Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02142/13.3BELSB
Data do Acordão:05/30/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO JUDICIÁRIO
RESPONSABILIDADE DO ESTADO
Sumário:I - Não há omissão de pronúncia se o conhecimento da questão alegadamente omitida ficou prejudicado pela decisão dada a outra;
II - O STA é incompetente em razão da matéria para conhecer de erro judiciário imputado a decisão do Tribunal Constitucional;
III - A responsabilização do Estado-julgador por erro judiciário deve ser fundada na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o que, por regra, só se compadece com a via adequada para esse efeito: «o recurso»;
IV - Os actos de interpretação de normas de direito, e de valoração jurídica dos factos e das provas, constituem o núcleo essencial da função jurisdicional e são insindicáveis;
V - O erro judiciário só responsabilize o Estado-julgador quando se apresente como grosseiro, evidente, crasso, palmar e indiscutível, de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão arbitrária.
Nº Convencional:JSTA000P24619
Nº do Documento:SA12019053002142/13
Data de Entrada:02/04/2019
Recorrente:A............
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS (REPRESENTADO PELO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. A………… - residente na rua ………, nº……, …… Lisboa - demanda o ESTADO PORTUGUÊS em acção administrativa comum, forma ordinária, pedindo o seguinte:

a) Que o tribunal «declare» que foram violados os princípios do contraditório e do processo equitativo consagrados nos artigos 6º, parágrafo 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem [CEDH], 14º, nº1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos [PIDCP], e 47º, nº2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [CDFUE], pelo facto de «não lhe ter sido dada oportunidade de se pronunciar, antes da deliberação punitiva, sobre o conteúdo do relatório final elaborado no processo disciplinar»;

b) Que o tribunal «declare» que a infracção disciplinar pela qual ele foi punido já se encontrava prescrita na data do acórdão do Tribunal Constitucional de 12.07.2011;

c) Que o tribunal «julgue inconstitucionais», e se recuse a aplicar, as normas formalizadas nos artigos 175º, nº1, e 176º, nº1, do Estatuto do Ministério Público [EMP], entendidos «no sentido de a aplicação da pena de inactividade, ou de suspensão, ter como consequência a perda do vencimento e suplementos durante o cumprimento da mesma»;

d) Que o tribunal «condene» o réu a pagar-lhe a quantia global de 76.153,00€ a título de danos patrimoniais, correspondente aos valores que deixou de receber como vencimentos, subsídios de férias e de Natal, subsídio de compensação, subsídio de refeição e passe social, «no período de cumprimento da pena que lhe foi aplicada», e o montante de 13.500,00€ a título de danos não patrimoniais;

e) Que o tribunal «condene» o réu a pagar-lhe juros moratórios sobre essas quantias, a contar do vencimento de cada uma das verbas constantes dos pontos 103º e 104º da petição inicial, e a contar da citação sobre o montante relativo aos danos não patrimoniais.

Fundamenta estes pedidos na responsabilidade do réu ESTADO PORTUGUÊS pela conduta que imputa ao Ministério Público, ao Supremo Tribunal Administrativo, e ao Tribunal Constitucional, no âmbito do tratamento, da tramitação e da decisão, do procedimento disciplinar nº ………, e dos processos judiciais nº885/03, nº1221/03, nº1273/04, nº219/05, nº627/07.

2. Após contestação do réu, e réplica do autor, foi proferido saneador-sentença, no qual, num meritório trabalho de esclarecimento do complexo arrazoado feito na petição inicial, se entendeu autonomizar a causa de pedir «com fundamento no funcionamento anormal dos serviços do Ministério Público» da que deriva de alegado «erro judiciário» a que aludem as alíneas a), b) e c) do petitório.

Relativamente à primeira, o tribunal considerou «prescrito» o invocado direito à indemnização nela fundada. Ou seja, e numa tentativa de sintética clarificação, considerou prescrito o invocado direito do autor a ver-se ressarcido pelos danos que ele diz terem derivado da - alegadamente - ilegal e nula execução da suspensão de funções ocorrida nos dias 15 a 18 de Dezembro de 2003 [22º e 23º da petição inicial], ordenada pelo Procurador-Geral Distrital nesse primeiro dia [19º a 21º da petição inicial], e da conduta - alegadamente - ilícita consistente no envio «por via postal simples do ofício que lhe comunicava a suspensão do vencimento por aplicação da pena de inactividade» [46º a 72º da petição inicial]. Em consequência, absolveu o réu ESTADO do respectivo pedido.

