Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01594/08.8BELSB
Data do Acordão:04/04/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:CONEXÃO DE ILICITUDE
Sumário:I - Relativamente à responsabilidade civil extracontratual das entidades reguladoras, por incumprimento dos deveres de regulação, é exigida uma conexão de ilicitude entre as disposições legais ou regulamentares alegadamente violadas e o dano ou prejuízo sofrido pela entidade lesada.
II - Exigir-se-á, nestes casos, que o fim da actividade de supervisão corresponda à tutela desses interesses e que o dano se verifique no círculo de interesses que a norma alegadamente violada visou impedir, quando estabeleceu a imposição desses comportamentos ao regulador.
Nº Convencional:JSTA00071833
Nº do Documento:SA12024040401594/08
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:AUTORIDADE NACIONAL DE COMUNICAÇÕES (ANACOM)
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO PER SALTUM (151.º CPC)
Objecto:SENTENÇA DO TAC DE LISBOA
Decisão:NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO
Área Temática 1:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Legislação Nacional:ARTIGO 14.º, N.º 3 DA LEI N.º 3/2002; ARTIGO 9.º DO REGIME JURÍDICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO
ESTADO E PESSOAS COLECTIVAS DE DIREITO PÚBLICO (LEI N.º 67/2007); ARTIGOS 2.º E 6.º DECRETO-LEI N.º 48051, DE 21.11; ARTIGO 483.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 5.º DA lEI N.º 5/2004, DE 10.02
Jurisprudência Nacional:ACÓRDÃO STA DE 20-2-2014, PROCESSO 0978/13; ACÓRDÃO STA DE 28.11.2007, PROCESSO 0808/07
Referência a Doutrina:LUÍS MENEZES LEITÃO,“A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS ENTIDADES REGULADORAS" (ON-LINE); ANTUNES VARELA, DAS OBRIGAÇÕES EM GERAL, 2ª EDIÇÃO, COIMBRA, 1973, PÁG. 417
Aditamento:
Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

1. RELATÓRIO
1.1. B..., SA, actualmente A..., SA vem, recorrer da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 22 de Novembro de 2020, a qual na ACÇÃO por si intentada contra o ICP – AUTORIDADE NACIONAL DAS COMUNICAÇÕES, abreviadamente ICP – ANACOM (art.1º, n.º 1 do Dec. Lei 309/2001, de 7 de Dezembro) julgou a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu o réu do pedido.
1.2. O recurso foi interposto para o Tribunal Central Administrativo Sul. Contudo, este tribunal por entender verificados os requisitos do recurso “per saltum”, previstos no art. 151º do CPTA, declarou-se incompetente em razão da hierarquia para conhecer do mesmo e ordenou a remessa do processo a este Supremo Tribunal Administrativo.
1.3. Por despacho do relator de 4 de Julho de 2023, foi o recurso admitido por este Supremo Tribunal Administrativo. O despacho foi notificado às partes que nada disseram.

