Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01786/19.4BELSB
Data do Acordão:07/02/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Sumário:O SEF não está obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando inexistem quaisquer indícios de que o interessado tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III.
Nº Convencional:JSTA000P26185
Nº do Documento:SA12020070201786/19
Data de Entrada:05/08/2020
Recorrente:A...
Recorrido 1:SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1. A…………., cidadão da Gâmbia, interpõe recurso per saltum para este STA da sentença proferida, em 10.11.2019, pelo TAC de Lisboa que julgou improcedente a acção administrativa de impugnação com carácter urgente, intentada contra o Ministério da Administração Interna, pedindo a anulação do despacho de 10.09.2019 da Directora Nacional Adjunta – que indeferira o pedido de anulação dessa decisão da Directora Nacional Adjunta do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em suplência da Directora Nacional, de 10.09.2019, que, ao abrigo do disposto na alíneas a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e no n.º 2 do artigo 37.º, da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, considerando o seu pedido de protecção internacional inadmissível, determinara a sua transferência para Itália, por ser este o Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional – requerendo a “revogação” dessa sentença, e a sua substituição por outra, que determine o procedimento de asilo pelo SEF, nos termos requeridos.
2. Para tanto alegou em conclusão:
“Em termos de conclusões, traduz-se em apreciar se o Tribunal a quo errou ao ter concluído, conforme fls. 17/17 da Douta Decisão que se transcreve:
…”Não se produzindo o efeito anulatório, nos termos descritos, sempre improcederia a ação, uma vez que os restantes fundamentos alegados pelo Autor, referindo-se a questões relativas à substância do pedido de proteção internacional, não cabem nesta sede apreciar, tendo razão a Entidade demandada nesta parte, quando alega que, decidindo-se pela transferência ao abrigo do procedimento especial de retoma cargo, já não lhe compete avaliar e decidir sobre o mérito do pedido de protecção internacional…”
O Tribunal a quo pugnou que o pedido de protecção internacional não reunia condições para ser admitido, instruído e submetido a decisão do membro do Governo responsável pela administração interna, nos termos previstos na Lei de Asilo, pelo que julgou a acção improcedente com a manutenção do Despacho da Diretora Nacional Adjunta, em suplência da Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.”
3. Não foram deduzidas contra-alegações.
4. O recurso “per saltum” foi admitido por este Supremo Tribunal, através do despacho de 11.05.2020.
5. Notificado o Ministério Público nos termos e para efeitos dos art.s 146º nº1 e 147º, nº 2, ambos do CPTA, o mesmo emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
6. Notificadas as partes do Parecer do Ministério Público, nada disseram.
7. Cumpre decidir sem vistos.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
São os seguintes os factos considerados provados pelas instâncias.
“1. Em 28.05.2015, o A. requereu protecção internacional e as suas impressões digitais foram registadas no sistema EURODAC, em Crotone, “Itália, sob a referência IT………., permanecendo em Itália até vir para Portugal em Agosto de 2019 (cf. fls. 3 e 34 a 40 e declarações do A. a fls. 26, do PA).
2. Em 07.08.2019, o A. requereu protecção internacional em Lisboa, Portugal, e as suas impressões digitais foram registadas no sistema EURODAC sob a referência PT……….., declarando ser A…………., nacional da Gâmbia, nascido em 01.01.1995 (cf. fls. 1, 2, 4 a 7, e 14 do PA).
