Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01303/16
Data do Acordão:03/07/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE IMÓVEIS
SUSPENSÃO DA LIQUIDAÇÃO
PRÉDIO
REVENDA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IMPUGNAÇÃO CONTENCIOSA
Sumário:I - Porque no contencioso tributário vigora o princípio da impugnação unitária (cfr. art. 54.º do CPPT), não se impõe, como condição para impugnar judicialmente a liquidação de IMI efectuada por a AT não ter aceitado a exclusão de tributação ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI, a prévia impugnação contenciosa (a efectuar por acção administrativa) contra o acto por que a AT comunicou ao contribuinte que não aceitava essa exclusão.
II - No entanto, se foi deduzido recurso hierárquico contra este último acto, justifica-se que a AT considere a respectiva decisão como prejudicial da decisão a proferir no recurso hierárquico da decisão que indeferiu a reclamação graciosa contra a liquidação de IMI.
III - Nos mesmos termos, se for deduzida acção administrativa especial contra a decisão proferida no recurso hierárquico contra o acto de “indeferimento” da suspensão da tributação, deve entender-se que a mesma constitui causa prejudicial relativamente à impugnação judicial da liquidação de IMI (uma vez que naquela acção se conhece da legalidade de acto cuja decisão condiciona o sentido da liquidação impugnada), a justificar a suspensão desta até à decisão daquela, em ordem a prevenir eventual contradição de julgados [cfr. art. 272.º, n.º 1, do CPC, ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT].
IV - Se, no caso, não foi instaurada acção administrativa especial contra a decisão da AT que não aceitou a exclusão de tributação ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI, não faz sentido discutir eventual relação de prejudicialidade entre os referidos actos.
V - Ainda que, relativamente aos prédios em causa, a sociedade vendedora, à data em que entrou em vigor o CIMI (1 de Dezembro de 2003), estivesse a beneficiar da suspensão de tributação em sede de CA ao abrigo do disposto no art. 10.º, n.º 1, alínea f), do CCA e, por força do disposto no n.º 6 do art. 31.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Dezembro, no ano de 2003 tenha beneficiado da não tributação em IMI, a sociedade que em 2004 surge como a primeira adquirente dos prédios no âmbito da vigência do CIMI não fica impedida pelo n.º 6 do art. 9.º do CIMI de beneficiar da não sujeição a imposto prevista na alínea e) do n.º 1 do mesmo artigo.
Nº Convencional:JSTA00070584
Nº do Documento:SA22018030701303
Data de Entrada:11/21/2016
Recorrente:A......, S.A.
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TTRIB LISBOA
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL
DIR FISC - IMI
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART54 ART2 E.
CIMI03 ART9 N6.
CCA88 ART10 N1 F.
DL 287/2003 DE 2003/12/12 ART31.
CPC13 ART272 N1
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01461/13 DE 2014/10/29.; AC STA PROC01542/13 DE 2014/11/15.; AC STA PROC0243/15 DE 2015/10/14.
Referência a Doutrina:JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES - LIÇÕES DE IMPOSTO SOBRE O PATRIMÓNIO E SELO PÁG403 PÁG409.
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 1458/11.8BELRS

1. RELATÓRIO
1.1 A sociedade denominada “A……….., S.A.” (doravante Recorrente ou Impugnante) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que o Tribunal Tributário de Lisboa julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra a liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) que lhe foi efectuada com referência ao ano de 2004 e a dois prédios que adquiriu para revenda. O acto impugnado decorre de a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não lhe ter aceitado a possibilidade de beneficiar da exclusão de tributação ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), com o fundamento de que adquiriu os prédios em causa a entidade que já dela havia beneficiado, motivo por que estava impedida de gozar daquele regime, nos termos do n.º 6 do mesmo artigo.
1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor (Porque usamos o itálico nas transcrições, os excertos que estavam em itálico no original surgirão, aqui como adiante, em tipo normal.):
«1. O presente recurso jurisdicional vem interposto da decisão de primeira instância que julgou improcedente a impugnação judicial apresentada pela ora recorrente da liquidação de IMI n.º 2005 406742903, referente ao ano de 2004, relativa aos prédios urbanos inscritos na Matriz sob os artigos 1524 e 1577 da freguesia da Nossa Senhora de Fátima, no montante global a pagar de € 78.397,34.
2. Em causa, estava o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante somente AT) de que a recorrente não poderia beneficiar da exclusão de tributação de IMI, por ter adquirido os acima identificados prédios a entidade que já dela havia beneficiado, de acordo com o n.º 6 do artigo 9.º do IMI.
3. Já em sede de recurso hierárquico, a AT reconheceu que o n.º 6 do artigo 9.º do CIMI não seria aplicável; não obstante, a decisão sobre a legalidade da liquidação estaria sempre dependente do recurso hierárquico que a recorrente havia apresentado da decisão de indeferimento do pedido de suspensão da tributação, formulado pela recorrente nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 9.º do CIMI.
4. Quanto a esse recurso hierárquico, entendeu a AT – em manifesta contradição com a que proferiu relativamente à liquidação de imposto –, nos seguintes termos: “O art. 31.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que aprovou o CIMI veio revogar o CCA considerando-se esta substituída pelo IMI para todos os efeitos legais. Todavia, nos termos do n.º 5 do artigo 31.º mantinha-se o regime de suspensão de tributação de que um sujeito passivo se encontrasse a beneficiar em 1 de Dezembro de 2003, data da entrada em vigor do CIMI. Assim, em Dezembro de 2003, a entidade que vendeu o prédio à recorrente encontrava-se a gozar da não sujeição de IMI, razão pela qual a adquirente não pode voltar a beneficiar do mesmo regime”.
5. A recorrente, na impugnação judicial objecto do presente escrutínio, defendeu que a norma constante do n.º 6 do artigo 9.º do CIMI é uma norma de delimitação negativa de incidência e não de isenção, pelo que fica somente condicionada ao cumprimento, por parte dos respectivos beneficiários, da comunicação a que alude o n.º 4 do mesmo preceito;
6. Invocou igualmente que a decisão do recurso hierárquico é ilegal, porquanto inexiste qualquer prejudicialidade entre a liquidação em crise e o despacho de revogação do alegado benefício fiscal, pois o único acto sindicável é a presente liquidação – algo que a própria AT o admite.
7. Defendeu, por fim, que a liquidação é ilegal, por violação do princípio constitucional da irretroactividade da lei fiscal, dado que a previsão do n.º 6 do artigo 9.º do CIMI não tinha qualquer paralelo no anterior Código da Contribuição Autárquica, pelo que só se poderá aplicar para o futuro.
8. O Tribunal de primeira instância, autor da decisão objecto do presente recurso, entendeu, quanto à alegada inexistência de prejudicialidade entre a liquidação de IMI e o despacho de revogação do alegado benefício fiscal, que a AT (não obstante não o tenha referido expressamente) se escudou de apreciar a reclamação, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da LGT (segundo o qual “não existe dever de decisão quando: a) A administração tributária se tiver pronunciado há menos de dois anos sobre pedido do mesmo autor com idênticos objecto e fundamento”) porquanto a matéria em análise já havia sido decidida em sede do recurso hierárquico interposto do despacho que “revogou” o benefício fiscal.
9. Já no que tange à ilegalidade da liquidação por a norma constante do n.º 6 do artigo 9.º do CIMI ser uma norma de delimitação negativa de incidência, somente condicionada ao cumprimento da comunicação a que alude o n.º 4 do mesmo preceito e por violação do princípio constitucional da irretroactividade da lei fiscal, dado que a previsão do n.º 6 do artigo 9.º do CIMI não tinha qualquer paralelo no anterior Código da Contribuição Autárquica, pelo que só se poderá aplicar para o futuro, considerou o tribunal que o n.º 6 do artigo 9.º do CIMI não tem paralelo com o revogado CCA, consubstanciando uma norma específica anti-abuso. Todavia, para o tribunal a quo, uma vez que o CIMI entrou em vigor no ano de 2003 (mais precisamente em 1 de Dezembro de 2003), a B……. (sociedade a quem a recorrente adquiriu os bens imóveis) beneficiou da “isenção” de IMI para esse ano, e não da “isenção” de contribuição autárquica.