1.4. Na sua motivação de recurso a Recorrente – A..., SA – concluiu:

A. O presente recurso vem interposto da Sentença proferida pelo TAC de Lisboa em 22.11.2020, através da qual o Tribunal a quo julgou improcedente a ação intentada pela A... contra a ANACOM, indeferindo o pedido de condenação desta entidade no pagamento de uma indemnização a título de responsabilidade civil extracontratual, por omissão ilícita e danosa;
B. No entanto, esta Sentença é claramente ilegal e enferma de diversos erros de julgamento e de omissão de pronúncia, traduzindo-se numa decisão literal, minimalista e que, a pretexto da amplitude dos poderes discricionários do regulador, se esquivou a um exame minimamente crítico sobre a (i)legalidade da concreta (falta de) atuação da ANACOM;
C. Desde logo, partindo de uma equivocada interpretação do artigo 14.º/3 da LQIP, na Sentença recorrida considera-se que os reguladores não têm qualquer obrigação de garantir o cumprimento, pelos regulados, das suas determinações, o que é um clamoroso erro de Direito e inquina a validade de toda a decisão recorrida;
D. Assim é, além do mais, porque a errónea leitura do artigo 14.º/3 da LQIP e a sua incorreta aplicação ao presente caso levou a que o Tribunal a quo se tivesse dedicado a percorrer diversos preceitos legais para, a final, concluir não haver norma que “autorizasse” a ANACOM a garantir o cumprimento das obrigações dos regulados;
E. Semelhante interpretação não tem qualquer fundamento, esvaziando a autotutela declarativa e executiva da Administração em geral (em violação do artigo 149.º/2 do CPA de 1991, aplicável in casu) e colocando as entidades reguladoras numa posição de meros órgãos de conselho ou recomendação, desprovidas de quaisquer poderes de autoridade para desempenharem as funções que lhes são legalmente cometidas;
F. Tal leitura, que sempre seria incorreta para qualquer entidade administrativa, é-o, por maioria de razão, relativamente a entidades tão “musculadas” como os reguladores, sendo que, no caso, a atuação da ANACOM era imposta, pelo menos, pelos artigos 74.º/1 da Lei das Comunicações Eletrónicas e 6.º/1, alíneas b) e n), e 9.º dos Estatutos daquela entidade reguladora, na redação então em vigor, que o TAC de Lisboa deveria ter concluído terem sido violados pela ANACOM;
G. A Sentença recorrida incorreu também em erro de julgamento ao limitar-se a considerar que, porque o quadro legal confere discricionariedade à ANACOM, não poderia entender-se existir uma omissão ilícita, uma vez que tal equivale a uma demissão ou renúncia, por parte dos Tribunais administrativos, em exercerem o controlo de legalidade que lhes cabe relativamente a toda e qualquer atuação da Administração, incluindo a que envolve o exercício de poderes discricionários, deixando os administrados sem defesa contra omissões ilícitas e danosas da Administração, em violação do disposto nos artigos 20.º/1, 22.º e 268.º/4 da Constituição;
H. O que estava em causa neste litígio não era saber se a ANACOM gozava ou não de discricionariedade em abstrato, mas sim saber se, em concreto, os seus poderes discricionários (de resto, reduzidos pela Deliberação de 26.10.2005) foram ou não exercidos de acordo com a lei, isto é, saber se a liberdade de escolha da ANACOM no tempo e modo da sua intervenção se compadece com uma omissão reiterada perante a violação das suas determinações;
I. Neste sentido, a Sentença recorrida acaba por corporizar uma “não-decisão”, na medida em que passa ao lado da questão controvertida submetida aos autos e se exime de apreciar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da ANACOM, o que a inquina, também, de omissão de pronúncia;
J. A Sentença recorrida enferma de claro erro de julgamento na parte em que considera que apenas poderia haver omissão ilícita da ANACOM caso tivesse sido violada “uma concreta norma” que impusesse à ANACOM “um dever jurídico de realizar determinada atuação em concreto num determinado calendário específico”;
K. Este é um entendimento ultra-restritivo, sem qualquer acolhimento na Constituição ou na lei, sem qualquer adesão ao que é a malha regulatória do setor das comunicações eletrónicas e que, no limite, esvaziaria por completo o papel de controlo desempenhado por princípios jurídicos (como o da igualdade, expressamente invocado pela Autora) e a própria figura da responsabilidade civil por omissão do regulador, pelo que não pode ser acolhido por este Tribunal Superior, por se tratar de uma leitura violadora do disposto nos artigos 22.º da Constituição e 6.º do Decreto-Lei n.º 48.051;
L. A Sentença recorrida enferma ainda de claro erro de julgamento quando apenas se atém ao quadro legal abstratamente aplicável e à discricionariedade por ele conferido à ANACOM, sem atender à circunstância de, em concreto, essa discricionariedade ter sido drasticamente reduzida pela própria Deliberação da ANACOM de 26.10.2005, não se tendo o Tribunal a quo debruçado sobre a violação, pelo regulador, dos específicos deveres de agir que resultavam da sua auto-vinculação anterior;
M. A Sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao considerar, perante o quadro factual dado como provado, que a tomada de uma única medida isolada – a instauração de um processo contraordenacional – constitui uma medida bastante, sendo que o Tribunal a quo deveria ter concluído, ao invés, que a ANACOM incorreu em séria e grave omissão dos seus deveres de supervisão e regulação do mercado e da sua auto-vinculação anterior;
N. A Sentença recorrida enferma ainda de erro de julgamento ao não ter considerado existir uma omissão ilícita da ANACOM, quando a factualidade relevante e dada como provada aponta inequivocamente no sentido do reiterado incumprimento, pela C... e pela D.../E... da Deliberação da ANACOM de 26.10.2005, com prejuízos para a A..., sem que a Demandada, interpelada para agir e ciente do desrespeito pelas suas determinações, tivesse tomado providências efetivas para fazer cessar esse incumprimento;
O. Do mesmo modo, verifica-se um erro de julgamento na parte em que o Tribunal a quo qualifica como adequada a conduta da ANACOM em função de a A... também poder, em separado, demandar os demais operadores de comunicações eletrónicas, aspeto que é irrelevante para aferir da (in)suficiência das providências tomadas pelo regulador e da (i)licitude da sua atuação ou omissão;
P. Como resulta dos factos alegados e da prova produzida em primeira instância, a omissão da ANACOM – que deve ter-se por ilícita, como se demonstrou – foi culposa e causadora de danos para a A..., uma vez que, por um lado, a ANACOM sabia (e sempre teria obrigação de saber) da existência dos incumprimentos e, por outro lado, esses incumprimentos foram causa adequada, direta e efetiva dos prejuízos sofridos pela Autora, aqui Recorrente;
Q. Por tudo o exposto, é forçoso concluir que a Sentença proferida pelo TAC de Lisboa em 22.11.2020, aqui recorrida, enferma de diversos vícios e procedeu a uma incorreta aplicação do Direito ao caso dos autos, pelo que deverá ser revogada por este douto Tribunal superior, o que se requer;
R. Considerando que o Tribunal a quo não conheceu da verificação dos demais requisitos da responsabilidade civil extracontratual da ANACOM – por ter entendido que o respetivo conhecimento ficaria prejudicado pela conclusão da inexistência de omissão ilícita –, que a matéria de facto relevante se encontra cabalmente provada e que a sua análise permite concluir pela procedência do pedido formulado na petição inicial, deverá este douto Tribunal Superior substituir a decisão de primeira instância por Acórdão que determine a condenação da ANACOM no pagamento da indemnização peticionada pela Autora e aqui Recorrente;
S. Em qualquer caso, sempre deverá a A... ser dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça, conforme oportunamente requerido, por se verificarem todos os pressupostos dessa dispensa, como se demonstrou no requerimento apresentado em 14.12.2020 e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a Sentença recorrida revogada e substituída por Acórdão que julgue a ação totalmente procedente, determinando a condenação da ANACOM no pagamento da indemnização peticionada pela A... em primeira instância.»
1.5. A entidade recorrida – ICP - ANACOM – contra-alegou, concluindo como segue:
«1. ENQUADRAMENTO
A. O conceito legal de ilicitude, para efeitos do regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual, em geral, e das entidades públicas, em específico, implica a verificação de dois requisitos cumulativos:
iii. Por um lado, a conduta em causa deve ser violadora de normas ou princípios (ilicitude objetiva ou ilegalidade); e
iv. Por outro lado, dessa conduta deve resultar a ofensa de direitos consagrados ou interesses legalmente protegidos por aquelas normas (ilicitude subjetiva).
B. Ora, o Tribunal a quo entendeu, na sua Sentença, que nenhum daqueles dois requisitos se encontrava verificado, afirmando – e bem – que “nem se identificou uma concreta norma violada pela não actuação do Réu [ilicitude objetiva ou ilegalidade], nem as normas ao abrigo das quais o ICP-ANACOM actuou e não actuou visam a protecção dos interesses da B… enquanto operadora do mercado [ilicitude subjetiva]” (vide pág. 56 da Sentença).
C. A Recorrente insurge-se contra este entendimento, mas sem razão.
2. DA LEGALIDADE DA CONDUTA DA RECORRIDA
D. Nas suas Alegações de Recurso, a RECORRENTE considera que a RECORRIDA violou o n.º 1 do artigo 74.º da Lei das Comunicações Eletrónicas, as alíneas b) e n) do n.º 1 do artigo 6.º e o artigo 9.º dos Estatutos ANACOM, por alegadamente não ter fiscalizado, ou ter fiscalizado de forma insuficiente e tardia, o cumprimento da sua deliberação de 26 de outubro de 2005. E. Mais invoca – sem densificar ou fundamentar a sua posição – que, com a sua conduta, a RECORRIDA teria igualmente violado o princípio da igualdade e a obrigação de fiscalização a que se teria autovinculado aquando da aprovação da deliberação de 26 de outubro de 2005.
E. Mais invoca – sem densificar ou fundamentar a sua posição – que, com a sua conduta, a RECORRIDA teria igualmente violado o princípio da igualdade e a obrigação de fiscalização a que se teria autovinculado aquando da aprovação da deliberação de 26 de outubro de 2005.
F. Sem prejuízo, a verdade é que, em primeiro lugar, a atuação da RECORRIDA não violou qualquer das disposições legais mencionadas pela RECORRENTE, já que estas não impõem um dever específico de conduta, antes concedendo, em abstrato, poderes à RECORRIDA para regular, supervisionar e fiscalizar o mercado das telecomunicações.
G. Em segundo lugar, a circunstância de aquelas normas não imporem uma conduta específica à RECORRIDA revela, exatamente, que, através daquelas, o legislador pretendeu conceder à RECORRIDA uma ampla discricionariedade no exercício das missões que a lei lhe confia.
H. Na verdade, ao longo das suas Alegações de Recurso, a RECORRENTE mistura frequentemente os conceitos de mérito e ilegalidade da atuação, numa tentativa vã de levar o Tribunal ad quem a julgar se a RECORRIDA atuou “mal ou bem”, “correta ou incorretamente”, quando aquilo que está em causa é se a RECORRIDA atuou licita ou ilicitamente.
I. Assim, a RECORRENTE invoca que a atuação da RECORRIDA, no que toca à fiscalização e acompanhamento do cumprimento da deliberação de 26 de outubro de 2005, terá sido insuficiente e tardia.
J. Ora, por um lado, tal como se demonstrou, a questão de saber se a atuação da RECORRIDA foi ou não suficiente não se prende com a legalidade daquela atuação, mas sim com o seu mérito.
K. Com efeito, as normas citadas pela RECORRENTE concedem à RECORRIDA uma ampla discricionariedade administrativa e regulatória, fixando os fins últimos da sua atuação, mas concedendo uma extensa escolha relativamente aos meios a utilizar para os alcançar.
L. Assim, aquelas normas conferem à RECORRIDA ampla discricionariedade de ação, de escolha e criativa, podendo a RECORRIDA (i) agir ou não, (ii) em caso de ação, escolher entre os instrumentos de atuação disponibilizados pelo legislador e, (iii) quanto a esses instrumentos, definir livremente o conteúdo dessa atuação, de acordo com os juízos que faça sobre o que seja mais conveniente para a prossecução das suas atribuições e a satisfação do interesse público.
M. Dos factos dados como provados na Sentença, pode concluir-se que, no que toca às atuações concretamente desenvolvidas pela RECORRIDA, esta exerceu os poderes que lhe estavam atribuídos, acompanhando o mercado de terminação grossista, fiscalizando a atividade dos seus operadores e chegando até a instruir um processo de contraordenação contra um deles, que veio culminar com a aplicação de uma pesada coima.
N. Ora, como se demonstrou à saciedade, essa opção de atuar ou não atuar (discricionariedade de ação), de escolher os meios de atuação (discricionariedade de escolha) e definir os concretos meios dessa atuação (discricionariedade criativa), é uma opção que compete, em exclusivo, à RECORRIDA tomar, à luz das apreciações e valorizações próprias que esta realiza em cada momento, e como forma de cumprir as missões que o legislador lhe atribuiu.
O. Assim, as opções tomadas (mesmo as condutas omissivas) não podem ser consideradas ilegais, visto que foram adotadas no âmbito e com respeito pelos limites dos poderes discricionários da RECORRIDA.
P. Neste sentido, é manifesto que aquilo que a RECORRENTE pretende aqui sindicar não é a legalidade da atuação da RECORRIDA, mas sim o mérito, a conveniência e abrangência dessa atuação, o que, naturalmente, não é sindicável judicialmente, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do CPTA e ao abrigo do princípio da separação de poderes.
Q. Por outro lado, a questão de saber se a atuação da RECORRIDA foi ou não tardia não se prende, igualmente, com a legalidade daquela atuação, mas sim com o seu mérito.
R. É que, como se demonstrou, a circunstância de a RECORRIDA prosseguir um vasto leque de competências de atuação oficiosa (i.e., funções de inspeção, de controlo, de fiscalização, de monitorização), determina que esta goze de discricionariedade de planificação.
S. Perante o vasto e diverso leque de funções que a lei lhe confere, torna-se imperioso que a RECORRIDA possa programar o seu trabalho regulatório e de supervisão, alocando, criteriosamente, os limitados recursos humanos e meios materiais de que dispõe para o efeito.
T. Porque assim é, as normas de competência que a RECORRENTE considera terem sido violadas não podem ser interpretadas no sentido de obrigar a RECORRIDA a agir num determinado momento.
U. Com efeito, como refere certeiramente PEDRO COSTA GONÇALVES:
As normas que definem competências oficiosas obrigatórias - que a Administração tem de exercer por sua iniciativa -, não se podem interpretar no sentido de obrigar a Administração a agir neste ou naquele lugar ou neste ou naquele momento” (sublinhado e destacado da RECORRIDA).
V. Ora, como se observou, a RECORRIDA não deixou de fiscalizar o cumprimento e o incumprimento das suas deliberações, publicitando essa fiscalização quando entendeu conveniente, instaurando processos contraordenacionais, fazendo relatórios de acompanhamento de mercado, participando em organizações internacionais de modo a procurar posições conjuntas e soluções para os problemas dos mercados de terminação.
W. Pelo exposto, torna-se muito evidente que o momento em que a RECORRIDA atuou, não poderá determinar a ilegalidade da sua conduta, já que essa é uma escolha que compete, exclusivamente, à RECORRIDA, ao abrigo da sua discricionariedade de planificação.
X. Neste sentido, é manifesto que aquilo que a RECORRENTE pretende aqui sindicar não é a legalidade da atuação da RECORRIDA, mas sim o mérito, a oportunidade dessa atuação, o que naturalmente não é sindicável judicialmente, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do CPTA e ao abrigo do princípio da separação de poderes.
Y. Em terceiro lugar, para que uma atuação ou omissão discricionária possa ser considerada ilegal, a RECORRENTE teria de demonstrar que, com aquela atuação ou omissão, a RECORRIDA violou o bloco de legalidade, o que não sucedeu.
Z. Primus, porque a atuação da RECORRIDA não violou o n.º 1 do artigo 74.º da Lei das Comunicações Eletrónicas, as alíneas b) e n) do n.º 1 do artigo 6.º ou o artigo 9.º dos Estatutos ANACOM.
AA. Com efeito, como se demonstrou, (i) a RECORRIDA exerceu os seus poderes de regulação e supervisão – apesar de não o ter feito nos moldes pretendidos pela RECORRENTE –, (ii) o quadro legal aplicável, neste âmbito, confere-lhe ampla discricionariedade regulatória, de ação, de escolha, criativa e de programação da sua atuação e (iii) nenhuma destas normas impõe um dever específico de atuação.
BB. Secundus, a atuação da RECORRIDA também não violou o princípio da igualdade, como se demonstrou, nem pode esta pretensa violação ser apreciada em sede de Recurso, visto que a RECORRENTE não invocou nas suas conclusões que a Sentença padecia de erro de julgamento por não ter considerado que a atuação da RECORRIDA violava aquele princípio.
CC. Tertium, é também evidente que a RECORRIDA não violou qualquer obrigação de fiscalização determinada por auto-vinculação, visto que, por um lado, através da deliberação de 26 de outubro de 2005 a RECORRIDA não se “autovinculou” a fiscalizar e a sancionar os incumpridores daquela deliberação e, por outro lado, a RECORRIDA fiscalizou efetivamente o cumprimento daquela deliberação, como se observou supra.
DD. A este propósito, é sintomático da falência deste argumento a circunstância de a RECORRENTE ter invocado sete vezes nas suas Alegações de Recurso que a RECORRIDA se teria autovinculado a fiscalizar a deliberação de 26 de outubro de 2005, sem no entanto ter tentado explicar porque é que assim sucedeu, ou sem citar, sequer, o texto que revelaria o tal pretenso momento de auto-vinculação.
EE. Termos em que, tendo-se demonstrado que a atuação da RECORRIDA não foi ilegal, deve, sem mais, improceder o Recurso e manter-se, na íntegra, a Sentença a quo.
3. DA LICITUDE DA CONDUTA DA RECORRIDA
FF. Ainda que se entendesse que a atuação da RECORRIDA foi legal – o que não se admite e apenas à cautela e para efeitos de raciocínio se equaciona –, a verdade é que também não se verifica o segundo pressuposto da ilicitude, i.e., a ilicitude subjetiva.
GG. Com efeito, para que se considere que a alegada ilegalidade gera ilicitude responsabilizante, é necessário que:
iii. A atuação da RECORRIDA tivesse violado algum direito subjetivo da RECORRENTE; ou
iv. A norma alegadamente violada pela RECORRIDA revelasse uma intenção normativa direta de proteção dos direitos ou interesses legalmente protegidos da RECORRENTE, não bastando, assim, que a norma violada visasse a sua proteção ocasional ou reflexa.
HH. Ora, por um lado, a verdade é que a RECORRIDA não violou qualquer direito subjetivo da RECORRENTE.
II. Como se demonstrou, a um tempo, a RECORRENTE não goza de qualquer direito a que, a seu pedido, a RECORRIDA inicie um qualquer processo de fiscalização da atividade dos restantes operadores do mercado ou que instaure um processo contraordenacional contra aqueles.
JJ. A outro tempo, a RECORRENTE não goza, igualmente, de qualquer direito a que a RECORRIDA atue sobre os restantes operadores, seja para lhes impor uma determinada obrigação ou comportamento, seja para sancionar os incumprimentos que entenda terem sido por estes cometidos.
KK. Isto porque todos os atos que a RECORRENTE entende que a RECORRIDA deveria ter adotado resultam de competências oficiosas atribuídas à RECORRIDA, o que significa que a RECORRENTE não tem qualquer direito a desencadeá-los ou, sequer, a vê-los desencadeados, nem tem a RECORRIDA qualquer obrigação de o fazer a pedido da RECORRENTE.
LL. Por outro lado, as normas jurídicas ao abrigo das quais a RECORRENTE considera que a RECORRIDA deveria ter atuado não visam a proteção direta ou intencional dos interesses da RECORRENTE.
MM. Como se demonstrou, a proteção dos interesses dos operadores não constitui um dos objetivos da regulação do sector das comunicações eletrónicas, tal como consagrados no n.º 1 do artigo 5.º da Lei das Comunicações Eletrónicas.
NN. Nestes termos, resulta claro que o requisito da ilicitude não se encontra preenchido, uma vez que da atuação da RECORRIDA, tal como da sua alegada omissão, não resulta a ofensa de quaisquer direitos subjetivos da RECORRENTE e as normas que a RECORRENTE entende terem sido violadas não visam direta e intencionalmente a proteção dos seus interesses.
4. DA NÃO VERIFICAÇÃO DOS DEMAIS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CULPA DA (ALEGADAMENTE) LESADA
OO. Ainda que se considerasse verificado o pressuposto da ilicitude − o que não se admite e apenas se equaciona por dever de patrocínio −, os demais pressupostos não se verificam, pelo que nunca poderá ser assacada qualquer responsabilidade civil à RECORRIDA.
PP. Em primeiro lugar, não se encontra preenchido o pressuposto da culpa, uma vez que a RECORRIDA prosseguiu a todo o momento as suas atribuições, com o devido grau de zelo e diligência.
QQ. Em segundo lugar, ainda que se considerasse haver culpa − o que não se admite −, não se verificam os danos alegados pela RECORRENTE, uma vez que os mesmos foram erroneamente contabilizados, como ficou cristalinamente claro nos presentes autos, desde logo porque não se recorreu a qualquer tipo de prova pericial que a complexidade da matéria exigia.
RR. Em terceiro lugar, ainda que se considerassem os danos invocados pela RECORRENTE − o que não se admite −, sempre falharia o pressuposto do nexo de causalidade, uma vez que tais (supostos) danos sempre teriam sido causados pela atuação dos operadores incumpridores e não pela RECORRIDA.
SS. Por fim, ainda que se considerasse estarem reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da RECORRIDA − o que, uma vez mais, não se admite − sempre estaríamos perante um evidente cenário de culpa da (alegadamente) lesada, já que a RECORRENTE poderia ter salvaguardado os seus interesses e atuado judicialmente perante os operadores que supostamente incumpriram as deliberações da RECORRIDA, o que optou por não fazer, pelo que, ainda que tivessem existido danos (e estes tivessem sido demonstrados) – o que não se admite e apenas à cautela se equaciona –, a indemnização sempre deveria ser integralmente excluída, nos termos do artigo 4.º do RRCEEP.
Nestes termos e nos mais de Direito que Vs. Exas. doutamente suprirão;
a. Deverá o Recurso ser julgado improcedente, mantendo-se, assim, a Sentença do Tribunal a quo; ou subsidiariamente;
b. Deverá a presente ação ser declarada absolutamente improcedente, por não se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil ou, ainda, por não ser devida qualquer indemnização por força da aplicação do instituto da culpa do lesado
1.6. Cumprido o art. 146.º, n.º1, do CPTA, a Exma. Procurador-Geral-Adjunto não se pronunciou.

