Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01378/17
Data do Acordão:03/15/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:REVISTA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
FALTA DE CONTESTAÇÃO
Sumário:I - Estando em causa apurar se determinada matéria alegada na petição inicial é puramente de facto ou se reveste natureza conclusiva e se, em consequência da revelia e da prova plena produzida pela confissão, deve ela ser aditada ao probatório, a questão que se coloca é, em princípio, de direito, pelo que o STA pode rever o juízo formulado pelo TCA.
II - Pode ser incluída no probatório a matéria constante de artigos da petição inicial que, além de integrar factos materiais simples (como é o caso de o requerido nunca ter residido em Portugal), contém meros juízos de facto que não se reconduzem a conceitos normativos, mas que são susceptíveis de apreensão na realidade da vida social e idóneos para servirem de base às diligências de instrução.
III - Dado o disposto no art.º 83.º, n.º 4, do CPTA (na redacção anterior à que foi introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2/10), aplicável à acção de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, não sendo fixado qualquer ónus para a falta de contestação, os factos alegados pelo A. na petição inicial não se tinham necessariamente por provados, cabendo ao tribunal apreciar livremente essa conduta processual.
Nº Convencional:JSTA00070614
Nº do Documento:SA12018031501378
Data de Entrada:01/12/2018
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR ADM GER - NACIONALIDADE
Área Temática 2:DIR CIV
Legislação Nacional:ETAF02 ART12 N4.
CPTA02 ART150 N3 N4 ART83 N4.
CPC96 ART5 ART410 - ART413 ART590 ART607 N3 N5.
L 37/81 DE 1981/10/03 ART10 ART26.
LO 2/2006 DE 2006/04/17.
DL 237A/2006 DE 2006/12/14 ART60.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0857/17 DE 2017/11/30.; AC STA PROC0956/17 DE 2017/12/07.; AC STJ PROC2081/09.2TBPDL DE 2014/02/13.
Referência a Doutrina:ANTÓNIO ABRANTES GERALDES - RECURSOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 2ED PÁG248 PÁG249.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

1.O Ministério Público intentou, contra A…………., acção, com processo especial, de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, pedindo que, por falta de ligação efectiva do R. à comunidade nacional, se ordene o arquivamento do processo pendente na Conservatória dos Registos Centrais conducente ao registo da aquisição dessa nacionalidade.

Por sentença do TAC, foi essa acção julgada improcedente.

Interposto, pelo A., recurso para o TCA-Sul, foi, neste tribunal, proferida decisão sumária a negar-lhe provimento.

O A. reclamou desta decisão para a conferência, a qual veio a ser julgada improcedente, por acórdão do TCA-Sul datado de 22/6/2017.

Deste acórdão, foi interposto o presente recurso de revista, tendo o Ministério Público, na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:

“1º - Impõe-se a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo, face ao erro de julgamento evidente e flagrante e errada interpretação do direito, por parte do Venerando tribunal recorrido, para dissipar dúvidas sobre a matéria em apreço e sobre o quadro legal que a regula, havendo utilidade prática na apreciação das questões suscitadas bastante relevantes, tendo em vista uma boa administração da justiça, e por ser necessária orientação jurídica esclarecedora do STA, devendo o recurso ser admitido, nos termos do art.º 150.º do CPTA.

- E muito embora esse Supremo Tribunal não se deva pronunciar sobre a fixação da matéria de facto, é possível conhecer da ampliação da mesma, bem como da fixação dos factos materiais mantida pelo TCA Sul, nos termos do art.º 150.º, n.º 4, do CPTA, pois que a questão, a final, se reconduz à verificação da conformidade da decisão de facto e conclusões de direito com o direito probatório material aplicável “in casu”, conforme adiante exposto.

- Dispõe o n.º 1 do art.º 662.º do CPC, aplicável “ex vi” do art.º 140.º, n.º 3, do CPTA, que o Tribunal Superior deve alterar ou mandar alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se se impuser decisão diversa, e é o caso, existindo um manifesto e crasso erro de julgamento na sua apreciação (n.º 4 do art.º 150.º citado).

