Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0642/11
Data do Acordão:01/23/2013
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECURSO POR OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
IVA
VENDA DE SALVADOS
ISENÇÃO
COMPANHIA DE SEGUROS
Sumário:As vendas de “salvados” realizadas por companhias de seguros não beneficiam das isenções previstas nos n.ºs 29 ou 33 (actuais n.ºs 28 ou 32) do artigo 9.º do CIVA.
Nº Convencional:JSTA000P15181
Nº do Documento:SAP201301230642
Data de Entrada:09/19/2012
Recorrente:A.... SA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -
1 – A……….., S.A., com os sinais dos autos, não se conformando com o Acórdão deste Supremo Tribunal, proferido nos presentes autos a 2 de Maio de 2012 (a fls. 129 a 143), que concedeu provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que havia julgado procedente a impugnação que deduzira contra liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios relativas ao ano de 1994 e respeitantes a imposto devido pela venda de “salvados” resultantes de sinistros ocorridos com os seus segurados, vem, nos termos do artigo 284.º n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), interpor recurso para este Supremo Tribunal, por oposição com o Acórdão também deste Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Fevereiro de 2003, proferido no recurso n.º 26.435 (junto a fls. 173 a 180 dos autos).
A recorrente apresentou alegações tendentes a demonstrar a alegada oposição de julgados a fls. 157 a 159, concluindo no sentido de que deverá ser reconhecida a existência da apontada oposição, ordenando-se em consequência o prosseguimento dos autos, nos termos e para os efeitos do n.º 5 do art. 284.º do CPPT.

Por despacho de 21 de Junho de 2012 (fls. 160) veio o recurso a ser admitido, no entendimento de que se verifica a invocada oposição de acórdãos, ordenando-se em consequência a notificação das partes para apresentarem alegações, nos termos do disposto no n.º 5 do art. 284º do CPPT.

A recorrente termina as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
A. A aquisição de salvados pela seguradora é um elemento do processo de indemnização no âmbito do contrato de seguro, pois a seguradora não celebra com o segurado qualquer contrato de compra e venda.
B. A seguradora adquire a propriedade do salvado unicamente ao abrigo do contrato de seguro, e em resultado do pagamento da indemnização, sendo a transferência da propriedade inerente à obrigação legal de pagamento de indemnização e, portanto, inerente à própria actividade seguradora.
C. A aquisição de salvados não é, simplesmente, uma “actividade conexa” ou “complementar” da actividade seguradora, mas sim uma das diversas operações em que se decompõe a actividade seguradora, que envolve a prática de vários actos jurídicos, em que se desdobra um negócio jurídico complexo.
D. A tese que recusa a isenção de IVA assenta numa autêntica ficção: de que as seguradoras, para além da respectiva actividade, exercem uma outra, de compra e venda de salvados.
E. Além disso, a AT não pode exigir que a seguradora apresente factura ou documento equivalente de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 35.º do CIVA, ou que a Impugnante demostre que não lhe foi liquidado IVA por parte dos anteriores proprietários dos salvados, dado que a aquisição dos salvados resulta de um processo de pagamento de indemnizações no âmbito de um contrato de seguro e não de um contrato de compra e venda.
F. Por esse motivo, não há lugar à emissão de uma factura, nem essa aquisição dá origem a liquidação de IVA.
G. Sendo assim, porque os actos ou contratos relativos a salvados são inerentes à actividade seguradora e indissociáveis dessa actividade, a aquisição e consequente venda de “salvados” pelas companhias de seguros, no âmbito de contrato de seguro automóvel, abrangendo bens exclusivamente afectos a actividade isenta (operações de seguro, resseguro e prestação de serviços conexos) que não confere direito à dedução, integra a isenção prevista pelo art. 9.º n.º 29 e 33 do CIVA.
Face ao exposto, deverá a identificada oposição de acórdãos ser resolvida firmando-se jurisprudência no sentido de que a aquisição e subsequente venda de 2salvados” pelas companhias de seguros integra a isenção prevista pelo artigo 9.º, n.ºs 29 e 33 do CIVA.
Mais deverá, em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido, e ser substituído por outro que confirme a douta sentença que anulou os actos impugnados, assim se fazendo JUSTIÇA