10. Para o tribunal de primeira instância, então, “a sociedade B………S.A. não só beneficiou da suspensão de tributação em sede de CCA, como beneficiou da suspensão de tributação em sede do CIMI sucessivamente, pelo que, estamos de acordo com a impugnante quando refere que o n.º 6 do art 9.º do CIMI /se aplica às situações em que o adquirente do imóvel o tenha adquirido, após 1 de Dezembro de 2003 a um alienante que já beneficiou da não sujeição em sede de IMI, o que sucede in caso”.
11. Concluiu, assim, o tribunal a quo que inexiste qualquer violação do princípio da irretroactividade, previsto no artigo 12.º da LGT.
12. Ora, a recorrente não pode conformar-se com a decisão em apreço, que reputa de ilegal, por errada apreciação e interpretação das normas legais aplicáveis, motivo pelo qual defende a forçosa alteração do seu sentido.
13. Desde já se refira que não há uma relação de prejudicialidade entre os “recursos” em apreço, na medida em que a exclusão de tributação comunicada pela recorrente não depende de qualquer despacho por parte da AT, significando isto que o mesmo é nulo.
14. Ou seja, caso a AT entendesse não estarem preenchidos os requisitos legais de que dependia a exclusão de tributação, emitia a correspondente liquidação de imposto, sem necessidade de qualquer acto administrativo de revogação ou cancelamento do suposto benefício fiscal. Daí que, estando perante um acto administrativo [que] manifestamente “inexiste” do ponto de vista legal, não haverá qualquer relação de prejudicialidade entre ambos, dado que o mesmo é inútil.
15. Não há, portanto, qualquer prejudicialidade entre a liquidação ora em crise e o despacho de “revogação” do suposto “benefício fiscal”, uma vez que o único acto sindicável é, justamente, a presente liquidação.
16. Mas ainda que essa prejudicialidade existisse, no que não consente (mas que se admitiu por mera cautela), a verdade é que o tribunal a quo, não obstante acompanhar a tese da AT – de não apreciação do recurso por “prejudicialidade” face à decisão de “revogação do benefício fiscal – fez, precisamente, o oposto daquilo que advogou como o “comportamento” acertado da AT.
17. Se o tribunal a quo, de facto, considera que existe uma relação de prejudicialidade entre ambas as questões, então deveria ter ordenado a suspensão desta impugnação judicial até decisão da acção administrativa especial, que foi apresentada contra o referido indeferimento do Recurso hierárquico do despacho de “revogação do benefício”, que claramente não fez.
18. Temos, por isso, que a decisão do tribunal de primeira instância não faz qualquer sentido do ponto de vista jurídico, devendo ser revogada.
19. Por outro lado, andou igualmente mal o tribunal a quo ao aplicar, retroactivamente, o disposto no n.º 6 do artigo 9.º do CIMI à situação em apreço.
20. Com efeito, o CIMI, como bem refere o tribunal de primeira instância, entrou em vigor em 1 de Dezembro de 2003.
21. No entanto, o CCA continuou a aplicar-se aos factos tributários ocorridos até à data da entrada em vigor do CIMI, conforme estabelecem, de modo expresso, o n.º 5 do artigo 31.º e n.º 1 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro.
22. Ou seja, à data da aquisição dos imóveis pela sociedade B………, vigorava o Código da Contribuição Autárquica (CCA), código esse que não previa a proibição de não sujeições sucessivas de Contribuição Autárquica.
23. Ao contrário do que sustenta o tribunal de primeira instância, a B………. não beneficiou de uma exclusão de tributação em sede de IMI e ao abrigo do novo CIMI –, mas sim de uma exclusão de tributação em sede de Contribuição Autárquica.
24. Não é, com efeito, verdade que a Recorrente haja beneficiado de uma suspensão da tributação em IMI em 2003, na medida em que não há qualquer facto tributário em sede deste imposto que tenha ficado suspenso ou impedido em 2003; em 2003, não se verificou qualquer condição resolutiva dos efeitos do facto negativo ocorrido em 2001 (o registo do imóvel em inventário) na esfera da B…….., e, por conseguinte não foram destruídos retroactivamente os efeitos desse facto (tal como previsto no n.º 2 do artigo 10.º do CCA).
25. Repare-se que a lei, ao estipular que o imposto é devido apenas a partir do “terceiro ano que…” determina que a obrigação de imposto – inverificada quaisquer condição resolutiva – só surge após transcorridos esses três anos; de resto, é o próprio n.º 5 do artigo 31.º que ressalva que os Códigos revogados se continuam a aplicar aos factos tributários ocorridos até à entrada em vigor do CIMI, pelo que a previsão ou não de tributação em IMI em 2003 mostra-se irrelevante.
26. Com efeito, vedar uma exclusão de tributação a uma primeira aquisição de um imóvel ao abrigo do CIMI, quando essa mesma exclusão é dirigida à segunda aquisição e seguintes de um imóvel sob a vigência do mesmo imposto, significa ficcionar que o facto tributário anterior que ocorreu ao abrigo do CCA – a aquisição do imóvel pela B........, que antecedeu aquela –, se estendeu para além do início de vigência do CIMI a uma segunda isenção sob a égide deste imposto.
27. Em suma, a B…….. beneficiou, nos termos da legislação à data em vigor, da exclusão de tributação de CA e não de CIMI, dado que adquiriu, em 2001, o direito de apenas lhe ser devida CA (o imposto em vigor à data), após o terceiro ano subsequente; para além de afrontar directamente uma norma expressa (o dito artigo 31.º do DL 287/2003), uma tributação em IMI antes de completado esse período violaria materialmente o princípio da irretroactividade da lei fiscal.
28. Neste sentido concluem igualmente Silvério Mateus e Corvelo de Freitas, ao advogarem, referindo-se ao n.º 6 do artigo 9.º do IMI, que “observa-se que a limitação prevista neste número, no sentido de os sujeitos passivos que adquiram prédios a quem já tenha beneficiado da exclusão prevista nas alíneas d) e e) do n.º 1 não poderem novamente beneficiar dessa exclusão, se aplica apenas para o futuro, isto é, para aquisições que tiverem ocorrido após 1 de Dezembro de 2003 e em que os alienantes tenham beneficiado do regime de exclusão em IMI
29. E ainda que: “se um sujeito passivo adquirir um prédio a um alienante que tenha beneficiado da exclusão da contribuição autárquica, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CCA, esse adquirente poderá ainda beneficiar do disposto nas alíneas d) e e) deste artigo 9.º” uma vez que o adquirente seguinte é que já ficará excluído do benefício”.
30. “Esta solução”, justificam os autores em referência, “tem por fundamento o princípio da irretroactividade das normas fiscais em matéria de incidência”.
31. O Tribunal de primeira instância está, assim, claramente a desvirtuar o sentido e alcance das normas transitórias constantes do diploma que aprova o CIMI para aplicar normas novas a factos ocorridos em data anterior à sua entrada em vigor.
32. A orientação interpretativa propugnada pelo órgão recorrido equivale a postular uma retroactividade de primeiro grau, ie., a aplicação de uma lei a factos passados e com os seus efeitos já totalmente verificados ao abrigo da lei antiga ou, ao menos, de segundo grau, ie., com aplicação a factos totalmente consumados, ainda que com efeitos verificados já sob o domínio da lei nova.
