Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01101/12
Data do Acordão:12/19/2012
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:RUI BOTELHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR FACTO LÍCITO
PRESSUPOSTOS
PREJUÍZO ESPECIAL
PREJUÍZO ANORMAL
Sumário:I - Os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil do Estado por actos lícitos são os seguintes:(i) a prática de um acto lícito;(ii) para satisfação de um interesse público;(iii) causador de um prejuízo "especial" e "anormal";(iv) existência de nexo de causalidade entre o acto e o prejuízo.
II - Prejuízo especial é aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma relativa posição específica; prejuízo anormal o que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração.
III - É especial e anormal, nos termos referidos, o prejuízo decorrente da construção de um viaduto por cima e ao lado de um prédio dos autores, com casa de habitação onde vivem, se o seu valor desceu para cerca de metade e viu diminuído o tempo de incidência dos raios solares e aumentado o ruído e poluição.
Nº Convencional:JSTA00068018
Nº do Documento:SA12012121901101
Data de Entrada:10/22/2012
Recorrente:E.P. ESTRADAS DE PORTUGAL, S.A.
Recorrido 1:A... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCA NORTE DE 2012/03/15
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - REC REVISTA EXCEPC
Legislação Nacional:CPTA02 ART150 N5
DL 48051 DE 1967/11/21 ART9 N1 ART8
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC990/02 DE 2003/01/21; AC STA PROC1088/02 DE 2008/12/09
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO - O PROBLEMA DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR ACTOS LÍCITOS PAG271-272
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I Relatório

A E. P. - Estradas de Portugal, S.A., veio interpor recurso de revista, ao abrigo do n° 1, do art. 150.º do CPTA, do Acórdão do TCA Norte, de 15.3.12, que concedeu parcial provimento ao recurso jurisdicional interposto por A…… e B……, revogou a decisão do TAF de Braga, de 25.2.11, e julgou parcialmente procedente a acção e, nesta conformidade, condenou a Recorrente a pagar aos ora recorridos a quantia total de 47.290,42€.

