUT CONT - REC JURISDICIONAL.
Área Temática 2:DIR PROC CIV.
Legislação Nacional:CPC96 ART682 ART487 N2.
CPPTRIB99 ART2 E ART124.
LPTA85 ART57 A.
LGT98 ART77.
CPA91 ART124.
DL 445/91 DE 1991/11/20 ART68 N1.
DL 250/94 DE 1994/10/15.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC47333 DE 2003/05/14.; AC STA PROC35367 DE 1997/04/23.; AC STA PROC41223 DE 1998/06/04.; AC STA PROC40433 DE 1997/05/20.; AC STA PROC48071 DE 2002/02/28.; AC STA PROC1835/02 DE 2003/05/27.; AC STAPLENO PROC27387 DE 1993/03/25.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A CÂMARA MUNICIPAL DE LOURES recorre da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente, por vício de falta de fundamentação, a impugnação judicial deduzida pela sociedade A…, LDª contra o acto de liquidação de uma taxa agravada, no montante de € 92.587,42, titulado através da Guia de Receita n.º 4258/02, de 31 de Outubro de 2002.
Terminou a sua alegação de recurso com as seguintes conclusões:
1. Dos artigos 40º e 44º da Petição Inicial conclui-se que a Impugnante conhece perfeitamente a fundamentação de facto do acto impugnado;
2. Daquela peça designadamente dos arts 52°, 53°, 55° e 56°, igualmente se conclui, com segurança, que a Impugnante conhece a fundamentação de direito sobre que assenta o acto impugnado;
3. A fundamentação do acto, quer de facto, quer de direito, não somente existe como da mesma tomou conhecimento a Impugnante;
4. A mesma fundamentação, respeita o disposto no n° 2, do artigo 77º da LGT, norma legal que a douta sentença, por imperfeita subsunção da factualidade demonstrada nos autos, claramente viola.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença sub judice e declarando-se a subsistência do acto impugnado pois, só assim, será feita JUSTIÇA!
1.2. Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela confirmação do julgado e formulando, a final, as conclusões seguintes:
1. O acto tributário anulado pela sentença recorrida não se encontra fundamentado, não identificando, além do mais, a razão legal para a liquidação nem os pressupostos legais ou operação aritmética que conduziu ao montante cobrado
2. O acto tributário de liquidação anulado pela sentença recorrida não identifica a qualificação e quantificação dos factos tributários, nem clarifica qual a operação que permitiu apurar o valor liquidado, nem esclarece por que motivo a taxa de licença de construção foi agravada.
3. A sentença recorrida não merece qualquer juízo de censura ou reparo ao julgar procedente o vício de forma por falta de fundamentação do acto de liquidação impugnado, dado que o mesmo não contém as disposições legais aplicáveis, violando o previsto nos arts. 268.° n.º 3 da Constituição e 77.°/2 da LGT.
4. O Tribunal a quo decidiu bem ao julgar na decisão recorrida que, ante o acto de liquidação impugnado, “não é possível ao Impugnante conhecer o iter cognoscitivo e valorativo do acto e permitir-lhe conhecer as razões que determinam a sua prática e porque motivo se decidiu num sentido e não noutro”, sendo certo que, relevam apenas e só os motivos indicados no acto - nele externados - não sendo admissível qualquer fundamentação implícita.
5. Deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão que julgou procedente o vício de falta de fundamentação, nos termos do disposto no art. 135.° do CPA, e que condenou a administração tributária no reembolso da quantia indevidamente paga, acrescida dos respectivos juros indemnizatórios.
A sociedade A…, LDª veio, ainda, interpor recurso subordinado da sentença, que finalizou com o seguinte quadro conclusivo :
1. O princípio da tutela judicial efectiva (v. art. 268°/4 da CRP) e o artigo 124° do CPPT, impõem que o Tribunal conheça com prioridade dos vícios imputados ao acto cuja procedência confira ao Impugnante uma mais eficaz e mais estável tutela dos interesses que este defende com a impugnação.
2. A declaração de nulidade ou a anulação do acto impugnado com fundamento em qualquer um dos demais vícios de substância assacados pela recorrente ao acto impugnado - em especial, o vício relativo à falta de base legal para a prática de qualquer acto de liquidação de uma taxa agravada - impediria a renovação do acto, conferindo a impugnante uma tutela mais estável e eficaz.