33. No plano da tutela do princípio da confiança dos contribuintes, ínsito na proibição da retroactividade fiscal, a interpretação contestada constitui uma violação das expectativas legítimas da recorrente, mormente as fundadas na convicção de que, sendo a recorrente a primeira entidade a adquirir para revenda o imóvel em causa sob a vigência do CIMI, jamais seria comprometida a aplicação da exclusão de tributação em apreço.
34. Naturalmente que, se essa exclusão não fosse um dado adquirido, o preço pago pelo imóvel em 2004 poderia e deveria ter sofrido um ajustamento no sentido da sua redução.
35. Se quanto às expectativas se toma objectivamente evidente que a alteração em apreço para um adquirente na posição da Recorrente é inesperada e surpreendente, no plano dos interesses constitucionalmente protegidos é igualmente manifesto que um dispositivo anti-abuso como o analisado, que se aplica a todas as aquisições sucessivas para revenda, independentemente do seu propósito, para além de, só por si, suscitar dúvidas sobre a sua compatibilidade com o princípio constitucional da proporcionalidade (nomeadamente a proporcionalidade stricto sensu), não acautela um interesse de dignidade superior ao da tutela da confiança que urge preservar.
Por todo o exposto, a decisão proferida pelo tribunal a quo não se mostra conforme às disposições legais aplicáveis, devendo o douto tribunal a que a recorrente ora se dirige ordenar a anulação da sentença recorrida, com a consequente anulação da liquidação impugnada.
Termos em que, por todo o exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, anulando-se a sentença proferida, com todas as consequências legais».
1.3 A Fazenda Pública não contra-alegou.
1.4 Recebidos neste Supremo Tribunal Administrativo, os autos foram com vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja dado provimento ao recurso, revogada a sentença recorrida e julgada procedente a impugnação judicial, com a consequente anulação da liquidação impugnada, com a seguinte fundamentação:
«A recorrente, FAZENDA PÚBLICA, vem sindicar a decisão do Tribunal Tributário de Lisboa, exarada a fls. 173/193, em 07 de Junho de 2016, que julgou improcedente impugnação judicial deduzida contra o acto de indeferimento de recurso hierárquico deduzido contra o acto de indeferimento de reclamação graciosa, por sua vez deduzida contra o acto de liquidação de IMI do ano de 2004, no entendimento de que a AT não tinha o dever de se pronunciar sobre o recurso hierárquico, atento o disposto no artigo 56.º/2/a) da LGT, sendo certo que não se mostra violado o princípio da irretroactividade das normas fiscais, estatuído no artigo 12.º da LGT uma vez que a recorrente já beneficiou da isenção de IMI em 2003, pelo que lhe é aplicável o disposto no artigo 9.º/6 do CIMI.
Resulta do teor da conclusão 17.ª das alegações da recorrente que teria sido interposta AAE do acto de indeferimento do RH do despacho de “revogação do benefício”.
Todavia, analisados autos, nomeadamente a PI de impugnação judicial e a sentença recorrida, designadamente a fls. 187, linhas 1, 2, e 3 constata-se que, efectivamente, não foi interposta qualquer AAE contra o acto da AT, proferido em sede RH, que não aceitou a não incidência de IMI ao abrigo do disposto no artigo 9.º/1/e) do IMI.
E quanto a esta questão, seguindo jurisprudência do STA (ver acórdãos do STA, de 29/10/2014-recurso n.º 01461/13 e de 14/10/2015-recurso n.º 0243/15) dir-se-á que a impugnação da decisão da AT que não aceite a não incidência do IMI nos termos do disposto no artigo 9.º/1 /e) do CIMI deve seguir a regra da impugnação unitária nos termos do estatuído no artigo 54.º do CPPT, pelo que o meio adequado a essa impugnação é a impugnação judicial dos actos de liquidação do imposto, como a recorrente acabou por fazer.
A questão controvertida consiste, essencialmente, em saber se a normativo do artigo 9.º/6 do CIMI tem aplicação à situação, ora, em análise.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 9.º 6 do CIMI “Não gozam do regime previsto nas alíneas d) e e) do n.º 1 os sujeitos passivos que tenham adquirido o prédio a entidade que dele já tenha beneficiado”.
«A ratio da previsão fundada no referido n.º 6 tem em vista obviar a eventuais situações de possível evasão fiscal traduzida em “transmissões sucessivas” destes bens, com vista a impedir a respectiva tributação em sede de IMI» (TRIBUTAÇÃO DO PATRIMÓNIO, António Santos Rocha e Eduardo José Martins Brás, ALMEDINA, página 2015).
Trata-se de um normativo que não tem correspondência no revogado CCA.
Como resulta do probatório os dois prédios urbanos em causa foram adquiridos pela recorrente à sociedade “B………” em 29/12/2004, em plena vigência do CIMI, sendo que esta última os adquiriu em 2001, em plena vigência do CCA.
A sociedade “B…………”, que vendeu os prédios à impugnante, beneficiou da suspensão de tributação previsto no artigo 10.º/1/f) do CCA.
O CIMI entrou em vigor em 01/12/2013, nos termos do disposto no artigo 32.º/1 do DL 287/2003, de 12 de Novembro.
A partir da entrada em vigor do CIMI foi revogado o CCA, mantendo-se em vigor os benefícios fiscais relativos à contribuição autárquica, agora reportados ao IMI (artigo 31.º/1/6 do DL 287/2003).
Por força do disposto no n.º 5 do artigo 31.º do DL 287/2003 “Os códigos revogados continuam a aplicar-se aos factos tributários ocorridos até à data da entrada em vigor dos Códigos e alterações referidas no artigo 32.º do presente diploma, incluindo os factos que tenham beneficiado de isenção ou de redução de taxa condicionadas e que venham a ficar sem efeito na vigência dos novos Códigos”.
A nosso ver, a “B………..” não beneficiou da exclusão de tributação em sede de IMI e ao abrigo do CIMI, mas antes de uma exclusão de tributação em sede de CA, ao abrigo do CCA.
Na verdade, contrariamente ao que é sustentado pela sentença recorrida, a “B………..” não beneficiou de uma suspensão de tributação em IMI em 2003, uma vez que nesse ano não há qualquer facto tributário em sede de IMI que tenha ficado suspenso.
Na verdade, como bem sustenta a recorrente nas suas alegações, em 2003 não se verificou qualquer condição resolutiva dos efeitos do facto negativo ocorrido em 2001, o registo dos imóveis em inventário na esfera da “B……….” e, assim sendo, não foram destruídos retroactivamente os feitos desse facto, como estatuído no artigo 12.º/2 do CCA.
Resulta do disposto no artigo 10.º/f) do CCA que a CA é devida a partir do terceiro ano, sendo certo que não ocorrendo qualquer condição resolutiva, a obrigação de imposto só surge decorridos esses 3 anos.
O normativo do artigo 31.º/5 do DL 387/2003, expressamente, refere que se mantêm em vigor os códigos revogados que se continuam a aplicar aos factos tributários ocorridos até à entrada em vigor do CIMI, pelo que a previsão de tributação ou não em IMI em 2003 parece mostrar-se irrelevante.
Em suma, uma vez que a recorrente adquiriu à “B……….”, em 2004, os prédios que esta havia adquirido em 2001 e tendo beneficiado da exclusão de contribuição autárquica, ao abrigo do disposto no artigo 10.º/1/f) do CCA, a adquirente pode, ainda, beneficiar do estatuído no artigo 9.º/1/e) do CIMI, pois só o adquirente seguinte ficará excluído do benefício (Neste sentido J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas, Os Impostos Sobre o Património Imobiliário, O Impostos de Selo, anotados e comentados, 1.ª edição; Engifisco, 2005, página 138).
