Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0982/11
Data do Acordão:06/27/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:AUTOLIQUIDAÇÃO
IVA
RECLAMAÇÃO PRÉVIA
ÓNUS DE PROVA
Sumário:I - Em caso de autoliquidação, a via contenciosa abre-se apenas depois da reclamação necessária apresentada pelo contribuinte (artigo 131.º CPPT).
II - A imposição de reclamação graciosa prévia resultante do artº 131º, nº 1 do Código de Procedimento e Processo Tributário, nos casos de autoliquidação em que a administração não tomou posição sobre a situação gerada com o acto do contribuinte, não viola os princípios constitucionais da tutela efectiva e da impugnabilidade contenciosa de actos administrativos nem o artigo 95.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária.
III - No processo de impugnação judicial o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
Nº Convencional:JSTA00067708
Nº do Documento:SA2201206270982
Data de Entrada:10/31/2011
Recorrente:A...LDA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TT1INST LISBOA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISC - IVA
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART102 N1 B F N3 ART131 N1 N3 ART75 ART89-A
LGT98 ART95 N1 ART2 A ART74 N1
CIVA08 ART26 ART40
CCIV66 ART342 ART344
CPC96 ART516
CONST76 ART20 ART268 N4
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC593/07 DE 2007/10/03; AC STA PROC863/07 DE 2008/05/21; AC STA PROC860/11 DE 2011/10/12; AC STA PROC03/10 DE 2010/04/20
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO IV PAG406/07 E II PAG133
FREITAS DA ROCHA LIÇÕES DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO 4ED PAG224
CASALTA NABAIS DIREITO FISCAL 6ED PAG396
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1 – A……, Lda, melhor identificada nos autos, vem recorrer para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa de 8 de Junho de 2011, que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida, contra as liquidações de IVA relativas ao período de Dezembro de 2003 no montante de € 26. 462,75.

Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
«A) Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, em 08 de Junho de 2011, nos autos do processo de impugnação judicial n.º 824/10.OBELRS, que correu termos na 3ª Unidade Orgânica daquele Tribunal, a qual julgou improcedente a impugnação judicial, relativa a Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), do período de Dezembro de 2003, deduzida pela ora Recorrente, A……, LDA., com fundamento “na sua ilegal interposição”.
B) Com base e fundamento na factualidade apurada em sede de sentença, julgou o Tribunal a quo verificar-se “a ilegal interposição de impugnação posto que não precedida da reclamação necessária prevista no n°1 do art°131, do CPPT”, ficando “prejudicado o conhecimento das restantes questões processuais”.
C) Ora, salvo o devido respeito, entende a Recorrente que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, ao ter assim decidido, e com estes fundamentos, razão pela qual deve a mesma ser revogada por este Tribunal, e substituída por outra que faça uma correcta interpretação do direito aplicável, e em consequência, conheça das várias questões processuais suscitadas nos autos.
D) Com efeito, entende a ora Recorrente, salvo o devido respeito, que há na sentença recorrida normas jurídicas violadas, as quais impunham outra decisão.
E) In casu, entendeu o Tribunal a quo na sentença recorrida que, por um lado, o facto de a Recorrente não ter apresentado reclamação prévia em relação ao acto de liquidação que questionou em sede de impugnação judicial, e, por outro lado, ainda, pelo facto de (ii) não ser possível “a convolação para processo de reclamação graciosa por já se mostrar largamente excedido, na data da apresentação da impugnação (30/03/2010), o prazo de dois anos após a declaração (18/03/2004), a que se refere aquele n°1 do art°131°, do CPPT’, consubstanciavam fundamento para, desde logo, se considerar os presentes autos de impugnação improcedentes.
F) Ora, entende a Recorrente que o início da contagem do prazo para deduzir impugnação judicial deveria ter sido feita nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 102°, do CPPT, ou, maxime, nos termos da alínea f), do n.º 1, daquela norma.
G) Ou seja, o prazo sempre seria de noventa dias contados a partir do conhecimento do acto da DGCI que para si, Recorrente, seria lesivo.
H) Sendo que essa “lesividade” revelou-se à Recorrente (apenas) quando foi notificada, no âmbito do processo-crime, pelo Tribunal Judicial de Loures para efectuar o pagamento da alegada dívida.
I) Reagindo, a Recorrente, em tempo através da impugnação apresentada em juízo.
J) Um entendimento contrário implica que a Recorrente não pudesse reagir judicialmente para a tutela dos seus direitos.
K) Entende, pois, a Recorrente, que a interpretação feita pela sentença recorrida dos artigos 102. ° e 131º, ambos do CPPT, se afigura desconforme, logo materialmente inconstitucional, com o artigo 20°, da CRP.
L) Ora, na prática, a interpretação feita na sentença recorrida, e para além da sua desconformidade com a CRP, determina que a Recorrente fique numa situação de indefesa, sendo-lhe negado o direito a obter uma tutela judicial efectiva sem qualquer base de sustentação ou razoabilidade para tal.
M) Ao assim não ter entendido violou a sentença o artigo 20°, da CRP, artigo 102°, n.º 1, alíneas b) e f) e artigo 131°, do CPPT.
N) Com efeito, o Tribunal a quo ao entender que se verificou a “ilegal interposição” da impugnação judicial, por não ter sido deduzida a reclamação prévia necessária, nos termos do artigo 131°, n.º 1, do CPPT, fez uma interpretação do direito aplicável em clara violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), e do seu corolário, o princípio da impugnabilidade dos actos administrativos.
O) No caso sub judice, e mesmo decidindo o Tribunal a quo que a liquidação de IVA objecto dos presentes autos consubstancia uma situação de autoliquidação do imposto, ainda assim, não há lugar à aplicação do artigo 131°, n.º 1, do CPPT, porquanto este incide sobre os erros ocorridos no acto de autoliquidação.
P) Sendo que, no caso dos presentes autos, não ocorreu um tal erro no acto de autoliquidação.
Q) A verificação de um erro pressupõe que quem preencheu a liquidação tenha poderes para a prática do acto, pois caso contrário o vício é prévio ao alegado erro, que impede a sua formação enquanto acto próprio da Recorrente.
R) A situação prevista pelo legislador naquela norma reporta-se aos casos em que o próprio, ao formar o acto, se enganou durante o seu procedimento. Não é, pois, a situação dos presentes autos.
S) A interpretação de que o caso sub judice se encontra regulado pela norma do artigo 131°, viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva, ao limitar o acesso da Recorrente à justiça a aos tribunais (cfr artigo 20°, da CRP).
T) Por outro lado, um dos corolários deste princípio é o princípio da impugnabilidade contenciosa dos actos administrativos, que impõe também os considerandos supra expostos, ou seja, a interpretação da norma do artigo 131°, n.º 1 do CPPT, no sentido em que estará a Recorrente obrigada a reclamar previamente, viola o princípio da impugnabilidade contenciosa dos actos administrativos.