Para tanto alegou, vindo a concluir assim a sua alegação:
a) No Direito português encontra-se consagrado o princípio da responsabilidade civil das entidades administrativas; não obstante nem todos os danos decorrentes do exercício lícito de uma actividade administrativa são passíveis de gerar um dever de indemnizar
b) Por força do disposto no artigo 9º, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 48051 de 21 de Novembro de 1967, somente os danos emergentes de actividades administrativas licitas que sejam cumulativamente especiais e anormais são susceptíveis de indemnização.
e) A especialidade e a anormalidade do prejuízo configuram-se, no Direito português, como “elementos-travão” da responsabilidade administrativa ilimitada.
d) Um conceito irrestrito da responsabilidade administrativa conduziria ao colapso financeiro do Estado na medida em que, ainda que no interesse geral, boa parte da actuação da Administração activa gera correntemente extensos e genéricos prejuízos patrimoniais.
e) O princípio da responsabilidade civil da Administração tem de ser devidamente ponderado e conjugado com o princípio da necessária repartição do risco social.
f) A vida em sociedade e a existência de uma Administração que prossegue fins de interesse comum envolvem riscos e custos que todos hão-de suportar, podendo tais custos ser, por vezes, mais onerosos do que o normal, desde que os mesmos se revelem indispensáveis ao surgimento de vantagens e benefícios individuais e colectivos de mais valia superior aos danos causados.
g) No Direito Nacional, a responsabilidade administrativa por acto lícito encontra o seu fundamento na prevalência do interesse público sobre um direito privado de conteúdo patrimonial de alguém que, ultrapassado o esforço exigido a todos os membros de uma colectividade, viu o seu património excessivamente onerado,
h) À jurisdição administrativa está confiado o essencial papel de densificar os conceitos de especialidade e anormalidade dos prejuízos, concentrando-se nela a tarefa de delimitar o dever de prestar em sede de responsabilidade civil da Administração por acto público.
i) A decisão dos tribunais administrativos sobre esta matéria deve assentar num justo e adequado balanço que, atendendo às circunstancias existentes em cada caso pondere as vantagens colectivas e os custos individuais da actuação administrativa lícita concreta.
j) A especialidade de um prejuízo, para os efeitos do artigo 9, n.° 1 do Decreto-Lei n° 48051, de 21 de Novembro de 1967, resulta de este comportar um atentado ao princípio dá igualdade, impondo a um determinado particular um sacrifício que não é exigido à generalidade dos membros da colectividade.
k) A anormalidade do prejuízo ocorre sempre que peça inequívoca gravidade do sacrifício que impõe e da situação excepcional que consubstancie, comporte, em consequência, um dano demasiado oneroso para que não seja justo o administrado a suportá-lo por si próprio.
l) A anormalidade só se verifica quando ocorre fora do que constitui a álea normal de uma determinada actividade dependente de bens sujeitos a intervenção por parte da própria Administração Pública.
m) As intervenções nas vias públicas, designadamente nas infra-estruturas rodoviárias causam, por regra, prejuízos a um conjunto variado de pessoas, desde os próprios utentes das estradas, às entidades que exploram todo o tipo de estabelecimentos cujo escopo social e rendibilidade económica dependam da estrada, até aos cidadãos que residem nas suas proximidades.,
n) No particular caso dos autos, a habitação do A. não foi a única a ser prejudicado pela construção da via rodoviária em causa,