Relativamente à segunda, o tribunal, após competente análise jurídica, julgou-se incompetente em razão da hierarquia e absolveu o réu ESTADO da instância.

3. Foi fixado à causa o valor de 89.653,00€.

4. Interposto «recurso de apelação» pelo autor, tendo por objecto as decisões tomadas no saneador-sentença, por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS] de 06.12.2018 - proferido na sequência de «reclamação para a conferência de decisão sumária do Relator» - foi-lhe negado provimento, sendo certo que nele apenas foi conhecida a questão do erro de julgamento de direito quanto à decisão da «incompetência em razão da hierarquia», restando prejudicado o demais.

O recorrente, autor da acção, conformando-se com este desfecho da apelação, veio requerer que os autos fossem remetidos «de imediato» ao STA.

5. Recebido o processo neste Supremo Tribunal, foram as parte notificadas nos termos e para os efeitos do artigo 91º, nº4, do CPTA [versão anterior ao «DL nº214-G/2015, de 02.10»].

Nas suas alegações, veio o autor declarar que, por dispensáveis, não mantinha «os pedidos formulados sob as alíneas a) e c) do seu petitório» - ver ponto 1 supra.

Por sua vez, o demandado, nessa sede de alegações, suscitou a questão prévia da incompetência absoluta dos tribunais administrativos para conhecer do pedido de indemnização por erro judiciário alegadamente cometido pelo Tribunal Constitucional [artigo 4º, nº4 alínea a), do ETAF na redacção dada pelo DL nº214-G/2015, de 02.10, e anterior artigo 4º, nº3 alínea a)].

Notificado para se pronunciar, querendo, sobre esta questão, o autor nada disse.

6. Colhidos que foram os «vistos» legais, cumpre apreciar e decidir o objecto da acção administrativa comum.

II. De Facto

A) São os seguintes os factos fixados aquando do saneador-sentença «proferido pelo TAC de Lisboa»:

1- O autor é procurador-adjunto «jubilado» - ver documentos juntos aos autos;

2- Exerceu funções como magistrado do Ministério Público, em diversos tribunais, no período compreendido entre ……… e ………, tendo-se «jubilado» nesta última data com a categoria de procurador-adjunto [DR, 2ª série, de ………] - ver documentos juntos aos autos;

3- Em meados de Dezembro de 2001, exercendo então funções no Tribunal do ........., os serviços de inspecção da Procuradoria-Geral da República [PGR] deram início a um inquérito pré-disciplinar, tendo por objecto a «investigação da sua actividade extraprofissional», que correu termos sob o nº ……… - ver documentos juntos aos autos;

4- Por acórdão de 19.02.2003, o Conselho Superior do Ministério Público [CSMP] converteu o inquérito em processo disciplinar [PD], com o nº ………, e aplicou ao autor a medida de «suspensão preventiva de exercício de funções pelo período de 180 dias» - ver documento nº1 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

5- Tendo reclamado desse acórdão para o Plenário do CSMP, da «parte relativa à suspensão preventiva», este órgão deliberou, a 05.05.2003, no sentido de manter a medida cautelar - ver documentos juntos aos autos;

6- A 08.05.2003, o autor requereu a «suspensão de eficácia do acórdão em que tal deliberação ficou formalizada», tendo a respectiva petição sido autuada com o nº885/03 e distribuída à 1ª secção, 2ª subsecção, do Supremo Tribunal Administrativo [STA] - ver documentos juntos aos autos;

7- A 04.07.2003, o autor interpôs «recurso contencioso de anulação» do acórdão, tendo a respectiva petição sido autuada com o nº1221/03 e distribuída à 1ª secção, 1ª subsecção, do mesmo tribunal - ver documentos juntos aos autos;

8- Por acórdão de 16.07.2003, notificado a 21, o STA «indeferiu» o pedido de suspensão de eficácia - ver documentos juntos aos autos;

9- A 30.07.2003, o autor arguiu nulidades do acórdão - ver documentos juntos aos autos;

