Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0118/23.1BECBR
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
EXCLUSÃO DE PROPOSTAS
RECTIFICAÇÃO
ERRO
Sumário:I – Justifica-se admitir revista se as instâncias discordaram sobre a possibilidade de rectificar um erro na indicação da experiência profissional, para a categoria de mecânicos de bombas, de 5 anos, quando a cláusula do caderno de encargos [ponto 9.2.9, alínea e)] exigia 8 anos de experiência profissional, a qual determinou a exclusão desta proposta, tendo a 1ª instância entendido que aquela proposta devia ser excluída, não sendo sanável o erro, e o TCA decidido em sentido contrário;
II – Com efeito, trata-se de interpretação que envolve dificuldades óbvias, como logo se vê pela resposta contraditória das instâncias (tendo ainda o acórdão do TCA um voto de vencido), e dita consequências práticas relevantes no âmbito dos concursos públicos, podendo, assim, ser repetível, tanto administrativamente, como em sede judicial, sendo, por isso, uma problemática sobre a qual é de toda a conveniência que seja reapreciada por este Supremo Tribunal para uma melhor dilucidação de assuntos de natureza similar.
Nº Convencional:JSTA000P31845
Nº do Documento:SA1202401250118/23
Recorrente:A..., SA
Recorrido 1:B..., LDA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Formação de Apreciação Preliminar

Acordam no Supremo Tribunal Administrativo

1. Relatório
A..., SA (doravante A...), Contra-interessada na acção de contencioso pré-contratual em que B..., Lda (doravante B...) demanda C..., SA, vem interpor recurso de revista, nos termos do art. 150º do CPTA, do acórdão do TCA Norte de 17.11.2023, que, por maioria, concedeu provimento ao recurso que a Autora interpusera da sentença proferida pelo TAF de Coimbra, revogando essa sentença, julgando a acção movida pela Autora procedente e, anulando o acto de adjudicação, e condenando a Entidade Demandada a rectificar o erro de escrita e a admitir a proposta apresentada pela A., “seguindo-se os demais trâmites procedimentais até à decisão final de adjudicação à proposta que, em função do critério de avaliação, fique graduada em 1º lugar, e celebração do respetivo contrato.

No seu recurso defende a Recorrente que se encontram preenchidos os requisitos estabelecidos no art. 150º, nº 1 do CPTA para a admissão da revista, já que a questão em apreço tem relevância jurídica fundamental, sendo, também, necessária uma melhor aplicação do direito.

Em contra-alegações a B... defende que o recurso de revista não deve ser admitido, desde logo, por não se mostrarem preenchidos os pressupostos do art. 150º do CPTA.

2. Os Factos
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

3. O Direito
O art. 150º, nº 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de uma importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como resulta do próprio texto legal, e a jurisprudência deste STA tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como, aliás, o legislador sublinhou na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, considerando o preceito como uma “válvula de segurança do sistema”, que só deve ter lugar, naqueles precisos termos.

A Autora da presente acção de contencioso pré-contratual pediu a anulação do acto de exclusão da proposta que apresentou e do acto de adjudicação à contra-interessada, no âmbito do procedimento de concurso público internacional, para prestação de serviços de manutenção dos Centros Operacionais Afectos ao Departamento de Equipamentos Norte – Procedimento Pré-contratual TA_22_171_CI_S_008_DMA, para aquisição de serviços para a execução de trabalhos de manutenção do sistema Municipal de Saneamento da Entidade Demandada naqueles Centros operacionais.