3. O Tribunal deve conceder prioridade ao conhecimento do vício de falta de fundamentação relativamente aos vícios de fundo ou de substância, derrogando a natural primazia destes, “quanto à indagação acerca da concreta motivação do acto se mostrar indispensável ao controlo dos vícios de substância que o recorrente tenha denunciado”, e apenas quanto aos “actos que se inscrevem num domínio de actuação “não estritamente vinculado” - Cfr. Acórdão do STA de 19.05.2004 no Proc. n° 228/03, in www.dgsi.pt - o que não sucede no caso dos autos.
4. A indagação acerca da concreta motivação de facto e de direito que levou o Município a agravar as taxas, não é indispensável - ou sequer pertinente - ao controlo da arguida inexistência de (qualquer) base legal para a liquidação de uma taxa agravada, pois qualquer que fosse a razão de facto e de direito subjacente à liquidação da dita taxa agravada, restaria a sua ilegalidade por ausência de pressupostos legais para a actuação tributária liquidando a taxa agravada.
5. A actuação expressa no acto de liquidação situa-se inequivocamente no domínio da actuação vinculada da Administração, contexto em que, o que importa apurar, estando questionado nos autos, são os pressupostos legais para a actuação da Administração, para além de qualquer fundamentação.
6. No contexto de actuação vinculada, “o tribunal exerce o seu controlo sobre os pressupostos legais do acto relativamente aos quais o recorrente denuncie os vícios em que o recurso contencioso se baseia, com precedência sobre o controlo dos fundamentos invocados pelo órgão administrativo seu autor” - cfr. Ac. do STA de 09.10.02, no Proc. 443/02, in www.dgsi.pt.
7. A sentença recorrida enferma de erro de julgamento e viola por errada interpretação e aplicação o art. 124.° do CPPT, ao conhecer prioritariamente o vício de forma por falta de fundamentação, preterindo o conhecimento dos vícios de violação de lei assacados ao acto impugnado, maxime, o vício decorrente da ausência de norma legal que autorize a prática do acto.
8. Inexiste qualquer norma regulamentar que possa servir de pressuposto ou base legal para a prática do acto de liquidação impugnado, uma vez que em 13 de Dezembro de 2002 - data em que entrou em vigor o Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças para vigorar em 2002 - já havia sido praticado o acto impugnado (referente a 2002 e praticado em 31 de Outubro desse ano) e o Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças para vigorar em 2001 já havia cessado a sua vigência.
9. A Tabela de Taxas e Licenças do Município de Loures para o ano de 2001 enferma de inconstitucionalidade formal, por violação do art. 112°/8 da CRP, na redacção então aplicável, violando, consequentemente, os princípios da segurança, da transparência jurídica e de acesso ao direito inerente ao próprio conceito de Estado de Direito Democrático.
10. Ao liquidar um taxa agravada pela concessão do alvará de licença de construção requerido pela impugnante, o acto impugnado junto do Tribunal a quo viola o princípio da legalidade, aplicando uma “taxa” com natureza de verdadeira sanção ou pena e sem qualquer cobertura legal (cfr. Recomendação n° 12/A/03, do Provedor de Justiça, de 29 de Setembro de 2003).
11.O art. 19º/4 do Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças do Município de Loures, comum aos regulamentos aplicáveis aos anos de 2001 e 2002, é formal e organicamente inconstitucional, por ostensiva violação do princípio da legalidade, face ao estatuído nos art. 103.°/ 2 e 165.°/1/i da CRP.
1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de que devia ser negado provimento ao recurso interposto pela Câmara Municipal de Loures, enunciando, para o efeito, a seguinte motivação:
«Objecto: Apurar se o acto tributário foi devidamente fundamentado.
Entendemos que a sentença recorrida não merece censura, tendo sido feita uma correcta interpretação e aplicação da lei.
Com efeito, conforme se extrai das alíneas d), e) e f) do probatório, a Recorrente emitiu um aditamento a um alvará de licença de construção e elaborou informações donde apenas se extrai estar a obra “concluída e ocupada, devendo tal lapso ser agora devidamente rectificado, quando da liquidação da taxa.”
