Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0950/10
Data do Acordão:02/24/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PIMENTA DO VALE
Descritores:RECLAMAÇÃO
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
IRC
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
GARANTIA REAL
Sumário:O artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu, mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.
Nº Convencional:JSTA000P12642
Nº do Documento:SA2201102240950
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A... E B...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam nesta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A Fazenda Pública, não se conformando com a sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, na parte em que decidiu não reconhecer e graduar os créditos por si reclamados, nos autos de reclamação de créditos que correm seus termos por apenso à execução fiscal n.º 2232200701003054, decorrentes de IRC, relativo ao ano de 2006, dela vem interpor recurso formulando as seguintes conclusões:
A - A douta sentença, ora recorrida, decidiu não admitir (graduar) os créditos de IRC do exercício de 2006, reclamados pela Fazenda Pública, com base no fundamento de que os privilégios concedidos por lei são imobiliários gerais;
B - Os créditos relativos ao IRC, gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora, nos termos do estatuído no artigo 108.° do CIRC;
C - Entendendo-se que a referência feita neste último dispositivo aos “três últimos anos” se reporta aos três anos anteriores ao da penhora, como resulta do Acórdão de 12/07/2006, do STA, proferido no processo n.° 641/06 in www.dgsi.pt;
D - Do aludido aresto resulta, igualmente, que relevam para tal efeito “(..) os anos a que respeitam os rendimentos que justificaram a liquidação do imposto e não o momento em que foram postos a cobrança”;
E - Os créditos de IRC de 2006, reclamados pela Fazenda Pública, beneficiam de privilégio creditório imobiliário, atenta a natureza do bem penhorado;
F - Encontrando-se abrangido pelos três anos anteriores ao da penhora, nos termos do art.° 108° do CIRC;
G - O privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (art.° 733.° do Código Civil);
H - A circunstância do privilégio creditório ser uma mera preferência de pagamento, não implica o afastamento dos créditos da reclamação e graduação no lugar que lhes competir;
I - Pois que, ainda que os privilégios creditórios gerais não constituam garantias reais, mas meras preferências de pagamento, “(...) o seu regime é o das garantias reais, para o efeito de justificar a intervenção no concurso de credores.” (cf. Salvador da Costa, ‘O Concurso de Credores’, 3.ª Edição, Almedina, 2005, pág. 388);
J - O que leva a concluir, na esteira do entendimento do pleno da secção de Contencioso Tributário desse Venerando Tribunal, vertido no Acórdão, de 18- 05-2005, recurso n.° 0612/04 (do pleno) ‘O artigo 240º n°1 do CPPT deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios’;
K - Esse tem sido o entendimento jurisprudencial, largamente maioritário, desse Supremo Tribunal Administrativo, como se verifica dos Acórdãos de 13-04-2005, rec. n.° 442/04 (também do pleno); de 04-02-2004, rec. n.° 02078/03, de 20-10-2004, rec. n.° 0614/04; de 13-05-2009, recursos nºs 0169/09 e 0185/ 09 e de 17-06-2009, rec. n.° 0432/09;
L - Ao não admitir os créditos de IRC do exercício de 2006, reclamados pela Fazenda Pública, a douta sentença ora recorrida incorreu em erro de direito, na interpretação e aplicação das normas constantes nos art.ºs 240.°, n.° 1 e 246.º ambos do CPPT, art.° 111.º do CIRS e art.° 108.º do CIRC.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, com o douto suprimento judicial, requer-se a V. Exas. que o presente recurso seja julgado PROCEDENTE por provado, revogando a douta sentença recorrida, substituindo-a por sentença que admita e gradue os créditos reclamados no lugar que lhe competir, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações
O Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, assente em jurisprudência já consolidada deste Tribunal a propósito da interpretação da norma constante do artigo 240º, n.º 1 do CPPT, no sentido de que a decisão impugnada deve ser revogada e substituída por acórdão que proceda a nova graduação de créditos.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
1. Em 14/12/2004, foi celebrado entre a executada e o A…, S.A. um contrato de Hipoteca para garantia do montante de € 50.000,00, com hipoteca sobre a fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente, à cave central destinada a comércio, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua …, número …, com traseiras para a Praceta …, número …, … e …, freguesia da Nossa Senhora da Anunciada, concelho de Setúbal, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o número 737/19891017 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2861, com valor patrimonial de € 7.937,73 (cfr. doc. juntos a fls. 5 a 11 dos autos); A…, Comercial Português, S.A., incidente sobre o imóvel melhor identificado em 1), penhorado no processo de execução de que os autos constituem apenso, com vista à garantia da quantia de € 50.000,00, referente a capital, à taxa de juro anual de 8,925%, acrescido em 2% em caso de mora, despesas no montante de € 1.000,00 e com montante máximo de €67.387,50, (cfr. fls. 96 do processo executivo junto aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
3. A Fazenda Pública instaurou em 23/01/2007, contra a executada B…, Lda. o processo de execução fiscal n° 2232200701003054 do Serviço de Finanças de Setúbal 1ª tendo por objecto dívidas de IVA do exercício de 2004, no montante de € 1.122,30 e de que os presentes autos de verificação e graduação de créditos constituem apenso (cfr. cópia certificada do processo de execução fiscal junto aos autos);
4. Ao processo de execução fiscal identificado no ponto anterior foram apensos os processos de execução fiscal n°s 2232200701033115, 2232200701046772, 2232200701053060, 2232200701070282, 2232200701085697, 2232200701095552, 2232200801004891, 2232200801022482, 2232200801089098 e 2232200801073966, referentes a IMI de 2006 e 2007 IVA de 2005 e 2006 e Coimas (cfr. docs. juntos a fls. 4 a 34 da cópia certificada do processo executivo junto aos autos);
5. Em 25/08/2008, no âmbito do citado processo de execução fiscal, e para pagamento das dívidas nele referidas, foi efectuada a penhora da fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente, à cave central destinada a comércio, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua …, número …, com traseiras para a Praceta …, número …, … e …, freguesia da Nossa Senhora da Anunciada, concelho de Setúbal, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o número 737/19891017 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2861, com valor patrimonial de € 7.937,73, a qual foi registada a favor da Fazenda Nacional em 14/10/2008, para garantia da quantia de € 8.913,06 (cfr. fls. 70 e 97 da cópia do processo executivo junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
6. Em 2008 foi inscrito para cobrança o IRC referente ao exercício de 2006 (cfr. doc. junto a fls. 17 dos autos);
7. Em 2009 foi inscrito para cobrança o IMI de 2008, do imóvel penhorado nos autos (cfr. doc. junto a fls. 17 dos autos);