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 - O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer nos seguintes termos:
Objecto do recurso: acórdão STA – SCT proferido em 2.05.2012 (em oposição com acórdão STA -SCT proferido em 91.02.2003 - processo n.º 26 435
FUNDAMENTAÇÃO
1. São requisitos legais cumulativos do conhecimento do recurso por oposição de acórdãos:
- identidade da questão fundamental de direito
- ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica
- identidade de situações fácticas
- antagonismo de soluções jurídicas
(art. 284º CPPT; art. 27º nº 1 al. b) ETAF vigente; art. 152º nº1 al. a) CPTA)
A alteração substancial da regulamentação jurídica relevante para afastar a existência de oposição de julgados verifica-se «sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base a diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica» (acórdãos STA Pleno secção de Contencioso Tributário 19.06.96 processo nº 19 532; 18.05.2005 processo nº 276/05)
A oposição de soluções jurídicas pressupõe identidade substancial das situações fácticas, entendida não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais (Jorge Lopes de Sousa CPPT anotado e comentado 6ª edição 2011 Volume IV p. 475; acórdão STJ 26.04.1995 processo nº 87 156)
A oposição de soluções jurídicas exige ainda pronúncia expressa sobre a questão, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta (acórdãos STA Pleno SCT 6.05.2009 processo nº 617/08, 26.09.2007 processo nº 452/07; acórdãos STA SCT 28.01.2009 processo nº 981/07; 22.10.2008 processo nº 224/08)
2.Aplicando estas considerações ao caso concreto:
Questão fundamental de direito: isenção de IVA sobre a venda de salvados efectuadas pelas companhias de seguros.
Esta questão decompõem-se em duas subquestões, com a seguinte enunciação:
- inclusão da actividade de venda de salvados no conceito de operações de seguro e de resseguro, constante do art. 9.º nº 29 do CIVA (actualmente art. 9º nº 28 CIVA)
- configuração da venda de salvados como transmissão de bens exclusivamente afectos exclusivamente a uma actividade isenta, nos termos do art. 9.º n.º 33 CIVA (actualmente art. 9.º n.º 32 CIVA)
Os acórdãos em confronto pronunciaram-se expressamente de forma antagónica, nos seguintes termos:
- Acórdão recorrido: a venda de salvados adquiridos pelas companhias de seguros não beneficia da isenção prevista no art. 9.º n.ºs 29 ou 33 do CIVA
- acórdão fundamento: a venda de salvados adquiridos pelas companhias de seguros, no âmbito de contrato de seguro automóvel, porque de bens exclusivamente afectos a actividade isenta que não confere direito à dedução (operações de seguro, resseguro e prestação de serviços conexos) beneficia da isenção estabelecida no art. 9.º n.ºs 29 e 33 CIVA.
Conflito de jurisprudência
Revendo posição expressa no parecer emitido em 12.07.2011 (fls. 127) o Ministério Público adere à doutrina do acórdão recorrido, pela solidez e convincência da sua fundamentação, a qual transcreve integralmente a fundamentação plasmada no matricial acórdão STA-SCT 19.04.2012 processo nº 101/12
Nesta conformidade permitimo-nos a transcrição do sumário doutrinário do acórdão recorrido.
«I – O art. 8.º do Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, distingue, por um lado, entre actividade de seguro directo e de resseguro, que é da competência exclusiva das companhias de seguros, enquanto instituições financeiras, actividade sujeita a autorização, de acordo com o regime do referido diploma, e que só elas podem exercer a título principal, e, por outro lado, actividades conexas ou complementares, que podem ser desenvolvidas autonomamente por outras entidades e que nem sequer estão sujeitas a autorização.
II – O referido preceito, ao integrar a aquisição/venda de salvados nas actividades conexas ou complementares significa que, na óptica do legislador, não se trata de operações de seguro e ou de resseguro, sendo que existe uma diferença fundamental entre os dois tipos de actividades mencionadas.
III – Considerando a letra e a razão de ser da isenção consagrada no art. 9.º, n.º 29, do CIVA, ao dizer-se que estão abrangidas na referida isenção as operações de seguro e de resseguro realizadas por companhias de seguros, bem como as prestações de serviço conexas efectuadas pelos correctores e intermediários de seguros, deve entender-se que não cabe na mesma a actividade de venda de salvados pelas companhias de seguros.
IV – A venda de salvados também não preenche as condições da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA (que o bem esteja afecto à actividade isenta e que a aquisição do bem pelo sujeito passivo tenha sido feita com exclusão do direito a dedução) porque não se trata de uma actividade isenta, mas apenas de operações isentas e a lei não estabelece que ficam isentas todas as actividades de seguro e resseguro, mas apenas as operações de seguro e resseguro. Por outro lado, também não foram abrangidas as actividades conexas ou complementares em geral, mas só as dos intermediários e correctores de seguro e não todas mas apenas das conexas com as operações de seguro e resseguro. Finalmente, o salvado não deve ser qualificado como bem afecto à actividade seguradora, pois quando se fala de bens afectos à actividade isenta quer-se significar os bens que tenham sido utilizados na empresa transmitente na realização de operações isentas do imposto. Aplicá-la aqui era partir não da utilização do bem para determinar o regime da subsequente venda mas inverter a relação e ir buscar o regime que se pretende para a venda para qualificar a utilização anterior.

V – Considerando a natureza excepcional ou anti-sistema das normas de isenção de IVA, elas devem ser objecto de uma interpretação estrita declarativa, isto é, uma interpretação literal que não vá além do que a rigorosa expressão textual da directiva de IVA permite, donde se conclui que a especificidade da aquisição e posterior venda de salvados pode justificar um tratamento fiscal especial, mas não justifica a atribuição de uma isenção.»
CONCLUSÃO
O recurso não merece provimento.
O acórdão impugnado deve ser confirmado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
- Fundamentação –
4 – Questões a decidir
Importa averiguar previamente se, no caso dos autos, estão reunidos os requisitos de admissibilidade do recurso por oposição de acórdãos, cuja não verificação impede o conhecimento do presente recurso.
Concluindo-se no sentido da verificação daqueles requisitos, haverá então que conhecer do seu mérito, sendo a questão que constitui o objecto do presente recurso a de saber o acórdão recorrido merece censura ao ter decidido que a venda de “salvados” adquiridos pelas companhias de seguros no âmbito de contratos de seguro automóvel não beneficia da isenção prevista no art. 9.º n.ºs 29 ou 33 do CIVA

5 – Matéria de facto
No acórdão recorrido encontram-se fixados os seguintes factos:
A) A impugnante encontra-se registada, para efeitos fiscais, pelo exercício da actividade de “Seguros e Resseguros”, CAE 820100, actividade no âmbito da qual efectua a aquisição de salvados resultantes de sinistros ocorridos com os seus segurados, procedendo posteriormente à sua venda (cfr. nota de apuramento, informação da DSPIT e print, a fls. 40 a 42 dos autos e fls. 40 do PAT apenso);

B) Na sequência de uma acção de inspecção efectuada pela Direcção de Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária (DSPIT), da Direcção de Finanças de Lisboa, aos exercícios de 1993 e 1994, foi apurado e corrigido o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no montante de 1.664.256$00, para o exercício de 1994, único em causa nos presentes autos (cfr. nota de apuramento e informação da DSPIT, a fls. 40 a 42 dos autos);

C) Conforme o teor da referida informação, a correcção que constitui o objecto da presente impugnação, relativamente à alienação de salvados, foi efectuada pela Administração Fiscal com os seguintes fundamentos:

«IMPOSTO EM FALTA, CONFORME ARTIGO 3º DO CIVA: “SALVADOS”
1 - O contribuinte durante o ano de 1994 não liquidou IVA na venda dos “salvados”, apesar desta ser qualificada como uma verdadeira transmissão de bens no sentido que a esta deve ser dado pelo artigo 3º do CIVA, pelo que se encontra abrangida pela letra ou pelo espírito do citado artigo, razão pela qual é considerada como operação passível de tributação, à taxa de 16%, para o ano de 1994, de acordo com a alínea c) do artigo 18º do CIVA. Consequentemente, apurou-se imposto em falta no montante de 1.664.256$00 (…)» (cfr. informação da DSPIT, a fls. 41 dos autos);

