Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01115/06
Data do Acordão:12/20/2006
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL.
RECURSO PARA MELHORIA DA APLICAÇÃO DO DIREITO.
NULIDADE INSUPRÍVEL.
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA.
BAIXA DO PROCESSO À AUTORIDADE ADMINISTRATIVA.
Sumário:I - O disposto no n.º 2 do artigo 73º do RGCO é aplicável subsidiariamente ao Regime Geral das Infracções Tributárias.
II - Aquele nº 2 abrange tanto as decisões concretizadas por sentença como as por despacho a que se refere o seu artigo 64º.
III - O recurso aí previsto visa não só a uniformidade da jurisprudência mas também a melhoria da aplicação do direito, não devendo restringir-se apenas aos casos em que estejam em causa questões de interpretação ou aplicação da regra jurídica, propriamente ditas, mas compreender também casos de erros claros na decisão judicial ou seja comprovadamente duvidosa a solução jurídica.
IV - Decretada, em processo judicial de contra-ordenação tributária, a nulidade insuprível resultante da ausência de fundamentação da decisão administrativa que aplica a coima, não há lugar à absolvição da instância mas, antes, à baixa dos autos à AT, para eventual sanação da mesma e renovação do acto sancionatório.
Nº Convencional:JSTA00063772
Nº do Documento:SA22006122001115
Data de Entrada:11/09/2006
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A...
Recorrido 2:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF LOURES DE 2005/03/08.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - CONTRA ORDENAÇÃO.
Legislação Nacional:RGIT01 ART63 ART83.
RGCO ART73 ART64 ART62.
CPPTRIB99 ART280 N4.
CPA91 ART120.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC503/03 DE 2003/06/18.; AC STA PROC531/04 DE 2004/09/22.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA E OUTRO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS ANOTADO PAG505-506 PAG403-405.
FARIA DA COSTA IN BFDC 1986 N62 PAG166.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I A Magistrada do MP junto do TAF de Lisboa II, não se conformando com a sentença do Mmo. Juiz daquele Tribunal de 8/3/05 que absolveu da instância a arguida A..., e não conheceu do mérito da causa no Processo de Contra-Ordenação n.º 597/04.6BELRS, dela vem interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
1 – Não obstante a coima aplicada à arguida pela autoridade administrativa não ultrapassar um quarto da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância e não ter sido aplicada sanção acessória – cfr. artigo 83.º do RGIT – o que impediria a interposição do presente recurso,
2 – Sucede que o mesmo se mostra manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito e visa, inequivocamente, a uniformidade da jurisprudência relativa à questão em causa que é
3 – Saber se a consequência de ser decretada a nulidade insuprível decorrente da falta de requisitos essenciais da decisão da autoridade administrativa que aplicou à arguida uma coima,
4 – Que tem sido objecto de decisões, transitadas em julgado, proferidas por este Tribunal em sentido não coincidente com a decisão judicial sob recurso a saber: decisão proferida nos autos de recurso de contra-ordenação n.ºs 488/04.0BELRS, 166/05.3BELRS, 219/05.8BELRS, 507/05.3BELRS
5 – Bem como de Acórdãos do STA a saber: Ac.s n.º 0531/04, de 22.9.2004, 01507/02, de 6.11.2002,
6 – Importando, pois, uniformizar a jurisprudência,
7 – Sendo certo que a decisão sob recurso contém claro erro de direito sendo comprovadamente duvidosa a solução jurídica preconizada na decisão sob recurso, sendo pois o presente recurso manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito e à promoção da uniformidade da jurisprudência.
8 – São, pois, esses objectivos que a recorrente pretende alcançar através deste recurso.
9 – Assim requer-se que o mesmo seja admitido, nos termos do artigo 73.º, n.º 2 do RGCO, aplicável subsidiariamente ao RGIT, por força do disposto no artigo 3.º, al. b) do RGIT, conforme Ac. do STA de 18.6.2003, rec. n.º 0503/03.
10 – Quanto à questão sob recurso, diremos:
11 – A declaração de nulidade da decisão de aplicação da coima não tem, como efeito, a absolvição dos arguidos da instância, como refere o Mmo. Juiz na decisão sob recurso;
12 – A declaração de nulidade da decisão de aplicação de coimas, nos termos do disposto no artigo 63.º do RGIT tem por efeito a anulação dos termos subsequentes do processo que dela dependam absolutamente, devendo, porém, aproveitar-se as peças úteis ao apuramento dos factos;
13 – As nulidades previstas no artigo 63.º do RGIT não são susceptíveis de constituir excepção dilatória determinante da absolvição da instância, figura jurídica não existente no processo contra-ordenacional.