o) Subjacente à presente acção está, na verdade, o facto de a habitação dos A., ter deixado de estar exposta à acção directa dos raios solares somente ao pôr do sol, e por a passagem dos veículos no viaduto mais propriamente nas juntas de dilatação provocar um aumento de ruído.
p) O dano sofrido pela A não é, assim especial porque imposto à generalidade das pessoas e empresas presentes ou residentes na zona.
q) In casu, se o prejuízo não pode ser considerado especial, também não pode ser julgado anormal, uma vez que o decréscimo de sol é ínfimo e o aumento de ruído (aliás nunca medido) é irrisório como ressalta para qualquer bom pai de família.
r) Para mais, a habitação dos A situava-se em plena Estrada nacional que liga Fafe a Felgueiras, a qual necessariamente a afectava pelo ruído dai decorrente (também nunca medido), pelo que em bom rigor nem se poderá falar de um acréscimo de sacrifício.
s) Estas considerações foram expressas na sentença de primeira instância na respectiva fundamentação de Direito em termos que não deixam dúvidas quanto à justeza da decisão, a qual, infelizmente não foi seguida pelo TCAN.

Os Recorridos contra-alegaram, concluindo:
A-) O recurso interposto pela recorrente, mais não visa do que protelar a decisão final, e adiar o pagamento da indemnização aos recorridos;
B-) A recorrente faz um uso reprovável do direito e do recurso, pelo que deve por isso ser condenada como litigante de má fé em multa exemplar e em indemnização a favor dos recorridos, correspondente às custas judiciais que estes tenham a pagar pela lide;
C-) O presente recurso centra o seu argumentário na verificação de prejuízos especiais e anormais, por parte dos cidadãos com direito a indemnização em face da actuação lícita da administração e, pretende de forma rebuscada e sem qualquer sustentação fática e legal, fazer crer ao Tribunal “ad quem”, que no caso dos autos não se verificam tais prejuízos especiais e anormais;
D-) Tal questão fica desde logo rematada pela matéria de facto dada como provada e que não pode ser alterada nesta instância;
E-) Dessa factualidade resulta inequivocamente que os AA. sofreram prejuízos especiais e anormais, isto é, diferentes de todos os outros cidadãos que igualmente beneficiam da obra levada a cabo pela recorrente, pelo que carecem de compensação, uma vez que não têm que suportar custos elevados em nome do interesse nacional.
F-) O montante indemnizatório estabelecido pelo douto acórdão recorrido, mais não é do que o montante correspondente ao prejuízo que ficou demonstrado ter ocorrido para os recorridos em face da construção da obra por parte da recorrente;
G-) Tendo em conta os pontos 22 a 24 da matéria de facto dada como assente, chega-se à conclusão que o prédio dos recorridos, em face da construção da auto-estrada por parte da recorrente, sofreu uma desvalorização de 47.290,42€;
H-) Tudo o mais quanto é referido pela recorrente, não merece qualquer credibilidade, tratando-se de interpretações de conveniência e sem substância;
I-) A recorrente quer furtar-se ao pagamento aos recorridos pelos prejuízos que lhes causou, o que não é legítimo;
J-) Os recorrentes já cederam nos seus direitos, ao ter que, em nome de um interesse colectivo maior, ver o seu direito de propriedade diminuído e até afastado, por força da expropriação e da construção da auto-estrada, que hoje está “sobre as suas cabeças”;
K-) O recurso interposto pela recorrente deve ser rejeitado e mantido o douto acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”.

