Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0583/09
Data do Acordão:10/21/2009
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LÚCIO BARBOSA
Descritores:IRS
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
ÓNUS DE PROVA
CUSTOS DE EXERCÍCIO
ELEMENTOS COMPROVATIVOS DO PAGAMENTO
Sumário:I – Apresentando o contribuinte como prova de pagamentos feitos a um empreiteiro por trabalhos por este realizados num imóvel apenas o comprovativo de cheques (únicos documentos na sua posse) é legítimo que a AF não aceite, como comprovativo daquele pagamento, os referidos cheques.
II – As despesas devem ser documentadas através de factura / recibo.
III – Porém, e na decorrência do princípio do inquisitório, a AF pode exigir ao contribuinte outras provas e efectuar, face a tal princípio, as diligências tendentes a demonstrar a afectação de tais pagamentos àquela finalidade.
IV – No limite, pode efectuar uma inspecção à escrita do empreiteiro, diligência que está vedada ao contribuinte.
V – O princípio do inquisitório situa-se a montante do ónus de prova.
Nº Convencional:JSTA00066036
Nº do Documento:SA2200910210583
Data de Entrada:05/29/2009
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF COIMBRA PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR FISC - IRS.
DIR PROC FISC GRAC - LIQUIDAÇÃO.
Legislação Nacional:LGT98 ART58 ART74 N1.
CIRS88 ART51 A.
Referência a Doutrina:LEITE DE CAMPOS E OUTROS LEI GERAL TRIBUTÁRIA COMENTADA E ANOTADA 3ED PAG268.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A…, identificada nos autos, impugnou judicialmente, junto do TAF de Coimbra, a liquidação de IRS do exercício de 2000.
O Mm. Juiz daquele Tribunal julgou a impugnação improcedente.
Inconformada, a impugnante trouxe recurso para este Supremo Tribunal. Formulou as seguintes conclusões nas respectivas alegações de recurso:
1. Do dever de actuação balizada pelos princípios da justiça e da imparcialidade, com concretização no art. 58º da LGT, decorre para a AF uma particular injunção normativa de actuação segundo “critérios de isenção na averiguação das situações fácticas, realizando todas as diligências que se afigurem necessárias para averiguar a verdade material, independentemente de os factos a averiguar serem contrários aos interesses patrimoniais que à administração tributária cabe defender”;
2. Por força dessa norma, a AF deve realizar todas as diligências que sejam objectivamente relevantes para a concreta averiguação da realidade factual em que a decisão do procedimento deve assentar, trazendo a essa instância todas as provas relativas à situação fáctico-material decidenda;
3. As regras e critérios do ónus da prova não interferem com a actuação do princípio do inquisitório, sendo que este actua funcionalmente antes de definida a matéria de facto, como dimensão aquisitiva dos elementos necessários à decisão, não podendo a AF valer-se das regras do artigo 74º da LGT, para deixar de realizar as diligências que sejam necessárias ao apuramento da verdade material.
4. A actuação oficiosa da AF não pode ser afastada sob pretexto de pôr em risco a eficiência e a viabilidade do sistema, principaliter independentemente de um juízo de ponderação concreta sobre a actividade administrativa omitida, designadamente quanto aos meios administrativos necessários à sua prossecução.
5. A AF não podia, ao abrigo do que lhe é exigido no artigo 58º da LGT, recusar a total irrelevância probatória endoprocedimental dos cheques entregues para pagamento de obras realizadas no imóvel alienado, sem previamente ter confirmado ou infirmado junto do sujeito em causa a realização das obras pagas por aqueles cheques e se a factura respectiva foi ou não emitida e porque não foi entregue à recorrente.
6. Essa actuação não configura uma actividade susceptível de postergar o princípio da eficiência ou a viabilidade do sistema, reconduzindo-se a uma actividade cognoscitiva simples, possível e rapidamente realizável, não se vislumbrando como pode a mesma ser vista e entendida como a tradução de uma imposição desproporcionada aos agentes administrativos.
7. Não podendo ignorar-se, em qualquer caso, que o imputado incumprimento de “obrigações declarativas e de documentação”, sempre terá na sua base uma actuação ilegal de um terceiro (não entrega/emissão da factura correspondente aos serviços prestados), sendo que, perante essa realidade, torna-se incompreensível que a administração deixe de actuar junto da fonte da inexistência dos elementos que considerou necessários à comprovação dos encargos, cuja efectiva realização material, apenas contestou por motivos formais, que indevidamente é deixada passar em claro face ao princípio da legalidade, da prossecução do interesse público, da justiça e da imparcialidade.