1.7. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento das questões.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. MATÉRIA DE FACTO
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
«A) O ICP-ANACOM aprovou em 8 de Julho de 2004 a sua avaliação regulatória aos mercados grossistas de originação e de terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo no qual concluiu que “todos os operadores de rede públicas telefónicas fixas têm PMS no fornecimento de serviços de terminação na sua própria rede.” Cfr. documento n.º1 junto com a petição inicial que se dá por integralmente reproduzido.
B) O ICP-ANACOM tomou em 17.12.2004 a deliberação de “Imposição de obrigações nos mercados grossistas de originação e terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo” na qual impôs obrigações de controlo de preços aos operadores e prestadores de serviços (OPS) – excepto à B... no mercado grossista de terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo, em que concluiu o seguinte:
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Cfr. documento n.º2 junto com a petição inicial que se dá por integralmente reproduzido.
C) O ICP-ANACOM em 8 de Julho de 2005 tomou a “deliberação sobre a terminação nas redes dos OPS” com o seguinte teor:
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Cfr. documento n.º1 junto com a contestação.
D) O ICP-ANACOM em 26.10.2005 tomou a Deliberação relativa ao “Controlo de preços de terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo dos operadores com poder de mercado significativo (PMS), excepto os operadores do Grupo B… com o seguinte teor:”
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Cfr. documento n.º3 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
E) Aquela deliberação foi precedida de audiência prévia tendo da mesma sido elaborado relatório no qual se concluía o seguinte:
“(…)
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Cfr. documento n.º4 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
F) Com data de 14 de Dezembro de 2005 foi pelo ICP-ANACOM tomada deliberação de “Imposição de obrigações na área de mercados retalhistas de banda estreita”. Cfr. documento n.º5 junto com a contestação, que se dá por integralmente reproduzido.
G) Em 19 de Janeiro de 2006 foi pelo ICP ANACOM enviado à B… fax com o seguinte teor:
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Cfr. documento n.º6 junto com a contestação.
H) Com data de 3 de Maio de 2006 foi pela B... enviado ao ICP- ANACOM comunicação com o seguinte teor:
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Cfr. documento n.º6 junto com a petição inicial.
I) Com data de 15 de Setembro de 2006 foi pela B... enviado ao ICP- ANACOM comunicação com o seguinte teor:

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Cfr. documento n.º7 junto com a petição inicial.
J) Com data de 3 de Julho de 2007 foi pela B... enviado ao ICP- ANACOM comunicação com o seguinte teor:
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Cfr. documento n.º8 junto com a petição inicial.
K) Com data de 5 de Março de 2008 foi pela B... enviado ao ICP- ANACOM comunicação com o seguinte teor:
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Cfr. documento n.º9 junto com a petição inicial.
L) Com data de 6 de Junho de 2008 foi pela B... enviado ao ICP- ANACOM comunicação com o seguinte teor:
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Cfr. documento n.º10 junto com a petição inicial.
M) Em 2005, 2006 e 2007 os restantes Operadores e Prestadores de Serviços foram gradualmente ganhando quota de mercado à B…. Cfr. documento n.º12 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
N) Os preços de terminação de chamadas na rede B.., decresceram em 2006 relativamente a 2005, em 2007 relativamente a 2006 e em 2008 relativamente a 2007. Cfr. documentos n.ºs 13, 14, 15 e 16 juntos com a petição inicial, que se dão por integralmente reproduzidos.
O) Em 9 de Fevereiro de 2006 a F..., S.A., a G..., S.A., a H..., SA, a I..., SA, a J..., Unipessoal, Lda e a K..., S.A. requereram no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa providência cautelar de suspensão de eficácia da deliberação do ICP-ANACOM de 26 de Outubro de 2005 relativa à decisão sobre “Controlo de preços de terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo dos operadores com poder de mercado significativo (PMS), excepto os operadores do Grupo B….”, processo que correu termos naquele Tribunal com o n.º356/06.1BELSB - Cfr. documento n.º3 junto com a contestação.
P) O ICP-ANACOM em 24 de Março de 2006 na sequência de ter sido citado para os termos do processo cautelar de suspensão de eficácia n.º356/06.1BELSB proferiu resolução fundamentada reconhecendo que “há grave urgência para o interesse público na imediata continuação da execução da deliberação cuja suspensão de eficácia foi requerida.”Cfr. documento n.º3 junto com a contestação, que se dá por integralmente reproduzida.
Q) No processo n.º356/06.1BELSB (que foi instrumental do processo n.º357/06.0BELSB em que se impugnava aquela deliberação de 26/10/2005) foi em 25 de Janeiro de 2007 proferida sentença em que se indeferiu o pedido de suspensão de eficácia.
R) Pela E… foi com data de 22 e 23 de Junho de 2006 enviado ao ICPANACOM comunicações com o seguinte teor:
[IMAGEM]
Cfr. documento n.º4 junto com a petição inicial que se dá por integralmente reproduzido.
S) Pelo ICP-ANACOM foi enviado à “E…” com data de 7 de Agosto de 2006 comunicação com o seguinte teor:
[IMAGEM]
Cfr. documento n.º4 junto com a contestação.
T) Em Maio de 2009 foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista de 2006 a 2008, onde se concluiu que durante esse ano a C... incumpriu a Deliberação de 26/10/2005 em 2006 e em 2008 e que a E… incumpriu a deliberação de 26/10/2005 nos anos de 2006, 2007 e 2008. Cfr. documento n.º26 junto aos autos com o articulado de 01/10/2014 que se dá por integralmente reproduzido.
U) Em 2009, baseado em informação recebida dos OPS, o ICP-ANACOM instaurou um processo de contra-ordenação contra a então D..., por violação da obrigação de controlo de preços prevista na Deliberação de 2005, processo que viria a culminar em 30 de Abril de 2012, na condenação da D..., S.A. a pagar a coima de €6 666 500.00 ao ICP-ANACOM (acto sancionatório que veio a ser impugnado e jurisdicionalmente anulado em 2014 com fundamento em vícios formais). Cfr. documento 1 junto com o articulado junto aos autos em 26/06/2014.
V) Em Agosto de 2010 foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista em 2009, onde se concluiu que durante esse ano a C... e a E… incumpriram a Deliberação de 26/10/2005. Cfr. documento n.º27 junto aos autos com o articulado de 01/10/2014, que se dá por integralmente reproduzido.
W) Em Dezembro de 2011 foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista em 2010, onde se concluiu que durante esse ano apenas a C... incumpriu a Deliberação de 26/10/2005. Cfr. documento n.º28 junto aos autos com o articulado de 01/10/2014, que se dá por integralmente reproduzido.
X) Em Dezembro de 2012 foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista em 2011, onde se concluiu que durante esse ano apenas a C... incumpriu a Deliberação de 26/10/2005. Cfr. documento n.º29 junto aos autos com o articulado de 01/10/2014, que se dá por integralmente reproduzido.
Y) Em Maio de 2014, foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista em 2012 e 2013, onde se concluiu que durante esses anos nenhum OPS incumpriu a Deliberação de 26/10/2005. Cfr. documento n.º30 junto aos autos com o articulado de 01/10/2014, que se dá por integralmente reproduzido.
Z) Sempre que os OPS incumpriram a deliberação de 26/10/2005 a B… suportou pela terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo daqueles OPS o valor a mais correspondente àquele incumprimento, tendo recebido das operadoras (atenta a dimensão destas e da B… no mercado eram as operadoras que pagavam à B…) menos do que teria recebido se o incumprimento não se tivesse verificado. Cfr. documentos 1 a 18 e 26 a 29 juntos com o articulado de 1 de Outubro de 2014 e depoimento das testemunhas AA BB e CC.”
2.2. MATÉRIA DE DIREITO.
2.2.1. Questões a decidir – objecto do recurso
A sentença recorrida julgou a acção improcedente por ter concluído que não existia qualquer omissão ilícita imputável à entidade demandada, geradora dos danos peticionados. Não estando verificado o pressuposto da ilicitude considerou prejudicada a verificação dos demais pressupostos da responsabilidade civil.
Tendo em conta as alegações do recurso as questões a decidir convergem, portanto, na de saber se o comportamento imputado ao ICP - ANACOM é, ou não, um comportamento ilícito. A Autora pede ainda o conhecimento dos demais pressupostos da responsabilidade civil, que focaram prejudicadas pela solução a que chegou a sentença e a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.
São, portanto, estas as questões colocadas: (i) ilicitude do comportamento do IP ANACOM; (ii) conhecimento dos demais pressupostos da responsabilidade civil, no caso de se concluir que a conduta é ilícita; (iii) dispensa do remanescente da taxa de justiça.
Podemos, todavia, adiantar desde já que este Supremo Tribunal Administrativo, em recurso de revista, mesmo “per saltum”, como é o caso, não tem poderes para conhecer, em substituição, questões que por razões de prejudicialidade, ficaram por conhecer – cfr. art. 679º e 665º do CPC, aplicável por força do art.143º, 1 do CPTA; 150º, 2 e 4 e 151º, 3 do CPTA. Daí que, caso se venha a concluir-se pela prática de um acto ilícito, não tem este Supremo Tribunal Administrativo poderes para conhecer os demais pressupostos da responsabilidade civil e, portanto, tais questões – se subsistirem – não serão conhecidas.
Apreciaremos em primeiro lugar a questão da ilicitude e, depois, a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.