3. Na sequência do referido em 2., os serviços do SEF autuaram o pedido do A. como Processo de Protecção Internacional n.º 1231/19 e como Processo de Determinação de Responsabilidade pela Análise do Pedido de Protecção Internacional (Regulamento Dublin) Retoma a Cargo n.º 01620/19 (cf. fls. 1 e 34 do PA).
4. Em 07.08.2019, no âmbito dos processos referidos em 3., o A. foi entrevistado, no Gabinete de Asilo e Refugiados (GAR) do SEF, e prestou declarações (cf. Auto de Entrevista/Transcrição a fls. 22 a 30 do PA).
5. Nas suas declarações o A., entre o mais, respondeu afirmativamente à pergunta “Está de boa saúde?” e negativamente à pergunta “Tem problemas de saúde?”, à pergunta “Está a ter acompanhamento médico?” respondeu “Não”, e perguntado sobre se está a ser medicado, respondeu que “Não” (cf. Auto de Entrevista/Transcrição a fls. 22 a 30 do PA).
6. Findas as declarações, foi, de seguida, elaborado um intitulado “Relatório” pelo SEF onde se diz “De acordo com as declarações prestadas pelo requerente […] e de acordo com as informações recolhidas, conclui-se que o mesmo:” e preencheu-se a quadrícula associada à seguinte situação “Apresentou pedido de protecção noutro país da União Europeia, Itália, (REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de Junho de 2013 que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida - Artigo 18.º, n.º 1)” (cf. fls. 29 e 30 do PA).
7. Do referido no ponto anterior foi de imediato dado conhecimento ao A. e, perguntado se tinha algo mais a declarar, disse: “Não quero voltar, quero ficar aqui e tentar fazer a minha vida aqui. Estive em Itália durante cinco anos e não tive documentos nem pude trabalhar” (cf. fls. 30 do PA).
8. Em 26.08.2019, os serviços do SEF remeteram às autoridades italianas, por correio electrónico, um pedido de retoma, relativamente ao A., invocando-se o registo EURODAC IT……….. e o artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento (UE) n.º 604/2013, mais se consignando que o A. formulou pedido de protecção internacional em 28.05.2015, em Crotone – Itália, e assinalando-se negativamente sobre o abandono do território dos Estados-Membros pelo requerente (cf. fls. 36 a 39 do PA).
9. Em 10.09.2019, as autoridades italianas responderam ao pedido de retoma a cargo formulado pelas autoridades portuguesas, aceitando a decisão de transferência do A. (cf. fls. 42 do PA).
10. Em 10.09.2019, foi elaborada a Informação n.º 1638/GAR/2019 onde, em síntese, se propõe que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A, da Lei do Asilo, o pedido de protecção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a Itália do A., nos termos do artigo 25.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin (cf. fls. 44 a 47 do PA).
11. Na mesma data, foi proferido despacho pela Directora Nacional Adjunta do SEF, em suplência da Directora Nacional, com o seguinte teor:
“[…]De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19º - A e no n.º 2 do artigo 37º, ambos da Lei n.º 27/08, de 30 de Junho, alterada pela lei nº 26/2014 de 05 de Maio, com base na informação n.º 1638/GAR/2019 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de protecção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como A………., nacional da Gâmbia, inadmissível.
Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do artigo 37º, n.º 3, da Lei n.º 27/08 de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei 26/14 de 5 de Maio, e à sua transferência, nos termos do artigo 38º do mesmo diploma, para a Itália, Estado Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional nos termos do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de Junho. ” (itálico nosso; cf. fls. 48 do PA).
12. Em 13.09.2019, o A. foi notificado da decisão referida em 11. (cf. fls. 50 do PA).
13. Em 16.09.2019, foi apresentado pedido de apoio judiciário para o A. (cf. fls. 51 a 57 do PA).
14. Em 27.09.2019, via SITAF, deu entrada a presente acção de impugnação (cf. fls. 1 dos autos).”
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O DIREITO