8. Ao ter decidido como decidiu, o Tribunal violou abertamente a injunção tipificada no artigo 58° da LGT.
9. E, ao interpretar a norma do artigo 58° da LGT, em conjugação com o artigo 74°, n. 1, do mesmo diploma, no sentido de que a actuação inquisitória administrativa está condicionada pelas regras do ónus da prova, aplicou norma contrária aos princípios da justiça, da imparcialidade e da boa fé, constitucionalmente tutelados no artigo 266° da norma normarum.
10. Sendo essas normas (58º e 74°/1 LGT) inconstitucionais, por violação dos referidos parâmetros, também quando interpretadas no sentido imediato que resulta dos termos da decisão recorrida, ou seja, no sentido de que a imposição legal de um ónus da prova ao contribuinte determina que a administração se abstenha de realizar oficiosamente as diligências necessárias e adequadas ao apuramento da verdade material quando o contribuinte não logre dar cumprimento a esse ónus.
Não houve contra-alegações
O EPGA junto deste Supremo Tribunal defende que o recurso não merece provimento.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
2. É a seguinte a matéria de facto fixada na instância:
1. Através do ofício n.º 3453. de 2004.05.04. da Direcção de Finanças de Coimbra, foi a Impugnante notificada para enviar para o Serviço de Finanças de Coimbra I os documentos comprovativos de rendimentos e das retenções na fonte respeitantes ao ano de 2000.
2. Em 2004.08.18, a impugnante e o marido apresentaram no Serviço de Finanças de Coimbra 1 a declaração de rendimentos modelo 3, declaração de substituição relativa a IRS, de 2000, bem como o respectivo anexo G, tendo preenchido o quadro 4 deste último [ALIENAÇÃO ONEROSA DE DIREITOS REAIS SOBRE BENS IMÓVEIS E AFECTAÇÃO DESTES A ACTIVIDADE COMERCIAL, INDUSTRIAL, AGRÍCOLA, SILVÍCOLA OU PECUÁRIA – art. 10º, n. 1, al. a)] nos seguintes termos: …
3. A declaração de rendimentos a que alude o n. anterior deu origem, em 2004.11.18, à seguinte liquidação: …
4. Tendo sido notificada da liquidação a que alude o n. anterior, a impugnante deduziu, em 2005.03.16, reclamação graciosa nos termos que constam do documento de fls. 15 a fls. 40 do apenso, que aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos, o qual foi autuado no Serviço de Finanças de Coimbra 1 com o n. 0728-05/400051.0;
5. Na reclamação graciosa a que alude o n. anterior foi, em 2005.11.03, lavrada a informação que integra fls. 48 a fls. 49 do apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos e de onde, além do mais, consta o seguinte:
“( ..).
4. Ora, tendo em conta a venda do prédio em 07/02/2000, por € 49.879,79, que havia sido adquirido em 30/4/1998 e que provocou a Mais-Valia, verificamos que o reclamante juntou agora à petição, nomeadamente de fls. 8 a 15 dos autos, os seguintes encargos com obras de beneficiação do prédio, que se enquadram na redacção do artigo antes indicado:
4.1. – Recibo n. 1252/A, emitido em 28/12/1998 por B…, Ld., que comporta as facturas nºs A/1447; A/1520; A/1621; A/1832; A/1922, de fls. 8 a 13, no valor total de € 1.086,06);
4.2. – Factura n. 1973, emitida em 20/5/1999 por C…, Ld., a fls. 14 e 15, no montante de € 2.441,11 (490.001$00);
5. Quanto aos documentos juntos aos autos de fls. 16 a 29, e referidos no ponto 7 da petição, na quantia global de € 10.724,15, são cópias de cheques emitidos pela ora reclamante, sujeito passivo B e pelo seu marido, … alguns à ordem de D… e outros sem qualquer indicação e ainda a documentos de consulta de movimentos, passado pelo Banco E…, que descreve o levantamento dos respectivos cheques;
6. No entanto, os documentos referidos no número anterior, não comprovam qualquer encargo com o prédio em causa, pois não têm suporte legal, por não se encontrarem documentados com qualquer factura / recibo emitido pelo prestador de serviços, não sendo, por isso, de considerar aquela quantia como um encargo / despesa previsto no já citado art. 51º;
7. Nesta conformidade, parece-me ser de atender a pretensão da reclamante, quanto aos encargos comprovadamente realizados no valor total de € 3.530,17, não sendo de atender os pagamentos efectuados na quantia de € 10.724,15, uma vez que não têm enquadramento legal (…)”.