14 – O Mmo. Juiz “a quo” ao decidir como decidiu, absolvendo a arguida da instância, violou, claramente, o disposto no art.º 63.º do RGIT,
15 – Para além de ter decidido em sentido contrário ao de outras decisões deste TAF e de Acórdão do STA sobre a mesma matéria – cfr. certidões juntas.
16 – A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que, declarando a nulidade da decisão da autoridade administrativa, declare a nulidade dos termos que lhe são subsequentes e ordene a remessa do processo de contra-ordenação ao Serviço de Finanças competente para ser proferida decisão que dê cumprimento ao disposto nos artigos 63.º, n.º 3, e 79.º, n.º 1 do RGIT.
17 – Normas jurídicas violadas: artigos 63.º, n.ºs 1, al. d) e 3, e 79.º, n.º 1 do RGIT.
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – A primeira questão que se nos coloca é a da admissibilidade ou não do presente recurso.
Com efeito, nos termos do n.º 2 do artigo 83.º do RGIT, o arguido e o MP só podem recorrer da decisão do tribunal de 1.ª instância se o valor da coima ultrapassar um quarto da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância e for aplicada sanção acessória.
O que no caso em apreço se não se verifica, pois nem a coima aplicada ultrapassa aquele valor nem à arguida foi aplicada qualquer sanção acessória, como se constata do despacho que aplicou a coima e constante de fls. 24 dos autos.
Todavia, quer a doutrina quer a jurisprudência têm vindo a admitir a aplicação do artigo 73.º, n.º 2 do RGCO às infracções tributárias, por força do artigo 3.º, alínea b) do RGIT (v., a este propósito, o Ac. deste Tribunal de 18/6/03, proferido no processo 503/03, e Jorge de Sousa e Simas Santos, in RGIT Anotado, págs. 505 e 506).
Prevê esse normativo a aceitação do recurso da sentença, a requerimento do arguido ou do MP, quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
É que a não admissibilidade de recurso em matéria contra-ordenacional suscita algumas dúvidas de constitucionalidade.
Porém, como refere Jorge de Sousa na obra citada, a fls. 506, a possibilidade de recurso assim assegurada pelo n.º 2 do artigo 73.º do RGCO já parece assegurar eficazmente os direitos do arguido, por permitir o controle jurisdicional dos casos em que haja erros claros na decisão judicial ou seja comprovadamente duvidosa a solução jurídica.
Aliás, como salienta o mesmo autor, o próprio CPPT, ao prever uma alçada idêntica para os processos de impugnação judicial e de execução fiscal (art.º 280.º, n.º 4), não deixou de prever a possibilidade de recurso em algumas situações, que são as de oposição da decisão recorrida com a jurisprudência do STA ou do TCA ou com mais de três sentenças de tribunais de 1.ª instância (n.º 5 do mesmo artigo).
E, não sendo aplicável essa possibilidade de recurso prevista no CPPT ao processo contra-ordenacional tributário, não seria compreensível que não existisse também neste “uma válvula de segurança do sistema de alçadas que permita assegurar a realização da justiça pelo menos em casos em que se esteja perante uma manifesta violação do direito, sendo essa possibilidade uma exigência do direito de defesa constitucionalmente consagrado”.
Daí que se conclua que seja, pois, aplicável aqui subsidiariamente o preceituado no n.º 2 do artigo 73.º do RGCO.
Por outro lado, não obstante neste normativo se falar apenas em recurso da sentença, entendemos que tal admissibilidade se deve estender igualmente aos despachos substitutivos ou alternativos à sentença, previstos no n.º 2 do artigo 64.º do DL 433/82, de 27/10.
“É que, como se diz no aresto citado, não existe nenhuma diferença de natureza entre as duas decisões.
O artigo 64.º, n.º 2 do RGCO prevê a decisão por despacho quando o juiz não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido e o MP não se oponham.
Assim, parece que os casos em que o juiz deve decidir por despacho são aqueles em que a decisão final não dependa da realização de diligências de prova.
É o caso da existência de excepções, em que a questão a decidir seja apenas de direito ou o processo forneça já os elementos necessários à decisão (cfr. cit., pág. 490).
Quer dizer: a alternativa da decisão por despacho ou sentença não radica na complexidade das questões a decidir pelo que aquele n.º 2 do dito art.º 73.º se deve aplicar indiferentemente a ambas as decisões”.
Refere-se o normativo em causa à necessidade manifesta do recurso para melhoria da aplicação do direito ou para promoção da uniformidade da jurisprudência.
No caso em apreço, o recorrente alega não só a necessidade de uniformização da jurisprudência, dada a existência de diversas decisões que identifica, não só do tribunal recorrido como também deste STA, em sentido não coincidente com a decisão sob recurso, mas ainda a necessidade do recurso para a melhoria da aplicação do direito, face ao claro erro de direito que a decisão recorrida contém.