U) O acto - qualificado, ou não, como autoliquidação - foi praticado, produz efeitos na ordem jurídica e é lesivo dos direitos e interesses da Recorrente.
V) O acto é sobretudo passível de impugnação judicial porquanto se mostre lesivo e imediatamente executório, aliás, como se pode verificar pelos efeitos que produziu na esfera jurídica da Recorrente, uma vez que motivou directamente a exigibilidade da dívida conforme o conteúdo e originou a instauração de um processo de execução fiscal.
W) Ora, decorre do disposto no n.º 1, do artigo 95.°, da LGT, que, ao interessado assiste o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus interesses legalmente protegidos.
X) Sendo que, podem ser lesivos, nomeadamente, a liquidação de impostos, aí se incluindo os actos de autoliquidação, nos termos previstos no artigo 95º, n.º 2, da LGT
Y) Mesmo que se aceite que estamos perante uma autoliquidação ou uma heteroliquidação ou, mesmo, um qualquer acto inominado praticado pelo contribuinte, o certo é que estamos perante um acto lesivo dos seus direitos.
Z) Sendo lesivos, como se demonstrou, são impugnáveis directamente (independentemente da sua qualificação como actos administrativos) e dessa forma, uma interpretação contrária do artigo 131°, n.º 1 do CPPT e do artigo 95.°, n.º 1 da LGT, é desconforme com os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e da impugnabilidade contenciosa dos actos administrativos.
AA) Face a todo o exposto, o Tribunal a quo fez na sentença recorrida uma errada interpretação das normas legais aplicáveis ao caso, tendo incorrido na violação do disposto no artigo 20.° da CRP, artigo 102°, n.º 1, alíneas b) e t), n.º 3, 131.º e ainda 95.° da LGT,
BB) Por outro lado, ainda, no âmbito dos presentes autos, decidiu o Tribunal a quo que a alegação de que a declaração do IVA onde se encontra “apurado o montante do imposto não foi apresentada por qualquer representante legal da impugnante ou pessoa autorizada, não se mostra minimamente comprovada ou evidenciada nos autos sendo certo que o ónus dessa prova recai sobre quem tal alega e, nessa medida, fica prejudicada toda a argumentação jurídica da impugnante alicerçada nesse (indemonstrado) pressuposto”- ( realçado da recorrente)
CC) Ora, no âmbito dos presentes autos, a Recorrente impugnou a veracidade da declaração do IVA sub judice - por a mesma e segundo por si alegado - não ter sido por si entregue, na qualidade de sujeito passivo do imposto, como dispõe o CIVA.
DD) Sabe-se que a possibilidade de efectivação de tal negação é, reconhecidamente, limitada, já que a agora Recorrente alega um facto negativo, sendo no entanto que quando se aleguem factos negativos, caberá à DGCI o ónus da prova de que o facto negativo invocado não se verificou.
EE) Tem sido entendimento pacífico da jurisprudência que, em qualquer caso, quando a prova não for possível ou se tornar muito difícil àquele que, segundo as regras do artigo 342°, do Código Civil, teria de a fazer, o ónus da prova deixa de impender sobre ele, passando a recair sobre a outra parte.
FF) É que o artigo 108°, n.º 3, do CPPI, ao impor a junção, à petição inicial, dos documentos de prova, obriga a juntar apenas os documentos relativos aos factos em relação aos quais recaia sobre a Recorrente, nos termos gerais, o ónus da prova.
GG) A não ser feita tal interpretação do artigo 108°, n.º 3, do CPPT, ele violaria o disposto no artigo 268°, nº 4, da CRP, pois traduzir-se-ia, no esvaziar de conteúdo do direito dos interessados ao recurso contencioso.
HH) Haverá de se concluir que, não obstante o disposto no artigo 108°, n.º 3, do CPPT, caberá à DGCI alegar e provar, facto a facto, em que consistiu a conclusão de que teria ocorrido facto tributário, recaindo no âmbito da incidência objectiva e subjectiva de IVA e em que consistiu a concreta quantificação efectuada, sendo que essa prova deve ser cabal e desprovida de incertezas.
II) Na ausência de tal certeza, a incerteza sobre o facto terá, necessariamente, de resolver-se a favor da Recorrente, não só por aplicação das regras gerais sobre a repartição do ónus da prova, mas também por contado princípio do in dubio contra fiscum (artigo 100°, n.º 1, do CPPT).
JJ) Nestes termos, e ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, cabia à DGCI fazer prova bastante do facto tributário, para que o mesmo pudesse ser oponível ao sujeito passivo, aqui Recorrente.
KK) Face a todo o exposto, fica também por aqui demonstrado que, deveria o Tribunal a quo ter concluído pela procedência da pretensão jurídica da Recorrente, consistente na anulação total do acto tributário impugnado.
LL) Ao decidir como o fez, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 342°, do CC, 100°, n.º 1, 108°, nº 3, do CPPT e ainda, o artigo 268°, n.º 4, da CRP
V - Pedido:
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que ordene a prossecução dos autos para apreciação de mérito, tudo com as necessárias consequências legais.»