6. Sobre tal informação incidiu parecer concordante e proposta de decisão em conformidade, a qual foi notificada à ora impugnante e seu ilustre mandatário através dos ofícios nºs 6760 e 6761, ambos de 2005.11.21;
7. A ora impugnante não exerceu o direito de audição, pelo que, em 2005.12.14, o Senhor Chefe do Serviço de Finanças de Coimbra lavrou decisão definitiva de deferimento parcial do pedido em conformidade com a informação supra;
8. De tal decisão foram a impugnante e o seu ilustre mandatário notificados através dos Ofícios nºs 7245 e 7246, recebidos em 2006.01.05 e em 2006.01.03, respectivamente;
9. A presente impugnação deu entrada neste TAF de Coimbra em 2006.01.16.
10. Os cheques nºs 4672953694, de 98.11.04, no valor de 1.200.000$00, sacado sobre a conta n. 17107880001 do banco F…, e n. 4109293740, de 98.05.22, no valor de 200.000$00, sacado sobre a sua conta n. 02100490079 do banco E… foram emitidos à ordem de “D…”.
11. No verso do cheque n. 5141482068, de 98.07.24, no valor de 100.000$00, sacado sobre a conta n. 021 00490079 do banco E… foi aposta a assinatura de “D…”.
3. A questão a resolver está explicitada pelo recorrente na conclusão 9ª das suas alegações de recurso.
Concretamente em causa está a interpretação do art. 58º da LGT (por contraposição ao art. 74º, 1, do mesmo compêndio legislativo).
Dispõe aquele primeiro artigo, sob a epígrafe “princípio do inquisitório”:
“A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”.
Comentando este artigo, escreveu-se na Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, 3ª Edição, de Diogo Leite de Campos e Outros, a págs. 268:
“O princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à actividade da administração tributária (art. 266º, n. 1, da CRP, e 55º da LGT) e é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (art. 266º, n. 2, da CRP e 55º da LGT).
“No domínio do procedimental, esta obrigação impõe que a administração tributária não aguarde pela iniciativa do interessado que formulou o pedido que deu origem ao procedimento, devendo ela própria tomar a iniciativa de realizar as diligências que se afigurem como relevantes para correcta averiguação da realidade factual em que deve assentar a sua decisão.
“Por outro lado, aquele dever de imparcialidade reclama que a administração tributária procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração”.
E adiante:
“No entanto, a falta de realização pela administração tributária de diligências que lhe seja possível levar a cabo ou a falta de solicitação aos interessados de elementos probatórios necessários à instrução do procedimento, constitui vício deste, susceptível de implicar a anulação da decisão nele tomada”.
Concordamos inteiramente com este entendimento da citada norma legal.
Vejamos então se, no caso concreto, a AF estava obrigada a proceder a diligências suplementares, face aos elementos fornecidos pelo recorrente, e, na afirmativa, quais.
Diremos desde já que entendemos correcta a afirmação da recorrente quando diz que o ónus da prova (que no caso era seu) não impossibilitava diligências da Administração.
Já veremos em que termos.
Vejamos então.
A AF não aceitou as despesas apresentadas pelo recorrente aqui em causa por razões que o probatório anota no seu ponto 5: “os documentos referidos no número anterior (cheques), não comprovam qualquer encargo com o prédio em causa, pois não têm suporte legal, por não se encontrarem documentados com qualquer factura / recibo emitido pelo prestador de serviços, não sendo, por isso, de considerar aquela quantia como um encargo / despesa previsto no já citado art. 51º”.
Que dizer?
Pois bem.
Parece-nos que o suporte documental deve fazer-se através de factura / recibo.
Ora, o cheque, a se, nada documenta senão uma despesa incógnita que não pode relacionar-se com a actividade do contribuinte – necessária para a obtenção do rendimento.
Porém, e diferentemente do que acontece com o IVA, em sede de IRS (como de IRC), a prova pode fazer-se através de outros meios.
Assim, posto perante a emissão de cheques, que a AF não considerava – e bem – prova suficiente, o que poderia / deveria fazer a AF?
Fácil: deveria pedir informação suplementar ao contribuinte, realizando inclusive inspecção ao empreiteiro, para saber se as importâncias em causa se reportavam ou não às obras indicadas pelo contribuinte.