A sentença recorrida, ao decidir em sentido contrário faz uma aplicação retroactiva de normas fiscais em matéria de incidência, o que o artigo 12.º da LGT proíbe.
Em nosso entendimento a sentença recorrida merece, assim, censura».
1.5 Os Juízes Conselheiros adjuntos tiveram vista dos autos.
1.6 Cumpre apreciar e decidir.
* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
2.1.1 A sentença deu os seguintes factos como provados:
«a) A ora impugnante é uma sociedade comercial anónima, que exerce, entre outras, as actividades de compra e revenda de imóveis e de construção de edifícios residenciais e não residenciais – facto admitido por acordo das partes.
b) Por escritura pública, celebrada em 29/12/2004, no 27.º Cartório Notarial de Lisboa, a ora Impugnante adquiriu à sociedade B…………, S.A., os dois prédios urbanos, sitos na Avenida ………….., em Lisboa, inscritos na respectiva matriz urbana da freguesia de Nossa Senhora de Fátima, sob os artigos 1524.º e 1577.º – escritura de compra e venda, junta a fls. 85 e segs. dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.
c) Em 25/02/2005, após a aquisição dos prédios identificados na alínea antecedente, a Impugnante apresentou junto do serviço de finanças de Lisboa-8, a comunicação, a que se refere o n.º 4 do artigo 9.º do CIMI, relativamente a cada um dos prédios adquiridos, com a finalidade de usufruir do regime de suspensão de tributação, nos termos da alínea e) do n.º 1 da referida disposição – requerimentos de fls. 89 e segs. e de fls. 92 e segs. dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
d) À data da aquisição do prédio pela Impugnante, a sociedade B……… S.A, entidade que vendeu o prédio à ora Impugnante já havia beneficiado da suspensão da tributação prevista no artigo 10.º, n.º 1, alínea f) do CCA – facto admitido por acordo das partes e decisão do recurso hierárquico, proferida a 15/11/2010, junto a fls. 121 e segs. dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
e) Em 31 de Dezembro de 2003, a sociedade B........ - S.A. ., entidade que vendeu o prédio à ora impugnante, encontrava-se a gozar de não sujeição em IMI – informação contida no projecto de recurso hierárquico, junto de fls. 115 a fls. 118 dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido e citada decisão de recurso hierárquico de fls. 121 e segs. dos autos.
f) A Administração Tributária, por ofícios expedidos a 05/04/2005, notificou a ora Impugnante do despacho de indeferimento que recaiu sobre os dois pedidos de não sujeição a IMT, identificados em 4.2.c), com o seguinte fundamento: “O indeferimento teve por base legal o n.º 6 do artigo 9.º do CIMI, dado ter adquirido o prédio a entidade que dele já tinha beneficiado – B…………. S.A.” – ofícios de fls. 95 e 96 dos autos, cujos conteúdos aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos.
g) Inconformada com as duas decisões de indeferimento, referidas na alínea antecedente, em 06/05/2005, a ora impugnante interpôs um recurso hierárquico de cada uma daquelas duas decisões – articulados de recurso hierárquico de fls. 97 e segs. e de fls. 103 e segs. dos autos, cujos conteúdos aqui se dão por reproduzidos.
h) Na sequência do despacho que indeferiu os requerimentos da Impugnante nos quais comunicava a não sujeição a IMI dos dois prédios que adquiriu, ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º1 do artigo 9.º do CIMI, foi efectuada a liquidação de IMI n.º 2005 406742903, referente ao ano de 2004, que incidiu sobre os artigos U-01577 e U-01524 da freguesia de Nossa Senhora de Fátima, município de Lisboa – nota cobrança de fls. 68 e 69 dos autos, que aqui se dá por reproduzida.
i) Inconformada com a liquidação de IMI, id. na alínea antecedente, em 01/03/2007, a impugnante apresentou a competente reclamação graciosa, relativa aos artigos U-01577.º e U-01524.º com os fundamentos que dela constam, nomeadamente que se encontrava ainda em discussão a decisão sobre o seu pedido de “isenção” de tributação e cujo conteúdo aqui damos por reproduzido – articulado de fls. 70 a fls. 72 dos autos e petição inicial do procedimento de reclamação graciosa, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
j) Por despacho, proferido a 17/03/2008, regularmente notificado à impugnante, foi determinado o arquivamento da Reclamação Graciosa, identificada em i), não se conhecendo do seu objecto – decisão de fls. 45 a fls. 47 do procedimento de reclamação graciosa, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais.
k) Fundamentou-se o arquivamento da reclamação graciosa, em síntese, no facto de “Se encontrar ainda em discussão o indeferimento do pedido de dispensa de tributação, apresentado pela requerente, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 9.º do CIMI (...) Face ao exposto e porque não existe enquadramento legal para analisar o pedido proponho que seja arquivada” – citada decisão de fls. 45 a fls. 47 do procedimento de reclamação graciosa.
l) Inconformada com o arquivamento da Reclamação Graciosa, cujo objecto era a citada liquidação de 2004, que incidiu sobre os artigos U-01577.º e U-01524.º, em 23/04/2008 a Impugnante deduziu novo recurso hierárquico, sindicando a ilegalidade da liquidação identificada em h) – articulado de fls. 2 e segs. do procedimento de recurso hierárquico, junto aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
m) Em sede do recurso hierárquico, identificado na alínea antecedente, foi alegado pela impugnante, em síntese que: “Em 7 de Abril de 2005, foi notificada do indeferimento dos seus pedidos de suspensão de tributação, que foram instaurados sob os n.ºs 9/05 e 10/05 e, uma vez que não concordou com tais indeferimentos, apresentou dois recursos hierárquicos, em Maio de 2005, junto do serviço de finanças de Lisboa-8. Deste modo, e porque a discussão sobre a legalidade e legitimidade de indeferimento dos seus pedidos de suspensão de tributação, em sede de IMI ainda se encontra em curso, tal traduz-se no facto de ainda não terem transitado em julgado essas decisões.
Ora, a suspensão de tributação em sede de IM tem de ser requerida, ou seja, está dependente de um juízo com eficácia constitutiva, logo a própria decisão é condição legal da suspensão.
Ou seja, e na medida em que estamos perante uma suspensão que se pode considerar um benefício fiscal, estamos perante um facto impeditivo do nascimento da obrigação tributária.
Pelo que, e uma vez que ainda se encontram em discussão aqueles pedidos de suspensão, o presente processo estará condicionado àquelas decisões e até deverá ser suspenso até que os mencionados pedidos sejam decididos (...) e a liquidação deveria ter sido suspensa até que o processo principal, onde se discute a legitimidade e o direito ao beneficio, estivesse concluído” – leitura da citada petição de recurso hierárquico, junta de fls. 2 e segs. do procedimento de recurso hierárquico.
n) Em sede da petição de recurso hierárquico id. na alínea antecedente foram formulados os seguintes pedidos:
“(...) Se digne mandar anular a decisão de arquivamento da reclamação graciosa, e consequentemente se digne mandar anular o IMI
Subsidiariamente requer “a suspensão do presente processo, até que seja decidida a questão principal e que lhe está subjacente: os pedidos de suspensão de tributação em sede de IMI efectuados ao abrigo do artigo 9.º, n.º 1, alínea e) do CIMI” – citada petição inicial de recurso hierárquico.
o) Em 31/03/2011, foi proferida decisão no recurso hierárquico, interposto do despacho de arquivamento da reclamação graciosa, por falta de enquadramento legal – decisão de fls. 15 a fls. 19 do procedimento de recurso hierárquico, apenso aos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
p) Na referida decisão consta além do mais o seguinte: “Tendo em conta que a B……….. solicitou a suspensão da tributação de imposto, na vigência do código da Contribuição Autárquica, ou seja, antes de 1 de Dezembro de 2003, não se aplicaria no presente caso, o disposto no n.º 6 do artigo 9.º do CIMI. Logo, o pedido não deveria ter sido indeferido, com base naquela disposição legal.