Vem o aqui recorrente interpor recurso de revista da decisão que julgou improcedente a ação por si interposta de anulação da decisão da Diretora Nacional Adjunta, em suplência da Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de 10.09.2019, que considerou o seu pedido de proteção internacional inadmissível, determinando que se proceda à sua transferência para Itália, por ser este Estado o Responsável pela análise do pedido de protecção internacional.

Para tanto refere que se impunha a procedência da referida ação já que o SEF deveria ter instruído oficiosamente o procedimento especial que lhe incumbia decidir, nele fazendo constar informação fidedigna e atualizada sobre o procedimento de asilo e condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália, por forma a verificar se, no caso concreto, existiam motivos que determinassem a impossibilidade da transferência do Recorrente, nos termos do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin, recorrendo, para o efeito, a fontes credíveis, obtidas, designadamente, junto do Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo do ACNUR e de pertinentes organizações de direitos humanos.

O que não foi feito.

Entendeu a decisão recorrida que:

“Ora, verificando tudo o alegado pelo Autor, quer no âmbito do procedimento de asilo quer, agora, em juízo, absolutamente nada do referido se mostra suscetível de inferir, ainda que com mero juízo de verosimilhança ou probabilidade séria, de este correr risco de tratamento desumano ou degradante e/ou que esteja numa situação concreta de grande vulnerabilidade que aumente aquele risco.

Na verdade, o Autor não relata (antes nega) quaisquer problemas de saúde ou outras circunstâncias pessoais especiais (idade, sexo, pertença a um grupo social especialmente vulnerável, percurso do requerente) que tornem a transferência um risco de colocação numa situação desumana ou degradante, que ponha em perigo a sua integridade física e psíquica.

Por outro lado, o Autor não logrou sequer alegar qualquer tratamento desumano ou degradante que tenha sofrido enquanto esteve em Itália, por cinco anos. Pelo contrário, afirma ter de lá saído para Portugal apenas porque não obteve documentos e não pôde trabalhar e que quer ficar em território nacional e tentar fazer a sua vida aqui.

Não havendo qualquer facto sequer alegado ou que resulte evidente dos autos que consubstancie uma probabilidade séria de o A., face à sua situação concreta, sofrer o risco de um tratamento desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, caso seja transferido para Itália, nem que ocorram quaisquer circunstâncias pessoais especiais, que o tornem especialmente vulnerável, na aceção que tem vindo a ser concretizada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (a qual tem sido, de resto, particularmente exigente na aplicação do § 2.º do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Dublin), e sendo estes os únicos fundamentos que obrigariam a Entidade demandada a proferir, eventualmente, decisão diversa, ainda que o Tribunal suscitasse oficiosamente a invalidade referida, haveria depois de fazer apelo ao princípio do aproveitamento do ato, legalmente positivado (pelo que a invocação oficiosa de tal invalidade seria, na prática e como se disse anteriormente, um ato inútil, legalmente proibido).

Ademais, também no que se refere à participação do interessado, está assente que o A. foi ouvido e teve oportunidade de se pronunciar quando confrontado com a questão da sua transferência para Itália e se ser este o Estado responsável pelo conhecimento do seu pedido de proteção internacional, estando assim cumprido o objectivo que se pretende com a participação do requerente de asilo. Além disso, nova pronúncia do A., face ao tudo o que vem exposto, revelar-se-ia incapaz de alterar o sentido da decisão ora impugnada.

Teria sempre, pois, total aplicação o disposto no artigo 163º, nº 5, do Código do Procedimento Administrativo, nomeadamente as suas alíneas a), segunda parte, e b).

Por um lado, a apreciação do caso concreto do A., conforme acima explanado, permite identificar, in casu, apenas uma solução como legalmente possível (a decisão de transferência, conforme foi proferida), uma vez que, não se enquadrado o A. em nenhuma das circunstâncias pessoais especiais que o tornem especialmente vulnerável e com o risco, sério, de sofrer tratamento desumano ou degradante, não se mostra possível outra decisão (não já, como usualmente defende a Entidade demandada, por o ato ser de conteúdo vinculado, já que, como se viu, permitindo a lei exceções à decisão de transferência, existirá sempre uma margem de apreciação por parte da Entidade administrativa para aquilatar da existência ou procedência dessas exceções que determinem uma decisão de não transferência).