2.2.2. Fundamentos da sentença recorrida.
O pedido da Autora, sinteticamente, traduz-se na condenação do ICP – ANCOM a pagar-lhe uma indemnização devida pela sua omissão ilícita. Fundamenta a sua pretensão imputando à entidade demandada um comportamento ilícito na sua actuação regulatória no domínio dos preços de terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo, que pode ser sintetizado nos seguintes termos:
- o limite das receitas dos operadores foi fixado pela Deliberação de 17 de Dezembro de 2004 e deveria acompanhar a variação de preços das empresas do grupo B...;
- a deliberação de 26 de Outubro de 2005, não fixou o preço de 0,0090€, dado que esse preço era a concretização naquele momento do desvio máximo de 20% que havia sido definido na deliberação do ano anterior;
- o abaixamento de preços por parte das empresas do grupo B... deveria ter sido seguido por parte dos demais operadores, cumprindo-se o desvio máximo de 20%;
- vários operadores cobraram acima do que havia sido definido pela entidade reguladora;
- a ANACOM não publicou as actualizações das tarifas de acordo com o rebaixamento dos preços das empesas do grupo B... e também nada fez para obrigar os demais operadores a cumprir os preços fixados;
- é esta omissão regulatória que está na base do dano provocado à B... pela ANACOM, sendo que esta é responsável pelo mesmo, ou seja, pelo prejuízo que resulta do diferencial entre o que as empresas do grupo B... pagaram aos operadores de acordo com as tarifas por estes cobradas e o que deveriam ter pago de acordo com a deliberação de 2004, ou seja com um desvio máximo de 20%.


A sentença recorrida julgou a acção totalmente improcedente, por entender que o comportamento imputado ao ICP – ANACOM não era ilícito, enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual.

Entendeu, para chegar a esta conclusão, que só poderiam estar em causa falhas de regulação “no que se refere ao cumprimento de deveres no que respeita ao desempenho diligente das tarefas de que estão incumbidos”.
Desde logo porque, diz a sentença, nos termos do art. 14º, n.º 3 da Lei n.º 3/2002, de 15 de Janeiro que aprovou a Lei-quadro dos Institutos Públicos, as entidades reguladoras “não podem garantir a terceiros o cumprimento de obrigações de outras pessoas jurídicas, públicas ou privadas”. A regulação não pode ser entendido, continua a sentença, como garantia da licitude dos comportamentos das empresas reguladas ou como seguro de responsabilidade pelos danos causados por elas no desenvolvimento da sua actividade económica.
Perante a alegação da Autora imputando à ANACOM uma omissão ilícita no que respeita à garantia da aplicação das suas próprias normas de regulação económica em matéria de serviços de terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo (fixação de preços máximos no mercado), entendeu a sentença que a Autora invocava “o incumprimento de tal dever de não assegurar a efectiva aplicação do que havia decidido” nas suas deliberações de 2004 e 2005. Daí que tenha conduzido a sua apreciação para a questão de saber se existia, ou não, o dever jurídico do ICP - ANACOM de “assegurar o efectivo cumprimento das suas decisões com vista a evitar a produção de lesões na esfera jurídica dos operadores em decorrência de acções de outros operadores”. Colocou, assim, a questão de saber se existia uma norma jurídica de protecção criadora de um direito na esfera jurídica da Autora e se essa norma foi em concreto violada. Colocada a questão, nos referidos termos, a sentença recorrida, afastou a ilicitude por duas razões essenciais:
- (i) entendeu que não foi identificada uma concreta norma violada pela não actuação da ANACOM, nem as normas ao abrigo das quais actuou, ou não actuou, visavam a protecção de interesses da Autora enquanto operadora no mercado.
- (ii) a actuação da ANACOM não foi ilícita, por ter agido escolhendo o tempo e o modo de intervir, nos termos em que estava habilitada, não havendo um ”dever jurídico” de realizar determinada actuação em concreto, num determinado calendário específico.
Tendo concluído que não havia ilicitude julgou prejudicado o conhecimento dos demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

2.2.3. Fundamentos do recurso e sua análise
A autora insurge-se contra a sentença por entender que a mesma é ilegal imputando-lhe “diversos erros de julgamento e de omissão de pronúncia” (conclusão B).
A omissão de pronúncia decorre, no entendimento da recorrente, da sentença não ter sido apreciada a verdadeira questão. “(…) A Sentença recorrida acaba por corporizar uma “não-decisão”, na medida em que passa ao lado da questão controvertida submetida aos autos e se exime de apreciar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da ANACOM, o que a inquina, também, de omissão de pronúncia” (conclusão I);


Os erros de julgamento imputados à sentença são os seguintes:
(i) uma equivocada interpretação do artigo 14.º/3 da LQIP (conclusões c) a f));
(ii) erro de julgamento ao limitar-se a considerar que, porque o quadro legal confere discricionariedade à ANACOM, não poderia entender-se existir uma omissão ilícita (conclusões g) e h));
(iii) erro de julgamento na parte em que considera que apenas poderia haver omissão ilícita da ANACOM caso tivesse sido violada “uma concreta norma” que impusesse à ANACOM “um dever jurídico de realizar determinada atuação em concreto num determinado calendário específico” (conclusões j) e k));
(iv) erro de julgamento quando apenas se atém ao quadro legal abstratamente aplicável e à discricionariedade por ele conferido à ANACOM, sem atender à circunstância de, em concreto, essa discricionariedade ter sido drasticamente reduzida pela própria Deliberação da ANACOM de 26.10.2005, não se tendo o Tribunal a quo debruçado sobre a violação, pelo regulador, dos específicos deveres de agir que resultavam da sua auto-vinculação anterior (conclusão l);
(v) erro de julgamento ao considerar, perante o quadro factual dado como provado, que a tomada de uma única medida isolada – a instauração de um processo contraordenacional – constitui uma medida bastante, sendo que o Tribunal a quo deveria ter concluído, ao invés, que a ANACOM incorreu em séria e grave omissão dos seus deveres de supervisão e regulação do mercado e da sua auto-vinculação anterior (conclusão m);
(vi) erro de julgamento ao não ter considerado existir uma omissão ilícita da ANACOM, quando a factualidade relevante e dada como provada aponta inequivocamente no sentido do reiterado incumprimento, pela C... e pela D.../E... da Deliberação da ANACOM de 26.10.2005, com prejuízos para a A..., sem que a Demandada, interpelada para agir e ciente do desrespeito pelas suas determinações, tivesse tomado providências efetivas para fazer cessar esse incumprimento (conclusão n));
(vii) erro de julgamento na parte em que o Tribunal a quo qualifica como adequada a conduta da ANACOM em função de a A... também poder, em separado, demandar os demais operadores de comunicações electrónicas, aspecto que é irrelevante para aferir da (in)suficiência das providências tomadas pelo regulador e da (i)licitude da sua atuação ou omissão
(conclusão o);

O ICP - ANACOM nas contra - alegações pugna pela manutenção da sentença recorrida. Alega, para tanto, que a sua conduta foi legal porque as normas de competência que a recorrente considera terem sido violadas não podem ser interpretadas no sentido de obrigar a recorrida a agir num determinado momento. Mais alega que ainda que se entendesse ter havido a “alegada ilegalidade” tal não era bastante para se concluir pela ilicitude, dado que a recorrida não violou qualquer direito subjectivo da recorrente e, por outro lado, as normas que a recorrente entende terem sido violadas não visam a protecção directa ou intencional dos seus interesses.


2.2.3.1. Omissão de pronúncia
A sentença entendeu não verificado o pressuposto da ilicitude e julgou prejudicada verificação dos demais.
Nesta última parte (prejudicialidade da apreciação dos demais pressupostos da responsabilidade civil) é evidente não haver omissão de pronuncia. Nos termos do art. 608º, 2 do CPC “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.” Não havendo dever de apreciar as questões prejudicadas, não há omissão de pronúncia nessa parte, uma vez que este vício da sentença ocorre quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar” (art. 615º, 1, d) do CPC).
Também não existe omissão de pronúncia por a sentença ter apreciado as questões suscitadas sem a profundidade ou rigor técnico-jurídico pretendido pelo recorrente. A falta de profundidade ou de rigor jurídico de uma decisão, incluindo a delimitação dos termos em que uma questão é apreciada, já é uma decisão. Pode estar errada, ou não, mas existe.
A conclusão a que chegou a sentença sobre a falta de ilicitude do comportamento imputado à entidade demandada é, sem dúvida, uma pronúncia sobre essa questão, mesmo que, no entender da recorrente, os termos em que a questão devia ser apreciada fossem outros.
Em suma, julgamos que não houve omissão de pronúncia.

Sem prejuízo, bem entendido, de apreciarmos a exactidão da conclusão a que chegou a sentença recorrida, perante os erros de julgamento que lhe são imputados.

2.2.3.2. Erros de julgamento
Vejamos, então, se existem os erros de julgamento que a recorrente imputa à sentença, seguindo a respectiva ordem de arguição.

(i) Equivocada interpretação do artigo 14.º/3 da LQIP (conclusões c) a f));
A sentença recorrida iniciou o seu discurso jurídico sublinhando que o réu – um Instituto Público – não podia, por força da lei (art. 14º, n.º 3 da Lei 3/2004, de 15 de Setembro) “garantir a terceiros o cumprimento de obrigações de outras pessoas jurídicas, públicas ou provadas”. Ou seja, diz a sentença, “as entidades reguladas não podem exigir à entidade reguladora que garanta o cumprimento das obrigações constituídas na esfera delas ou nas relações entre elas. A regulação não pode assim ser entendida como garantia da ilicitude dos comportamentos das empresas reguladas, ou como seguro de responsabilidade pelos danos causados por elas no desenvolvimento da sua actividade económica.” (fls. 42 da sentença).

A recorrente entende que o referido preceito não justifica tal entendimento.

O art. 14º da Lei 3/2004, de 15 de Setembro (Lei quadro dos Instituto Públicos), tem a seguinte redacção:
Artigo 14.º
Princípio da especialidade
1 - Sem prejuízo da observância do princípio da legalidade no domínio da gestão pública, e salvo disposição expressa em contrário, a capacidade jurídica dos institutos públicos abrange a prática de todos os actos jurídicos, o gozo de todos os direitos e a sujeição a todas as obrigações necessárias à prossecução do seu objecto.
2 - Os institutos públicos não podem exercer actividade ou usar os seus poderes fora das suas atribuições nem dedicar os seus recursos a finalidades diversas das que lhes tenham sido cometidas.
3 - Em especial, os institutos públicos não podem garantir a terceiros o cumprimento de obrigações de outras pessoas jurídicas, públicas ou privadas, salvo se a lei o autorizar expressamente.
(…)”

Como decorre do preceito legal transcrito, o referido n.º 3 é tão só uma dimensão do princípio da especialidade, como se vê da epígrafe do mesmo (típico no recorte dos poderes das pessoas colectivas), limitando a capacidade jurídica à prática dos actos necessários à prossecução do seu objecto, proibindo ainda a prestação de garantias do cumprimento de obrigações de outras pessoas, não permitindo a interpretação que a sentença lhe deu.

Com efeito, no presente caso, está em questão saber se a entidade demandada (ANACOM IP) deve ou não ser condenada a pagar uma obrigação própria, cuja fonte é a responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos que lhe são imputados. Portanto, a invocação do referido preceito legal pela sentença para afastar, liminarmente, a responsabilidade da ANACOM é efectivamente desfocada.

O art. 14º, n.º 3 da Lei 3/2004, de 15 de Setembro, não tem qualquer utilidade para a discussão da questão jurídica suscitada nos autos. Este regime não permite fundamentar a tese enunciada na sentença, segundo a qual as entidades reguladoras não são responsáveis pelos prejuízos causados pelas entidades reguladas, umas às outras. O que não significa, diga-se desde logo, que o entendimento a que chegou a sentença não seja, por outras razões, exacto. Significa apenas que, a tese da sentença sobre a inexistência do dever de indemnizar das entidades reguladoras não é afastado pelo art. 14º,n.º 3 da Lei 3/2004, de 15 de Setembro.

Tudo está em saber se (sem qualquer apelo ao citado preceito legal) se verificam ou não os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pois, verificados estes nasce a obrigação de indemnizar, nos termos gerais.