D) Em consequência das correcções supra identificadas, os serviços da Administração Fiscal emitiram as liquidações adicionais de IVA nº 98155618, relativa ao ano de 1994, no montante de 1.664.256$00, e as liquidações adicionais de Juros Compensatórios com os nºs 98155614, no montante de 345.266$00, 98155615, no montante de 140.233$00, 98155616, no montante de 100.737$00, e 98155617, no montante de 160.329$00, relativas aos períodos de 9403T, 9406T, 9409T e 9412T, respectivamente, com data limite de pagamento voluntário em 30-11-1998 (cfr. cópia dos documentos de cobrança, a fls. 11 e 15 dos autos).

E) As liquidações adicionais identificadas na alínea antecedente foram pagas em 30-11-1998 (cfr. carimbo aposto nos documentos de cobrança, informação e prints, a fls. 11 a 15 e 77 a 80 dos autos)».


6 – Apreciando.
6.1 Dos requisitos de admissibilidade do recurso por oposição de acórdãos
O presente recurso por oposição de acórdãos respeita à questão de saber se as vendas de “salvados” automóveis efectuadas pelas companhias de seguros estão ou não isentas de IVA, ao abrigo dos números 29 ou 33 do artigo 9.º do Código do IVA (CIVA). O acórdão recorrido entendeu não haver lugar à isenção de IVA prevista naquelas normas legais, e consequentemente revogou a decisão de 1.ª instância que julgara ter lugar tal isenção, discordando a recorrente de tal entendimento e invocando oposição do assim decidido com a decisão adoptada no acórdão deste Supremo Tribunal de 19 de Fevereiro de 2003, proferido no recurso n.º 26.435, já transitado em julgado (Acórdão fundamento).
Não obstante o Relator do acórdão recorrido ter proferido despacho em que reconhece a alegada oposição de acórdãos (cfr. fls. 160 dos autos), importa reapreciar se a mesma se verifica, já que tal decisão, como vem sendo jurisprudência pacífica e reiterada deste Supremo Tribunal (vide, entre outros, o Acórdão de 7 de Maio de 2003, rec. n.º 1149/02), não só não faz caso julgado, como não impede ou desobriga o Tribunal de recurso de a apreciar (cfr. art. 685.º-C, n.º 5 do Código de Processo Civil - CPC) – cfr. também neste sentido JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário: Anotado e Comentado, volume IV, 6.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2011, p. 475 (nota 14 a) ao art. 284.º do CPPT).
O presente processo iniciou-se em 1999, pelo que lhe é aplicável o regime legal resultante do ETAF de 1984, ex vi do preceituado nos artºs 2º, nº 1 da Lei nº 13/02 de 19/2 e 4º, nº 2 da Lei nº 107-D/03 de 31/12.
Assim e como é sabido, para se poder falar em oposição de julgados legitimadora de recurso para o Pleno da Secção, nos termos do disposto nos artºs 30º, al. b´) daquele diploma legal e 284º do CPPT, aqui aplicável ex vi do disposto no artº 12º da Lei nº 15/01 de 5/6, necessário se torna que os acórdãos considerados em oposição hajam decidido sobre a mesma questão fundamental de direito, aplicando os mesmos preceitos legais de forma diversa a idênticas situações de facto.
Como tem sido inúmeras vezes explicitado pelo Pleno desta Secção relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adoptar-se os seguintes critérios:
- identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, que supõe estar-se perante uma situação de facto substancialmente idêntica;
- que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica;
- que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta;
- a oposição deverá decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta (Acórdãos do Pleno desta Secção do STA de 26 de Setembro de 2007, 14 de Julho de 2008 e de 6 de Maio de 2009, recursos números 452/07, 616/07 e 617/08, respectivamente).
A alteração substancial da regulamentação jurídica relevante para afastar a existência de oposição de julgados verifica-se «sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base a diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica» (v. Acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA de 19 de Junho de 1996 e de 18 de Maio de 2005, proferidos nos recursos números 19532 e 276/05, respectivamente).
Por outro lado, a oposição de soluções jurídicas pressupõe identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais (cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, op. cit., p. 809 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1995, proferido no recurso n.º 87156).
Vejamos, então, se tais pressupostos se verificam.
Nos acórdãos em confronto, perante situações de facto substancialmente idênticas (como se colhe dos respectivos probatórios fixados), e relativamente à questão fundamental de direito de saber se a venda de salvados pelas companhias de seguros está ou não isenta de IVA, por força da norma de isenção prevista no n.º 29 ou 33.º do artigo 9.º do Código do IVA, decidiu-se no acórdão recorrido que «(…) não são aplicáveis à venda de salvados pelas companhias de seguros as isenções consignadas quer no n.º 29 quer no n.º 33 (do artigo 9.º) do CIVA», enquanto no acórdão-fundamento se decidiu, ao invés, que «(…) a aquisição e subsequente venda de salvados pelas companhias de seguros, no âmbito de contrato de seguro automóvel, porque de bens exclusivamente afectos a actividade isenta (operações de seguro, resseguro e prestação de serviços conexos) que não confere direito à dedução, integra a isenção prevista pelo art. 9.º n.º 29 e 33 do CIVA».
Estão, pois, em causa respostas expressas opostas à mesma questão fundamental de direito, tomadas perante o mesmo quadro normativo e no âmbito de situações de facto substancialmente idênticas, verificando-se, pois, os pressupostos para o conhecimento do mérito do recurso.