O TAF de Coimbra por sentença de 12.08.2023 decidiu julgar a acção improcedente, absolvendo o R. e a Contra-Interessada do pedido.
Referiu, em síntese, o seguinte: “Conforme consta do ponto 9.2.9, alínea e) do Caderno de Encargos, a categoria de mecânico de bombas, a considerar pelos concorrentes, deveria cumprir o requisito mínimo de experiência profissional relevante de pelo menos 8 anos, sendo que a declaração dos concorrentes nas respectivas propostas seria utilizada para efeitos de avaliação das mesmas e a experiência profissional indicada na proposta passaria a ser requisito contratual obrigatório (vd. facto provado 9)).
Mas na proposta apresentada pela Autora, esta propôs uma experiência profissional, para a ora referida categoria, de 5 anos, o que determinou a exclusão da sua proposta, mesmo após a apresentação e apreciação da sua pronúncia em sede de audiência prévia (vd. factos provados 11) a 15)).
Circunstância que não se pode considerar preenche[r] os requisitos do lapso de escrita enunciado no artigo 249.º do CC.
Com efeito, a aplicação desta norma, pressupõe a existência de um erro ostensivo, evidente para qualquer destinatário de boa-fé, de tal forma, que se permita que o erro seja rectificado.
A sentença considerou não ser esse o caso, afirmando: “Trata-se de uma afirmação na declaração negocial, assinada pela Autora, com uma experiência profissional diferente dos demais que se encontravam pré-definidos, que não se revela por si, no contexto da proposta e das circunstâncias em que a mesma foi apresentada”. Não sendo, como tal exigível ao júri do concurso que tivesse pedido quaisquer esclarecimentos, por tal não ser permitido pelo disposto no art. 72º, nº 2 do CCP, “pois ainda que se trate de um erro, seja de natureza for, uma vez que se produziria no suprimento desse erro, uma alteração dos elementos da proposta, que a norma não permite. (…)
Assim, alterar a experiência profissional proposta de 5 para 8 anos, colidiria com os princípios da intangibilidade das propostas e da concorrência já que tal apenas se destinaria a alterá-la e não restituir-lhe a sua “verdade original”.
Donde se conclui que, ainda que se trate de um erro, este é unicamente imputável à Autora e apenas a si se deve (sibi imputet).”

O TCA Norte para o qual a Autora apelou, através do acórdão recorrido, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e condenando a Entidade Demandada a rectificar o erro de escrita e a admitir a proposta apresentada pela A., “seguindo-se os demais trâmites procedimentais até à decisão final de adjudicação à proposta que, em função do critério de avaliação, fique graduada em 1º lugar, e celebração do respetivo contrato.
Isto porque entendeu, em síntese, “(…) ser flagrante a desconformidade entre aquilo que anuncia como requisito daquela categoria de técnicos – 8 anos de experiência – e aquilo que, mesmo ao lado, na mesma linha, propõe, sendo como é certo que declarou conformar a sua proposta às exigências do Caderno de Encargos, é possível apreender o erro humano subjacente à descontextualização da referência a 5 anos de experiência profissional, ao invés dos 8 anos exigidos.”

A A... recorre de revista deste acórdão alegando, em síntese, que o mesmo incorreu em erro de julgamento por ter ignorado os requisitos legalmente previstos no CCP para a correcção de erros de escrita numa proposta apresentada por um concorrente a um procedimento pré-contratual público, constantes do nº 4 do art. 72º do CCP.
Pede que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre duas questões jurídicas que fixam o objecto do presente recurso:
«a) Se uma entidade adjudicante pode retificar um erro de escrita numa proposta apresentada no âmbito de um procedimento pré-contratual público, regulado pelo CCP, fazendo recurso ao regime previsto no artigo 249.º do Código Civil e ignorando o regime especialmente previsto, para esta matéria, n.º 4 do artigo 72.º do CCP (e os princípios jurídicos em matéria de contratação pública);
b) Se, num procedimento em que foi apresentado o DEUCP, em vez da declaração do Anexo I ao CCP, aquele documento pode ser convocado como um indício para aferir da existência de um erro de escrita de uma proposta, quando o concorrente declara expressamente (e de uma forma especificada) vincular-se com um atributo, ou um termo ou condição, que viola o respetivo aspeto de execução do contrato estabelecido no caderno de encargos, e quando não existe qualquer outra declaração específica na proposta, que corrobore, de forma clara e inequívoca, a existência desse erro de escrita e/ou da forma de o sanar.».
Como se viu as instâncias discordaram sobre a possibilidade de rectificar um erro na indicação da experiência profissional, para a categoria de mecânicos de bombas, de 5 anos, quando a cláusula do caderno de encargos [ponto 9.2.9, alínea e)] exigia 8 anos de experiência profissional, a qual determinou a exclusão desta proposta, tendo a 1ª instância entendido que aquela proposta devia ser excluída, não sendo sanável o erro, e o TCA decidido em sentido contrário.
Ora, trata-se de interpretação que envolve dificuldades óbvias, como logo se vê pela resposta contraditória das instâncias (tendo ainda o acórdão do TCA um voto de vencido), e dita consequências práticas relevantes no âmbito dos concursos públicos, podendo, assim, ser repetível, tanto administrativamente, como em sede judicial, sendo, por isso, uma problemática sobre a qual é de toda a conveniência que seja reapreciada por este Supremo Tribunal, pelo que se justifica a admissão da revista para uma melhor dilucidação de assuntos de natureza similar.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024. – Teresa de Sousa (relatora) – José Veloso – Fonseca da Paz.