10- Por acórdão do STA de 30.09.2003, notificado a 04.10, essas nulidades foram desatendidas - ver documentos juntos aos autos;

11- A 17.10.2003, o autor «recorreu» dos dois acórdãos do STA para o Pleno da Secção - ver documentos juntos aos autos;

12- Por despacho de 04.11.2003, o relator «não admitiu o recurso» - ver documento nº2 junto com a petição inicial;

13- A 21.11.2003, o autor «reclamou» deste despacho, mas a reclamação foi indeferida por acórdão de 02.12.2003, notificado a 06.12.2003 - ver documentos juntos aos autos;

14- A 18.12.2003, o autor «interpôs recurso deste acórdão» para o Tribunal Constitucional [TC] - ver documento nº3 da petição inicial;

15- Por despacho de 24.03.2004, o recurso foi admitido «com efeito suspensivo» e «subida imediata nos próprios autos» - ver documento nº4 da petição inicial;

16- Entretanto, por «acórdão de 21.11.2003», notificado a 05.12.2003, o CSMP deliberou que, tendo o acórdão do STA de 16.07.2003 transitado em julgado, não havia impedimento legal que obstasse à execução da suspensão preventiva e «determinou a imediata execução» da mesma - ver documentos juntos aos autos;

17- O autor «reclamou» deste acórdão do CSMP para o próprio CSMP e requereu que o mesmo fosse suspenso na sua eficácia até transitar em julgado o acórdão do STA de 16.07.2003 - ver documento nº5 da petição inicial;

18- A 03.12.2003 «requereu», no processo cautelar que se encontrava pendente no STA, que fosse proferido acórdão que «declarasse ineficaz e de nenhum efeito o acórdão do CSMP de 21.11.2003 e todos os actos de execução que se lhe seguissem» - ver documentos juntos aos autos;

19- A «reclamação» efectuada perante o CSMP não chegou a ser apreciada - ver documentos juntos aos autos;

20- A 15.12.2003, o Procurador-Geral Distrital ordenou ao ora autor, através de comunicação telefónica, a suspensão imediata de funções - ver documento nº6 junto com a petição inicial;

21- O autor «suspendeu de imediato funções», não as tendo exercido, em cumprimento dessa ordem, nos dias 15, 16, 17 e 18.12.2003, tendo-as retomado no dia 19.12.2003, na sequência de nova ordem nesse sentido, emitida, telefonicamente, pelo Procurador-Geral Distrital - ver documento nº6 junto com a petição inicial;

22- Por acórdão de 14.05.2004, o STA decidiu «que se mantinha a suspensão de eficácia» do acórdão do CSMP que lhe aplicara a suspensão preventiva de funções, e declarou ineficazes, para efeitos da suspensão, todos os actos de execução que se lhe seguiram - ver documentos juntos aos autos;

23- A 30.05.2003 foi deduzida acusação contra o ora autor, tendo-se considerado provado que este exercera uma actividade considerada incompatível com a função - ver documentos juntos aos autos;

24- A 24.10.2003 foi elaborado o relatório final no processo disciplinar, no qual era proposta a aplicação da pena de demissão - ver documentos juntos aos autos;

25- Por «acórdão de 04.05.2004», a Secção Disciplinar aplicou-lhe «a pena de um ano de inactividade com impossibilidade de promoção nos dois anos seguintes ao cumprimento da mesma, e perda do tempo correspondente quanto à remuneração, antiguidade e aposentação - ver documentos juntos aos autos;

26- A 10.05.2004, o autor «foi notificado do acórdão punitivo e do relatório final» do processo disciplinar - ver documentos juntos aos autos;

27- Reclamou para o Plenário do CSMP, que decidiu «não ter sido cometida qualquer ilegalidade com a falta de notificação ao autor do relatório final antes da decisão punitiva» - ver documentos juntos aos autos;

28- A 29.11.2004, o autor «requereu a suspensão de eficácia da deliberação punitiva», tendo a respectiva petição sido autuada com o nº1273/04 e distribuída à 1ª secção, 1ª subsecção, do STA - ver documentos juntos aos autos;

29- Por acórdão de 13.01.2005, o STA «deferiu o pedido cautelar» do autor - ver documento junto aos autos, dado como reproduzido;