(ii) Erro de julgamento ao limitar-se a considerar que, porque o quadro legal confere discricionariedade à ANACOM, não poderia entender-se existir uma omissão ilícita.
A sentença recorrida entendeu que o comportamento da ANACOM não era ilícito. Para chegar a esta conclusão a sentença sintetizou a pretensão da recorrente nos seguintes termos: “(…) entende a Autora que se verificou uma conduta ilícita do ICP – ANACOM no que se refere à efectivação do que havia deliberado, no que respeita à garantia de aplicação das suas próprias normas de regulação económica em matéria de terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo (fixação de preços máximos no mercado 9). A Autora não põe em causa que o ICP – ANACOM enquanto entidade reguladora cumpriu o seu dever de actuação expressamente previsto pelo legislador quando emitiu as deliberações de 2004 e 2005. O que a Autora invoca é que o Réu já não cumpriu tal dever ao não assegurar a efectiva aplicação do que havia decidido (…)” - fls. 42 da sentença.
Para apreciar a sumariada pretensão da Autora a sentença colocou a questão de saber se existia um dever jurídico específico do ICP-ANACOM de assegurar o efectivo cumprimento das suas decisões com vista a evitar a produção de lesões na esfera jurídica dos operadores em decorrência de acções dos outros operadores. Daí que tenha buscado a existência de uma “norma jurídica de protecção criadora de um direito na esfera jurídica daqueles. E se tal norma foi violada”fls. 42 da sentença.
Perante a sintetização da pretensão da Autora e os termos em que essa pretensão deveria ser apreciada a sentença recorrida foi, a nosso ver, clara, simples e rigorosa.
Efectivamente a responsabilidade civil por factos ilícitos surge-nos quando se verificam determinados pressupostos, designadamente, a ilicitude, que aqui está em causa.
O regime jurídico da RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E PESSOAS COLECTIVAS DE DIREITO PÚBLICO aprovada pela n.º 67/2007, de 31 de Dezembro define a ilicitude no seu artigo 9º, segundo o qual, “Consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.”. Na vigência do Dec. Lei 48.051, de 21 de Novembro o art. 2º dizia-nos o seguinte: “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”. Referimos ambos os regimes uma vez que é imputada à entidade demandada um comportamento omissivo prolongado no tempo e, desse modo, ocorrido antes e depois da entrada em vigor da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro,

Em ambos os regimes se considera ilícita a (i) violação de disposições legais ou regulamentares (ii) das quais resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. Este regime jurídico na delimitação da ilicitude também está consagrado no art. 483º, 1, do Código Civil, quando nos diz que fica obrigado a indemnizar o lesado “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios

Não basta, portanto, que exista a violação de uma disposição legal ou regulamentar. É necessário ainda que essa disposição legal ou regulamentar se destine a proteger um direito subjectivo ou um interesse do lesado.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo refere-se a este aspecto sob a designação de conexão de ilicitude, como se pode ver, além de outros, do Acórdão de 20-2-2014, proferido no processo 0978/13, onde se discutia o direito à indemnização pelo incumprimento dos deveres de fiscalização da Zona Económica Exclusiva de Portugal.

Este acórdão, perante uma decisão que tinha condenado o Estado Português a indemnizar os pescadores dos Açores disse o seguinte:

“(…) É, pois, evidente que o acórdão nessa parte não pode manter-se, pois não fez a demonstração de que o dano do sofrido pelos pescadores se localiza no âmbito de protecção das normas citadas, isto é, era um dano de um bem jurídico dos pescadores protegido directamente pelas normas em causa.

Com efeito, o art. 483º do CC ao recortar os pressupostos da responsabilidade civil destaca (entre outros) a violação ilícita de um direito subjectivo (direito de outrem) ou de um interesse legalmente protegido (disposição legal destinada a proteger interesses alheios).

Tal significa que não basta haver um dano na esfera jurídica de alguém.

É necessário que o dano ocorra precisamente no âmbito de protecção da norma violada e que essa norma queira também proteger aquele que invoca o dano. É necessário que o bem jurídico lesado (o dano) seja também um bem jurídico protegido pela norma.

Não existe esse interesse legalmente protegido quando as normas violadas sejam “… normas que visam apenas proteger, certos interesses gerais ou colectivos, embora a sua aplicação possa beneficiar, mediata ou reflexamente, determinados interesses particulares. Trata-se de normas que, directamente, apenas protegem a colectividade como tal, especialmente, o Estado e que só beneficiam o indivíduo na medida em que cada um está interessado no bem da colectividade” - PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, pág. 446. Os autores citados referem exemplos deste tipo de interesses reflexamente protegidos, onde incluem a defesa da integridade territorial do Estado.

O mesmo decorre do art. 6º do Dec. Lei 48051 – aplicável ao presente caso – que define a ilicitude em termos semelhantes: violação de normas legais ou regulamentares destinadas a proteger direitos ou interesses legalmente protegidos. Também aqui, se afasta da ilicitude – enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual - a violação de normas destinadas a proteger interesses apenas ou meramente reflexos.

Tal entendimento tem sido acolhido uniformemente na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, sob a designação de “conexão de ilicitude” – cfr. entre outros o acórdão do STA de 28-11-2007, proferido no processo 0808/07 e jurisprudência aí citada.
(…)”
O mesmo entendimento é sustentado por LUÍS MENEZES LEITÃO, in “A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS ENTIDADES REGULADORAS, https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/416-364.pdf:
“(…)
Um outro problema importante em relação à responsabilidade civil das entidades reguladoras consiste nos danos causados em virtude da omissão ou deficiente cumprimento das actividades de supervisão. Nesse caso, a situação pode considerar-se correspondente à violação de normas de protecção destinadas à tutela de interesses alheios, correspondendo à segunda variante de ilicitude prevista no art. 483º, nº1 do Código Civil, na medida em que o deficiente cumprimento das normas de supervisão vêm a causar danos. Exigir-se-á neste caso, de acordo com os pressupostos típicos desta variante de ilicitude que o fim da actividade de supervisão corresponda à tutela desses interesses e que o dano se verifique no círculo de interesses que a norma visou impedir, quando estabeleceu a imposição desses comportamentos ao regulador.

De acordo com este entendimento, que se mantém, as questões colocadas na sentença recorrida estão bem colocadas: (i) existem normas violadas? (ii) as normas violadas protegiam os interesses económicos da Autora?

A sentença recorrida respondeu a estas duas questões.

À primeira questão (que está na base do imputado erro de julgamento ora em análise) respondeu dizendo que o ICP – ANACOM actuou escolhendo o tempo e o modo de intervir, o que. atenta a análise das normas aplicáveis “estava habilitada a fazer”. Concluiu, em síntese, que “inexistia um dever jurídico de realizar determinada actuação em concreto num determinado calendário específico”.

Como é bom de ver a sentença não assumiu como premissa da conclusão a que chegou a proposição que a Autora lhe imputa e que considera “erro de julgamento”. A sentença não se fundamentou na tese, segundo a qual, “porque o quadro legal confere discricionariedade à ANACOM, não poderia entender-se existir uma omissão ilícita”. O que a sentença disse foi que o quadro legal aplicável não impunha um dever jurídico de realizar determinada actuação em concreto e que a actuação concretamente prosseguida foi, dentro daquele concreto quadro legal, adequada.

O argumento da recorrente não é, portanto, concludente. Dirige-se contra um entendimento que, em boa verdade, não foi seguido na sentença.

É claro que subsistem as questões básicas deste recurso: saber se o entendimento acolhido na sentença é, ou não, exacto, ou seja: (i) se havia ou não o dever de ter actuado de outro modo, (ii) se esse dever foi, ou não, cumprido e (iii) se a norma que impunha esse dever, caso exista e não tenha sido cumprida, tinha como finalidade proteger os interesses económicos da Autora. Contudo, uma coisa é certa, o erro de julgamento que agora discutimos foi imputado à construção (constatação) de uma proposição jurídica do discurso fundamentador da sentença, que a mesma não formulou e, portanto, nesta parte a recorrente não tem razão.


(iii) Erro de julgamento na parte em que considera que apenas poderia haver omissão ilícita da ANACOM caso tivesse sido violada “uma concreta norma” que impusesse à ANACOM “um dever jurídico de realizar determinada atuação em concreto num determinado calendário específico.
A ilicitude consiste na violação de “disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado” - art. 9º, 1 do regime aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro e art. 6º do Dec. Lei 48.051.

Não há qualquer dúvida, portanto, de que a ilicitude pressupõe a violação de regras concreta e previamente definidas. O juízo sobre a ilicitude pressupõe, assim, sempre e pelo menos, duas realidades: (i) a enunciação das concretas regras aplicáveis; (ii) a existência de um comportamento que viola essas concretas regras.

No plano teórico a existência de um poder (discricionário) de agir não é recortado do mesmo modo que um dever (vinculado) de agir. Daí que, no âmbito teórico em que o erro de julgamento, agora em análise, é imputado à sentença, esta tenha razão: onde exista um poder de agir, onde a oportunidade e conveniência, bem como a escolha dos meios de acção, sejam conferidos por lei ao agente, não existe o dever de realizar determinada actuação em concreto num determinado calendário específico.

O argumento da recorrente é, portanto, também neste ponto, inconcludente.

A proposição jurídica, segundo a qual um específico dever de agir há-de resultar de uma concreta imposição (dever) está certa. Como é exacto que, havendo um poder discricionário, o dever de agir que dele emana só é ilicitamente incumprido (violado) se forem violadas as normas que concretamente impõem deveres vinculados (competência, fim, forma, procedimento e princípios constitucionais que condicionam tal exercício).

Consequentemente, na perspectiva puramente dogmática em que é imputado o erro de julgamento agora em análise, a tese da recorrente não procede.

iv) Erro de julgamento quando apenas se atém ao quadro legal abstratamente aplicável e à discricionariedade por ele conferido à ANACOM, sem atender à circunstância de, em concreto, essa discricionariedade ter sido drasticamente reduzida pela própria Deliberação da ANACOM de 26.10.2005, não se tendo o Tribunal a quo debruçado sobre a violação, pelo regulador, dos específicos deveres de agir que resultavam da sua auto- vinculação anterior.

A recorrente entende que para recorte do facto omissivo ilícito não pode o tribunal atender apenas ao quadro legal aplicável; deve atender ainda à circunstância dessa discricionariedade ter sido reduzida pela deliberação de 26-10-2025. E, portanto, o Tribunal deveria ter-se debruçado sobre a violação dos “específicos deveres de agir que resultavam da sua auto- vinculação”.

Julgamos ser claro que este erro de julgamento é apontado a uma construção dogmática que a recorrente vê na fundamentação da sentença, a qual, tal como a mesma é criticada, não incorreu em tal erro.

O que a sentença disse, e como acima já referimos está certo, foi que para haver omissão ilícita geradora de responsabilidade civil, deve existir uma norma violada e essa norma deve proteger o interesse do lesado.

Esta tese pressupõe, é certo, que exista um dever – imposto por uma norma, seja legal, seja regulamentar, seja de prudência – pois é a violação dessa norma que torna a acção ou omissão contrária à Ordem Jurídica e, por isso, ilícita. Portanto, a busca ou o recorte dessa norma é essencial para se formular um juízo de ilicitude.

Quando existam poderes discricionários conferidos a uma entidade reguladora, como é o caso, a tese da sentença de que no âmbito do exercício do poder discricionário, cabe à essa entidade, definir o calendário e os modos da sua actuação, é indiscutível.

Tal não invalida, também é certo, que mesmo num quadro legal deste tipo (com margem de actuação discricionária) existam deveres concretos e específicos, decorrentes da lei, ou da “auto - vinculação”.

Deste modo, o erro de julgamento pode ocorrer quando o tribunal não reconheça como vinculados determinados “deveres”, que no entender da Autora tinham essa natureza vinculada. Contudo, nesta hipótese, o erro de julgamento só pode ser apreciado em concreto: a Autora deve então descrever o concreto dever (localizar a concreta norma que o impõe), mostrar a sua violação e mostrar, depois, que essa norma tinha no seu âmbito de protecção os seus interesses económicos. No plano meramente teórico onde o vício ora em análise é colocado, podemos dizer que o erro imputado à sentença é irrelevante.