Contudo, e tendo em conta que o sujeito passivo interpôs, em 6 de Maio de 2005, recurso hierárquico da decisão do indeferimento do pedido de suspensão de tributação, formulado ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 9.º CIMI, (...) e a decisão que nele for proferida terá efeitos nas liquidações ora recorridas, pelo que se deverá aguardar a decisão do referido recurso.
As liquidações, aqui objecto foram correctamente efectuadas, não enfermando de qualquer vício de violação de lei, donde se conclui pela legalidade do acto tributário recorrido” – citada decisão, na parte relativa à proposta de decisão, assinada pelo técnico tributário
q) Na parte decisória, consta ainda da decisão o seguinte: “Concordo. Nos termos e com os fundamentos expostos na presente informação, indefiro o recurso hierárquico. Saliente-se que relativamente aos recursos hierárquicos apresentados em 6 de Maio de 2005, em que a “Aplicação Urbana VIII” recorre do despacho de indeferimento da suspensão temporária de tributação dos artigos urbanos n.º 1524.º e 1577.º (…) foram já objecto de decisão, pelo meu despacho de 10/11/2010, no sentido do indeferimento do Recurso Hierárquico, mantendo-se a decisão recorrida. Esses Processos foram enviados ao SF Lisboa-8 pelos ofícios (…), ambos de 12/11/2010 (…)”– fls. 15 da decisão do procedimento de recurso hierárquico.
r) Em 21/04/2011, foi a impugnante regularmente notificada daquela decisão, tendo deduzido a presente impugnação em 19/07/2011 – notificação de fls. 21 e registo dos correios de fls. 22 do procedimento de recurso hierárquico, que aqui se dá por reproduzido e recepção do fax de fls. 2 dos autos, contendo a petição inicial de impugnação.
s) Em 10/11/2010 foi indeferido o recurso hierárquico, referido em g), apresentado contra o despacho que indeferiu a suspensão da tributação em IMI, mantendo-se o despacho recorrido – notificação de fls. 120 dos autos, decisão de fls. 121 e 122 dos autos e projecto de decisão de fls. 115 a fls. 118 dos autos, para o qual a decisão remete e cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.
t) Na fundamentação da decisão, referida na alínea antecedente, consta além do mais o seguinte: “Como já se viu, o prédio foi adquirido à sociedade B……….. S.A., que o havia adquirido em 10/07/2003. Esta empresa beneficiou durante o ano de 2003 (já que vendeu o prédio em 2004), do regime a que se refere a alínea j) do n.º l do artigo 10.º do CCA, que corresponde ao previsto na actual alínea e) do artigo 9.º do CIMI, a qual previa a não sujeição, durante 3 anos, para os prédios que tivessem passado afigurar nas existências de uma empresa que tivesse por objecto a sua venda.
O artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 287/2003 de 12 de Novembro, que aprovou o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, veio revogar o Código da Contribuição Autárquica considerando-se esta substituída pelo IMI todos os efeitos legais. Todavia, nos termos do n.º 5 do artigo 31.º mantinha-se o regime de suspensão de tributação de que um sujeito passivo se encontrasse a beneficiar em 1 de Dezembro de 2003, data da entrada em vigor do CIMI.
Assim, em Dezembro de 2003, a entidade que vendeu o prédio à recorrente encontrava-se a gozar de não sujeição a CIMI razão pela qual a adquirente não pode voltar a beneficiar do mesmo regime” – citada decisão.
u) Daquela decisão foi a Impugnante regularmente notificada, por ofício expedido a 13/12/2010 – citado ofício de fls. 120 dos autos e facto admitido por acordo das partes».
2.1.2 Com interesse para a decisão, da sentença recorrida consta também que:
v) Relativamente à decisão dita em s), «não foi […] interposta a competente acção administrativa» (cfr. fls. 15 da sentença, a fls. 187 dos autos).
*
2.2 DE FACTO E DE DIREITO
2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR
A sociedade ora Recorrente, que tem como actividade, entre outras, a compra e revenda de imóveis, comprou à sociedade denominada “B…………., S.A.” (adiante referida apenas por “B………….”), em 2004, dois prédios urbanos.
Na sequência dessa aquisição, e considerando que poderia usufruir da suspensão de tributação em IMI ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI, apresentou a comunicação a que alude o n.º 4 do mesmo artigo no pertinente serviço de finanças.
A AT notificou a sociedade ora Recorrente de que indeferiu o “requerimento” – um por cada prédio – «no qual solicitava não sujeição de Imposto Municipal sobre Imóveis, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI» e de que «o indeferimento teve por base legal o n.º 6 do art. 9.º do CIMI, dado ter adquirido o prédio a entidade que dele tinha já beneficiado – B…………., S.A.».
Em face desse indeferimento, a sociedade ora Recorrente apresentou recurso hierárquico contra o despacho de indeferimento, nos termos do art. 66.º do CPPT e em conformidade com o respectivo ofício para notificação, que indicava ser esse o meio de reacção contra aquele despacho.
Esse recurso hierárquico foi indeferido, por a AT ter considerado, em síntese, que a “B..........”, que adquiriu em 2003 o prédio que vendeu à ora Recorrente, «beneficiou durante o ano de 2003 (já que vendeu o prédio em 2004), do regime a que se refere a alínea f) do n.º 10 do CCA, que corresponde ao previsto na actual alínea e) do artigo 9.º do CIMI» e que «[o] artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 297/2003, de 2 de Novembro, que aprovou o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, veio revogar o Código da Contribuição Autárquica, considerando-se esta substituída pelo IMI para todos os efeitos legais», sendo que «nos termos do n.º 5 do artigo 31.º, mantinha-se o regime da suspensão da tributação de um sujeito passivo que se encontrasse a beneficiar em 1 de Dezembro de 2003, data da entrada em vigor do CIMI», concluindo que «em Dezembro de 2003, a entidade que vendeu o prédio à recorrente encontrava-se a gozar de não sujeição a IMI, razão pela qual a adquirente não pode voltar a beneficiar do mesmo regime».
Porque, entretanto (i.e., após o indeferimento do “requerimento” para suspensão da tributação em IMI, mas antes da decisão do mesmo), a AT procedeu à liquidação de IMI respeitante aos prédios em causa e ao ano de 2004, a sociedade ora Recorrente reclamou graciosamente contra estes actos de liquidação, reclamação graciosa cujo “arquivamento” foi determinado com o fundamento de «[s]e encontrar ainda em discussão o indeferimento do pedido de dispensa de tributação, apresentado pela requerente, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 9.º do CIMI», pelo que «não existe enquadramento legal para analisar o pedido».
Na sequência desse “arquivamento” da reclamação graciosa, a sociedade ora Recorrente apresentou recurso hierárquico contra essa decisão. Nesse recurso hierárquico, para além de reiterar a convicção da ilegalidade da liquidação – motivo por que pediu que fosse anulada a decisão de arquivamento da reclamação graciosa e anulada a liquidação –, a ora Recorrente sustentou que o respectivo procedimento deveria ter ficado suspenso até que estivesse decidido o recurso hierárquico que interpôs do indeferimento da requerida suspensão da tributação.