2 – Não foram apresentadas contra alegações.

3 -O Exmº Magistrado do Ministério Publico emitiu o douto parecer no seguinte sentido:
“Recorrente: A……, Lda
Objecto do recurso: sentença declaratória da improcedência de impugnação judicial deduzida contra liquidação de IVA (Dezembro 2003) no montante de € 26 462,75
FUNDAMENTAÇÃO
1.As conclusões das alegações delimitam o objecto do recurso (art.684°n°3 CPC/art.2° al. e) CPPT)
A conclusão CC) contraria o juízo conclusivo fáctico formulado na sentença (transcrito na conclusão BB), segundo o qual não resultou comprovado que a declaração de IVA onde está apurado o montante do imposto não tivesse sido apresentada por representante legal da recorrente ou pessoa autorizada, desse antagonismo pretendendo extrair consequência jurídica (cf.. sentença fls.122).
Neste contexto o recurso não tem por exclusivo fundamento matéria de direito sendo o STA-SCT incompetente, em razão da hierarquia, para o seu conhecimento e competente o TCA Sul -SCT (arts. 26° al. b) e 38° al. a) ETAF 2002; art.280° n°1 CPPT)
2.A interessada poderá requerer, oportunamente, o envio do processo para o tribunal declarado competente (art. 18º nº 2 CPPT).
O Ministério Público tem legitimidade para a suscitação da incompetência absoluta do tribunal em processo judicial tributário (art.16° n°2 CPPT)
A competência dos tribunais da jurisdição fiscal é de ordem pública; o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (art.13° CPTA art.2° al. c) CPPT)
CONCLUSÃO
O STA-secção de Contencioso Tributário é incompetente, em razão da hierarquia, para o conhecimento do recurso, sendo competente o TCA Sul-SCT.”
4 – Notificadas as parte para, se pronunciarem sobre a questão da incompetência em razão da hierarquia deste Supremo Tribunal, suscitada no parecer do Ministério Publico (fls.166), nada vieram dizer.
5 – Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

6- Fundamentação

6.1 De facto:

Em sede factual apurou-se na primeira instância a seguinte matéria de facto com relevo para a decisão da causa:
1. A impugnante encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal para efeitos de IVA (‘print” automático a fls. 41 do apenso instrutor);
2. Com referência ao período de Dezembro/2003, foi submetida electronicamente e recebida pela Administração fiscal em 18/03/2004, a declaração periódica de substituição que consta de fls. 80 do apenso, constando do campo reservado a “número de identificação fiscal” o ……, que corresponde ao da impugnante, e do campo reservado a “valor da liquidação de substituição” a importância de € 26.685,10;
3. O valor da liquidação impugnada foi o apurado na declaração referida supra, no ponto 2);
4. A liquidação tinha prazo de cobrança até 10/02/2004 (“print” automático a fls. 75 do apenso); -
5. Não foi apresentada reclamação graciosa da liquidação (informação a fls. 35 do apenso);
6. A dívida apurada na liquidação não foi paga no prazo de cobrança voluntária;
7. Foi extraída certidão de dívida, com base na qual foi instaurado o processo executivo n°3 158200401024078, tramitado por apenso à execução n°3158200101031015 (informação a fls. 35 e título executivo a fls. 38, ambas do apenso);
8. A impugnante foi notificada pela Divisão de Processos Criminais da Direcção de Finanças de Lisboa, no âmbito do processo ali pendente, através de carta registada com aviso de recepção, que recebeu em 02/04/2009, para efectuar o pagamento da dívida de € 26.462,75 correspondente a IVA em falta referenciado ao período de Dezembro/2003 (fls. 102 e 103);
9. O mandatário da impugnante foi notificado em 18/01/2010, por ofício do 2° Juízo Criminal de Loures, da notificação efectuada em 8) - vd. documentos juntos pela impugnante a fls. 76/78.

6.2 De direito

Do objecto do recurso:

6.3 Questão previa da incompetência deste Supremo Tribunal Administrativo em razão da hierarquia.
Importa a título prévio decidir da competência em razão da hierarquia deste Supremo Tribunal para conhecer do presente recurso, questão essa suscitada no parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto a fls. 166 dos autos.
Alega aquele ilustre magistrado que «a conclusão CC) contraria o juízo conclusivo fáctico formulado na sentença (transcrito na conclusão BB), segundo o qual não resultou comprovado que a declaração de IVA onde está apurado o montante do imposto não tivesse sido apresentada por representante legal da recorrente ou pessoa autorizada, desse antagonismo pretendendo extrair consequência jurídica».
Não cremos, no entanto, que lhe assista razão.
Com efeito na conclusão CC, que não pode ser vista de forma isolada mas em conjugação com as conclusões que lhe seguem (DD a JJ), a recorrente alega que impugnou a veracidade da declaração do IVA em causa - por a mesma e segundo por si alegado nos autos de impugnação - não ter sido por si entregue, na qualidade de sujeito passivo do imposto, como dispõe o CIVA, invocando que, por se tratar de facto negativo, caberia à DGCI o ónus da prova de que tal facto negativo invocado não se verificou.
Ora a questão de saber a quem cabe o ónus da prova em processo de impugnação judicial, e, nomeadamente, de saber se recai sobre a Administração Fiscal o ónus de demonstrar que foi a impugnante, através do seu representante legal, quem preencheu validou e submeteu as declarações electrónicas de IVA que estão na origem da dívida impugnada, é uma questão exclusivamente de direito, e é sob essa perspectiva que a recorrente ataca a decisão recorrida nas referidas conclusões CC a JJ.
Improcede pois a questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, sendo este Supremo Tribunal Administrativo competente, em razão da hierarquia, para conhecer do presente do recurso.
6.4 Improcedendo a questão prévia suscitada, haverá então que conhecer das demais questões objecto do recurso que são as seguintes:
a) saber se a interpretação feita pela sentença recorrida dos artigos 102º, nº 1, als. b) e f), nº 3 e 131º, ambos do CPPT, se afigura desconforme com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (20°, da CRP) e com o princípio da impugnabilidade contenciosa dos actos administrativos;
b) saber se recai sobre a Administração Fiscal o ónus de demonstrar que foi a impugnante, através de um seu legal representante, que preencheu, validou e submeteu as declarações electrónicas de IVA que estão na origem da dívida impugnada e se padece de erro de julgamento a sentença recorrida que assim não entendeu.
Vejamos, pois.

6.5 Da impugnação em caso de autoliquidação

No caso subjudice está em causa a aplicação do disposto no artº 131º nº 1 do CPPT que prevê que em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos após a apresentação da declaração.

Como se vê a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa considerou que para se impugnar judicialmente uma autoliquidação, é necessário provocar previamente uma decisão da Administração tributária (salvo a hipótese prevista no n°3 do referido artº 131º, que não é alegada, nem releva para questão dos autos).
E que de tal norma não resulta que o contribuinte fique impedido de impugnar a autoliquidação. Tem é de reclamar previamente. Isto porque, sublinha-se na decisão recorrida, no caso de autoliquidação, não há um acto da administração que seja imediatamente impugnável, mas sim um acto voluntário do contribuinte.
E, prosseguindo neste discurso argumentativo conclui que se verifica ilegal interposição de impugnação posto que não precedida da reclamação necessária prevista no n°1 do art°131°, do CPPT.

Contra o assim decidido se insurge a recorrente, alegando em síntese que a interpretação que a sentença recorrida faz dos artigos 102º, nº 1, als. b) e f), nº 3 e 131º, ambos do CPPT, se afigura desconforme com o principio constitucional da tutela jurisdicional efectiva ( 20°, da CRP ) e com o princípio da impugnabilidade contenciosa dos actos administrativos.
Mas não lhe assiste razão.
Como vimos resulta do artº 131º nº 1 do Código de Procedimento e Processo Tributário que em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos após a apresentação da declaração
E no caso estamos efectivamente perante uma situação de autoliquidação.
Com efeito, está em causa autoliquidação de IVA com referência ao período de Dezembro de 2003, cujo valor foi apurado na sequência de declaração periódica de substituição que consta de fls. 80 dos autos apensos ( cf. probatório, pontos 2 a 4)
Aliás, em sede de IVA a regra é a cobrança do imposto ser feita na sequência de autoliquidação, nos termos dos arts. 26.° e 40.° do CIVA, sendo o pagamento feito à Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado (DSCIVA).
Ora a autoliquidação é a liquidação de um tributo que não é feita pela Administração Tributária, mas pelo sujeito passivo, seja ele o contribuinte directo, o substituto legal ou o responsável legal.