30- O autor instaurou «acção administrativa especial» [AAE] no STA, que correu termos sob o nº219/05, 1ª secção e 3ª subsecção, e «foi julgada improcedente» por acórdão de 22.02.2006 - ver documentos juntos aos autos;

31- Recorreu então para o Pleno da Secção, que, por acórdão de 06.03.2007 negou provimento ao recurso - ver documentos juntos aos autos;

32- A 22.03.2007, o autor recorreu do acórdão do Pleno do STA para o Tribunal Constitucional [recurso nº627/07, da 3ª secção] - ver documentos juntos aos autos;

33- O STA, e o TC, julgaram o artigo 203º do Estatuto do Ministério Público [EMP], que «manda notificar o relatório com a notificação da decisão final», como não violador do artigo 32º, nº10, da Constituição da República Portuguesa [CRP] - ver documentos juntos aos autos;

34- Por acórdão de 19.11.2009, proferido no processo cautelar, e a pedido do CSMP, o STA «revogou a suspensão de eficácia do acto punitivo» que havia sido concedida - ver documentos juntos aos autos;

35- Os serviços do Ministério Público da Procuradoria Geral Distrital remeteram, «por via postal simples», o ofício nº ………, com data de 18.12.2009, para o autor, para a morada Rua ………, nº……, ……, ……, Amadora - ver documento nº15 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;

36- A 07.03.2010, o autor «tomou conhecimento do teor do ofício» - tenho a honra de informar V. Exa que a suspensão do seu vencimento pela aplicação da pena disciplinar de inactividade, pelo período de um ano, se inicia a 01.01.2010 - por confissão [artigos 52º a 55º da petição inicial];

37- Em Janeiro de 2010, o autor «deixou de receber o respectivo vencimento» - por confissão [artigo 71º da petição inicial];

38- Reclamou perante o CSMP da falta de processamento do vencimento - por confissão [artigo 71º da petição inicial];

39- Depois de uma troca de informações entre a PGR e a PGD foi retomado o processamento do vencimento do autor - por confissão [artigo 72º da petição inicial];

40- No período entre 24.04.2010 e 24.04.2011, o autor «cumpriu pena» - por confissão [artigo 73º da petição inicial];

41- A 20.09.2010, o autor «suscitou a questão da prescrição do procedimento disciplinar» no recurso nº627/07 no TC, e «requereu que o processo fosse remetido ao STA para apreciação da prescrição» - ver documentos juntos aos autos, dados por reproduzidos;

42- O requerimento não foi objecto de apreciação pelo TC - por acordo [artigos 88º da petição inicial e 63º da contestação];

43- A 21.04.2011, o autor entregou novo requerimento no processo que corria termos no TC «a pedir a apreciação do seu requerimento de 20.09.2010 e a remessa do processo ao STA» - ver documento nº18 junto com a petição inicial;

44- A 03.05.2011, a relatora do processo proferiu despacho com o seguinte teor: «o pedido será apreciado oportunamente, dado que os autos se encontram no TC, onde foram produzidas alegações» - ver documento nº19 junto com a petição inicial;

45- Por acórdão de 12.07.2011, o TC decidiu o recurso, sem que a questão da prescrição fosse apreciada - ver documentos juntos aos autos;

46- O autor «arguiu a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia» - ver documentos juntos aos autos;

47- A 12.10.2011, o TC «desatendeu a arguição de nulidade» - ver documentos juntos aos autos;

48- A 30.01.2012, o autor «requereu ao STA a apreciação da prescrição» do procedimento disciplinar - ver documentos juntos aos autos;

49- Por acórdão de 16.11.2012, o Pleno da Secção «declarou que, tendo o acórdão do TC transitado em julgado, já não podia conhecer da questão suscitada» - ver documentos juntos aos autos;

50- A presente acção foi instaurada a 19.08.2013 - ver petição inicial;

51- O réu foi citado para os termos da acção em 07.11.2013 - ver certidão de citação dos autos.