Provou-se, também, que em 25 de Setembro de 2002, foi lavrada licença de utilização do imóvel, de que consta a seguinte nota:
“Deverá ainda ser pago valor de 92.587,42 euros, relativo ao lapso de licença de construção ter sido taxada sem agravamento, pelo facto do edifício já estar concluído ou ocupado (fls. 805). A taxa foi cobrada em relação aos valores da época (Julho de 2001), por indicação da Dra. B….”
O direito à fundamentação, emergente do previsto no n.° 3 do artigo 268.° da CRP, aplicável aos actos tributários, visa acautelar a racionalidade da decisão tributária e proporcionar as condições adequadas ao exercício do direito de defesa por parte dos contribuintes (ver acórdão do STA de 17/06/2009, processo n.° 246/09).
Sendo a fundamentação um conceito relativo, que varia em função do tipo legal do acto, deve dar resposta às necessidades de esclarecimento do contribuinte, informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática e por que motivo se decidiu nesse sentido e não noutro (acórdão de 2/04/2008, processo n.° 209/08).
No caso sub judicio, a fundamentação da liquidação de uma taxa agravada, não é, nem clara, nem suficiente, nem congruente. A própria factualidade geradora da aplicação do agravamento está definida de modo vago e abstracto, não permitindo aferir da justeza do critério de agravamento utilizado.
Por outro lado, como bem se frisa na decisão recorrida, a fundamentação de direito é absolutamente omissa, não sendo feita qualquer referência à norma legal que permite o agravamento da taxa.
Em suma, um destinatário normal de uma liquidação adicional naqueles moldes, não conseguiria descortinar o percurso cognoscitivo e valorativo que determinou a prática daquele acto tributário, designadamente as razões de facto e de direito pelas quais a Câmara de Loures decidiu no sentido em que decidiu.»
1.5. Colhidos os vistos dos Exmºs Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir em conferência.
2. A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
A- A impugnante desenvolve a sua actividade na área da construção e comercialização imobiliária (aceite por acordo);
B- A ora impugnante adquiriu, pelo preço de Esc. 260.000.000$00, o lote de terreno n° 6, destinado à construção, sito na Urbanização Quinta do Castelo, na freguesia de Santa Iria da Azóia;
C- Em 06/08/2001, foi emitida em nome da impugnante, pela Câmara Municipal de Loures (CML) o respectivo alvará de construção n° 284/2001, pelo prazo de 12 meses para realização de obras no supra aludido lote de terreno n° 6, pagando o montante de Esc. 4.644.518$00 (cfr. fls. 803 a 806 e 824, constantes do 7° vol. do processo administrativo);
D- Em 20/08/2001, foi emitido pela Câmara Municipal de Loures, uma, aditamento ao Alvará de Licença de Construção n° 284/2001, referente ao estabelecimento “…” (cfr. doc. junto a fls. 825 do 7° vol. do processo instrutor junto aos autos);
E- Em 19/09/2002, foi elaborada uma informação da qual consta que: “(...) chama-se a atenção para o facto de, quando da liquidação da taxa referente ao alvará de licença de construção, a AMTT não ter tido em conta o já referido na informação n° 109 a folhas 801, quanto à obra já estar concluída e ocupada, devendo tal lapso ser agora devidamente rectificado, quando da liquidação da taxa. (...”) - (cfr. doc. junto a fls. 1078 - 8° volume do processo instrutor);
F- Em 25/09/2002, foi lavrada a Licença de utilização do imóvel identificado em 2, da qual consta a seguinte NOTA: “Deverá ainda ser pago valor de 92.587,42 euros, relativo ao lapso de licença de construção ter sido taxada sem agravamento, pelo facto do edifício já estar concluído e ocupado (fls. 805). A taxa foi cobrada em relação aos valores da época (Julho de 2001), por indicação da Dra. B….” (cfr. fls. 1082, constantes do 7° vol. do Processo Administrativo);
G- A impugnante procedeu ao respectivo pagamento em 06 de Novembro de 2002 (cfr. fls. 1099 do 8.º vol. do processo instrutor e 10 dos autos);
3. A sentença recorrida anulou o acto de liquidação adicional impugnado – taxa agravada no montante de € 92.587,42, titulada através da Guia de Receita n.º 4258/02, de 31 de Outubro de 2002, emitida pela Câmara Municipal de Loures – com fundamento na procedência do vício de falta de fundamentação, o que deixou prejudicado o conhecimento dos vícios de violação de lei que haviam sido invocados na petição inicial.