- A linha divisória entre matéria de facto e matéria de direito não é fixa, dependendo, em larga medida, dos termos em que a lide se apresenta, e nível do julgamento da matéria de facto só são proibidos os juízos conclusivos que impliquem a apreciação e valorização de determinados acontecimentos à luz de uma norma jurídica (cf. jurisprudência atrás citada e transcrita).

- O Ministério Público expôs os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação (artigos 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), do CPC).

- Porém, não foi, por sua vez, apresentada contestação, pelo Réu, articulado onde o mesmo deveria ter deduzido toda a sua defesa, expondo as razões de facto e de direito para se opor à pretensão do Autor, incluindo, caso assim o entendesse, os factos essenciais em que se baseasse e eventuais exceções a deduzir (artºs. 5.º, n.º 1, 572.º e 573.º do CPC).

- Decorrendo da conjugação dos artºs. 352.º, 358.º, n.º 1, e 364.º, do C. Civil, que a confissão feita nos seus termos, não só tem força probatória plena, como também não pode ser substituída por outro meio de prova, é possível a esse Colendo Tribunal conhecer da ampliação ou aditamento da matéria de facto.

- Embora admitindo que a matéria invocada sob o art.º 9.º da Petição Inicial possa ser considerada conclusiva, assertiva ou argumentativa, e que possa ser irrelevante o conteúdo do art.º 2.º, da mesma peça processual, os factos articulados nos artºs. 11.º e 12.º, não foram levados ao probatório como se impunha.

- Assim, deve ser considerado confessado que “o Requerido não demonstra ter qualquer identificação cultural e sociológica com a comunidade nacional (…) nunca residiu em Portugal, nem o seu trajeto de vida abrangeu, de forma relevante, a realidade portuguesa e todo o seu processo de crescimento e de maturação, com a consequente absorção de costumes, referências e valores, se desenvolveu no Brasil, país onde nasceu, no qual tem (…) todas as suas referências sociais e culturais”.

10º - Tais factos que não constituem conceitos de direito ou conclusões, relativamente aos quais se pretende o aditamento, traduzem-se, sem dúvida, em ocorrências concretas da vida real do recorrido que conduzem à apreciação do mérito do pedido e não constituem formulação genérica, de cariz conceptual, conclusivo ou de natureza jurídica que defina, por essa via, imediatamente, a aplicação do direito.

11º – E, como tal, devem, tais segmentos da PI, ser levados ao probatório como assentes, dado que são um reflexo da realidade de vida do Requerido, traduzindo e detalhando conceitos usados na lei e indicados pela jurisprudência, como sejam a “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”, e a falta do sentimento de pertença ao nosso país, com a consequente absorção dos costumes, referências e valores nacionais, exigidos pelos art.º 9.º, n.º 1, al. a), da Lei da Nacionalidade, na versão citada.

12º – O próprio recorrido ao requerer a nacionalidade portuguesa assinalou “na quadrícula respectiva que não tinha ligação efectiva à comunidade portuguesa” – cf. ponto 2 do probatório.

13º – Assim sendo, tal factualidade deveria ter conduzido à procedência da presente ação de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa que deveria ser julgada procedente e provada, com vista a indeferir a requerida aquisição da nacionalidade portuguesa, conforme exposto na PI.

14º – Dado que todos os factos indicados, conjugados entre si, comprovam e são suficientes para se considerar que o mesmo não tem qualquer ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa, e nem tem qualquer identificação cultural e sociológica com a comunidade nacional, ou o seu trajeto de vida abrangeu, de forma relevante, a realidade portuguesa.

15º - O douto acórdão recorrido enferma de erro de direito ou de julgamento, pois que ignorou factos relevantes e provados, com a consequente ofensa e erro de interpretação e aplicabilidade dos artºs. 352.º e 342.º, do C. Civil, aplicáveis “ex vi” art.º 1.º do CPTA, e 571.º e 574.º, nºs. 1 e 2, ambos do CPC, bem como da interpretação da natureza da referida matéria de facto da PI.

16º – Pelo que deve ser revogado e substituído por outro que decida em conformidade com o exposto e julgue a presente ação de oposição à aquisição da nacionalidade inteiramente procedente e provada, nos termos dos artºs. 9.º e segs. da Lei da Nacionalidade, e dos artºs. 56.º e segs. do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, nas redações aplicáveis e vigentes à data”.