Também este recurso hierárquico foi indeferido. Na informação que foi apropriada pelo despacho de indeferimento, ficou dito que, uma vez que a “B………….” «solicitou a suspensão da tributação de imposto, na vigência do Código da Contribuição Autárquica, ou seja, antes de 1 de Dezembro de 2003, não se aplicaria no presente caso o disposto no n.º 6 do artigo 9.º do CIMI», motivo por que «o pedido [formulado pela ora Recorrente, de suspensão da tributação em IMI] não deveria ter sido indeferido com base naquela disposição legal»; não obstante, porque o ora Recorrente também interpôs recurso hierárquico da decisão que lhe indeferiu este pedido «e a decisão que nele for proferida terá efeito nas liquidações ora recorridas» deverá a decisão do recurso hierárquico do indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra as liquidações aguardar a decisão a proferir naquele. Apesar disso (e, a nosso ver, contraditoriamente com a posição anterior, de que a decisão do recurso hierárquico devia aguardar que fosse decidido o recurso hierárquico contra a decisão de “indeferimento do pedido” de não sujeição a IMI), na mesma informação também ficou dito: «As liquidações aqui objecto do pleito foram correctamente efectuadas, não enfermando de qualquer vício de violação de lei, donde se conclui pela legalidade do acto tributário recorrido».
Já no despacho de indeferimento, após se ter emitido declaração de concordância com a referida informação e, por isso e com base nos fundamentos expendidos na mesma, se ter indeferido o recurso hierárquico, deixou-se ainda dito o seguinte: «Saliente-se que relativamente aos recursos hierárquicos apresentados em 6 de Maio de 2005, em que a “Aplicação Urbana VIII” [sociedade à qual sucedeu a ora Recorrente] recorre do despacho de indeferimento da suspensão temporária de tributação dos artigos urbanos n.ºs 1524 e 1577 (…) foram já objecto de decisão […] mantendo-se a decisão recorrida».
Na sequência do indeferimento do recurso hierárquico, a ora Recorrente apresentou a presente impugnação judicial, insurgindo-se contra a decisão do recurso hierárquico e contra as liquidações de IMI.
Porque essa impugnação judicial foi julgada improcedente, a Impugnante recorreu da sentença para este Supremo Tribunal, sustentando que nela se fez errado julgamento quer quanto à legalidade da decisão do recurso hierárquico quer quanto à legalidade das liquidações impugnadas.
São, pois, essas as questões que ora cumpre apreciar e decidir.
2.2.2 DA LEGALIDADE DA DECISÃO DO RECURSO HIERÁRQUICO
Quanto ao recurso hierárquico que instaurou da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra as liquidações de IMI, sustentou a Impugnante na petição inicial, em síntese, que, contrariamente ao que considerou a AT, não há obstáculo algum à decisão do mérito do mesmo; designadamente, não obsta a essa decisão o facto de ter sido interposto recurso hierárquico contra o “indeferimento do pedido de não sujeição a tributação” que havia formulado ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI. Isto porque esta norma é uma norma de delimitação negativa de incidência – e não de isenção – motivo por que fica somente condicionada ao cumprimento, por parte dos respectivos beneficiários, da comunicação a que alude o n.º 4 do mesmo artigo e não de qualquer pedido ou concessão. Assim, a decisão proferida no recurso hierárquico é ilegal, porquanto inexiste qualquer prejudicialidade entre as liquidações impugnadas e o “despacho de revogação do alegado benefício fiscal”, pois o único acto sindicável é a liquidação. Seja como for, no recurso hierárquico cuja decisão ora impugna a autoridade administrativa admitiu não poder recusar-se a não sujeição a IMI com fundamento no n.º 6 do art. 9.º do CIMI, motivo por que não se compreende que tenha considerado que as liquidações impugnadas não enfermavam de ilegalidade.
Na sentença, relativamente à questão da prejudicialidade entre a liquidação de IMI e o despacho de revogação do alegado benefício fiscal, começou por se considerar que existe uma evidente relação de prejudicialidade, que a própria Impugnante reconheceu em sede de recurso hierárquico. Isto porque as «liquidações só foram emitidas porquanto a AT entendeu que a Impugnante não poderia beneficiar do regime contido na alínea e) do n.º 1 do art. 9.º» do CIMI, disso tendo notificado a ora Recorrente.
Mais se considerou que a AT, apesar de o não ter referido expressamente, se escusou de apreciar o mérito do recurso hierárquico da decisão que indeferiu a reclamação graciosa contra as liquidações ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 56.º da LGT («Não existe dever de decisão quando: a) A administração tributária se tiver pronunciado há menos de dois anos sobre pedido do mesmo autor com idênticos objecto e fundamento».), uma vez a matéria em análise já havia sido decidida em sede do recurso hierárquico interposto do despacho de indeferimento do “pedido” de suspensão da tributação em IMI.
Em conclusão, a sentença deixou dito que «mais que uma questão prejudicial, existe “um julgado administrativo” prévio sobre a mesma questão, que obstava a que a AT decidisse de novo a mesma questão e não tendo que o fazer, de acordo com o disposto no artigo. 56.º, n.º 2, alínea a), da LGT».
Por isso, entendeu não proceder a impugnação judicial no que se refere à invocada ilegalidade da decisão do recurso hierárquico.
A Recorrente discorda da sentença porque entende que inexiste relação de prejudicialidade entre os recursos hierárquicos em causa. Isto, porque não se exigia despacho algum por parte da AT a “indeferir” a suspensão de tributação em IMI ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI e na sequência da comunicação por ela efectuada ao abrigo do n.º 4 do mesmo artigo. Se a AT entendia que não estavam verificadas as condições para que a Recorrente usufruísse da suspensão de tributação deveria limitar-se a proceder à liquidação do imposto, «sem necessidade de qualquer acto administrativo de revogação ou cancelamento do suposto benefício fiscal». Assim, o despacho por que a AT “indeferiu” a suspensão de tributação constitui «um acto administrativo [que] manifestamente “inexiste” do ponto de vista legal», motivo por que «é nulo». O que significa que «[n]ão há […] qualquer prejudicialidade entre a liquidação ora em crise e o despacho de “revogação” do suposto “benefício fiscal”, uma vez que o único acto sindicável é, justamente, a presente liquidação».
Considera ainda a Recorrente que, a existir essa prejudicialidade – o que não concede –, então, impunha-se que o Tribunal a quo tivesse suspendido a presente impugnação judicial até que fosse decida a acção administrativa especial, que foi apresentada contra o referido indeferimento do recurso hierárquico do despacho de “revogação do benefício”.
Vejamos:
O CIMI prevê um regime de não sujeição para os prédios que permaneçam no activo permutável ou circulante das empresas que tenham por objecto social a compra e venda de imóveis. O que bem se compreende, na medida em que o IMI tem como escopo tributar as manifestações de riqueza reveladas pela detenção de bens imóveis para uso e fruição e não as mercadorias detidas pelas empresas (Cfr. JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, Lições de Imposto sobre o Património e Selo, Almedina, 2010, pág. 403 e segs.). Assim, aquele Código estabelece para estes prédios um regime de não sujeição durante o período que medeia entre a sua aquisição e a sua revenda, impondo, no entanto, um máximo de três anos para a não sujeição (Como refere o mesmo Autor, ibidem, «[p]ara evitar eventuais situações de utilização abusiva deste regime, a Lei parte do pressuposto de que o período médio de rotação de stocks destas empresas é de três anos, pelo que é esse o período durante o qual esses imóveis não estão sujeitos a IMI».).
É o que resulta da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI, que dispõe que «O imposto é devido a partir: […] e) Do 3.º ano seguinte, inclusive, àquele em que um prédio tenha passado a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a sua venda».
A afectação do imóvel ao activo circulante, sendo condição necessária para a constituição do direito à não sujeição, não é condição suficiente para a sua eficácia, que fica dependente da comunicação à AT prevista no n.º 4 do referido art. 9.º do CIMI, que dispõe: «Para efeitos do disposto nas alíneas d) e e) do n.º 1, devem os sujeitos passivos comunicar ao serviço de finanças da área da situação dos prédios, no prazo de 60 dias contados da verificação do facto determinante da sua aplicação, a afectação dos prédios àqueles fins».