A Câmara Municipal de Loures, discordando do decidido, interpôs recurso para este Tribunal, advogando que a sentença padece de erro de julgamento, porquanto, na sua perspectiva, o acto se encontra fundamentado. Por seu turno, a Impugnante interpôs recurso subordinado, ao abrigo do disposto no artigo 682.º do Código de Processo Civil (CPC), alegando que, ao conhecer prioritariamente o vício de forma de falta de fundamentação, a sentença violou o disposto no artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), preterindo o conhecimento dos vícios de violação de lei assacados ao acto, maxime, o vício decorrente da ausência de norma legal que autorize a prática do acto, vícios cuja procedência determinaria mais estável ou eficaz tutela dos seus interesses, porque geradores de anulação impeditiva da renovação do acto impugnado.
Antes de mais, importa definir qual dos recursos deve ser conhecido em primeiro lugar.
Como se sabe, o recurso subordinado encontra-se, por via de regra, dependente do recurso principal, caducando no caso de o recorrente principal desistir do recurso, de este ficar sem efeito ou de o tribunal dele não tomar conhecimento (artigo 682º, nº 3 do CPC, aplicável nos termos do artigo 2º, alínea e), do CPPT). Razão por que o conhecimento do recurso principal precede, em geral, o conhecimento do recurso subordinado. Todavia, sempre que a questão a decidir no âmbito do recurso subordinado tenha prioridade ou precedência em relação às questões a decidir no recurso independente, condicionando o conhecimento destas, então deve conhecer-se prioritariamente do recurso subordinado.
É esta, aliás, a posição firmada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, como se pode ver pela leitura dos acórdãos proferidos pela sua Secção de Contencioso Administrativo em 12/12/1996 e 14/05/2003, nos processos nº 40692 e 47333, respectivamente.
No caso vertente, julgamos que a questão colocada no recurso subordinado (erro na ordem de conhecimento dos vícios seguida pelo julgador) tem precedência em relação à questão colocada no recurso principal (erro no julgamento do único vício analisado), na medida em que o provimento daquele recurso determinará a revogação da sentença e a remessa dos autos ao Tribunal “a quo” para conhecimento prioritário dos vícios de violação de lei invocados, ficando, assim, prejudicado o conhecimento do recurso principal.
Impõe-se, assim, a apreciação prioritária do recurso subordinado.
3.1. Do recurso subordinado.
A Recorrente defende que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação da norma contida no artigo 124.° do CPPT, na medida em que conheceu primeiramente de um vício de forma, com preterição do conhecimento de vícios de violação de lei, maxime, do vício decorrente da ausência de norma legal que autorize a prática do acto.
A norma citada estabelece o seguinte:
Artigo 124.º
Ordem de conhecimento dos vícios na sentença
1 Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
2 Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:
a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;
b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.
Donde decorre que o preceito estabelece uma prioridade para o conhecimento dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
Todavia, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo reiteradamente a explicar, no âmbito da interpretação do conteúdo normativo da regra análoga vertida no artigo 57.º da LPTA, que apesar de a mais eficaz tutela dos interesses do recorrente impor, em princípio, o conhecimento prioritário dos vícios substanciais ou de fundo em relação aos vícios de forma, designadamente do vício de falta de fundamentação (dado que a verificação deste não impede a renovação do acto com igual configuração jurídica, expurgado, naturalmente, do vício que conduziu à anulação) Cfr., entre outros, o Acórdão da 1ª Secção do STA, proferido em 23.04.97, no Processo n° 35.367., tal regra não é, porém, absoluta, pois que pode acontecer que só a fundamentação possa revelar os vícios de fundo mediante a clarificação do enquadramento factual e jurídico em que assentou o acto impugnado. Isto é, pode justificar-se a precedência do vício de forma quando a indagação acerca da concreta motivação do acto se mostrar indispensável ao controlo dos vícios de substância.