Não houve contra-alegações.

Pela formação a que alude o art.º 150.º, do CPTA, foi proferido acórdão a admitir a revista.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:

a) O Requerido nasceu em 28 de Junho de 1955, no Brasil.

b) Contraiu casamento, em 15/5/82, no Brasil, com a cidadã nacional portuguesa, B……………, natural de S. Paulo.

c) Com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa, nos termos do art.º 3.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, com base no referido casamento, o requerido preencheu, em 2015, impresso prestando a declaração para aquisição da nacionalidade portuguesa, nele tendo assinalado, na quadrícula respectiva, não ter ligação efectiva à comunidade portuguesa.

d) O requerido reside no Brasil.

e) O requerido enviou à Conservatória dos Registos Centrais elementos, através dos quais pretendia demonstrar a sua ligação à comunidade portuguesa (cfr. fls. 66 e segs.) e dirigiu-lhe a missiva de fls. 73, onde se pode ler o seguinte: “Sendo o que tenho por ora como forma de provar o meu envolvimento cultural com a comunidade portuguesa tanto do Brasil como de Portugal, peço reconsideração da oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa emitida pelo Ministério Público do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.”

3. O acórdão recorrido, após considerar que era sobre o MP que recaía o ónus de alegação e prova dos factos demonstrativos da inexistência da ligação efectiva do R. à comunidade portuguesa e que, no caso, não havia lugar ao pretendido aditamento da matéria de facto dada por provada, em virtude de o alegado no art.º 2.º da petição inicial “ser inócuo para o efeito pretendido” e o conteúdo dos artºs. 9.º, 11.º e 12.º da mesma petição ter “natureza conclusiva”, concluiu que a acção não podia proceder por não ter sido feita prova da referida inexistência da ligação efectiva.

Contra este entendimento, o recorrente, na presente revista, sustenta que o alegado nos artºs. 11.º e 12.º da petição inicial não tem natureza conclusiva, pelo que, na ausência de contestação, deveriam os factos aí referidos ser considerados confessados e, face à força probatória plena da confissão, ser aditados ao probatório, com a consequente procedência da acção.

Vejamos se lhe assiste razão.

No recurso de revista, este Supremo só conhece de direito, tendo de acatar a matéria de facto fixada pelas instâncias, à qual aplica o regime jurídico que julga adequado, salvo se estiver em causa um erro de direito, por ofensa de uma disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência de um facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cf. artºs. 12.º, n.º 4, do ETAF e 150.º, nºs. 3 e 4, do CPTA).

Por isso, o STA não sindica o juízo emitido pelo TCA quando este estabelece a factualidade relevante, excepto se essa fixação violar uma norma legal.

No caso em apreço, estando em causa apurar se determinada matéria alegada na petição inicial é puramente de facto ou reveste natureza conclusiva e se, em consequência da revelia e da prova plena produzida pela confissão, deve ela ser aditada ao probatório, não pode deixar de se concluir que a questão que se coloca é, em princípio, de direito, podendo, por isso, este tribunal rever o juízo formulado pelo TCA. Efectivamente, tratando-se de apreciar a ofensa de normas legais, nada obsta que venhamos a considerar que os artºs. 11.º e 12.º da petição inicial contêm matéria de facto e, caso se entenda que foi desprezada a força probatória plena resultante da confissão e, consequentemente, cometido um erro de direito que abrange a própria fixação dos factos materiais provados, se venha a proceder ao requerido aditamento.

Sobre a complexa distinção entre matéria de facto e matéria de direito e a relevância dos juízos conclusivos, o Ac. deste STA de 30/11/2017, proferido no processo n.º 857/17 (a que aderiu o Ac. do STA de 7/12/2017 – Proc. n.º 956/17), entendeu o seguinte:

“(…)

XX. Constituirá, nomeadamente, realidade ou matéria de facto tudo o que se prenda ou envolva a averiguação das ocorrências concretas da vida real, o estado ou a situação real das pessoas e coisas, os acontecimentos do foro interno da vida das pessoas, as ocorrências hipotéticas, os juízos de facto e inferências que se arrimem em realidade fáctica que se mostre devidamente alegada.