Esta comunicação da afectação dos prédios ao activo circulante é «uma mera comunicação e não um requerimento que exija a produção de qualquer acto de reconhecimento do direito à não tributação. Esse direito deriva directamente da Lei e não depende de qualquer acto administrativo de reconhecimento ou outro. A comunicação é apenas condição de eficácia do exercício do direito» (Idem, págs. 407/408.).
Significa isto que, como bem afirma a Recorrente, não se exigia que a AT tivesse produzido acto algum a “indeferir” a suspensão da tributação em IMI.
No entanto, tendo sido proferido “despacho de indeferimento” na sequência da comunicação efectuada pela ora Recorrente ao abrigo do n.º 4 do art. 9.º do CIMI e tendo a AT, na notificação desse acto, expressamente indicado como modo de reagir contra o mesmo o recurso hierárquico, o qual foi interposto, não pode deixar de se reconhecer que a decisão nele proferida se assume como prejudicial relativamente à decisão a proferir no recurso hierárquico onde se ataca a legalidade da decisão que indeferiu a reclamação graciosa deduzida contra a liquidação que foi efectuada com o fundamento de que não estão reunidos os pressupostos para a suspensão da tributação; ou, pelo menos, como também salientou a Juíza do Tribunal a quo, deverá admitir-se que a decisão proferida naquele recurso hierárquico constitui “caso decidido” relativamente à decisão a proferir nestoutro.
Salvo o devido respeito, a tese da Recorrente, de que tal acto de “indeferimento”, porque não previsto na lei, é inexistente e, por isso, nulo, não colhe. A inexistência dos actos administrativos – categoria que não se encontra consagrada na lei e que, actualmente, dada a maior amplitude das causas de nulidade, mesmo doutrinalmente perdeu grande parte da sua relevância – apenas ocorre quando o acto praticado não respeita algum dos requisitos da existência do acto administrativo, quais sejam i) uma decisão, ii) com carácter individual e concreto e iii) emanada de um órgão de administração no exercício da função administrativa [cfr. o art. 148.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA)], o que leva a ordem jurídica a rejeitar a sua qualificação como acto jurídico (Entre aos casos geralmente aceites como de inexistência, contam-se os actos praticados por membros de órgãos colegiais notificados aos destinatários como se fossem deliberações daqueles, os actos não praticados mas notificados aos destinatários, as licenças não emitidas mas tituladas por alvará, os actos praticados por meros agentes sem delegação de poderes ou ao abrigo de delegações ineficazes, bem como os actos praticados por usurpadores de funções públicas (ou seja, pessoas que, sem o serem, se comportam como se fossem titulares de um órgão administrativo).). Por outro lado, a nulidade, nos termos do art. 161.º do CPA é sanção que a lei reserva para os casos nela expressamente previstos (n.º 1), designadamente os enunciados a título exemplificativo no n.º 2 do mesmo artigo.
Ora, manifestamente, o acto por que a AT “indeferiu os pedidos” de não sujeição a IMI não se reveste das características que poderiam determinar a sua inexistência ou sequer a sua nulidade.
Ou seja, se foi deduzido recurso hierárquico contra esse acto, justifica-se que a AT considere a respectiva decisão como prejudicial da decisão a proferir no recurso hierárquico da decisão que indeferiu a reclamação graciosa contra a liquidação de IMI.
Não significa isto que, para impugnar a liquidação de IMI efectuada por a AT não ter aceitado a exclusão de tributação ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI, se exija ao contribuinte a prévia impugnação contenciosa (a efectuar por acção administrativa) contra o acto por que a AT comunicou ao contribuinte que não aceitava esse exclusão.
Na verdade, não só este último acto se não impunha à AT, nos termos que ficaram referidos, como no contencioso tributário vigora o princípio da impugnação unitária (cfr. art. 54.º do CPPT), motivo por que, a menos que se trate de actos imediatamente lesivos ou a lei expressamente o imponha como condição para impugnar judicialmente a liquidação, nunca os actos interlocutórios praticados no procedimento são susceptíveis de impugnação judicial, antes devendo ser atacados na impugnação da decisão final, ou seja, da liquidação.
No entanto, como já disse este Supremo Tribunal Administrativo em diversos arestos (Vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 29 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1461/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/fdc62c621aada5f180257d8500586a50;
- de 15 de Novembro de 2014, proferido no processo n.º 1542/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/29fae8be91bfd59080257d90003c2ecf;
- de 14 de Outubro de 2015, proferido no processo n.º 243/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6a51deaa9fb2b7b180257ee3003d956b.), se tiver sido interposta acção administrativa da decisão recurso hierárquico do acto que rejeitou o direito à não tributação e impugnação judicial da correspondente liquidação de IMI, deverá esta impugnação judicial ficar suspensa até à decisão daquela acção, a fim de obviar à possibilidade de vir a ocorrer uma contradição de julgados.
Se é certo que aquela acção administrativa especial é dispensável, a verdade é que, se a mesma foi interposta deve entender-se que constitui causa prejudicial relativamente à impugnação judicial da liquidação de IMI (uma vez que naquela acção se conhece da legalidade de acto cuja decisão condiciona o sentido da liquidação impugnada), a justificar a suspensão desta até à decisão daquela, em ordem a prevenir eventual contradição de julgados, tudo nos termos do art. 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT.
Acontece, porém, que, contrariamente ao que a Recorrente alega, não foi interposta acção administrativa especial contra a decisão proferida no recurso hierárquico da decisão de “indeferimento do pedido” de não sujeição a IMI (vide o facto acima, em 2.1.2, consignado e a resposta dada pela Recorrente à notificação efectuada por este Supremo Tribunal), motivo por que não faz sentido estarmos agora a discutir uma eventual suspensão da presente impugnação judicial.
O recurso não pode proceder com este fundamento.
2.2.3 DA LEGALIDADE DAS LIQUIDAÇÕES
Passemos, agora, à questão da legalidade da liquidação, que passa por saber se a ora Recorrente está impedida de beneficiar da não tributação ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI por a sociedade que lhe vendeu os prédios ter já beneficiado do mesmo regime e, por isso, se verificar o impedimento previsto no n.º 6 do mesmo artigo. Recorde-se que este n.º 6 do art. 9.º do CIMI dispõe: «Não gozam do regime previsto nas alíneas d) e e) do n.º 1 os sujeitos passivos que tenham adquirido o prédio a entidade que dele já tenha beneficiado» (sublinhado nosso).
Como bem salientou a Juíza do Tribunal a quo, trata-se de uma norma anti-abuso, que visa obstar à aplicação do regime em cadeia quando o prédio é transmitido sucessivamente entre empresas cujo objecto social seja a compra e venda de imóveis e o mantenham afecto ao activo circulante.
Como diz JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, sob a epígrafe «A irrepetibilidade sequencial do regime», «A Lei não permite que este regime de não tributação dos prédios adquiridos para revenda se aplique em cadeia, de forma continuada, quando é transmitido sucessivamente entre empresas que exercem a actividade de compra de prédios para revenda e o mantêm afecto ao activo circulante.
Nesse caso a Lei só permite que a primeira dessas empresas beneficie do regime, impedindo as restantes de usarem o mesmo direito.
A razão subjacente a este regime é a necessidade de evitar que de forma artificial se eternize indevidamente este regime de não tributação, por exemplo fazendo circular o prédio por várias empresas do mesmo grupo, beneficiando assim de períodos sucessivos de não sujeição.
Quando isso ocorrer e um mesmo prédio se transmitir de uma empresa que tenha beneficiado deste regime para outra que dele pretenda beneficiar, só a primeira mantém o direito e a segunda não poderá dele usufruir» (Ob. cit., pág. 409.).