Razão por que se tem reconhecido que a tutela mais eficaz dos interesses do recorrente pode passar pelo conhecimento prioritário dos vícios de forma, concretamente do vício de falta de fundamentação, sempre que a descoberta da motivação do acto possa oferecer elementos necessários ao juízo de verificação dos vícios de fundo, o que acontece sempre que ocorra uma absoluta falta de fundamentação (de facto e/ou de direito), por isso implicar a impossibilidade de conhecimento dos factos em que assentou o acto e/ou o seu enquadramento jurídico, inviabilizando o controlo jurisdicional dos vícios de fundo. Cfr., entre outros, os Acórdãos proferidos pela 1ª Secção do STA em 08.07.1993, no Processo n.º 31.138, em 22.09.1994, no Processo n° 32.702, e em 20.05.1997, no Processo n° 40.433.
Como se deixou referido no Acórdão proferido pela 1ª Secção deste Tribunal em 4/06/98, no proc. n.º 41.223, «o conhecimento prioritário do vício de forma apenas se imporá ao julgador quando o não conhecimento prévio desse vício inviabilize decisivamente o conhecimento dos alegados vícios de fundo, atinentes à legalidade intrínseca do acto, e que a regra do art. 57°, n° 2, al. a) da LPTA manda apreciar prioritariamente. Ou, dizendo de modo inverso, deixará de se impor o conhecimento prioritário do vício de forma, devendo respeitar-se a regra de apreciação do art. 57°, n° 2, al. a), sempre que a alegada falta ou insuficiência de fundamentação se revele, no caso concreto (e a apreciação tem, obviamente, que ser casuística) irrelevante para a apreciação e eventual procedência do vício ou vícios de fundo igualmente alegados.».
No caso vertente, nenhum dos vícios invocados pela Impugnante se pode considerar como proveniente de situações que possam determinar a nulidade do acto à luz dos critérios legais que o caracterizam, nem ela estabeleceu uma ordem de prioridade para esse conhecimento, pelo que a mais eficaz tutela dos seus interesses impunha, em princípio, o conhecimento prioritário dos vícios de violação de lei em relação ao vício de forma de falta de fundamentação.
Todavia, este vício de forma vem sustentado na absoluta omissão de motivação de direito do acto impugnado, por não ter sido feita qualquer referência à norma legal que permite a liquidação de uma taxa agravada, qualquer referência aos seus pressupostos legais ou à operação aritmética que conduziu ao montante liquidado.
Ora, tendo em conta que os vícios de violação de lei invocados se traduziam na inexistência, à data da liquidação, de qualquer norma que lhe pudesse servir de base legal, na violação do princípio da legalidade por se ter aplicado uma taxa de natureza sancionatória sem cobertura legal e, ainda, para o caso de a liquidação proceder da aplicação da Tabela de Taxas e Licenças desse Município, na invocação da sua inconstitucionalidade, impõe-se concluir que o conhecimento destes vícios substanciais depende da prévia determinação da base fundamentadora do acto. Ou seja, a apreciação e eventual procedência destes vícios depende do teor do discurso fundamentador do acto de liquidação, pois só ele pode fornecer ao julgador a razão ou base legal que sustenta o acto, ficando o conhecimento desses vícios inviabilizado sem essa prévia revelação e clarificação do enquadramento jurídico em que ele assentou.
Neste contexto, não merece reparo a sentença impugnada ao optar pelo conhecimento prioritário do vício de falta de fundamentação, improcedendo todas as conclusões da alegação do recurso subordinado.
3.2. Do recurso independente.
A decisão recorrida, depois de dar breve nota sobre o dever de fundamentação dos actos administrativos e tributários, concluiu que o acto impugnado não se encontra fundamentado de direito porquanto «a única justificação para a liquidação da taxa é o facto da obra já estar concluída e ocupada, mas não é feita qualquer referência à norma legal que permite tal agravamento, pelo que o acto não se encontra devidamente fundamentado de direito», não sendo possível «ao impugnante conhecer o iter cognoscitivo e valorativo do acto e permitir-lhe conhecer as razões que determinaram o agravamento de modo a ser possível aferir da legalidade do mesmo.».
É contra essa decisão que se insurge a Câmara Municipal da Loures, que perfilha o entendimento de que a liquidação se encontra fundamentada, tendo a Impugnante conhecimento de que ela decorre dos normativos constantes da Tabela de Taxas e Licenças desse Município.
Vejamos.