XXI. Importa, por outro lado, ter presente que ao julgador está claramente vedada possibilidade de inclusão no acervo factual tido por apurado de juízos sobre questões de direito (cfr. artºs. 05.º, 410.º, 412.º, 413.º, 590.º, 607.º, nºs. 3 e 5, do CPC), sendo patente que o julgamento da matéria de facto, estribado nas provas produzidas, implica quase sempre para o julgador a formulação de juízos conclusivos, revelando-se praticamente impossível encontrar situações puras e que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto.

XXII. Nessa medida, tratando-se de realidades da vida apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pela razão humana estaremos, ainda assim, no âmbito da questão ou matéria de facto e, como tal, a serem submetidos à instrução probatória e sobre os mesmos recair necessária decisão pelo julgador motivada e formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.

(…)”.

Em conformidade com esta posição, ainda no âmbito do anterior C. P. Civil entendia-se que só seria de afastar do probatório a matéria que se reconduzisse ao uso de puros conceitos normativos de que dependesse, de forma imediata, o desfecho da causa no plano jurídico, por serem manifestamente insusceptíveis de apreensão na realidade da vida social e, em consequência, absolutamente inidóneos para servirem de base às diligências de instrução, já não se justificando essa solução radical quando ocorresse algum défice de densificação e concretização no plano factual (cf. Ac. do STJ de 13/2/2014 – Proc. n.º 2081/09.2TBPDL).

Com o novo C. P. Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26/6 e aplicável aos presentes autos, entendeu-se que a inexistência de norma idêntica à do art.º 646.º, n.º 4, do anterior CPC – que considerava “não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito” – demonstrava que se esbatera o ancestral rigorismo da distinção entre matéria de facto e matéria de direito, pelo que só era de excluir do probatório aquilo que era pura e inequivocamente matéria de direito (cf. António Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014-2.ª edição, págs. 248 e 249).

Ora, na situação em apreço, para além de os artºs. 11.º e 12.º da petição inicial integrarem factos materiais simples (como é o caso de o requerido nunca ter residido em Portugal), não contêm valorações de acordo com a interpretação e aplicação da lei, mas meros juízos de facto que não se reconduzem a conceitos normativos, mas que são susceptíveis de apreensão na realidade da vida social e idóneos para servirem de base às diligências de instrução, tendo, por isso, uma base factual minimamente consistente.

Assim, porque os aludidos artigos da petição inicial não contêm puras questões de direito, mas realidades passíveis de constatação e apreensão, poderia a matéria deles constante ser incluída no probatório.

Porém, ao contrário do que sustenta o recorrente, não se pode entender que, não tendo sido apresentada contestação, essa matéria estava confessada e, em consequência, necessariamente provada. É que, como resulta do art.º 83.º, n.º 4, do CPTA (na redacção anterior à que foi introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2/10), aqui aplicável por força dos artºs. 10.º e 26.º, da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3/10), na versão resultante da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/4, e do art.º 60.º, do Regulamento da Nacionalidade (aprovado pelo DL n.º 237-A/2006, de 14/12), não é fixado qualquer ónus para a falta de contestação ou para a falta nela de impugnação especificada, pelo que os factos alegados pelo A. na petição inicial não se tinham necessariamente por provados, cabendo ao tribunal apreciar livremente essa conduta processual. Assim, não estando em causa, neste aspecto, um erro de direito, não pode este Supremo aditar a mencionada matéria aos factos que foram considerados provados.

Nestes termos, o acórdão recorrido, ao considerar que a matéria alegada nos artºs. 11.º e 12.º da petição inicial reveste natureza conclusiva, não podendo, por isso, ser aditada ao probatório, enferma de erro de julgamento, motivo por que a presente revista merece provimento, devendo os autos baixar ao tribunal “a quo” para, no uso dos seus poderes de livre apreciação, se pronunciar sobre o requerido aditamento à matéria fáctica provada.

4. Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e ordenando a baixa dos autos ao tribunal recorrido para os fins que ficaram referidos.

Sem custas.

Lisboa, 15 de Março de 2018. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – António Bento São Pedro.