Como se sublinha no Código de Procedimento e Processo Tributário anotado de Jorge Lopes de Sousa, vol. IV, pags. 406 e 407, face ao conceito de acto administrativo adoptado pelo artº 120º do CPA, que, embora previsto para esse código tem de ser aplicado por analogia, «tem de se concluir que nos casos de autoliquidação não se está perante um acto administrativo por não existir qualquer tomada de posição da administração sobre a sua relação com o contribuinte, na situação concreta gerada por este ao autoliquidar o tributo».
Ainda a propósito da necessidade de reclamação prévia nos casos de autoliquidação esclarece Joaquim Freitas da Rocha nas suas Lições de Procedimento e Processo Tributário, 4ª edição, pag. 224: «Parece que se pode encontrar um argumento convincente na ideia de que, nestas situações, em rigor, ainda não existe propriamente um conflito de pretensões entre o credor tributário e o sujeito passivo que justifique a entrada em cena de um órgão jurisdicional. Com efeito, até ao momento da autoliquidação, se as coisas decorrerem de acordo com a normalidade, a Administração ainda não manifestou por forma alguma a sua vontade e, consequentemente, ainda nada fez que possa eventualmente lesar o contribuinte. Assim sendo, justifica-se que, antes de ingressar em Tribunal, esta questão mereça uma apreciação por parte daquela e, porventura, a liquidação feita seja alvo de uma correcção que satisfaça as pretensões do interessado».

Por isso resulta do artº 131º do Código de Procedimento e Processo Tributário, que constitui pressuposto da impugnação dos actos de autoliquidação, a verificação de uma impugnação administrativa necessária (reclamação prévia) ou seja, nas palavras de José Casalta Nabais (Direito Fiscal, 6ª edição, pag. 396.), «uma “administrativização” desses actos dos particulares.
Em suma nas situações de autoliquidação em que a administração tributária não tomou posição sobre a sua relação com o contribuinte, não se verifica um conflito de interesses que importa dirimir e em que se imponha, constitucionalmente, a necessidade de tutela judicial.
Daí que se entenda que a imposição de reclamação graciosa prévia, nos casos, como o dos autos, em que a administração não tomou posição sobre a situação gerada com o acto do contribuinte, e a interpretação que a decisão recorrida faz do artº 131º nº 1 do CPPT no caso subjudice, não são materialmente inconstitucionais por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva e do acesso ao direito consagrado no artº 20 da Constituição da República.
De resto a invocada violação do princípio constitucional da tutela efectiva, consagrado no artigo 20.º da CRP, não se verifica, pois está claramente assegurada ao contribuinte a impugnação do acto administrativo subsequente à reclamação necessária.
Acresce dizer que a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo se tem pronunciado, de forma constante, no sentido da constitucionalidade deste regime de reclamação necessária - cf. neste sentido , acórdãos de 31.10.2007, recurso 593/07, de 21.05.2008, recurso 863/07, e de 12.10.2011, recurso 860/11.
Como se disse neste último aresto, «no caso de autoliquidação, não há um acto da administração que seja imediatamente impugnável, mas sim um acto voluntário do contribuinte. Assim, bem se compreende que o legislador exija, neste caso, a prévia reclamação, a fim de que seja proferido um acto (ou se ficcione essa prática, no caso de indeferimento tácito), para que se abra a via contenciosa».
Por último se dirá que não se vislumbra também qualquer violação do princípio da impugnabilidade contenciosa dos actos administrativos.
E, desde logo porque, como se sublinha no Acórdão 593/07, acima citado, «o art.º 95.º, 1, da LGT que assegura que “o interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, também acrescenta que esse direito se deve conformar às “formas de processo prescritas na lei”. Ora, está assegurada a impugnação da autoliquidação dos tributos – como decorre expressamente do n.º 2, al. a) deste normativo, desde que cumpridos os formalismos prescritos na lei (que são os do art.º 131.º do CPPT)».
Formalismo que, no caso, é precisamente a reclamação necessária prévia – art.º 131.º, 1, do CPPT.
Não procedem, pois, nesta parte, as alegações da recorrente.