É inquestionável que a Administração tem o dever de fundamentar os actos que afectem os direitos ou os legítimos interesses dos administrados – em harmonia com o princípio plasmado no artigo 268.º da CRP e acolhido nos artigos 124.º do CPA e 77.º da LGT – e que esse dever se traduz na exposição das razões de facto e de direito que a levaram a praticar o acto e a dar-lhe determinado conteúdo, com a descrição expressa das premissas em que assenta.
Assim, e como tem sido exaustivamente repetido pela jurisprudência e pela doutrina, a fundamentação deve ser entendida como a obrigação de enunciar expressamente (de modo directo ou por remissão) os motivos de facto e de direito que determinaram o agente ou órgão decisor, esclarecendo o seu destinatário das razões que o motivaram e do porquê do sentido decisório, visando proporcionar ao administrado o conhecimento do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto.
Pelo que um acto só estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o artigo 487.º, n.º 2, do C.Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação.
Todavia, em relação à fundamentação de direito, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem decidido que, para que a mesma se considere suficiente, não é sempre necessária a indicação dos preceitos legais aplicáveis, bastando a referência aos princípios pertinentes, ao regime jurídico ou a um quadro legal bem determinado, devendo considerar-se o acto fundamentado de direito quando ele se insira num quadro jurídico-normativo perfeitamente cognoscível Entre tantos outros, os acórdãos proferidos pela 1ª Secção do STA em 27/02/1997, em 17/05/1998, e em 28/02/2002, nos processos n.º 36.197, 32.694 e 48071, respectivamente.
Conforme se dá nota no acórdão da Secção do Contencioso Administrativo proferido em 27/05/2003, no proc. n.º 1835/02, «tem sido entendimento deste Supremo Tribunal Administrativo que, na fundamentação de direito dos actos administrativos não se exige a referência expressa aos preceitos legais, bastando a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado - cf. p. ex., os acºs. de 28.02.02, rec. 48.071, de 28.10.99, rec. 44.051 (respectivo apêndice ao Diário da República, pág. 6103), de 8.6.98, rec. 42.212 (Apêndice, pág. 4263), de 7.5.98, rec. 32.694 (Apêndice, pág. 3223) e do pleno de 27.11.96, rec. 30.218 (Apêndice, pág. 828). Mais do que isto, tem sido dito que em sede de fundamentação de direito, dada a funcionalidade do instituto da fundamentação dos actos administrativos, ou seja, o fim meramente instrumental que o mesmo prossegue, se aceita um conteúdo mínimo traduzido na adução de fundamentos que, mau grado a inexistência de referência expressa a qualquer preceito legal ou princípio jurídico, possibilitem a referência da decisão a um quadro legal perfeitamente determinado - cf. Ac. pleno de 25.5.93, rec. 27.387 (Apêndice, pág. 309) e acºs. em subsecção de 27.2.97, rec. 36.197 (Apêndice pág. 1515) e supra citados acºs. de 7.5.98, rec. 32.694 e de 28.10.99, rec. 44.051)».
Orientação que, aliás, foi acolhida pelo Pleno daquela Secção, no acórdão de 25/03/93, no proc. n.º 27387, no qual se afirma que o dever de fundamentação fica assegurado sempre que, mau grado a inexistência de referência expressa a qualquer preceito legal ou princípio jurídico, a decisão se situe num determinado e inequívoco quadro legal, perfeitamente cognoscível do ponto de vista de um destinatário normal, concluindo-se, assim, que haverá fundamentação de direito sempre que, face ao texto do acto, forem perfeitamente inteligíveis as razões jurídicas que o determinaram.
Donde decorre que, mesmo perante esta corrente jurisprudencial, que sufragamos sem reservas, só em casos muito particulares (como eram, afinal, os analisados nos arestos citados) se pode concluir que um acto se encontra fundamentado de direito apesar de nenhuma referência legal directa existir no texto do acto. E tal só acontece quando, como se explica naquele acórdão de 27/05/2003, se mostrem verificadas duas condições:
«- A primeira é a de que se possa afirmar, inequivocamente, perante os dados objectivos do procedimento, qual foi o quadro jurídico tido em conta pelo acto;
- A segunda é a de que se possa concluir que esse quadro jurídico era perfeitamente conhecido ou cognoscível pelo destinatário, hipotizando-se que o seria por um destinatário normal na posição em concreto em que aquele se encontra.