Por outro lado, e pelos motivos igualmente já explanados, é de concluir que ainda que fosse elaborado o relatório previsto no artigo 17.º ou a instrução do procedimento com informações sobre o procedimento de asilo ou condições de acolhimento em Itália em nada alterariam, face às circunstâncias pessoais do Autor, o ato praticado e ora impugnado teria, sem margem para dúvidas, o mesmo conteúdo [o conceito de “sem margem para dúvidas” tem de ser interpretado de forma normativamente adequada: não corresponde a uma certeza absoluta no plano dos factos (impossível de alcançar) e, de resto, num entendimento extremo sempre se poderia dizer que o ato pode sempre ter um conteúdo diferente, quanto mais não seja por ser esse mesmo novo ato ilegal (por desvio de poder, por erro de facto ou de direito, etc.). “Sem margem para dúvidas” significa, pois, e sob pena de total inaplicabilidade prática, a uma quase certeza, um juízo de probabilidade séria e de verosimilhança, face aos dados disponíveis e num juízo de prognose de uma nova decisão que não seja, ela própria, ilegal ou errada, de facto ou de direito].

Não se produzindo o efeito anulatório, nos termos descritos, sempre improcederia a ação, uma vez que os restantes fundamentos alegados pelo Autor, referindo-se a questões relativas à substância do pedido de proteção internacional, não cabem nesta sede apreciar, tendo razão a Entidade demandada nesta parte, quando alega que, decidindo-se pela transferência ao abrigo do procedimento especial de retoma cargo, já não lhe compete avaliar e decidir sobre o mérito do pedido de proteção internacional. (...)”

Então vejamos.

Refere o Regulamento Dublin, no artigo 3º, n.º 2 que "Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4. º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável".

Em suma, a cláusula de salvaguarda prevista neste artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III, exige a seguinte verificação :

“a) - que existam “motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro,” e

b) – e que tais falhas “impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”.

A este propósito conclui-se no Ac. do TJUE proferido no caso A. Jawo c/Alemanha de 19 de Março de 2019, proc. C-163/17, que:

“O artigo 4.º da Carta deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a tal transferência do requerente de proteção internacional, a menos que o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso da decisão de transferência conclua, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, que esse risco é real para o requerente, pelo facto de que, em caso de transferência, este se encontraria, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema.(...)

A este respeito, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência dispõe de elementos apresentados pela pessoa em causa para demonstrar a existência de tal risco, esse órgão jurisdicional deve apreciar, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, a existência de falhas sistémicas ou generalizadas, ou que afetem determinados grupos de pessoas (v., por analogia, Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C-404/15 e C-659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.º 89).(...)

“Esse limiar de gravidade particularmente elevado é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (v., neste sentido, TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, §§ 252 a 263).

Como tal, o referido limiar não pode abranger situações que se caracterizem por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.”

Nos termos do art.º 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) "Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes".

Ora, dos elementos constantes nos autos não resulta a existência de indícios de falhas sistémicas no procedimento de Asilo e nas condições do aqui recorrente que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante ou, dadas as suas particulares condições, um risco sério e verosímil de exposição a um tratamento contrário ao art.º 4º da CDFUE, para que não se proferisse a decisão de transferência aqui em causa.

Na verdade, o aqui recorrente, quer nas declarações que prestou no SEF quando foi ouvido, quer na sua petição inicial, não alegou quaisquer factos concretos que pudessem fundamentar a existência de um risco de vir a ser sujeito a tratamento desumano, não referindo terem ocorrido quaisquer deficiências graves nas suas condições de acolhimento em Itália, onde esteve durante cerca de 5 anos.

Como resulta do ponto 7 da matéria de facto provada, aquando da sua audição sobre o Relatório o A. apenas referiu que “Não quero voltar, quero ficar aqui e tentar fazer a minha vida aqui. Estive em Itália durante cinco anos e não tive documentos nem pude trabalhar”.

E, na petição inicial, limita-se a repetir a falta de documentos e de não ter podido trabalhar, não indicando que tenham ocorrido quaisquer factos de que tenha sido vítima durante a sua permanência em Itália e que possam ser qualificados como desumanos ou degradantes.