6.2 Do mérito do recurso
O acórdão apontado pela recorrente como acórdão fundamento - Acórdão de 19 de Fevereiro de 2003 – foi seguido pela sentença de 1.º instância para fundamentar a decisão de julgar procedente a impugnação deduzida pela ora recorrente contra as liquidações de IVA e juros compensatórios sindicadas, como resulta de fls. 89 e ss. dos autos e como, aliás, não deixa de dar nota o acórdão recorrido (a fls. 133 dos autos).
O acórdão recorrido seguiu, porém, de forma expressa e remetendo integralmente para a respectiva fundamentação, um outro Acórdão deste Supremo Tribunal, proferido em data mais recente - o Acórdão de 19 de Abril de 2012, proferido no rec. n.º 101/12 – que
inverteu a jurisprudência até então seguida nesta matéria e cuja orientação tem sido deste então reiterada em todos os Acórdãos deste Supremo Tribunal que têm versado a questão de saber se estão ou não isentas de IVA as vendas de “salvados” automóveis feitas pelas seguradoras (neste sentido, para além do acórdão recorrido e do já citado de 19 de Abril de 2012, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 31 de Outubro de 2012, rec. n.º 660/12 e de 7 de Novembro de 2012, rec. n.º 748/12).
É também este o julgamento que aqui se reitera, nos termos e pelos fundamentos constantes do Acórdão deste Supremo Tribunal de 19 de Abril de 2012, proferido no rec. n.º 101/12, seguido integralmente pelo acórdão recorrido, que nenhuma censura merece.
Aí se consignou:
«(…) a questão a decidir prende-se com o problema da venda de salvados pelas companhias de seguros e o âmbito de aplicação das normas sobre isenção de IVA, cuja resposta, por sua vez, depende da conclusão a que se chegar quanto a saber:
a) O sentido e alcance do art. 8º, nº1, do Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril, sobre a distinção entre “actividade de seguro directo e ou resseguro” e “actividades conexas e complementares”;
b) Se o conceito de actividades conexas e complementares supra referido corresponde ao mesmo estabelecido pelo legislador do IVA no art. 9º, nº 29, quando se refere a prestações de serviço relacionadas com operações de seguro e resseguro efectuadas por correctores e intermediários de seguros;
c) O sentido e alcance da isenção estabelecida no art. 9º, nº 33, do CIVA e a sua relação com a actividade de aquisição/venda dos salvados.
2.2.Sentido e alcance do art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril, sobre a distinção entre “actividade de seguro directo e ou resseguro” e “actividades conexas e complementares”
De acordo com o art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 94-B/98 (Alterado pelo Decreto-Lei nº 251/2003, de 14 de Outubro), as empresas de seguros referidas nos nºs 1 e 2 do artigo anterior são instituições financeiras que têm por objecto exclusivo o exercício da actividade de seguro directo e ou de resseguro, salvo naqueles ramos ou modalidades que se encontrem legalmente reservados a determinados tipos de seguradoras, podendo ainda exercer actividades conexas ou complementares da de seguros ou resseguro, nomeadamente no que respeita a actos e contratos relativos a:
a) salvados;
b) reedificação e reparação de prédios;