A segunda condição não funciona sem a primeira, pois esta integra-a. Se não se sabe qual o quadro jurídico efectivamente tido em conta pelo acto, jamais pode ser realizada; e, por isso, é irrelevante que o destinatário possa saber, e até saiba, qual o quadro jurídico que deveria ter sido considerado.
O destinatário não se pode substituir nem ao acto nem ao autor do acto. A fundamentação é requisito do acto. E o destinatário tem o direito de saber qual o quadro jurídico que foi levado em consideração, ao abrigo de que regime legal entendeu o autor do acto praticá-lo.»
Ora, no caso presente, os elementos constantes dos autos e a materialidade vertida no probatório da sentença não fornecem elementos capazes de conduzir à conclusão de que se encontram preenchidas estas duas condições. A Câmara Municipal de Loures liquidou à Impugnante, em 6/08/01, por licença de construção, a taxa de 4.644.518$00, ao abrigo do artigo 68.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Licenciamento Municipal de Obras Particulares à data em vigor (aprovado pelo DL 445/91, de 20.11, com a redacção conferida DL 250/94, de 15.10), e um ano depois, mais precisamente em 31/10/02, procedeu à liquidação de uma taxa agravada com a seguinte fundamentação: «Deverá ainda ser pago o valor de € 92.587,42, relativo ao lapso da licença de construção ter sido taxada sem agravamento, pelo facto do edifício já estar concluído e ocupado (fls. 805). A taxa foi cobrada em relação aos valores da época (Julho de 2001), por indicação da Dra. B….».
Do acto não consta, pois, qualquer referência à norma ou quadro jurídico que sustenta a liquidação desta taxa agravada e do seu modo de cálculo. E as informações que o precederam também não referenciam minimamente esse quadro legal.
Assim, em nenhum momento se fica a saber em que preceito, disciplina jurídica, princípio geral ou quadro normativo se apoia a Câmara Municipal para esta exigência de cariz nitidamente sancionatório, quando, tratando-se de acto “agressivo”, lhe incumbia um especial dever de enunciar a base legal da sua actuação. E, por isso, também não o poderá saber, em princípio, o destinatário, tanto mais que o regime jurídico ao abrigo do qual fora liquidada a taxa pela licença de construção (acima apontado) não prevê a cobrança de quaisquer outras taxas, designadamente agravadas, para o facto de o edifício já estar construído à data da emissão de licença de construção.
Por outro lado, ainda que se pudesse supor ou conjecturar que essa taxa agravada resultava da aplicação de norma aprovada pelo município no exercício do seu poder regulamentar próprio, designadamente da sua Tabela de Taxas e Licenças, sempre se imporia a referência ao concreto diploma legal aplicado, tendo em conta que o Município de Loures aprova e publica anualmente um Regulamento da Tabela das Taxas e Licenças, para vigorar apenas pelo período de um ano civil, pelo que sempre seria essencial, para a devida fundamentação do acto, a referência expressa e explícita ao concreto diploma que suporta a liquidação.
Tanto basta para concluir que a fundamentação externada não dá a conhecer todo o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela entidade decidente, de maneira que o interessado possa compreender, em plenitude, o concreto regime legal tido em conta, a razão jurídica de lhe ser aplicada uma taxa agravada e de esta ascender ao referenciado montante de € 92.587,42.
Neste contexto, não podendo afirmar-se que o acto impugnado foi praticado num quadro jurídico-normativo perfeitamente cognoscível, e não revelando a Impugnante conhecê-lo – como se evidencia pela invocação dos vícios de violação de lei por inexistência de norma que possa servir de base à liquidação e aplicação de uma taxa sancionatória sem cobertura legal (sendo certo que só invocou a inconstitucionalidade da referida Tabela de Taxas numa atitude de defesa cautelosa, para o caso de se poder vir a apurar que fora essa a sua fonte legal) – terá de concluir-se que procede o invocado vício de forma, por falta de fundamentação de direito.
Improcedem, pois, as conclusões deste recurso.
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento a ambos os recursos.
Sem custas o recurso independente (por a recorrente delas estar isenta nos processos instaurados até 1/01/2004) e custas do recurso subordinado pelo respectivo recorrente, com procuradoria que se fixa em 1/6.
Lisboa, 17 de Novembro de 2010. - Dulce Manuel Neto (relatora) - Brandão de Pinho - António Calhau.