O Magistrado do Ministério Público junto deste tribunal foi notificado.

Sem vistos, mas com distribuição prévia do projecto de acórdão, cumpre decidir.

II Factos

São os seguintes os factos fixados na sentença:
1. A A. A…… é dona e legítima possuidora do seguinte prédio urbano:
Uma casa destinada a habitação, com quatro assoalhadas, de um só piso de rés-do-chão, com a área coberta de 110 m2 e descoberta de 1040m2, a confrontar do norte com C……., sul com caminho, nascente com D……. e poente com a própria, sito no lugar ……, freguesia de Antime, da comarca de Fafe e inscrito na matriz sob o artigo 850.
2. Tal prédio adveio à posse e propriedade da A. por haver adquirido através da escritura de Habilitação de Herdeiros e Partilha lavrada a fls. 64 a 65/verso, do Livro de Escrituras Diversas 419-A, do Cartório Notarial de Fafe, em 29 de Julho de 1998 o seguinte prédio rústico: “……, terra de lavradio e vinho, com a área de 1.150m2, sito no lugar ……, freguesia de Antime, do concelho de Fafe, a confrontar do norte com C……, sul com logradouro do prédio urbano de E…… e F……. e caminho público, nascente com logradouro do prédio urbano de E…... e F….. e ….. de D…… e poente com C……, inscrito na matriz sob o artigo 950;
3. Tendo nele edificado os AA., a casa de habitação, o que viria a dar lugar ao prédio referido em A).
4. Após a expropriação levada a cabo pela Ré, o prédio viu a sua área descoberta reduzida para 770m2, mantendo a área coberta os 110m2 originais.
5. O dito prédio encontra-se inscrito definitivamente na Conservatória do Registo Predial de Fafe, através da inscrição G-2, da ficha n° 00689, da freguesia de Antime.
6. No sublanço denominado Calvos-Fafe, a auto-estrada A7/TC5, atravessa a freguesia de Antime, no concelho de Fafe.
7. Sobre todo o prédio dos AA. ficou constituída uma servidão non aedificandi.
8. A casa dos AA. situa-se às portas da cidade de Fafe, isto é, a cerca de 500/1000 metros.
9. No local existe, próximo da casa dos AA. um Jardim de Infância, a sede de Junta de Freguesia e uma Escola Primária.
10. À porta da casa dos AA. passam regularmente transportes públicos, que servem as cidades de Fafe e de Felgueiras.
11. Toda aquela área dispõe de saneamento básico, água, electricidade e bem assim vias e acessos, desde logo a própria estrada nacional que liga Fafe a Felgueiras.
12. Toda aquela zona dispõe de diversas unidades fabris e bem assim, nas proximidades de cafés e restaurantes.
13. Relativamente perto situa-se ainda um Lar de Idosos, a Igreja e o Cemitério da freguesia.
14. A Ré construiu auto-estrada que liga o concelho de Guimarães ao concelho de Chaves, e que se designa por A7/1C5;
15. No lugar ……, daquela freguesia de Antime, e mais concretamente no local onde se encontra implantada a casa de habitação dos AA., a auto-estrada A7/1C5, mais concretamente a parte da obra que se designa por Nó de Fafe, desenvolve-se em viaduto;
16. Do telhado da casa dos AA. ao tabuleiro do viaduto mais próximo distam entre 5 e 7 metros, na horizontal e entre 10 e 15 metros na vertical;
17. A casa de habitação dos AA. era uma casa arejada e exposta em permanência à acção directa dos raios solares;
18. A casa dos AA., atenta a sua exposição a sul do viaduto, é atingida pelos raios solares durante praticamente todo o dia, o que apenas deixa de suceder ao final do dia, quando o sol desce no horizonte para se pôr e é tapado pelo corpo do sobredito viaduto;
19. A passagem em viaduto da auto-estrada mesmo ao lado da casa de habitação dos AA. provocou um aumento de ruído decorrente da passagem dos veículos pelas juntas de dilatação existentes no tabuleiro.
20. Antes da construção do viaduto, o prédio dos AA. era mais tranquilo e oferecia mais qualidade de vida, sendo, no entanto, afectado por ruído decorrente da proximidade com a Estrada Nacional que liga Fafe a Felgueiras.
21. A área total do prédio dos AA. é actualmente de cerca de 557 m2;
22. Antes da construção da auto-estrada, o terreno valia 21.968,08 euros e a construção 81.400,00 euros;
23. O valor do terreno após a construção da auto-estrada será de cerca de 15.377,66 euros;
24. O valor da construção após a construção da auto-estrada será de cerca de 40.700,00 euros;
25. A casa dos AA. situa-se a uma cota inferior do tabuleiro.