O que importa saber é se ocorreu ou não a violação de concretos deveres do ICP – ANACOM e quais.

Relativamente a este aspecto a Autora no corpo das alegações de recurso faz apelo a sentença recorrida e à matéria de facto nela dada como assente.
“(…)
53. Recorde-se o que resulta da matéria de facto relevante, e que o próprio Tribunal a quo retoma a final, nas páginas 57 e 58 da Sentença recorrida (sem que, porém, tenha daí extraído as consequências que se impunham, à luz da lei).
Assim:
a) Ficou provado, sem margem para dúvidas, que a ANACOM proferiu diversas decisões, com vista ao controlo dos preços de terminação [cf. factos provados sob as alíneas A a F) do ponto 2.1 da Sentença].
b) Ficou provado que a Deliberação da ANACOM de 26.10.2005 foi incumprida, tanto pela C..., nos anos de 2006, 2008, 2009, 2010 e 2011, como pela D.../E... nos anos 2006, 2007, 2008 e 2009 [cf. factos provados sob as alíneas T), U) V), W) e X) do ponto 2.1 da Sentença]
c) E ficou provado, também, que, por força desses incumprimentos, a A... sofreu prejuízos, sendo que:
(i) “Em 2005, 2006 e 2007 os restantes Operadores e Prestadores de Serviços foram gradualmente ganhando quota de mercado à B…” [facto provado sob a alínea M), a páginas 36 da Sentença];
(ii) “Os preços de terminação de chamadas na rede B… decresceram em 2006 relativamente a 2005, em 2007 relativamente a 2006 e em 2008 relativamente a 2007” [facto provado sob a alínea N), a páginas 36 da Sentença];
(iii) “Sempre que os OPS incumpriram a deliberação de 26/10/2005 a B… suportou pela terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo daqueles OPS o valor a mais correspondente àquele incumprimento, tendo recebido das operadoras (atenta a dimensão destas e da B… no mercado eram as operadoras que pagavam à B…) menos do que teria recebido se o incumprimento não se tivesse verificado” [facto provado sob a alínea Z), a páginas 39 e 40 da Sentença].
Além disso, deve ter-se presente que:
d) A A... era diretamente visada na Deliberação de 26.10.2005, tendo, pois, um interesse legítimo no respetivo cumprimento, razão pela qual se afigura forçada a afirmação de que as normas ao abrigo das quais a ANACOM atuou (ou deveria ter atuado) não tinham em vista “a protecção dos interesses da B… enquanto operadora no mercado” (página 56 da Sentença).
e) A ANACOM tinha conhecimento destes incumprimentos, pois, além de a A... ter chamado sucessivamente a sua atenção para os mesmos, eles foram também assinalados nos sucessivos relatórios de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista [cf. factos provados sob as alíneas T), U) V), W) e X) do ponto 2.1 da Sentença].
f) E a ANACOM reconhecia, por último, que era importante, da perspetiva do regular funcionamento do mercado, assegurar que os demais operadores de comunicações eletrónicas acatavam as determinações do regulador a respeito do controlo dos preços de terminação – tendo-se expressamente comprometido a proceder a essa fiscalização e chegando ao ponto de, quando foi requerida a suspensão de eficácia da sua Deliberação de 26.10.2005, a ANACOM ter apresentado nesse processo cautelar (com o n.º 356/06.1BELSB) uma resolução fundamentada na qual reconheceu haver “grave urgência para o interesse público na imediata continuação da execução” dessa Deliberação [factos provados sob as alíneas O) e P), a páginas 36 e 37 da Sentença].
g) Porém, a única medida concretamente adotada pela ANACOM para reagir contra o incumprimento reiterado das suas determinações pelos operadores, ao longo de anos sucessivos, consistiu na instauração de um processo contraordenacional.
(…)”
Foi este o quadro factual referido pela Autora e perante o qual diz no ponto 54 do corpo das alegações:

54. Perante este quadro factual, não se vê como pôde o Tribunal a quo concluir que não existiu uma omissão ilícita, culposa e danosa por parte da ANACOM. De facto, não pode ter-se como legalmente admissível que, perante o incumprimento pelos regulados, durante vários anos, de determinações importantes e vinculativas emitidas pelo regulador, este possa limitar-se a instaurar um processo de contra-ordenação e ficar por aí, sem adotar quaisquer outras providências.

A conclusão da Autora, neste artigo 55º das alegações, não se infere contudo das premissas que enunciou, como vamos ver.

Desde logo, por falta de rigor na sua formulação. A sentença pronunciou-se apenas sobre a ilicitude. Julgou prejudicados os demais pressupostos da responsabilidade civil. Quando a Autora diz que o Tribunal concluiu que não existiu uma omissão culposa e danosa, está a ser imprecisa, pois esses requisitos não foram apreciados.

Imprecisão que se detecta também na transposição lógica da premissa para a conclusão. A factualidade que refere e que foi dada como provada pode mostrar que a deliberação de 26-10-2025 não foi cumprida pela C... e D..., ou seja, por outras operadoras no mercado das telecomunicações. Contudo, o que está em causa neste processo, não é o incumprimento das deliberações do ICP – ANACOM pelas operadoras. O que está em causa é saber se o prejuízo, que esse incumprimento (pelas operadoras concorrentes) provocou à Autora, pode ser imputado a um facto ilícito praticado pelo ICP-ANACOM. Ora, para que o incumprimento das operadoras (e os prejuízos que esse incumprimento cause à Autora) seja imputado também ao ICP-ANACOM torna-se necessário indicar (com precisão e clareza) qual a norma que lhe impunha agir para evitar esses prejuízos.

A Autora faz uma construção da responsabilidade civil que, a nosso ver, não é totalmente exacta, pois não distingue, onde se impunha distinguir, duas situações distintas.

Primeira situação: Pode haver um dano, causado por um concorrente que não cumpre as regras da regulação do mercado, aos demais concorrentes cumpridores. Então, verificados os demais pressupostos, esse concorrente pode ser responsável a suportar tais danos. Nestes casos o agente (concorrente) não cumpre as regras da regulação e, portanto, o seu comportamento é ilícito e pode fazer nascer uma obrigação de indemnizar os danos que causou.

Segunda situação: Veja-se um exemplo simples. O agente furta um bem móvel e, portanto, o proprietário ou o legítimo possuidor pode ser indemnizado, pelo respectivo valor. Mas o Estado português não é responsável civil, por não ter evitado o furto. Nos casos em que se pretende responsabilizar alguém (Estado ou entidade reguladora) pelos factos praticados por outra pessoa (um operador no mercado) a localização da ilicitude é sempre (necessariamente) aferida em função do âmbito dos deveres desse alguém e do seu incumprimento. Nestes casos, é necessária a identificação da concreta norma que recorta os concretos deveres de actuação e ainda a razão de ser dessa norma, ou seja, qual o seu âmbito de protecção, e localização do dano no respectivo âmbito de protecção.

ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, 2ª Edição, Coimbra, 1973, pág. 417), dá o seguinte exemplo:
“(...) Suponhamos que a pessoa agredida por A é um artista que deveria dar nesse dia um recital e que, em consequência da agressão, o recital não se realiza, com sério prejuízo não só para o agredido (B), mas também para o dono da sala de espectáculos e o arrendatário do bufete. O agredido (B) terá direito a ser indemnizado, porque o A violou as normas reguladoras da integridade física das pessoas, mas já não gozarão do mesmo direito nem o dono da sala de espectáculos, nem o arrendatário do bufete, porque, embora tenham sido lesadas no seu património, não há nenhuma norma que tutele em geral o direito das pessoas ao seu património”.
Outro exemplo do mesmo autor (pág. 419):
“(…)
O espectador de um cinema, ao passar uma cadeira ao amigo, deixa-a cair para um piso inferior, onde fere gravemente duas senhoras Entende TRIMARCHI (Causalitá e danno, pág. 67) que a empresa não é responsável, embora ela tenha infringido a norma regulamentar que manda fixar as cadeiras ao pavimento: o fim da norma é tornar mais fácil e menos perigosa a circulação da sala, enquanto esta não está iluminada, e facilitar a saída das pessoas em caso de incêndio”. Neste exemplo, só aquele que deixou cair a cadeira é responsável, pois a empresa não violou ilicitamente o direito à integridade física das senhoras atingidas pela cadeira.

No presente processo, está em causa um recorte da ilicitude no âmbito desta variante da ilicitude e portanto os seus requisitos são especiais. De resto, do quadro legal aplicável invocado na aludida deliberação de 26-10-2005 e do seu próprio conteúdo não decorre, nem a Autora indica com a clareza e simplicidade que permitisse concluir pela sua existência, qual o concreto dever violado, que permita imputar à entidade reguladora os danos que diz ter sofrido pela actuação de outros operadores.

A tese da Autora é, neste ponto, demasiado genérica, ou seja “(…) ele está sujeito, no mínimo, a uma obrigação de meios, estando vinculado a adotar todas as medidas ao seu alcance para prevenir a ocorrência de incumprimentos e para sanar aqueles que efetivamente se registemart. 55º das alegações de recurso. Com este entendimento, no exemplo acima referido – furto -, o Estado também estaria vinculado a adoptar todas as medidas ao seu alcance para evitar os furtos… Contudo, ainda que seja verdade que o Estado deva agir de modo mais adequado possível a que sejam evitados furtos, daí não resulta que, havendo furtos, seja o Estado que deva pagar ao lesado o prejuízo que este sofreu… O interesse do particular (ofendido com o furto) só é reflexamente protegido, enquanto membro de uma sociedade que se pretende sem furtos. Quando o dever de indemnizar se funda na violação de normas destinadas a proteger interesses legalmente protegidos, o bem jurídico lesado deve estar no âmbito de protecção da norma. Daí a insistência que temos vindo a fazer a este ponto, uma vez que nele que radica a controvérsia deste processo.
A Autora, no quadro sistemático que invocou nos artigos 52 a 54 das alegações de recurso para fundamentar o nascimento de uma obrigação de indemnizar, refere-se (i) a decisões impostas para controle dos preços de terminação; (ii) ao incumprimento dessas normas por parte de alguns operadores; (iii) ao conhecimento da ICP – ANACOM desse incumprimento; (iv) a Autora sofreu prejuízos com esse incumprimento por parte da C... e da D....
Neste quadro, todavia, não consta a “norma” (ou decisão) específica que foi violada pelo ICP – ANACOM. Consta, sim, a alegação da violação de decisões do ICP – ANACOM pela C... e pela D.... Ora, como temos vindo a explicitar, a violação das decisões do ICP – ANACOM pelos operadores a quem se destinavam, é uma realidade jurídica distinta da violação pela própria ANACOM dos deveres de evitar essa violação.