Mas tal não seria um ónus excessivo para a administração?
Ao interpretar a alínea a) do art. 51º do CIRS, o Mm. Juiz a quo defende que se está perante uma obrigação de comprovação particularmente exigente, pelo que o cheque nunca poderia ser um meio idóneo para documentar a relação entre a ordem de pagamento nele titulada e uma qualquer obra, fosse ou não relacionada com um imóvel, muito menos para documentar a relação entre esse pagamento e a valorização do imóvel em causa.
Para o Mm. Juiz a quo o meio idóneo para a impugnante documentar a relação entre o pagamento e determinada obra seria a factura, visto que é o documento onde, por imposição legal, se descrevem a quantidade e a denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados.
E o princípio do inquisitório não pode subverter as regras do ónus da prova.
Será assim?
Diremos desde já que não podemos concordar com tal princípio, erigido como fim em si mesmo.
Na verdade, se por qualquer motivo não houvesse factura (até por se ter perdido?) estava o contribuinte impedido – nesta tese – de deduzir os encargos inerentes.
Não pode ser.
E isto é assim – como dissemos – em sede de IRS (ou de IRC).
É óbvio que se pode compreender e aceitar que perante um simples cheque não possa a administração fiscal partir para a consideração de que a eventual despesa por ele titulada se destinou ao fim em causa.
E também não deixa de ser verdade que, como bem refere o Mm. Juiz a quo, o ónus de prova, no caso, cabe à impugnante, pois pretende ela prevalecer-se da dedutibilidade dos encargos suportados com a valorização do imóvel, sendo pois seu ónus declarar o seu valor, comprovar o pagamento e justificar a origem desse pagamento. É o que resulta aliás do n. 1 do art. 74º da LGT.
Mas esse ónus não pode funcionar automaticamente, pois só perante a impossibilidade de comprovação das despesas (ónus a cargo do contribuinte) é que este pode ser penalizado em função do dito ónus de prova.
Ou seja, tem razão a recorrente quando refere que o princípio do inquisitório está a montante do problema do ónus da prova.
E haveremos igualmente de convir que a necessidade / obrigação da AF intervir no uso do princípio do inquisitório terá sempre a ver com a questão em concreto.
Ora, no caso concreto, é de acolher a argumentação da recorrente, quando refere “que o facto da recorrente ter apresentado os cheques como prova documental de pagamentos ao empreiteiro responsável pela obra, por não ter na sua posse as respectivas facturas / recibos, não resulta de um qualquer dever da recorrente, razão pela qual, acrescidamente, também por esse motivo se justificaria uma actividade inquisitória da AF junto do sujeito em causa em termos de se apurar se a factura tinha sido emitida e na negativa o porquê de não existir documento formal descritivo dos serviços prestados, a induzir, neste último caso, o incumprimento dos deveres fiscais acessórios e de fraude em sede de IRS e IVA”.
Quer isto dizer que, na hipótese dos autos, tendo o contribuinte declarado pagamentos, documentados por cheque, com o destinatário e fins definidos, mister seria que a AF, não aceitando – e bem – esses cheques como custo, por não virem acompanhados de outros elementos julgados indispensáveis (factura / recibo), instasse o destinatário dos pagamentos no sentido de comprovar esse pagamento e o fim a que se destinava.
Mais e decisivamente:
A AF tinha a possibilidade de proceder a uma inspecção da escrita desse destinatário, em ordem a apurar a prova e a causa desses pagamentos.
Possibilidade que estava de todo vedada à recorrente.
Dito isto, é possível concluir que a AF não podia sem mais recusar os comprovativos apresentados (cheques), sem efectuar outras diligências que comprovadamente só ela AF podia efectuar, não estando na disponibilidade e poder do contribuinte realizar.
E é igualmente de concluir, face à questão que colocamos anteriormente, que a realização de tais diligências não constituiriam um ónus excessivo para a administração.
Mal andou pois a AF em recusar sem mais os comprovativos apresentados (cheques), sem inquirir o seu destino, nos termos atrás apontados.
Mal andou igualmente o Mm. Juiz a quo quando sufragou esse entendimento da AF.
Em suma, a decisão recorrida não pode manter-se.
4. Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, julgando-se a impugnação procedente no segmento impugnado.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Outubro de 2009. - Lúcio Barbosa (relator) - Jorge Lino - Casimiro Gonçalves.