II Direito

1. Por acórdão proferido pela formação da Secção de Contencioso Administrativo prevista no n.º 5 do art. 150º do CPTA, de 31.10.12, foi admitido o recurso de revista intentado por E. P. - Estradas de Portugal, S.A., do Acórdão do TCA Norte, de 15.3.12, que concedeu parcial provimento ao recurso jurisdicional interposto por A……. e B……., revogou a decisão do TAF de Braga, de 25.2.11, e julgou parcialmente procedente a acção.
2. Os fundamentos de admissão do presente recurso, onde se definem as questões a que urge responder, encontram-se naquele acórdão explanados nos seguintes termos: “Sucede que, efectivamente, como defende a Recorrente, estamos perante questões de especial relevo jurídico, na exacta medida em que a densificação do conceito de “prejuízos especiais e anormais”, a que alude o n° 1, do artigo 9° do DL 48051 e a sua concreta aplicação no caso dos autos envolve a realização de operações lógico - jurídicas algo complexas, o que justifica a intervenção deste STA no quadro do recurso de revista”.
3. Vejamos então. Está em causa, simplesmente, o conceito de prejuízos especiais e anormais contido na parte final do art. 9º, n.º 1, do DL 48051, de 21.11, e, mais do que isso, a sua adequação à situação de facto versada nos autos. Vista a matéria de facto constata-se que os autores são proprietários de um prédio constituído por terreno e casa de habitação que foi atingido parcialmente por uma expropriação com vista à construção da auto-estrada “que liga o concelho de Guimarães ao concelho de Chaves, e que se designa por A7/1C5” (ponto 14 dos factos provados); incluído nessa obra foi construído um viaduto cujo tabuleiro, no seu segmento mais próximo, dista do telhado da sua habitação “entre 5 e 7 metros, na horizontal e entre 10 e 15 metros na vertical” (ponto 16); 19. “A passagem em viaduto da auto-estrada mesmo ao lado da casa de habitação dos AA. provocou um aumento de ruído decorrente da passagem dos veículos pelas juntas de dilatação existentes no tabuleiro” (ponto 19); “A casa dos AA., atenta a sua exposição a sul do viaduto, é atingida pelos raios solares durante praticamente todo o dia, o que apenas deixa de suceder ao final do dia, quando o sol desce no horizonte para se pôr e é tapado pelo corpo do sobredito viaduto”. Esses factos acarretaram uma desvalorização do prédio pelos valores que constam nos factos 22/24.
O que importa, portanto, é saber se este aumento de ruído e diminuição da insolarização e consequente perda de valor do prédio são prejuízos e se podem incluir-se no conceito de especialidade e anormalidade. Que são prejuízos é uma evidência que nem sequer carece de demonstração. O que valia 10 passou a valer 5. De resto, a questão do prejuízo não está em causa. A recorrente aceita-o. São os 47290,42E identificados na sentença e agora no acórdão recorrido. A questão é a de saber se esses prejuízos, com a apontada origem, podem integrar-se nos conceitos de especialidade e anormalidade referidos no citado art. 9º (e também no art. 8º). A sua delimitação não oferece hoje dúvidas de especial realce. A dificuldade estará na posterior operação subsuntiva: fazer a adequação dos factos integrativos do prejuízo a esses conceitos.
4. Sobre o assunto segue-se de perto o acórdão de 29.5.03, proferido no recurso 688/03, que relatámos: “O presente recurso jurisdicional, deduzido no âmbito de uma acção emergente de responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos lícitos, incide exclusivamente sobre a caracterização dos danos sofridos pelo autor e a sua qualificação como "especiais" e "anormais". Os contornos desse tipo de responsabilidade estão delineados no art.º 9, n.º 1, do DL 48051, de 21.11.67, segundo o qual "O Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais". Os pressupostos em que assenta esta responsabilidade são, assim, resumidamente, os seguintes:(i) a prática de um acto lícito;(ii) para satisfação de um interesse público;(iii) causador de um prejuízo "especial" e "anormal";(iv) existência de nexo de causalidade entre o acto e o prejuízo (acórdãos STA de 21.1.03 no recurso 990/02, de 10.10.02 no 48408, de 16.5.02 no recurso 509/02 e de 25.5.00 no recurso 41420, entre muitos outros). No caso, como se disse, o recorrente, aceitando os demais, apenas discute a caracterização dos danos sofridos pela recorrida como "especiais" e "anormais". A abordagem a tal requisito foi feita por Gomes Canotilho em "O Problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos", Almedina, 271/272, nos seguintes termos: (Que a alteração do quadro constitucional ocorrida posteriormente não modificou.) "Emerge claramente do anteriormente exposto a relativa latitude que nós atribuímos ao dever indemnizatório do Estado e este facto, aliado à posição defendida no sentido de se dever considerar consagrada de lege lata, no campo do direito público, uma cláusula geral de responsabilidade objectiva, aponta a necessidade de um estudo atento dos elementos-travão de uma total socialização dos prejuízos. Um destes factores limitativos vem expressamente mencionado nos arts. 8 e 9 do Decreto-Lei n.