Note-se a este propósito que na deliberação de 8 de Julho de 2005, o ICP ANACOM tinha referido que “a ausência de medidas regulatórias os OPS teriam incentivos para fixar preços excessivos de terminação” (…) tornando-se “importante garantir que os preços de terminação excessivos não resultem em preços retalhistas anormalmente elevados cobrados nas chamadas inter-redes, o que prejudicaria o efeito de externalidade de redes e afectaria adversamente os utilizadores finais” – cfr. facto provado sob a al. c), folha 8 da sentença.
Ou seja, a finalidade da regulação destinava-se, afinal, a evitar que o utilizador final fosse penalizado com os custos da utilização do serviço. Daí que esta deliberação de 8 de Julho de 2005 tenha culminado com a imposição de regras aos operadores (fls. 10 verso da sentença), impondo, além do mais, a todos os operadores que, “no prazo de 15 dias úteis (mais tarde alterado para vinte dias úteis – pela deliberação de 28-7-2005)” remetessem ao ICP-ANACOM “o respectivo tarifário de terminação de chamadas, devidamente fundamentado, demonstrando o cumprimento da obrigação do controlo de preços a que estão vinculados…” . Como facilmente se conclui desta deliberação não resulta qualquer norma que imponha um dever específico de actuação contra as operadoras que não cumprem o estabelecido quanto aos preços de terminação.
Na deliberação do ICP-ANACOM de 26-10-2005, proferida após as várias entidades se terem manifestado, foi estabelecida uma metodologia a aplicar na determinação do preço médio, por minuto, referente aos tarifários dos OPS e, foi ainda determinado que os operadores remetessem ao ICP-ANACOM “o respectivo tarifário de terminação de chamadas, devidamente fundamentado com base na metodologia anexa (…) demonstrando o cumprimento da obrigação de controlo de preços a que estão vinculados nos termos da deliberação do ICP-ANACOM de 17-12-2004” (fls. 12 verso da sentença). Também não resulta desta deliberação qualquer dever concreto de actuação auto-imposto a si mesmo pelo ICP ANACOM para evitar os danos que a Autora pudesse sofrer com o incumprimento dos demais operadores das deliberações da entidade reguladora.
Os poderes de regulação invocados pelo ICP ANACOM, no texto da própria deliberação de 20-6-2005, decorriam dos artigos 6º, n.º 1, al.s b), h), e n) dos Estatutos aprovados pelo Dec. Lei 309/2001, de 7 de Dezembro. Estes preceitos têm a seguinte redacção:

(…)
b) Assegurar a regulação e a supervisão do sector das comunicações;
(…)
h) Proteger os interesses dos consumidores, especialmente os utentes do serviço universal, em coordenação com as entidades competentes, promovendo designadamente o esclarecimento dos consumidores, assegurando a divulgação de informação inerente ao uso público das comunicações;
(…)
n) Velar pela aplicação e fiscalização do cumprimento das leis, regulamentos e requisitos técnicos aplicáveis no âmbito das suas atribuições, bem como o cumprimento, por parte dos operadores de comunicações, das disposições dos respectivos títulos de exercício da actividade ou contratos de concessão;
(…)”

No quadro legal invocado pelo ICP-ANACOM, para justificar as suas atribuições na própria deliberação de 26-10-2005, foi destacada a protecção de interesses dos consumidores, especialmente os utentes do serviço universal. Em parte alguma das normas aplicáveis (e convocadas), ou dos termos da deliberação de 26-10-2015, existe um comando (norma, ou regra) que impusesse determinados e concretos deveres de actuação com a finalidade de evitar os prejuízos que os operadores causem uns aos outros, por não cumprirem as regras impostas pela entidade reguladora.

Os objectivos da regulação das comunicações electrónicas, não incluem a tutela dos interesses dos operadores, no sentido que se pretende dar na presente acção - (como concluiu a sentença – pág. 56) Na verdade, nos termos do art. 5º da Lei 5/2004, de 10 de Fevereiro, são objectivos da regulação: “a) Promover a concorrência na oferta de redes e serviços de comunicações electrónicas, de recursos e serviços conexos; b) Contribuir para o desenvolvimento do mercado interno da União Europeia; c) Defender os interesses dos cidadãos, nos termos da presente lei

Alega a Autora que “a atuação da ANACOM era imposta, pelo menos, pelos artigos 74.º/1 da Lei das Comunicações Eletrónicas e 6.º/1, alíneas b) e n), e 9.º dos Estatutos daquela entidade reguladora, na redação então em vigor, que o TAC de Lisboa deveria ter concluído terem sido violados pela ANACOM.”

Tais preceitos legais dizem-nos o seguinte:
Artigo 74.º da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, diz-nos o seguinte:

“(…)
Obrigação de controlo de preços e de contabilização de custos

1 - Quando uma análise de mercado indique que uma potencial falta de concorrência efectiva implica que os operadores possam manter os preços a um nível excessivamente elevado ou aplicar uma compressão da margem de preços em detrimento dos utilizadores finais, a ARN pode impor obrigações de amortização de custos e controlo de preços, incluindo a obrigação de orientação dos preços para os custos e a obrigação de adoptar sistemas de contabilização de custos, para fins de oferta de tipos específicos de acesso ou interligação.
2 - Ao impor as obrigações referidas no número anterior, a ARN deve:
a) Ter em consideração o investimento realizado pelo operador, permitindo-lhe uma taxa razoável de rendibilidade sobre o capital investido, tendo em conta os riscos a ele associados;
b) Assegurar que os mecanismos de amortização de custos ou as metodologias obrigatórias em matéria de fixação de preços promovam a eficiência e a concorrência sustentável e maximizem os benefícios para o consumidor, podendo também ter em conta nesta matéria os preços disponíveis nos mercados concorrenciais comparáveis.”

E o art. 6º, 1, b) e n) e 9º do Estatutos do ICP - ANACOM diz-nos o seguinte:
“(…)

1 - São atribuições do ICP - ANACOM

(…)

b) Assegurar a regulação e a supervisão do sector das comunicações;

(…)

n) Velar pela aplicação e fiscalização do cumprimento das leis, regulamentos e requisitos técnicos aplicáveis no âmbito das suas atribuições, bem como o cumprimento, por parte dos operadores de comunicações, das disposições dos respectivos títulos de exercício da actividade ou contratos de concessão;
(…)”

As referidas e transcritas normas atribuem poderes de regulação, designadamente o poder de “velar pela aplicação do cumprimento das leis e regulamentos” e de imposição de algumas medidas sobre controlo de preços. Contudo estes poderes de regulação não especificam o tempo e o modo de actuação, nem as concretas operações de controlo a aplicar. Acresce ainda que, os poderes de regulação são conferidos tendo em vista a protecção da concorrência e defesa do consumidor final, como expressamente diz o art. 5º, da Lei 5/2004, de 10 de Fevereiro.

Não existe, portanto, qualquer norma impondo concretos e específicos deveres de regulação relativamente ao incumprimento pelos operadores, que tenha sido violada pelo ICP ANACOM. Como é evidente ainda que os poderes de regulação controlo e fiscalização são conferidos para defesa da concorrência, e esta como meio de não agravar os custos do consumidor final e não para evitar prejuízos aos operadores.

Falta, deste modo, um pressuposto da ilicitude, qua seja “que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada” (ANTUNES VARELA, ob.cit. pág. 418), ou seja, que a tutela dos particulares não seja um mero reflexo da protecção dos interesses colectivos que, como tais, a lei visa salvaguardar, pelo que também improcede o erro de julgamento ora em análise.


v- erro de julgamento ao considerar, perante o quadro factual dado como provado, que a tomada de uma única medida isolada – a instauração de um processo contra-ordenacional – constitui uma medida bastante, sendo que o Tribunal a quo deveria ter concluído, ao invés, que a ANACOM incorreu em séria e grave omissão dos seus deveres de supervisão e regulação do mercado e da sua auto - vinculação anterior.

Entende a Autora que a tomada de uma única medida isolada traduzida na instauração de processo de contra-ordenação não foi bastante para cumprir os deveres de regulação. A sentença deveria ter concluído que, não obstante, a ANACOM incorreu em séria e grave omissão dos seus deveres de supervisão. Diz a Autora que esta medida foi manifestamente “insuficiente, não sendo (e não tenha sido) apta a fazer cessar os incumprimentos registados” (art. 57 das alegações).

O alegado erro de julgamento decorre de uma pré-compreensão da questão jurídica formulada pela Autora que não é juridicamente exacta. A Autora considera ser um dever do ICP ANACOM evitar o seu (dela autora) prejuízo, causado pelo incumprimento por outros operadores das regras sobre a regulação. Ora esta tese (que temos vindo sucessivamente a refutar) não é exacta. Não existe um dever de agir imposto ao ICPANACOM com o sentido e alcance de evitar os danos que os operadores causem uns aos outros. A suficiência ou adequação das acções ou omissões tomadas no âmbito da regulação não são, portanto, aferidos em função do prejuízo sofrido pela Autora.

Torna-se, assim, evidente que o argumento não é decisivo. A Autora imputa um erro de julgamento à sentença por esta não ter concluído que a instauração de apenas um processo de contra-ordenação pelo incumprimento das regras impostas pelo ICP ANACOM, esta entidade tinha “incorrido em séria e grave omissão dos seus deveres”. Contudo, o alegado erro da sentença pressupunha a demonstração da existência de uma regra concreta e específica que impusesse um concreto e específico comportamento de regulação, destinado também a proteger o seu património. Como vimos na análise das questões anteriores esse dever concreto e específico de actuação e com a apontada finalidade não existia. Daí que a existência de apenas um processo de contra-ordenação instaurado pelo ICP ANACOM não invalida o entendimento da sentença, segundo o qual não existia um dever jurídico de agir em concreto, com um calendário específico.
Consequentemente, e pelas razões expostas nos pontos anteriores, também este vício da sentença se não verificam.

vi - Erro de julgamento ao não ter considerado existir uma omissão ilícita da ANACOM, quando a factualidade relevante e dada como provada aponta inequivocamente no sentido do reiterado incumprimento, pela C... e pela D.../E... da Deliberação da ANACOM de 26.10.2005, com prejuízos para a A..., sem que a Demandada, interpelada para agir e ciente do desrespeito pelas suas determinações, tivesse tomado providências efetivas para fazer cessar esse incumprimento.

A refutação da primeira parte deste argumento (incumprimento das regras pelas operadoras) decorre da análise feita nos pontos anteriores.

A circunstância da C... e da D... não terem cumprido as determinações do ICP ANACOM não é bastante para a justificação de um juízo de ilicitude imputado ao comportamento desta entidade. Com efeito e como temos referido várias vezes, há que distinguir (i) o incumprimento das regras sobre a formação dos preços, pelos operadores no mercado e (ii) o incumprimento das regras de competência e actuação da entidade reguladora do mercado. Só o incumprimento destas últimas regras pode fundamentar um juízo de ilicitude imutado à operadora, como é óbvio.

Ora, os pressupostos da ilicitude imputada à entidade reguladora exigem, como temos vindo a repetir, a existência de (i) uma norma legal; (ii) que tutela os interesses da Autora; (iii) que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar. Ou seja o incumprimento das regras pelos operadores é uma realidade diferente do incumprimento dos deveres de regulação. Portanto, para o que nos interesse só o incumprimento dos deveres de regulação é relevante para recortar a ilicitude da entidade reguladora, sendo assim facilmente refutada a primeira parte da conclusão ora em análise.

A segunda parte do argumento (a entidade demandada não tomou as providências efectivas, apesar de ter sido interpelada a agir pela Autora) também não procede, como vamos ver.

Pode a Autora discutir a oportunidade, adequação, proporcionalidade, e eficácia das medidas tomadas pelo ICP ANACOM.

Contudo, mesmo que tenha ocorrido uma actividade menos ineficaz, ou até totalmente ineficaz, dessa ineficácia não resulta só por si, a violação de (i) uma regra legal, (ii) destinada a proteger o interesse da Autora. Não existe (como já vimos acima) uma norma que imponha concretos e específicos deveres de agir, com a finalidade de evitar que a Autora tenha prejuízos; não existe uma norma geral que tutele o direito das pessoas ao seu património; consequentemente, não existe uma “omissão ilícita”, para o efeito de, neste caso, gerar uma obrigação de indemnizar.