c) reparação de veículos;
d) manutenção de postos clínicos;
e) aplicação de provisões, reservas e capitais.
Do mencionado preceito resulta que a lei reserva às companhias de seguros o exercício das actividades de seguro directo e ou de resseguro, pelo que só elas podem desenvolver estas actividades a título principal. Isto sem pôr em causa a actividade de mediação de seguros ou de resseguros, cujas condições de acesso e âmbito de actividade constam do Decreto-Lei nº 144/2006, de 31 de Julho (O art. 8º estabelece três categorias de mediadores de seguros (mediador de seguros ligado, agente de seguros e corretor de seguros).
O facto de a actividade de seguro e ou de resseguro só poder ser exercida pelas companhias de seguros não significa que estas só possam desempenhar essas actividades. Com efeito, para além da actividade principal (de que detêm o exclusivo), as companhias de seguro podem desempenhar outras actividades acessórias, denominadas actividades conexas ou complementares, nos termos do disposto no art. 8º (2ª parte) do Decreto-Lei nº 94-B/98, entre as quais se inclui a venda de “salvados”. Ao integrar a aquisição/venda de salvados nas actividades conexas ou complementares, significa que, na óptica do legislador, não se trata de operações de seguro e ou de resseguro, sendo que existe uma diferença fundamental entre os dois tipos de actividades mencionadas.
Na verdade, a actividade de seguro e ou de resseguro caracteriza-se pela prática de actos que fazem parte do objecto do contrato celebrado entre o tomador de seguro e a companhia de seguros e apenas podem ser levadas a cabo por seguradoras devidamente autorizadas para o efeito. Já no que respeita às actividades acessórias (De entre as principais conclusões da jurisprudência retirada de vários acórdãos do TJCE sobre a isenção relativa às operações de seguro e resseguro, CLOTILDE PALMA salientou a seguinte: “Uma prestação deve considerar-se acessória em relação a uma prestação principal quando não constitua para a clientela um fim em si, mas um meio de beneficiar nas melhores condições do serviço principal do prestador” (cfr. “Enquadramento da actividade seguradora em imposto sobre o valor acrescentado”, Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, p.621).) ou complementares, estamos a falar de actividades que não comungam da essencialidade da actividade de seguro e ou resseguro, tratando-se de actividades que podem ser desenvolvidas autonomamente por outras entidades que não seguradoras e não estão sequer sujeitas a autorização, nos termos do regime constante do Decreto-Lei nº 94-B/98 como o está a actividade principal levada a cabo pelas seguradoras.
Importa agora confrontar a redacção deste preceito com a do art.9º, nº 29, do CIVA, para ver em que medida há ou não coincidência
nos seus âmbitos de aplicação.
O nº 29 do art. 9º do CIVA dispõe que estão isentas do imposto: “as operações de seguro e resseguro, bem como as prestações
de serviços conexas efectuadas pelos corretores e intermediários de seguro”. Importa ainda reter que este preceito transpõem para a ordem jurídica portuguesa o art. 13º da Directiva 77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977 (Sexta Directiva IVA), cujas alíneas a) e c) do art. 13º B consagram aquelas isenções, respectivamente, com o seguinte teor:
a) As operações de seguro e resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efectuadas por correctores e intermediários de seguros;
c) As entregas de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta por força do presente artigo ou do nº 3, alínea b), do art. 28º, quando esses bens não tenham conferido direito à dedução, tenha sido excluída do direito a dedução
nos termos do nº 6 do art. 17º”.
Posto isto, repare-se que quando o art. 9º, nº 29, diz que estão isentas de imposto as operações de seguro e resseguro está a remeter para a definição do nº 1 do art. 8º (1ª parte) do Decreto-Lei nº 94-B/98 e a referir-se, por conseguinte, às operações de seguro e ou de resseguro desenvolvidas por companhias de seguro.
Por sua vez, quando a seguir o preceito estende a isenção “às prestações de serviço conexas efectuadas pelos corretores e intermediários de seguros”, já está a reportar-se a operações dos intermediários conexas com as operações de seguro e ou de resseguro (Nos termos do disposto no art. 9º, nº1, do Decreto-Lei nº 144/2006, sob a epígrafe, “Âmbito da actividade”, os mediadores de seguros e de resseguros podem inscrever-se no registo e exercer a sua actividade: “a) Apenas no âmbito do ramo «Vida», incluindo operações de capitalização; b) Apenas no âmbito de todos os ramos «Não vida»; c) No âmbito de todos os ramos”. Por sua vez,
nos termos do nº 2 do mesmo preceito, “A mediação no âmbito de fundos de pensões enquadra-se na alínea a) do número anterior.” ).
Decorre do exposto que a isenção prevista no nº 29 do art. 9º do CIVA abrange apenas as operações de seguro e resseguro das companhias de seguros, ficando de fora as actividades conexas ou complementares (Neste sentido, cfr. MARIA ODETE OLIVEIRA, “Anotação ao Acórdão do STA, de 19 de Fevereiro de 2003, Proc. nº 26435”, Jurisprudência Fiscal Anotada, Almedina, Coimbra, 2003, p. 93. Em sentido contrário, defendendo, embora sem adiantar grande argumentação, que a aquisição e posterior venda do salvado integra a actividade seguradora, cfr. ANTÓNIO GAIO, “O IVA e a actividade seguradora - a Tributação da venda de “salvados”, Fisco, nº 84/85, Setembro/Outubro, 98, p. 33).
Nas palavras de MARIA ODETE OLIVEIRA (Cfr. ob. cit., p. 93.), “a isenção do nº 29 abrange apenas as operações de seguro e resseguro das companhias de seguros. Que assim é resulta directamente da letra do preceito. E o preceito não comporta quanto às companhias de seguros quaisquer outras operações, contrariamente ao que sucede em isenções consignadas em diferentes números do art. 9º do CIVA em que o legislador entendeu abranger no âmbito da isenção algumas outras transmissões de bens ou prestações de serviços para além das que directamente justificaram a consagração da isenção, designado essa outras por conexas ou mesmo estritamente conexas. Só que quando assim o quis disse-o expressamente, como aliás se exige em matéria de normas que consagram isenções.”
E a venda de salvados também não cabe na segunda parte da isenção prevista no nº 29 do art. 9º do CIVA porque, como já dissemos, o que o legislador quis foi alargar a isenção às prestações de serviço efectuadas pelos intermediários (mediador, agentes e correctores) e conexas com as de seguro e de resseguro.
Este resultado interpretativo, que se extrai da letra do art. 9º, nº 29, do CIVA conjugado com o disposto no art. 8º (1ª parte) do Decreto-Lei nº 94-B/98, é também o que está em conformidade com o que se retira da razão de ser da isenção consagrada no preceito e que tem de ser lida à luz da Sexta Directiva.
Com efeito, referindo-se à
ratio daquela isenção quanto “às operações de seguro e resseguro, incluindo as prestações de serviços conexas efectuadas pelos correctores e os intermediários de seguros”, JOSÉ XAVIER DE BASTO (Cfr. “A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional”, Ciência e Técnica Fiscal, 362, 1991, p. 148,) pondera que “O argumento mais corrente a favor da isenção de IVA para as actividades seguradoras é o de que o preço a que os serviços respectivos são vendidos – os chamados “prémios de seguro” - não reflecte necessariamente o valor dos serviços efectivamente prestados pelo segurador. A operação de uma companhia seguradora, na sua forma pura, consiste em recolher “prémios” dos clientes, formando um fundo, cujo valor, na sua maior parte, está consignado ao pagamento das “indemnizações”. As somas pagas pelos clientes só em pequena parte se destinam a cobrir os custos de administração e funcionamento; o resto constitui, a bem dizer, transferências. É este o caso da generalidade dos seguros de risco, por exemplo, de incêndio, de acidente de trabalho, etc. No caso de seguros de vida, há, no prémio pago pelos clientes, também um elemento de poupança, o que apela para um tratamento fiscal idêntico ao que recebem outros activos em que se fazem aplicações financeiras (…). A tributação do prémio bruto, permitindo apenas à seguradora a dedução do IVA contido nas aquisições de bens e de serviços de terceiros, não constituiria, nesta lógica, solução aceitável. Separar, todavia, de modo não arbitrário, a componente que se relaciona com o serviço da seguradora, como coisa distinta da componente que se destina a dar solidez financeira ao fundo segurador, ou da componente de poupança, é a dificuldade técnica principal com que se defronta a tributação pelo IVA das operações de seguro e de resseguro”.
Assim sendo, assiste razão à recorrente quando afirma que “a opção do legislador pela consignação da isenção do art. 9º, nº 29, do CIVA prende-se com o facto de ser difícil apurar e, em consequência, tributar, o valor acrescentado nas operações de seguro e resseguro nestes serviços, sendo que tais razões abrangem apenas os prémios de seguro (as operações de seguro e resseguro), não se estendendo às outras actividades que, embora conexas ou complementares, possam ser exercidas pelas seguradoras” (Conclusão XVI).