6.6 Da questão de saber se recai sobre a Administração Fiscal o ónus de demonstrar que foi a impugnante, através de um seu legal representante, que preencheu, validou e submeteu as declarações electrónicas de IVA que estão na origem da dívida impugnada.
Alega a recorrente que impugnou a veracidade da declaração do IVA em causa - por a mesma e segundo por si alegado nos autos de impugnação - não ter sido por si entregue, na qualidade de sujeito passivo do imposto, como dispõe o CIVA, argumentando que, por se tratar de facto negativo, caberia à DGCI o ónus da prova de que tal facto negativo invocado não se verificou.
Invoca para o efeito que «Tem sido entendimento pacífico da jurisprudência que, em qualquer caso, quando a prova não for possível ou se tornar muito difícil àquele que, segundo as regras do artigo 342°, do Código Civil, teria de a fazer, o ónus da prova deixa de impender sobre ele, passando a recair sobre a outra parte»

É manifesto que esta argumentação da recorrente não pode proceder.

Para a recorrente basta a impugnação da veracidade da declaração substituição entregue, alegando que nunca lhe foi dado conhecimento, pelo técnico oficial de contas, do conteúdo das declarações de IVA que constam dos autos (vide arts. 87 e segs. da petição inicial), para devolver à Fazenda Pública o ónus da prova de tal facto.
Mas não é assim.
No contencioso tributário existem regras próprias sobre a repartição do ónus da prova em matéria de quantificação da matéria tributável, ficando afastada a possibilidade de fundamentar tal repartição com base quer nas regras dos arts. 342º a 344º do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil, quer no critério geral de repartição do ónus da prova que tem vindo a ser usado no contencioso administrativo (Neste sentido também Código de Procedimento e Processo Tributário anotado de Jorge Lopes de Sousa, vol. II, pag .133.) .
Assim, no que concerne à repartição do ónus da prova entre a Administração Fiscal o contribuinte estabelece o artº 74º nº 1 da Lei Geral Tributária que «o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque».
Por sua vez o artº 75º do Código de Procedimento e Processo Tributário estabelece uma presunção de veracidade das declarações dos contribuintes nos seguintes termos: « 1.Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.
2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:
a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;
b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;
c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica previstos na presente lei.
d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A.
3 - A força probatória dos dados informáticos dos contribuintes depende, salvo o disposto em lei especial, do fornecimento da documentação relativa à sua análise, programação e execução e da possibilidade de a administração tributária os confirmar».
O que se consagra neste normativo é uma presunção legal da veracidade das declarações das contribuintes apresentadas nos termos da lei.
Quer isto dizer que, gozando os contribuintes e demais obrigados tributários desta presunção, cabe à Fazenda Pública o ónus da prova de que tais declarações não reflectem a real situação tributária dos contribuintes (Cf., neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20.04.210, recurso 03/10.).
Porém, no caso dos autos a situação é diversa: estando em causa uma autoliquidação é o contribuinte que vem discordar da própria declaração, impugnando a sua veracidade e até a sua autenticidade, alegando que «à impugnante nunca foi dado conhecimento pelo TOC do conteúdo das declarações de IVA que constam dos autos» (cf. arts. 87 e segs. da petição inicial)
Ora, sendo assim, não há que falar aqui em presunção legal, que, aliás, nem é estabelecida em favor da Fazenda Pública.
Assim, cabia à recorrente demonstrar o facto por si alegado de que a declaração de IVA onde está apurado o montante do imposto (declaração electrónica que consta de fls. 80 dos autos apensos – cf. ponto 2 do probatório) não foi apresentada por qualquer representante seu, facto esse que a sentença considerou não ter sido minimamente comprovado ou evidenciado nos autos.

Diga-se finalmente que não se vislumbra que esta interpretação viole ou ponha de algum modo em causa o princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 268.º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, sendo também de sublinhar que a recorrente se fica pelo plano da invocação genérica do princípio, não sendo desenvolvida argumentação de onde se possa inferir essa inconstitucionalidade.
Improcedem, pois, todas as conclusões do recurso.

7. Termos em que, face ao exposto, acordam o juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 27 de Junho de 2012 - Pedro Delgado (relator) - Valente Torrão - Francisco Rothes.