E, “dado o escopo referido – válvula de segurança do sistema – ele (o recurso) não deve restringir-se, ao contrário de que parece resultar da sua letra, aos casos em que apenas estejam em causa questões de interpretação ou aplicação da regra jurídica, propriamente ditas. Antes deve admitir-se em termos de “permitir o controle jurisdicional dos casos em que haja erros claros na decisão judicial ou seja comprovadamente duvidosa a solução jurídica” ou em que “se esteja perante uma manifesta violação do direito”- cfr. cit., pág. 506.” (Ac. do STA supra citado).
Assim, quer por este motivo, quer por necessidade de uniformidade da jurisprudência, é de aceitar o presente recurso.
O objecto deste é, então, o de saber quais as consequências da nulidade insuprível resultante da ausência de fundamentação da decisão administrativa que aplica a coima.
Para o Mmo. Juiz “a quo” tal nulidade, na medida que inquina a acusação, ou seja, a decisão que aplica a coima, consubstancia uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa pelo tribunal.
Dispõe o artigo 63.º, n.º 1, al. d) do RGIT que constitui nulidade insuprível do processo de contra-ordenação fiscal a falta de requisitos legais da decisão de aplicação de coima.
Tais requisitos estão consagrados no artigo 79.º do mesmo diploma, entre os quais se contam “a coima e sanções acessórias, com indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação” e a “indicação de que vigora o princípio da “reformatio in pejus”.
Nos termos dos n.ºs 3 e 5 do citado artigo 63.º do RGIT, a nulidade referida no n.º 1 do mesmo preceito, que é de conhecimento oficioso e pode ser arguida até a decisão se tornar definitiva, tem por efeito a anulação dos termos subsequentes do processo que do acto inquinado dependam absolutamente, devendo, porém, aproveitar-se as peças processuais úteis ao apuramento dos factos.
Ora, como se tem vindo a dizer em inúmeros acórdãos desta Secção (v. Acs. de 6/11/02, no processo 1507/02, de 18/2/04, no processo 1747/03, e de 22/9/04, no processo 531/04, entre outros), a qualificação dessa nulidade como insuprível não significa que ela não possa ser sanada, mas antes, que o decurso do tempo não tem esse efeito, pelo que a sanação respectiva só pode concretizar-se com a supressão da deficiência ou irregularidade, designadamente com a prática, de acordo com a lei, do acto omitido ou da irregularidade praticada.
Assim, a nulidade por falta dos requisitos legais da decisão de aplicação de coima não impede que venha a ser proferida nova decisão em substituição da anulada desde que esta ocorra até ao trânsito em julgado da decisão final, tanto na fase administrativa como na judicial.
O próprio art.º 19.º do CPPT estabelece que o tribunal ou entidade para onde subir um processo administrativo tributário deverá tomar a iniciativa de sanar ou mandar suprir qualquer deficiência ou irregularidade (cfr. Jorge de Sousa e Simas Santos, RGIT Anotado, 2.ª edição, págs. 403/05).
E, por força do que dispõe o citado n.º 3 do artigo 63.º do RGIT, apenas são anulados os actos processuais consequentes dos que conformam a nulidade, aproveitando-se as peças úteis ao apuramento dos factos.
Sendo que o limite temporal não é o momento em que os autos são tornados presentes ao juiz, ainda que tal apresentação valha como acusação – artigo 62.º, n.º 1 do RGCO – mas a definitividade da decisão que aplica a coima.
Como se refere no acórdão de 22/9/04, proferido no processo 531/04, “não pode, por outro lado, esquecer-se que, em rigor, a decisão que aplica a coima constitui, substancialmente, um acto administrativo, embora de conteúdo sancionatório, como decisão autoritária de um órgão da Administração, que, ao abrigo de normas de direito público, visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, cuja apreciação jurisdicional só não cabe exclusivamente aos tribunais administrativos e fiscais por razões de praticabilidade (cfr. art.º 120.º do CPA, o preâmbulo do DL 232/79, de 24 de Julho e ainda Faria da Costa, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra n.º 62, 1986, pág. 166).
De modo que não pode impedir-se a Administração de renovar o acto anulado, por vícios procedimentais, como é o caso”.
Assim, decretada, em processo judicial de contra-ordenação tributária, a nulidade insuprível decorrente da falta de fundamentação da decisão que aplica a coima, não há lugar à absolvição da instância mas, antes à baixa dos autos à AF para eventual sanação da mesma e renovação do acto sancionatório.
III – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2006. – António calhau (relator) – Baeta de Queiroz – Brandão de Pinho.