Por outro lado, estamos a falar da consagração de uma isenção objectiva e não subjectiva, uma vez que não são as seguradoras que estão isentas, mas sim as operações de seguro e de resseguro taxativamente enumeradas na norma (Como refere MARIA ODETE OLIVEIRA, “Não é a actividade que se encontra isenta mas tão só determinadas operações. Isto é, aliás, o que acontece com todas as isenções do art. 9º. Determinadas transmissões de bens e prestações de serviços – as enumeradas no artigo – são isentas em razão do seu objecto ou finalidade, constituindo delimitação do seu âmbito de aplicação. No mesmo sentido, cfr. CLOTILDE PALMA, “Enquadramento da actividade seguradora”…cit., p. 619.).
Em abono da tese interpretativa a que se chegou - não isenção da venda de salvados pelas companhias de seguros - aponta-se o exemplo seguido por vários países europeus, tais como a França, Espanha ou a Bélgica que, embora adoptando em alguns casos um regime especial, não vão ao ponto de considerar aplicável à situação as disposições do art. 13º B) alíneas a) e c) da Sexta Directiva. Assim, a título de exemplo, no direito espanhol, diz-se que apenas se encontra isenta a cobertura do risco cuja contraprestação é o prémio de seguro, e referindo-se expressamente que a entrega a terceiros de bens deteriorados como consequência da realização de sinistro não está abrangida no âmbito da isenção, constituindo uma operação normalmente tributada” (Cfr. MARIA ODETE OLIVEIRA, ob. cit., pp. 94-95.).

2. 3. O sentido e alcance da isenção estabelecida no nº 33 do art. 9º do CIVA e a sua relação com a actividade de aquisição/venda de salvados pelas companhias de seguros
Resta agora averiguar se a aquisição/venda de salvados cabe na isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA ao estabelecer que “a isenção das transmissões de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta, quando não tenham sido objecto do direito à dedução, e bem assim, as transmissões de bens cuja aquisição ou afectação tenha sido feita com exclusão do direito à dedução nos termos do nº 1 do art. 21º”.
Importa começar por reter que os salvados são, em geral, veículos sinistrados que as companhias de seguros, no decurso de um processo de indemnização por sinistro, recebem do segurado, e destinam posteriormente a venda a um terceiro, normalmente aos sucateiros (Nos termos do art. 16º do Código da Estrada (segundo a redacção do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, vigente à data dos factos) entende-se por salvado um veículo a motor que entre na esfera patrimonial de uma companhia de seguros por força do contrato de seguro automóvel, em consequência de acidente e que tenha ocasionado danos que afectem gravemente as suas condições de segurança, ou cujo valor de reparação seja superior a 70% do valor normal que o veículo possuía à data do sinistro”.) , que os adquirem para, por sua vez, também os venderem à peça.
A sentença recorrida, ao decidir como decidiu, louvou-se do consignado no Acórdão do STA de 19/2/2003 (Jurisprudência reiterada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28/10/2003, proc nº 05941/01.), proc. Nº 026435, onde se pode ler que “se os salvados são bens que (…) entram na esfera patrimonial de uma companhia de seguros por força de contrato de seguro (sublinhado nosso)”, nos termos do disposto no art. 16º do Código da Estrada, então a sua “aquisição/afectação decorre ainda e exclusivamente da actividade desenvolvida, a actividade seguradora - de operações de seguro e resseguro e prestações de serviços conexos -, actividade que, como vai referido e decorre do estabelecido pelo citado nº 29 do art. 9º do CIVA, se encontra isenta de tributação em sede de IVA.(…) atentando na específica actividade que estatutária e legalmente está cometida às companhias de seguros, designadamente no âmbito do ramo automóvel, já perante a inevitável e legal aquisição dos salvados ainda e exclusivamente em sede de cumprimento dos respectivos contratos de seguros imperioso é também considerar a subsequente venda/transmissão daqueles bens como bens exclusivamente afectos à actividade seguradora.
Em face do exposto, verifica-se que o argumento decisivo seguido no Acórdão referenciado reside na noção de salvado dada pelo Código da Estrada, extraindo-se daí a inevitabilidade da sua aquisição pelas companhias de seguro. Por outro lado, a conclusão do Acórdão também não atende à diversidade de segurados que consoante sejam ou não sujeitos passivos de IVA colocam problemas diferentes, assim como o tipo de veículos eventualmente envolvidos na aquisição/venda de salvados (Para maiores desenvolvimentos, cfr. MARIA ODETE OLIVEIRA,
ob. cit., pp. 95 ss.).
Vejamos.
Como vimos, o art. 8º do Decreto-Lei nº 94-B/98 classifica a actividade de aquisição e venda de salvados como meramente conexa ou complementar e, por sua vez, também não procede o argumento segundo o qual a aquisição da propriedade dos salvados, por parte da seguradora, resulta estritamente do cumprimento dos respectivos contratos de seguro celebrados com os segurados (em virtude dos quais se estabelece o pagamento em contrapartida da aquisição dos salvados).