8. A executada é devedora à Fazenda Pública dos créditos exequendos e reclamados:
9. A executada é devedora ao A…, S.A. da quantia de € 58.558,43.
3 – A única questão que vem controvertida no presente recurso consiste em saber se o crédito de IRC reclamado pela FP, relativo ao ano de 2006 e respectivos juros, deve ou não ser reconhecido e graduado.
A sentença recorrida não reconheceu e graduou o referido crédito, por ter entendido que o privilégio imobiliário geral previsto no artº 108º do CIRC não constitui uma garantia real.
Por sua vez, a recorrente, apoiando-se na jurisprudência deste STA, entende que o artº 240º, nº 1 do CPPT deve ser “interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.”
Esta questão foi já amplamente apreciada e decidida por este STA no sentido defendido pela recorrente FP, jurisprudência essa que vamos aqui seguir, já que não vemos motivo para a alterar e para, assim, obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. artº 8º, nº 3 do CC).
A propósito, escreve-se no Acórdão desta Secção do STA de 13/5/09, in rec. nº 169/09, que “o legislador fiscal determinou a execução de bens individualizados do património do executado para satisfação do crédito do exequente, permitindo todavia aos credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados que reclamassem os seus créditos na execução. É o que resulta do disposto no artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em consonância com o artigo 865.º do Código de Processo Civil no respeitante à execução comum.
Mas, para alguma doutrina, direitos reais de garantia em sentido próprio serão apenas a penhora, o penhor, a hipoteca, o direito de retenção e a consignação de rendimentos. Já quanto aos privilégios creditórios, que o artigo 733.º do Código Civil define como «a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros», não há unanimidade, entendendo alguns que não serão verdadeiros direitos reais de garantia, mas qualidades do crédito, atribuídas por lei em atenção à sua origem. Praticamente unânime é o entendimento quanto aos privilégios gerais: estes não são qualificáveis como direitos reais de garantia. Em todo o caso, há, na doutrina, como na jurisprudência, concordância quanto a que os privilégios creditórios conferem preferência sobre os credores comuns…”.
Nos termos do artº 108º do Código do IRCS, para o pagamento de IRC relativo aos três últimos anos a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou de acto equivalente”.
“…Gozando o crédito reclamado de privilégio imobiliário, não preferindo embora aos credores com garantia real, não deixa, por isso, de poder ser reclamado e graduado no lugar que lhe competir. Neste sentido se têm pronunciado quer o Supremo Tribunal Administrativo quer o Supremo Tribunal de Justiça, em inúmeros acórdãos. Aliás, assim o impõe a unidade do sistema jurídico, pois não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor de acorrer ao concurso. Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o privilégio, pois nesse caso o crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio legal. Assim, afigura-se dever o artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário ser interpretado no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios – cf. neste sentido, quase textualmente, o acórdão do Pleno desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-5-2005, no recurso n.º 612/04, o qual, por sua vez, seguiu o acórdão do Pleno também desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-4-2005, no recurso n.º 442/04, a confirmar os acórdãos fundamento desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 2-7-2003, e de 4-2-2004, proferidos respectivamente nos recursos n.º 882/03, e n.º 2078/03”.
No mesmo sentido pode ver-se, ainda e entre muitos outros, os recentes Acórdãos desta Secção do STA de 12/11/09, in rec. nº 919/09; de 18/11/09, in rec. nº 920/09 e de 12/2/10, in rec. nº 1.035/09 e que aqui vimos seguindo de perto, uma vez que o Relator é o mesmo e de 12/1/11, in rec. nº 725/10.
Assim e pelo que fica exposto, resulta que o crédito em causa deve ser reconhecido e graduado no lugar que lhe couber.
4 – Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e, julgando reconhecido o crédito reclamado pela Fazenda Pública referente ao IRC do ano de 2006 e respectivos juros, proceder à respectiva graduação pela seguinte forma, saindo as custas precípuas do produto do bem penhorado:
1º - O crédito reclamado pelo A…, S.A., garantido por hipoteca registada em 22/12/04 e juros até ao limite de três anos;
2º - O crédito reclamado pela FP de IRC relativo a 2006 e respectivos juros, que gozam do privilégio imobiliário do artº 108º do CIRC;
3º - Os demais créditos exequendos e respectivos juros.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2011. – Pimenta do Vale (relator) – António Calhau – Casimiro Gonçalves.