º 48.051 - a exigência da especialidade e anormalidade do prejuízo. Na responsabilidade dos entes públicos por danos emergentes de actos ilícitos não se condiciona o dever reparatório do Estado à verificação de um dano especial e grave. Nestes casos, mesmo que o número de lesados seja grande e os prejuízos de pequena gravidade, vigora sempre, verificados os pressupostos da responsabilidade, o princípio do ressarcimento de todos os danos. Mas bem se compreende que nos casos de sacrifícios impostos autoritativamente através de medidas legítimas, ou de danos derivados de actividades perigosas mas lícitas, a inadmissibilidade da indemnização de danos generalizados e de pequena gravidade seja a regra. Os pequenos sacrifícios, oneradores de alguns cidadãos, constituem simples encargos sociais, compensados por vantagens de outra ordem proporcionadas pela actuação da máquina estatal. Se o dano não exceder os encargos normais exigíveis como contrapartida dos benefícios emergentes da existência e funcionamento dos serviços públicos. não há lugar ao pagamento de indemnização, sob pena de insolúveis problemas financeiros, paralisadores da actividade estadual. Noutros casos, os prejuízos já não são, propriamente, Bagattelschaden, antes revelam uma certa gravidade, mas falta-lhes o requisito da especialidade, ou seja, a incidência desigual sobre um cidadão ou grupo de cidadãos. Havendo um encargo generalizado, vedado está, em via de principio, pretender demonstrar a imposição de um sacrifício desigual perante os outros concidadãos". Neste contexto acrescenta, mais adiante, que especial "é aquele que só atinge um indivíduo ou grupo de indivíduos" e que a "anormalidade outra função não tem que salientar a importância, o peso que o sacrifício deverá ter para lhe ser atribuída relevância indemnizatória", para concluir que um dano será indemnizável se se constatar que um "um cidadão ou grupo de cidadãos foi, através de um encargo público, colocado em situação desigual aos outros" e se tal ónus especial tiver "gravidade suficiente para ser considerado sacrifício". Também a jurisprudência deste Tribunal navega na mesma onda extraindo-se do acórdão de 21.1.03, proferido no recurso 990/02, que "Por prejuízo especial entende-se o que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma relativa posição específica; por prejuízo anormal aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração". Conclui-se, portanto, que a especialidade do dano decorre do desigual tratamento, que apenas atinge um ou alguns, no sentido de violar o princípio da igualdade, e a anormalidade resulta da sua gravidade intrínseca, não assimilável à normal compressão de direitos ou à imposição de pequenos encargos que a acção administrativa e a vida em sociedade naturalmente comportam. O ressarcimento dos danos provocados por actuações administrativas lícitas tem seguramente um carácter evolutivo podendo dizer-se que quanto mais evoluída e próspera é uma sociedade maior deverá ser a sua capacidade indemnizatória em relação às vítimas das suas intervenções, tomadas, afinal, em proveito de todos” (pode ver-se, no mesmo sentido, toda a jurisprudência posterior deste STA, designadamente, o acórdão de 9.12.08, proferido no recurso 1088/02 e outra aí citada).
Fazendo apelo a estes princípios não poderá deixar de concluir-se que o prejuízo invocado, com a proveniência apontada, é especial porque atinge especialmente os autores que viram a sua habitação, por via da sua preexistência naquele local, perder qualidade e valor em consequência da construção do aludido lanço de auto-estrada que visou servir a comunidade. E eles, porque ali habitam, a qualidade de vida de que anteriormente desfrutavam. Desvalorização de todo inesperada, que os atinge especialmente, não extensível à população em geral, nem sequer aos restantes afectados pela construção da via que, não viram um viaduto colocado permanente e definitivamente por cima da sua residência. É anormal porque o seu prédio perdeu cerca de metade do valor que possuía antes da construção – o que só por isso determina a sua relevância indemnizatória - e, para além disso, continuam a sofrer os efeitos nefastos resultantes da colocação ali do viaduto quer por diminuição da exposição ao sol quer pelo aumento da poluição e ruído que são patentemente notórios face ao conjunto de factos dados como provados, tudo sacrifícios que não são impostos à generalidade dos cidadãos não podendo considerar-se consequência dos riscos resultantes da vida em sociedade.
Por se mostrar como especial e anormal, e se verificarem os restantes requisitos da responsabilidade extracontratual estadual por actos lícitos, os prejuízos sofridos pelos autores, ora recorridos, é indemnizável nos termos do art. 9º, n.º 1, do DL 48051, de 21.11.67.

IV Decisão

Nos termos expostos, por improcederem todas as conclusões da alegação do recorrente, acordam em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2012. – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho (relator) – Luís Pais Borges – Jorge Artur Madeira dos Santos.