Na verdade, o contrato de seguro (Sobre a noção dada pelo TJCE, cfr. CLOTILDE PALMA, “Enquadramento da actividade seguradora”… cit., p. 619.) é o contrato pelo qual uma das partes se obriga com outra, mediante o pagamento de um prémio, a efectuar uma prestação de natureza indemnizatória que possa ressarcir o prejuízo resultante da verificação parcial ou total de um risco. Em caso de sinistro, a companhia de seguros fica obrigada a efectuar uma prestação de natureza indemnizatória a favor do segurado, mas tal não implica necessariamente a aquisição do salvado (Segundo ANTÓNIO GAIO, ob. cit., p. 33, nota (13), o pagamento da indemnização, sendo um valor global, terá em conta a valorização do salvado, pelo que a tomada dos salvados pelas companhias de seguros estarão, porventura, mais ligadas à fidelização dos clientes.) , enquanto obrigação decorrente de cláusulas típicas e obrigatórias de um contrato de seguro.
Mas ainda que se admitisse que a entrada do salvado na esfera patrimonial da companhia de seguros era uma operação necessariamente decorrente do quadro do contrato de seguro, ainda assim haveria que distinguir entre essa entrada e a posterior venda /transmissão do salvado, uma vez que só a primeira operação teria quanto muito fundamento para beneficiar da isenção de IVA (MARIA ODETE OLIVEIRA demonstra que não é bem assim e que tudo depende do estatuto do segurado, em especial se é sujeito passivo de IVA ou não e da natureza do veículo sinistrado (cfr. ob. cit., pp. 95 ss.) por não integrar o conceito de transmissão. Com efeito, sempre se poderia argumentar que a entrada do salvado na esfera patrimonial da companhia de seguros não tem subjacente um preço, mas sim o pagamento de um prémio de seguro, consequência automática da cobertura do risco derivado da apólice de seguro.
Em face do exposto, vejamos então, mais em pormenor, se a venda dos salvados cai na primeira parte do nº 33 do art. 9º do CIVA quando se refere “
a isenção das transmissões de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta (....) quando não tenham conferido direito à dedução”.
Em primeiro lugar, cumpre ter presente a distinção entre actividade acessória ou complementar e actividade de seguro e de resseguro. Como ficou demonstrado, a isenção prevista no nº 29 do art. 9º do CIVA incide sobre operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações conexas levadas a cabo por intermediários, ficando de fora as actividades conexas ou complementares previstas no art. 8º, parte final do Decreto-Lei nº 94-B/98. Daqui deriva que enquanto as operações de seguro e de resseguro só podem de facto ser levadas a cabo pelas seguradoras, o mesmo não se passa com as denominadas actividades conexas ou complementares que tanto podem ser desempenhadas pelas seguradoras como por outras empresas, isto é, não se trata de actividades necessárias das seguradoras, de actividades a que estejam obrigadas a desempenhar por força da lei, mas sim de operações que a título eventual podem ser por elas desempenhadas.
Por outro lado, assiste razão à recorrente quando alega que também não se pode dizer que os salvados são adquiridos pelas seguradoras para serem usados na sua actividade, uma vez que o objectivo das seguradoras é o de vender os salvados, lançando-os no circuito económico, não tendo essa venda qualquer conexão directa e/ou necessária mas sim meramente eventual com a sua actividade nuclear e para a qual carece de autorização, segundo o regime do Decreto-Lei nº 94-B/98.
Neste sentido, para MARIA ODETE OLIVEIRA a venda de salvados não integra a noção de “bem afecto a uma actividade isenta, dado que não constitui efectivamente imput nem indispensável nem tão pouco necessário nem habitual da parte da actividade seguradora que está abrangida no nº 29 do art. 9º (…) (Cfr. ob. cit., pp. 97/98.)” do CIVA.
Em segundo lugar, também não se verifica o pressuposto inserto no art. 9º, nº 33, do CIVA na parte em que exige tratar-se de transmissões de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta, “quando não tenham sido objecto do direito a dedução….”.
No caso de se tratar da entrega de um salvado por parte de um particular não sujeito passivo de IVA, não obstante a entrega do veículo pelo sinistrado constituir uma transmissão do direito de propriedade, que cabe no conceito do art. 3º, nº 1, do CIVA, não sendo o transmitente um sujeito passivo a operação fica de fora da incidência do imposto face ao disposto no art. 1º do CIVA. Com efeito, a transmissão do salvado não deriva do exercício de uma actividade económica, nos termos do disposto no art. 2º, nº 1, alínea a), do CIVA, que se refere a transmissões de bens e prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, nem a operação preenche os pressupostos de incidência real do IRS, ou seja, não é sujeito passivo, condição exigida pelo art. 1º.
Em face do exposto, não cabe aqui o argumento de que estamos perante “transmissões de bens cuja aquisição ou afectação tenha sido feita com exclusão do direito a dedução nos termos do nº1 do art. 21º” (segunda parte do nº 33 do art. 9º do CIVA). Na verdade, como refere MARIA ODETE OLIVEIRA (Cfr. ob. cit., p. 96. Em sentido contrário, CLOTILDE PALMA defende verificarem-se os pressupostos da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA (cfr. “O tratamento em sede de IVA da transmissão de salvados automóveis pelas seguradoras”, Fiscalidade, Julho, 2002, pp. 23 ss.). No entanto, a autora também refere que “a operação de venda dos salvados transcende o conceito de operação de seguro, dado se encontrar “a jusante demais”, dessa actividade para poder ser considerada ainda como nela integrada, por muito alargado que seja o conceito da operação de seguro que possamos construir” (cfr. ob. cit., p. 23.) Em obra mais recente, a autora não é tão clara na defesa daquela tese (cfr. “Enquadramento da actividade seguradora”…cit., pp. 618 ss).) , “(…) escapando à incidência do imposto, a entrega da viatura sinistrada à seguradora pelo segurado, não se poderá com propriedade dizer que a seguradora a adquiriu sem que tenha havido exercício do direito a dedução. Este direito de dedução é do IVA suportado. Se não houve IVA suportado nunca poderá falar-se em exercício ou não do respectivo direito a dedução”. Por outro lado, a estender-se o âmbito da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA, no sentido do defendido na jurisprudência do Acórdão do STA, que serviu de fundamento à sentença “a quo”, implicaria aceitar-se que sempre que um qualquer sujeito passivo, uma vez que o preceito é de aplicação genérica, adquirisse um qualquer bem a um particular estaria em condições de isentar a sua posterior transmissão. Ora, acontece que, no caso mais frequente de comercialização de bens em segunda mão, em que os bens são adquiridos a particulares com intenção de os voltar a reintroduzir no circuito da comercialização, foi necessário prever uma disposição especial para cobrir tais situações, que não ficaram desta forma isentas de IVA. A questão foi objecto da emissão de directiva própria (Directiva 94/5/CE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1994 (7ª Directiva de IVA), transposta para o direito interno por força do Decreto-Lei nº 199/96, de 18 de Outubro. Segundo o regime decorrente da mencionada Directiva, nas situações em que o segurado seja um particular ou um sujeito passivo que não deduziu o IVA suportado aquando da aquisição do veículo aplica-se à venda pela companhia de seguros o regime da margem, uma vez que se verifica também aqui de bens usados adquiridos para venda (É o que se passa designadamente na Holanda. Para maiores desenvolvimentos, cfr. MARIA ODETE OLIVEIRA, ob. cit., p. 99. ) .