Foi com base na norma prevista no n.º 6 do art. 9.º do CIMI que a AT fundamentou a impossibilidade de a ora Recorrente beneficiar do regime da não sujeição previsto na alínea e) do n.º 1 do mesmo artigo. Isto, apesar de na decisão do recurso hierárquico interposto do indeferimento da reclamação graciosa sobre a liquidação a AT ter considerado que essa norma não era aplicável à situação sub judice.
Recordemos a fundamentação da AT: a sociedade vendedora adquiriu os prédios em causa em 10 de Julho de 2003, data em que vigorava o CCA e beneficiou da suspensão de tributação neste imposto ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do art. 10.º daquele Código, norma que dispunha: «A tributação é devida: […] f) Do terceiro ano seguinte, inclusive, àquele em que um prédio tenha passado a figurar nas existências de uma empresa que tenha por objecto a sua venda»; quando entrou em vigor o CIMI, em 1 de Dezembro de 2003 (Como decorre do art. 32.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, diploma que procedeu à reforma da tributação do património e, para além do mais, aprovou o CIMI.), aquela sociedade vendedora beneficiou da isenção de IMI – devido pelo proprietário em 31 de Dezembro do ano a que respeita, nos termos do n.º 1 do art. 8.º do CIMI – por força do disposto no n.º 6 do art. 31.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que dispõe: «Mantêm-se em vigor os benefícios fiscais relativos à contribuição autárquica, agora reportados ao IMI, bem como os respeitantes ao imposto municipal de sisa estabelecidos em legislação extravagante ao Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41969, de 24 de Novembro de 1958, e no Estatuto dos Benefícios Fiscais, que passam a ser reportados ao IMT»; assim, «em Dezembro de 2003, a entidade que vendeu o prédio à recorrente encontrava-se a gozar de não sujeição a IMI, razão pela qual a adquirente não pode voltar a beneficiar do mesmo regime».
A sentença entendeu que a AT procedeu correctamente, pois a norma do n.º 6 do art. 9.º do CIMI deve ser interpretada no sentido de que não podem gozar do diferimento do início da tributação em IMI não só i) «os sujeitos passivos que tenham adquirido o prédio a entidade que já tenha beneficiado do diferimento de início de tributação, nos termos da aplicação directa do artigo 9.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CIMI», mas também ii) «os sujeitos passivos que tenham adquirido o prédio a entidade que tenha beneficiado do diferimento do início de tributação da CA, posteriormente reportado a IMI, em virtude de o termo do período do benefício ocorrer na vigência do CIMI (como ocorre in casu; […])».
Salvo o devido respeito, não tem razão no que se refere a este segundo segmento.
É certo que a sociedade vendedora estava a usufruir da dilação do início da tributação em CA ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do art. 10.º do CCA. O que significa que o período de não tributação em CA, que se iniciou em 2003, se prolongaria, desde que se mantivessem os respectivos pressupostos, até à venda, desde que esta ocorresse dentro do período de 3 anos, tudo nos termos dos n.ºs 1, alínea f), 2 e 3 do art. 10.º do CCA.
Acontece que em 1 de Dezembro de 2003 entrou em vigor o CIMI e foi revogado o CCA, como decorre dos arts. 31.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro. No entanto, por força do disposto no n.º 5 do art. 31.º do referido Decreto-Lei n.º 287/2003, mantêm-se em vigor os benefícios fiscais relativos à CA, agora reportados ao IMI.
Assim, a sociedade que vendeu os prédios em causa à ora Recorrente em 2004 ficou dispensada de tributação em IMI no ano de 2003, imposto que, nos termos gerais, seria devido pelo proprietário do prédio em Dezembro de 2003, de acordo com o disposto no art. 8.º, n.º 1, do CIMI. Mas, contrariamente ao que sustentam a AT e a sentença recorrida, essa dispensa não decorre da aplicação, directa ou indirecta, do regime da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI; essa dispensa resulta, isso sim, do regime da alínea f) do n.º 1 do art. 10.º do CCA, sendo que, por força do disposto no referido n.º 5 do art. 31.º do Decreto-Lei n.º 287/2003 – norma de direito transitório – a dilação de tributação em CA aí prevista deve considerar-se reportada ao IMI. Note-se que a norma do n.º 5 do art. 31.º do Decreto-Lei n.º 287/2003 não diz que a sociedade que beneficiava do regime previsto na alínea f) do n.º 1 do art. 10.º do CCA passa a beneficiar do regime da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI pelo tempo que faltar para que se complete o período fixado naquela regra do CCA. O que a norma diz é coisa substancialmente diferente: «Mantêm-se em vigor os benefícios fiscais relativos à contribuição autárquica, agora reportados ao IMI».
Ou seja, a sociedade vendedora nunca beneficiou do regime de não tributação previsto na alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI, pese embora tenha beneficiado da não tributação em IMI relativamente ao ano de 2003.
O que significa que, contrariamente ao que sustentou a AT e sufragou a sentença recorrida, não se verifica o impedimento previsto no n.º 6 do art. 9.º do CIMI a que a ora Recorrente beneficie do regime de não tributação previsto na alínea e) do n.º 1 do mesmo artigo: a sociedade vendedora nunca beneficiou deste regime.
Assim, sem necessidade de outros considerandos, concluímos que a sentença incorreu em erro de julgamento quanto à legalidade das liquidações impugnadas.
Por isso, há que conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação judicial procedente.
2.2.4 CONCLUSÕES
Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Porque no contencioso tributário vigora o princípio da impugnação unitária (cfr. art. 54.º do CPPT), não se impõe, como condição para impugnar judicialmente a liquidação de IMI efectuada por a AT não ter aceitado a exclusão de tributação ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI, a prévia impugnação contenciosa (a efectuar por acção administrativa) contra o acto por que a AT comunicou ao contribuinte que não aceitava essa exclusão.
II - No entanto, se foi deduzido recurso hierárquico contra este último acto, justifica-se que a AT considere a respectiva decisão como prejudicial da decisão a proferir no recurso hierárquico da decisão que indeferiu a reclamação graciosa contra a liquidação de IMI.
III - Nos mesmos termos, se for deduzida acção administrativa especial contra a decisão proferida no recurso hierárquico contra o acto de “indeferimento” da suspensão da tributação, deve entender-se que a mesma constitui causa prejudicial relativamente à impugnação judicial da liquidação de IMI (uma vez que naquela acção se conhece da legalidade de acto cuja decisão condiciona o sentido da liquidação impugnada), a justificar a suspensão desta até à decisão daquela, em ordem a prevenir eventual contradição de julgados [cfr. art. 272.º, n.º 1, do CPC, ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT].
IV - Se, no caso, não foi instaurada acção administrativa especial contra a decisão da AT que não aceitou a exclusão de tributação ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 9.º do CIMI, não faz sentido discutir eventual relação de prejudicialidade entre os referidos actos.
V - Ainda que, relativamente aos prédios em causa, a sociedade vendedora, à data em que entrou em vigor o CIMI (1 de Dezembro de 2003), estivesse a beneficiar da suspensão de tributação em sede de CA ao abrigo do disposto no art. 10.º, n.º 1, alínea f), do CCA e, por força do disposto no n.º 6 do art. 31.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Dezembro, no ano de 2003 tenha beneficiado da não tributação em IMI, a sociedade que em 2004 surge como a primeira adquirente dos prédios no âmbito da vigência do CIMI não fica impedida pelo n.º 6 do art. 9.º do CIMI de beneficiar da não sujeição a imposto prevista na alínea e) do n.º 1 do mesmo artigo.
* * *
3. DECISÃO
Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, julgando a impugnação judicial procedente, anular a liquidação impugnada.

Custas pela Recorrida.
*
Lisboa, 7 de Março de 2018. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Dulce Neto.