O A. limitou-se, pois, a invocar em termos genéricos e abstractos as deficiências do acolhimento em Itália.

Em suma das suas declarações não se indicia qualquer falha sistémica no seu acolhimento em Itália nem qualquer risco de tratamento desumano ou degradante sendo que lhe competia a ele alegar e demonstrar a existência de circunstâncias excepcionais que lhe fossem próprias e não o conhecimento comum e generalizado as dificuldades de acolhimento em Itália.

Pelo que o SEF não se encontrava obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento italiano, uma vez que, no caso concreto, inexistem quaisquer indícios de que o A. tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III.

Não resulta, assim, alegada a existência de quaisquer factos que permitam indiciar que o autor vá ser transferido para um país onde se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e condições de acolhimento que impliquem o risco de ser desrespeitado o seu direito absoluto a não ser sujeito a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.

E quanto à existência de informações veiculadas pela comunicação social e por organizações internacionais de direitos humanos que relatam situações que evidenciam a existência de falhas sistémicas ao nível do funcionamento do procedimento de proteção internacional italiano, bem como ao nível das garantias processuais e condições de acolhimento dos requerentes, sendo algumas dessas informações relativas ao corrente ano de 2019, o Acórdão deste STA 02240/18.7BELSB de 01/16/2020 , a que aderimos, responde da seguinte forma:

“Por seu turno, as notícias pesquisadas oficiosamente pelo tribunal também não são, atento todo o circunstancialismo em que surgem, de forma a impor essa condenação.

Não poderemos escamotear o facto delas se referirem a um Estado-membro da «União Europeia», tal como o Estado Português, responsável desde logo pelo cumprimento da respectiva Carta dos Direitos Fundamentais, bem como noticiarem ocorrências relativas a uma situação inusitada: a do fluxo anormal de imigração ilegal de cidadãos de países africanos para a Europa, via Itália.

Esta «imigração ilegal», que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de atividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social [ver artigo 2º, alínea ac), da Lei nº27/2018, de 30.06, redação dada pela Lei nº26/2014, de 05.05].

Foi esta avalancha de imigração ilegal, constituída por um universo de imigrantes onde se integrarão potenciais refugiados mas não só, que provocou um deficit nas condições do seu acolhimento por parte de Itália, e terá provocado uma reação política hostil na mira de suscitar a participação solidária dos demais Estados-membros na resolução do problema.

Assim, os epifenómenos traduzidos nas notícias oficiosamente respigadas pelo tribunal, refletem toda essa inusitada situação vivida, nomeadamente, em Itália, mas não são aptos a implicar o risco de tratamento desumano ou degradante, mormente tortura, dos requerentes de proteção internacional por parte do Estado Italiano.

Temos, por conseguinte, que as notícias levadas ao acervo factual provado, a título de factos notórios, não deixando de traduzir uma «situação anómala», não são, por si só, e atentos os contornos da situação, susceptíveis de configurar motivos válidos para crer que se preenche - no caso concreto - a hipótese legal prevista no 2º parágrafo do nº2 do artigo 3º do Regulamento [EU] 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013. Isto é, elas não constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corra o risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, mormente tortura, por parte das autoridades italianas.”

Aliás, recentemente, por Acórdão de 21/5/2020 no P. 1300/19, a formação do 150º, não admitiu revista interposta por Requerente de asilo relativamente a Ac. do TCA que julgara neste mesmo sentido.

Não se impunha, pois, no presente caso, como se concluiu no acórdão recorrido, obrigar o SEF a averiguar acerca das indicadas condições no procedimento de asilo e no acolhimento, e, por isso, “ a instruir o procedimento administrativo com informação fidedigna e atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália.”


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Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em negar provimento ao recurso.

Sem custas (art.º 84.º da Lei nº 27/2008, de 30-06).

Lisboa, 2 de Julho de 2020. – Ana Paula Portela (relatora) – Adriano Cunha – Madeira dos Santos.