Acresce que, no caso particular da aquisição/venda de salvados, o alargamento do âmbito da isenção levaria a questionar se o mesmo seria igualmente extensível às demais actividades conexas ou complementares previstas no art. 8º, nº1, do Decreto-Lei nº 94-B/98 (2ª parte), uma vez que também em relação às mesmas se pode argumentar que ocorrem ainda no seguimento ou decorrência do pagamento do prémio do seguro e no quadro dos contratos de seguros, entendido num sentido amplo.
Não procede também o argumento segundo qual a não isenção da posterior venda do salvado conduz a uma situação de sobretributação (imposto de imposto) (Só nas situações em que o segurado, ao adquirir o veículo, não pode deduzir o IVA suportado (por se tratar de um particular ou de um sujeito passivo isento sem direito à dedução do imposto suportado), é que se verificam efeitos cumulativos de IVA sobre IVA, caso se submeta a tributação, nos termos gerais, a venda do salvado, com violação do princípio básico da neutralidade que se visa alcançar com o IVA.) , uma vez que o veículo já havia sido tributado em IVA sem direito a dedução aquando da sua aquisição pelo segurado. Acontece que, em primeiro lugar, este argumento somente será válido no caso de o segurado ser um particular não sujeito passivo de IVA. Em segundo lugar, mesmo neste caso, o valor do salvado é mínimo, comparado com o valor inicial do veículo, pelo que eventuais efeitos de sobreposição não são significativos, e, por outro lado, a isenção da venda só adia o problema transferindo-o para o sucateiro, a menos que por esta ordem de ideias se conclua que a posterior venda também está isenta de IVA, nos termos do nº 33 do art. 9º do CIVA, porque adquiriu um bem sem exercício do direito à dedução, solução com consequências geradoras de concorrência desleal inaceitáveis.
Em suma, segundo MARIA ODETE OLIVEIRA, as condições da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA são: “que o bem esteja afecto à actividade isenta e que a aquisição do bem pelo sujeito passivo tenha sido feita com exclusão do direito a dedução”. Ora, no caso, “não se trata de uma actividade isenta, mas apenas de operações isentas. A isenção não é das companhias seguradoras mas apenas das operações de seguro e resseguro por elas realizadas. A lei não estabelece que ficam isentas todas as actividades de seguro e resseguro, mas apenas as operações de seguro e resseguro. Também não foram abrangidas as actividades conexas ou complementares em geral. Só as dos intermediários e correctores de seguro e não todas mas apenas das conexas com as operações de seguro e resseguro. Depois o salvado não deve ser qualificado como bem afecto à actividade seguradora”, (…) pois “quando se fala de bens afectos à actividade isenta quer-se significar os bens que tenham sido utilizados na empresa transmitente na realização de operações isentas do imposto. Aplicá-la aqui era partir não da utilização do bem para determinar o regime da subsequente venda mas inverter a relação e ir buscar o regime que se pretende para a venda para qualificar a utilização anterior” (Cfr. ob. cit., pp. 98/99.).
Em face do exposto, interpretar a norma do art. 16º do Código da Estrada como implicando o alargamento da isenção recebida no art. 9º, nºs 29 e 33, do CIVA, significaria aceitar uma isenção não prevista nem pelo Código do IVA nem pela Sexta Directiva, com violação do Direito comunitário. Note-se que quando aquela Directiva quis abranger na isenção as prestações de serviço relacionadas com as operações de seguro e de resseguro efectuadas por corretores e intermediários disse-o expressamente.
Considerando a natureza excepcional ou anti-sistema das normas de isenção de IVA o Tribunal de Justiça da União Europeia tem defendido que as mesmas estão sujeitas ao princípio da interpretação “estrita” ou “declarativa”, vazada, entre outros, no Acórdão SUFA, de 1989. Aí se pode ler que “os termos utilizados para designar as isenções [então] visadas pelo artigo 13º da Sexta Directiva devem ser interpretados restritivamente dado que constituem derrogações ao princípio geral de acordo com o qual o imposto sobre o volume de negócios é cobrado sobre qualquer prestação de serviços efectuada a título oneroso sobre um sujeito passivo. Como observa Rui Laires, o que o TJUE sugere, com expressão algo incerta, é que das normas de isenção em matéria de IVA seja feita uma interpretação estrita declarativa, sito é, uma interpretação literal que não vá além do que a rigorosa expressão textual da directiva permite. Esta doutrina, primeiro firmada no acórdão SUFA, veio depois a ser reiterada em muitas decisões posteriores - como os acórdãos Henriksen, de 1989, Dornier-Stiftung, de 2003, ou Temco-Europe, de 2004” (Cfr. SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 312/313. No mesmo sentido, também CLOTILDE PALMA faz ampla resenha da jurisprudência do TJCE, cfr. “Enquadramento da actividade seguradora”…cit., pp. 618 ss. A título de exemplo, segundo a Autora, “No considerando 42 do Acórdão Skandia pode ler-se que o facto de o art. 13ºB, alínea a) da Sexta Directiva, visar outras operações para além das operações de seguro, corrobora a análise segundo a qual a operação de seguro não pode ser interpretada de forma demasiado ampla” (cfr. ob. cit., p. 620).).
Impõe-se, concluir, pelas razões expostas, que a venda de salvados pelas companhias de seguros não cabe em qualquer das situações de isenção estabelecidas pelo art. 9º nºs 29 e 33 do CIVA (…).»
(Fim de citação)

Em conformidade com o supra exposto, que aqui se reitera, tem concluir-se que o recurso não merece provimento.

- Decisão -
7 – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2013. –
Isabel Cristina Mota Marques da Silva (relatora) – João António Valente Torrão – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – Pedro Manuel Dias Delgado – Joaquim Casimiro Gonçalves – Alfredo Aníbal Bravo Coelho Madureira – Lino José Batista Rodrigues Ribeiro – José da Ascensão Nunes Lopes – Dulce Manuel da Conceição Neto – Maria Fernanda dos Santos Maçãs.