Daí que também este argumento não proceda.

vii- Erro de julgamento na parte em que o Tribunal a quo qualifica como adequada a conduta da ANACOM em função de a A... também poder, em separado, demandar os demais operadores de comunicações electrónicas, aspecto que é irrelevante para aferir da (in)suficiência das providências tomadas pelo regulador e da (i)licitude da sua actuação ou omissão.
Este argumento, em boa verdade, é um complemento dos anteriores. Visa a Autora afastar o argumento/premissa da sentença, segundo o qual “Constatados pelo ICP ANACOM aqueles incumprimentos poderá a B… ainda reagir jurisdicionalmente perante os OPS incumpridores (como podia antes, invocando aquele incumprimento) ”– fls. 58/59 da sentença.
Vejamos.
A sentença conclui que a actuação do ICP ANACOM foi adequada, mas essa conclusão não decorre apenas da possibilidade de reacção judicial contra os OPS incumpridores. A sentença enumerou os actos praticados pelo ICP ANACOM e do conjunto desses actos – folhas 57 e 58 – concluiu que “a actuação em causa foi adequada”, com a seguinte argumentação:
“(…)
Está provado que pela Deliberação de 17 de Dezembro de 2004 o ICP-ANACOM impôs aos operadores, excluindo as empresas do grupo B..., que os preços de terminação de chamadas teriam como limite máximo o valor cobrado por aquelas empresas para a terminação de chamadas na sua rede com um acréscimo de 20%. Mais determinou ali que iria verificar a diferença entre os preços de terminação praticados pelas empresas do grupo B... e pelos restantes operadores, recorrendo à adequada ponderação de escalão e de volume de tráfego.
E está provado que em 26 de Outubro de 2005 o ICP-ANACOM delibera no sentido de que todos os OPS deveriam no prazo máximo de 10 dias úteis estabelecer e aplicar um novo tarifário de terminação de chamadas que cumprisse a obrigação definida na Deliberação de 2004 e que os OPS deveriam, no prazo de 15 dias úteis remeter ao ICP-ANACOM o respectivo tarifário de chamadas para demonstrar o cumprimento da obrigação de controlo de preços a que passaram a estar vinculados.
Está provado que O) em 9 de Fevereiro de 2006 a F..., S.A., a G..., S.A., a H..., SA, a I..., SA, a J..., Unipessoal, Lda e a K..., S.A. requereram no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa providência cautelar de suspensão de eficácia daquela deliberação do ICP-ANACOM de 26 de Outubro de 2005 relativa à decisão sobre “Controlo de preços de terminação de chamadas na rede telefónica pública num local fixo dos operadores com poder de mercado significativo (PMS), excepto os operadores do Grupo B…” (Facto O)).
E está provado que o ICPANACOM em 24 de Março de 2006 na sequência de ter sido citado para os termos do processo cautelar de suspensão de eficácia n.º356/06.1BELSB proferiu resolução fundamentada reconhecendo que “há grave urgência para o interesse público na imediata continuação da execução da deliberação cuja suspensão de eficácia foi requerida.” (Facto P)). Ou seja, entre a data da citação para os termos da providência cautelar e data da resolução fundamentada este o ICP-ANACOM proibido de executar aquela deliberação nos termos do artigo 128.º, n.º1 do CPTA.
A emissão da resolução fundamentada permitiu ao ICP-ANACOM prosseguir com a execução daquela deliberação, não obstante a sentença proferida no processo n.º356/06.1BELSB que Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa indeferiu o pedido de suspensão de eficácia só ter sido proferida 25 de Janeiro de 2007 Facto Q)).
Está provado que a B… dirigiu ao ICP-ANACOM comunicações em 3 de Maio e em 15 de Setembro de 2006, 3 de Julho de 2007 e 5 de Março e 6 de Junho de 2008 nas quais se referia, e em síntese, ao incumprimento da obrigação de controlo de preços por parte dos OPS e à desactualização da medida de controlo de preços impostos pelo ICP-ANACOM (factos H), I), J), K) e L)).
Está provado que em 2006 o ICP-ANACOM solicitou à F... informação sobre o respectivo tarifário (Factos R) e S)).
E está provado que em Maio de 2009 foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista de 2006 a 2008, onde se concluiu que durante esse ano a C... incumpriu a Deliberação de 26/10/2005 em 2006 e em 2008 e que a E… incumpriu a deliberação de 26/10/2005 nos anos de 2006, 2007 e 2008 (Facto T)).
Está também provado que em 2009, baseado em informação recebida dos OPS, o ICP-ANACOM instaurou um processo de contra-ordenação contra a então D..., por violação da obrigação de controlo de preços prevista na Deliberação de 2005 (Facto U)).
Está provado que em Agosto de 2010 foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista em 2009, onde se concluiu que durante esse ano a C... e a E… incumpriram a Deliberação de 26/10/2005 (Facto V)).)
Está provado que em Dezembro de 2011 foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista em 2010, onde se concluiu que durante esse ano apenas a C... incumpriu a Deliberação de 26/10/2005. (Facto W)).
E está provado que em Dezembro de 2012 foi elaborado o relatório de acompanhamento do funcionamento do mercado de terminação grossista em 2011, onde se concluiu que durante esse ano apenas a C... incumpriu a Deliberação de 26/10/2005 (Facto X)).
Constatados pelo ICP-ANACOM aqueles incumprimentos poderá a B… ainda reagir jurisdicionalmente perante os OPS incumpridores (como podia antes, invocando aquele incumprimento).
Sendo pois a actuação em causa adequada. Ou seja, o ICP-ANACOM actuou escolhendo o tempo e o modo de intervir como, atenta a análise das normas que acima fizemos, estava habilitada a fazer. Inexistia um dever jurídico de realizar determinada actuação em concreto num determinado calendário específico. Cabe assim concluir que inexiste omissão ilícita.
(…)”
Neste conjunto de actos que a sentença considerou traduzir uma conduta adequada incluiu, é certo, a possibilidade de reacção judicial da Autora contra outros operadores. Esta referência, em boa verdade, é desfocada e sem contribuir em nada para o juízo de adequação a que chegou a sentença. A adequação da conduta da entidade reguladora não é mais ou menos adequada pela existência ou não da possibilidade de reacção judicial contra os outros operadores. A adequação de uma conduta afere-se, apenas e só, em função do que se fez e do que poderia e deveria ter sido feito.
Contudo, ainda que a referência à possibilidade da autora poder reagir judicialmente contra os operadores que não cumpriam as regras sobre formação de preços, seja desfocada ou inconcludente, a verdade é que essa inconcludência não é bastante para afastar a conclusão a que chegou a sentença (agora sem esse argumento) sobre a adequação do seu comportamento. Ou seja, e dito de outro modo, não é pelo facto de ser invocada uma premissa inconcludente num conjunto de premissas sobre a adequação de uma conduta, que o juízo conclusivo (de adequação) é inválido. O erro de julgamento sobre o juízo de adequação, a que chegou a sentença, só ocorria se a recorrente demonstrasse que aquela premissa (poder reagir jurisdicionalmente contra os OPS) foi uma condição “sine qua non” da conclusão final, ou um motivo principalmente determinante da formulação desse juízo conclusivo.
Não sendo esse o caso, a conclusão a que chegou a sentença mantém-se válida, desde que perante os demais motivos invocados seja de manter o juízo de adequação da conduta seguida pela entidade demandada.
Cabia, assim, à recorrente mostrar que a possibilidade de reagir jurisdicionalmente contra os OPS foi determinante do juízo sobre a adequação do comportamento do ICP ANACOM e essa demonstração não foi feita. Como, de resto reconhece, a recorrente quando diz que este aspecto da questão “é irrelevante pata aferir da (in)suficiência das providências tomadas pelo regulador e da (i)licitude da sua actuação ou omissão” (conclusão o). É efectivamente assim. Este aspecto é irrelevante, pois a conduta (possível) da própria Autora pode contribuir para avaliação ou dimensão do alegado prejuízo (culpa da Autora, enquanto lesada) mas nunca para aferir a ilicitude da conduta dos outros. Ou seja, ainda que se entenda que o argumento/premissa da sentença é inconcludente, a verdade é que, dessa inconcludência (ou erro se quisermos) nada se pode inferir sobre a exactidão da conclusão a que chegou a sentença, quanto à adequação da conduta da entidade recorrida. Consequentemente, o apontado erro de julgamento à sentença é totalmente inócuo.

2.2.4. Conhecimento das demais questões.
Pede a Autora, ainda, a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, por se verificarem todos os respectivos pressupostos.
Nos termos do art. 6º, n.º 7 do Regulamento das Custas Judiciais diz-nos que “Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.”

Relativamente ao âmbito de aplicação deste preceito, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 29-03-2022, no processo 2309/16.2T8PTM.E1-A.S1:

“(…)
Verificam-se três posições jurisprudenciais:
a) Não compete ao STJ, ainda que tenha decidido em último grau, emitir pronúncia sobre o pedido de dispensa do pagamento das taxas de justiça remanescentes (referentes à 1.ª instância, Relação e Supremo), mas sim ao o tribunal da causa (o tribunal onde a ação foi proposta e para onde, em caso de recurso, o processo regressa definitivamente) que compete decidir, oficiosamente ou a requerimento da parte, sobre a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça ( cf. Ac STJ de 2/3/2021 (Cons José Rainho) (proc nº 939/15.4T8CSC.L1), em www dgsi.pt ).
b) O Supremo Tribunal de Justiça apenas tem competência para se pronunciar sobre a dispensa da taxa de justiça remanescente relativamente ao recurso de revista (cf. Ac STJ de 30/6/2020, (Cons António Magalhães) proc nº 2142/15.9T8CTB, disponível em www dgsi.pt).
c) Cabe ao último grau de jurisdição apreciação da dispensa/redução da taxa de justiça devida não só nesse órgão (no caso de revista, o STJ) mas também na dos graus precedentes, abarcando toda a tramitação (cf. nos Acs. do STJ, de 24/5/2018, (Cons Rosa Tching), proc nº proc. nº1194/14, Ac STJ de 8/11/2018 (Cons Maria Graça Trigo), proc nº 567/11, Ac STJ 31/1/2019 (Cons Tomé Gomes), proc nº478/08, disponíveis em www.dgsi.pt).
Adere-se à orientação no sentido de que o último órgão jurisdicional que intervém deve apreciar não apenas a dispensa ou redução da taxa de justiça no respetivo grau de jurisdição, mas também nos precedentes.
E a justificação está desenvolvida na decisão singular do STJ de 20/12/2021 (relator Cons. Abrantes Geraldes), processo nº 2104712.8 TBALM.L1S1, disponível em www dgsi.pt: “Neste contexto, parece mais correta a tese segundo a qual o último órgão jurisdicional que intervém deve apreciar não apenas a dispensa ou redução da taxa de justiça no respetivo grau de jurisdição, mas também nos precedentes, como se reconheceu explicitamente nos Acs. do STJ, de 24-5-18, 1194/14 e de 8-11-18, 567/11, em www.dgsi.pt.”.

Concordamos com este entendimento e, portanto, apreciaremos a questão da dispensa do remanescente da taxa de justiça relativamente a todos os graus de jurisdição.

Vejamos.

Na primeira instância foi dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça por se entender que, apesar do elevadíssimo valor da causa (€ 33.599.411,00) a acção na revestiu anormal complexidade.

Julgamos todavia, que não se justifica a dispensa de pagamento do remanescente na sua totalidade, pelas seguintes razões.

Os articulados apesar de enunciar as questões com clareza colocam várias questões jurídicas e de facto bastante complexas. A argumentação de ambas partes é pertinente, sem que a sua conduta processual tenha contribuído para agravar a complexidade das questões a decidir. Os factos em causa, dada a sua natureza técnica, não são de fácil apreensão. Na sua vertente jurídica, reportam-se à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, com especial destaque para recorte da ilicitude, no âmbito da actividade das entidades reguladoras, sendo por essa razão matéria que não está exaustivamente tratada na jurisprudência. A decisão recorrida apreciou apenas um dos pressupostos da responsabilidade civil: a ilicitude. Ficaram por apreciar questões bastante complexas, como é, por exemplo, o caso do nexo de causalidade entre os danos invocados e a conduta omissiva imputada ao réu.
Neste recurso, as questões jurídicas suscitadas, foram postas em causa através de uma argumentação jurídica complexa.
Deste modo, pelas razões expostas, julgamos que atendendo à conduta processual das partes e complexidade da causa e do recurso, se justifica dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça em 50%.


3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes que compõem este Supremo Tribunal Administrativo acordam:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça em 50%.

Custas pela recorrente.
Lisboa, 4 de Abril de 2024. – António Bento São Pedro (relator) – Cláudio Ramos Monteiro – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva.