Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0856/14
Data do Acordão:10/23/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
ACTO NORMATIVO
INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Sumário:I – O DL nº 104/2014, de 2/7, que veio alterar o DL nº 53/97, de 4/3, e o seu anexo, constituído pelos estatutos da sociedade A……………., SA, não é um acto administrativo, mas um acto normativo;
II – Verifica-se a incompetência da jurisdição administrativa para conhecer do pedido de suspensão de eficácia do DL nº 104/2014, nos termos do disposto no art. 4º, nº 2, alínea a), e art. 24º, nº 1, al. c) do ETAF, que exclui do âmbito daquela jurisdição a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de actos praticados no exercício da função política e legislativa.
Nº Convencional:JSTA000P18094
Nº do Documento:SA1201410230856
Data de Entrada:07/08/2014
Recorrente:MUNICÍPIO DO SEIXAL
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

1. RELATÓRIO

O Município do Seixal apresentou requerimento inicial de providência cautelar no Supremo Tribunal Administrativo onde deduz, contra o Conselho de Ministros, pedido de suspensão de eficácia dos «actos jurídico-administrativos praticados no Decreto-Lei nº 104/2014, publicado na 1ª série do Diário da República, nº 125, do dia 2 de Julho de 2014, que procede à alteração dos Decretos-Leis nºs 53/97, de 4 de Março, e nº 127/2002, de 10 de Maio, que criaram e alteraram o sistema multimunicipal de valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos da margem Sul do Tejo, constituindo, para o efeito, a sociedade A………………., S.A. e procede, também à alteração dos Estatutos desta sociedade A……………. aprovados em anexo ao referido Decreto-Lei nº 53/97».

A entidade requerida, Conselho de Ministros, e os contra-interessados, Município de Alcochete, Município de Almada, Municio do Barreiro, Município da Moita, Município do Montijo, Município de Palmela, Município de Sesimbra, Município de Setúbal e, posteriormente a B………………., SA, e a Sociedade A……………….., SA, foram citados para deduzirem oposição, nos termos do art. 116.º n.º 1 e 117.º n.º1 do CPTA.
A Entidade Requerida deduz oposição, e conclui da seguinte forma:
(…) Para concluir, recorde-se que, nos termos do disposto no CPTA, as providências cautelares conservatórias são adotadas quando é evidente a procedência da pretensão a formular no processo principal (artigo 120.°, n.° 1, alínea a)); quando há fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa acautelar no processo principal e a pretensão a formular na ação principal não é manifestamente infundada nem manifestamente prejudicada por circunstâncias que obstam a uma pronúncia judicial sobre o mérito (artigo 120°, n.° 1, alínea b)).
Conforme ficou exaustivamente demonstrado, nenhum dos referidos pressupostos se verificam na providência cautelar requerida.
Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão,
- não deve ser conhecido o presente requerimento cautelar por incompetência absoluta da jurisdição administrativa;
OU, caso assim não se entenda,
- deve ser recusada a adoção das providências requeridas
Por ausência de periculum in mora e manifesta falta de fundamento da alegada invalidade do Decreto-Lei n.° 104/2014, de 2 de julho (que não sofre de nenhum dos invocados vícios),
OU, caso assim não se entenda,
- por evidente desproporção dessa mesma suspensão face aos interesses (públicos e privados) em confronto.


A B………………, SA, a fls. 590 dos autos, vem aderir à Oposição deduzida pela Presidência do Conselho de Ministros.
A Sociedade A………………., SA, a fls. 618 dos autos, vem aderir à Oposição deduzida pela Presidência do Conselho de Ministros.

O Conselho de Ministros, em 17 de Julho, apresenta a resolução fundamentada, ficando esta a ser parte integrante da deliberação que a antecede.

O Município do Seixal, tendo sido notificado da “Resolução Fundamentada” do Conselho de Ministros, proferida nos termos do nº 1 do art. 128º do CPTA, e alegando ter tomado conhecimento do acto de execução indevida consubstanciado na apresentação a registo comercial das alterações aos Estatutos daquela sociedade, vem, de harmonia com o disposto nos números 3 a 6 do mesmo art. 128º do CPTA, requerer que sejam julgadas improcedentes as razões em que a referida Resolução se fundamenta e declarada a ineficácia do acto de registo comercial das alterações aos Estatutos da A………………., nos termos constantes de fls. 534 a 542.

O Requerido Conselho de Ministros, tendo sido notificada do incidente de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida suscitada pelo Requerente, Município do Seixal, veio, ao abrigo do disposto no art. 128º, nº 6 do CPTA, apresentar a sua pronúncia a fls. 555 e segts.

O Município do Seixal a fls. 581 a 588, veio responder à matéria de excepção deduzida na oposição do Conselho de Ministros.

2. Os Factos
Uma vez que o acto suspendendo é constituído pelas disposições constantes no Decreto-Lei nº 104/2014, de 2 de Julho e que nos autos está em causa a discussão deste e outros diplomas legais, o único facto assente com interesse para a decisão a proferir consiste na “Deliberação do Conselho de Ministros”, de 17 de Julho de 2014, que “delibera aprovar essa resolução fundamentada, que fica a fazer parte integrante da presente deliberação”, de fls. 318, dando-se aqui por integralmente reproduzido o teor da “Resolução Fundamentada” de fls. 319 a 326.

3. O Direito
O Requerente pede a suspensão de eficácia dos «actos jurídico-administrativos praticados no Decreto-Lei nº 104/2014, publicado na 1ª série do Diário da República, nº 125, do dia 2 de Julho de 2014, que procede à alteração dos Decretos-Leis nºs 53/97, de 4 de Março, e nº 127/2002, de 10 de Maio, que criaram e alteraram o sistema multimunicipal de valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos da margem Sul do Tejo, constituindo, para o efeito, a sociedade A………………, S.A. e procede, também à alteração dos Estatutos desta sociedade A……………. aprovados em anexo ao referido Decreto-Lei nº 53/97».
Conforme resulta do requerimento inicial o Requerente questiona todos os artigos do DL nº 104/2014, quanto às alterações que introduzem ao DL nº 53/97, de 4/3 e aos Estatutos da A……………… (aprovados por aquele diploma – cfr. art. 3º).
Alega que “consubstanciam a prática de actos administrativos contidos em diploma legislativo, nos termos e para os efeitos do n.º 4 do art. 268º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do art. 52º do CPTA, porquanto versam exclusivamente e produzem efeitos jurídicos sobre uma situação individual e concreta – a organização e o funcionamento interno da sociedade A………………., SA (cfr. art. 120º do CPA)”.
Tal como o Requerente invoca é possível conceber a possibilidade dum decreto-lei conter actos administrativos (arts. 268º, nº 4 da CRP e 52º, nº 1 do CPTA).
No entanto, afigura-se-nos como muito improvável que todo um decreto-lei, nos oito artigos que o constituem, se possa reconduzir à definição de acto administrativo, tal como contemplado no art. 120º do CPTA.
O invocado acto suspendendo – o DL nº 104/2014 -, veio alterar o DL nº 53/97, de 4/3, e o seu anexo, constituído pelos estatutos da sociedade A……………….., SA.
Este DL nº 53/97 havia criado o sistema multimunicipal de triagem, recolha, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos da margem sul do Tejo, integrando como utilizadores originários os municípios de Alcochete, Almada, Barreiro, Moita, Montijo, Palmela, Seixal e Sesimbra, e através do DL nº 127/2002, de 10/5, o município de Setúbal (cfr. art. 1º).
Constituiu a sociedade A……………….., SA e atribuiu-lhe a gestão e exploração do sistema multimunicipal da margem sul do Tejo em regime de concessão (arts. 2º e 5º). E aprovou os estatutos daquela sociedade, que figuram em anexo (art. 3º).
Todos estes pontos permanecem no regime previsto no DL nº 104/2014, com várias alterações, sendo a de maior importância (e que desagrada particularmente ao requerente), a possibilidade, antes excluída, do capital social da A………………. ser maioritariamente detido por entidades privadas. O que foi permitido pelo DL nº 92/2013, de 11/7, que “veio permitir a entrada de capital privado nas entidades gestoras de sistemas multimunicipais no setor dos resíduos, adaptando o quadro legal destas entidades, numa linha de continuidade, à evolução setorial registada nos últimos 20 anos.” (cfr. preâmbulo do DL nº 104/2014).
Assim, o DL nº 104/2014 cumpriu uma função de alterar e substituir a versão original do DL nº 53/97, conforme resulta do seu art. 1º, nº 1, pelo que a natureza de ambos os diplomas terá de ser idêntica. Ou seja, o DL nº 104/2014 seria um acto administrativo se o DL nº 53/97 ao constituir a sociedade A…………….. e aprovar os seus estatutos em anexo, também já contivesse um acto administrativo.
Como se escreveu no recente acórdão deste STA de 09.10.2014, Proc. 951/14, em matéria em tudo semelhante, e que aqui seguimos de perto: «Em tese, não é absolutamente impossível que a lei preveja que uma sociedade venha a constituir-se por acto administrativo, pois até já se reconheceu que uma hipótese desse género existira no passado (cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, pág. 353). Mas à resolução do problema presente, interessa, não o que a lei poderia ter previsto, mas o que efectivamente previu – o que nos remete para a pesquisa do título jurídico que legitimou a edição do DL n.º 68/2010.»
Esse título, no caso daquele acórdão e igualmente no dos presentes autos, constava do DL n.º 379/93, de 5/11, citado no preâmbulo do DL nº 53/97, que visou concretizar o quadro legal previsto naquele DL nº 373/93 e no DL nº 294/94, de 16/11.
Nesse preâmbulo sobre o DL nº 373/93 refere-se que, “…, veio estabelecer o regime legal da gestão e exploração de sistemas que tenham por objecto a actividade de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, distinguindo entre sistemas multimunicipais e municipais. Dada a sua importância estratégica, definiram-se os sistemas multimunicipais como aqueles que sirvam pelo menos dois municípios e exijam um investimento predominante a efectuar pelo Estado em função de razões de interesse nacional.
O referido diploma também estabeleceu a obrigatoriedade da sua criação por decreto-lei, precedida de parecer dos municípios territorialmente envolvidos.
Ora, ao prever no seu art. 3º, nº 2 que “a criação e a concessão” dos sistemas multimunicipais daquela espécie fossem objecto de decreto-lei, estava a impor que a constituição das sociedades concessionárias que viriam a gerir tais sistemas multimunicipais revestissem a mesma forma, como viria a acontecer, nomeadamente, com o DL nº 53/97.
E, tal imposição do legislador veio a ser reafirmada pelo DL nº 92/2013, de 11/6, que revogou o DL nº 379/93 no seu art. 13º, mas manteve a opção de que “A criação e a concessão de sistemas multimunicipais são objecto de decreto-lei” – art. 3º, nº 1.
Ou seja, em qualquer destes diplomas, o legislador impôs a forma legislativa para a criação e a concessão dos sistemas multimunicipais, certamente porque a considerou mais adequada ao caso que previu.
E, essa melhor adequação só poderá advir do facto de, nos decretos-leis criadores dos mencionados sistemas multimunicipais, se corporizarem opções de índole normativa, em vez de pronúncias que pudessem ser assimiladas a actos administrativos.
Ora, quando o próprio legislador qualifica as suas intervenções de um certo tipo como legislativas, fica «ipso facto», autenticado o género de actuação que ele realizará. Persiste, evidentemente, a possibilidade de, dentro dessa actividade legislativa, se ter anomalamente insinuado a prática de algum acto administrativo «proprio sensu». Mas a insistência em olhar-se todo um diploma legal, cuja produção foi prevista noutro, como um acto administrativo esbarra num decisivo obstáculo – o dessa qualificação ser imediatamente «contra legem».” (cfr. acórdão supra indicado).
Assim, o DL nº 104/2014, tal como o DL nº 53/97, assumiram a forma legislativa porque havia leis anteriores que a impunham, o que, por si só, descaracteriza tais diplomas como actos administrativos, obrigando a considerá-los como actos normativos.
O Requerente alega que aquele diploma não reveste as características de generalidade e abstracção próprias dos actos legislativos. Os actos legislativos têm geralmente estas características.
No entanto, há muito se vem reconhecendo que o Estado opera hoje frequentemente através de comandos que incidem sobre realidades de índole concreta e individualizadas, em que se adoptam e possuem o valor de lei, as designadas «leis-medida» ou «leis-providência».
Como se assinalou no ac. deste STA de 12.01.99, Proc. 044490:
(…) As “leis-medida” ou “leis-providência” traduzem a necessidade de intervenção directa do poder legislativo na gestão política-administrativa hoje exigida ao Estado, as quais se caracterizam, pelo menos em larga escala do seu conteúdo, por uma índole concreta e individualizada, distinguindo-se das leis-norma, pois que enquanto estas são gerais, destinando-se a uma pluralidade indefinida de cidadãos, aquelas são individuais, visando uma só pessoa ou um grupo de pessoas, e ao passo que as leis norma regulam em abstracto determinados factos, as leis-medida destinam-se especialmente a certos factos concretos. (…)”.
Aliás, o requerente não questiona que o DL nº 53/97 tenha carácter legislativo, apenas em relação ao diploma que o altera e substitui afirmando o seu carácter de acto administrativo.
Ora, ao constar de um diploma com forma e valor de acto legislativo (art. 112º, nº 1, da CRP), o DL nº 104/2014 exprime a vontade política, primária e inovadora do Governo, no exercício da função legislativa, visto que a feitura dos decretos-leis integra o exercício da função legislativa, de acordo com o disposto no art. 198º da CRP. E, conforme do próprio diploma consta, o mesmo foi elaborado “nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, (…)”. Argumento que podendo não ser definitivo tem de assumir relevância.
E que significa que se trata de um diploma efectuado pelo Governo no exercício das suas competências legislativas.
A função política e a função legislativa são qualificadas como “funções primárias” situadas em “plano de paridade constitucional” que têm em comum a “realização das opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade”; ambas assumem, por isso mesmo, um carácter tendencialmente inovador” (Cfr. Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª ed., pág. 38).
Já a função administrativa detém, com a função jurisdicional, o carácter secundário, na sua “subordinação às funções primárias, que se traduz na não interferência na formulação das escolhas essenciais da colectividade política, na necessidade de que as suas decisões encontrem um fundamento em tais escolhas e de que não as contrariem…” (cfr. ob cit., págs. 39-40).
Assim sendo, o acto jurídico suspendendo, porque introduz na ordem jurídica uma opção primária e inovadora, tendo como parâmetro de validade a Constituição, é um acto materialmente legislativo, não procedendo o argumento de que estamos perante uma actuação materialmente administrativa.
“O mesmo é dizer e noutra perspectiva”, como se considerou no acórdão deste STA, de 05.07.2014, Proc. nº 1026/13, que a decisão suspendenda “não foi produzida no exercício da competência administrativa do Governo, previamente tipificada em lei anterior, traduzindo uma escolha sobre um aspecto secundário ou instrumental das opções já contidas nessa lei”.
Assim, o acto suspendendo não é administrativo, mas legislativo.
Ora, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa a impugnação, e, também, consequentemente, o conhecimento de processos cautelares que àquela diga respeito, dos actos praticados no exercício da função legislativa (cfr. art. 24º, nº 1, al. c) do ETAF).
Assim, verifica-se a incompetência da jurisdição administrativa para conhecer do objecto dos autos, nos termos do disposto no art. 4º, nº 2, alínea a), do ETAF, que exclui do âmbito daquela jurisdição a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de actos praticados no exercício da função política e legislativa, tal como invocado pela Entidade Requerida, ficando prejudicado o conhecimento do mérito da providência (art. 278º, nº 1, al. a) do CPC).
Igualmente, a incompetência absoluta do tribunal obsta ao conhecimento do incidente que o requerente deduziu quanto à “Resolução Fundamentada” emitida pelo Conselho de Ministros.

Pelo exposto, acordam em:
a) – declarar a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer da providência cautelar e em absolver da instância as entidades demandadas;
b) condenar o requerente nas custas do procedimento cautelar e do incidente deduzido quanto à “resolução fundamentada”, estas com a taxa de justiça mínima (Tabela II A do RCP).

Lisboa, 23 de Outubro de 2014. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Alberto Acácio de Sá Costa Reis.