B) Para além desses factos assentes, outros há que foram impugnados pelo réu Estado Português, e que dizem respeito «aos danos alegadamente sofridos pelo autor» em consequência da ilicitude que aponta à conduta dos serviços do réu - referimo-nos, nomeadamente aos factos ínsitos nos artigos 22º, 23º, 24º, 31º, 48º a 62º, 74º a 76º, 99º, e 101º a 104º, todos da petição inicial.

Porém, atentas as questões pendentes nos autos, nomeadamente a prioritária, relativa à «incompetência absoluta dos tribunais administrativos» para conhecer do pedido de indemnização por erro judiciário cometido [alegadamente] pelo Tribunal Constitucional, e a nuclear, atinente à aferição da eventual ocorrência de «erro de julgamento» relevante para poder responsabilizar o Estado-julgador, decidimos diferir a instrução de tais factos ainda controvertidos para momento posterior ao da decisão dessas questões, pois só então se poderá avaliar a sua necessidade - artigos 90º, nº4, do CPTA actual, e 90º, nº3 e nº4, do CPTA na sua redacção anterior ao DL 214-G/2015, de 02.10, e, ainda, 130º do CPC ex vi 1º do CPTA.

III. De Direito

1. Como dissemos, é prioritária a apreciação da questão atinente à competência absoluta deste Supremo Tribunal Administrativo para «conhecer do pedido que lhe foi formulado relativamente ao Tribunal Constitucional - ver artigo 13º do CPTA.

A incompetência suscitada pelo réu nas suas alegações [ver ponto 5 do Relatório supra] é juridicamente qualificada de absoluta, porque em razão da matéria, e configura, pois, questão de «ordem pública» e de «conhecimento oficioso» - ver artigos 13º do CPTA, e 578º do CPC ex vi 1º do CPTA.

Tanto o TAC de Lisboa, onde esta acção foi proposta, como o TCAS, onde subiu em sede de apelação, consideraram que a responsabilidade civil extracontratual que é imputada pelo autor aos dois tribunais em causa - STA e TC - se fundamenta em alegado erro de julgamento, tendo por objecto, assim, verdadeiras decisões jurisdicionais.

Diz o saneador-sentença do TAC: «Assim, ao contrário do que alega o autor, parte da causa de pedir dos autos reside na invocação de erro “in judicando” praticado pelos juízes da causa junto do Supremo Tribunal Administrativo e junto do Tribunal Constitucional» - ver a sua página 26.

E diz o acórdão do TCAS: «Lida a petição inicial […] é incontornável que o ora recorrente assenta o direito à indemnização que se arroga em situação de erro judiciário nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal Constitucional» - sua página 9.

E também nós entendemos que assim é.

Efectivamente, tudo passa pela aplicação do critério da «conexão material dos actos [ou falta deles] com a decisão judicial».

Enquanto o «erro» in procedendo se reporta a actos ou omissões [materiais/jurídicos], que são «preparatórios, acessórios, complementares, ou de mera execução» da decisão judicial, o «erro» in judicando refere-se a actos jurídicos praticados pelo juiz da causa que condicionam o sentido e o conteúdo da sua decisão. E só este último é atraído para a noção de «erro judiciário».

No caso, o autor imputa aos referidos tribunais fundamentalmente dois erros: - o primeiro deles tem a ver essencialmente com a decisão judicial sobre alegada falta da sua audiência prévia [autónoma] sobre o relatório final do PD; - e o segundo respeita essencialmente à omissão de decisão judicial sobre a prescrição do PD.

Na verdade, entende que o STA, no processo nº219/05 [pontos 30, 31 e 33 do provado], e o TC, no recurso nº627/07 [pontos 32 e 33 do provado], julgaram que o «artigo 203º do EMP» - que manda notificar o relatório com a decisão final do PD - não viola o artigo 32º, nº10, da CRP, o que, a seu ver, está errado, pois deveriam ter apreciado tal questão em confronto com os princípios do contraditório e do processo equitativo [ver artigos 6º, parágrafo 1º, da CEDH, 2º e 14º, nº1, ambos do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos [PIDCP] e 47º nº2 da CDFUE] - o que os levaria, por desrespeito aos mesmos, a não aplicar aquele artigo 203º, a declarar a ocorrência de nulidade insuprível, no PD, e a «anular o acto punitivo», com a consequente reconstituição da situação que existiria se a sanção punitiva não tivesse sido aplicada.

E entende também, que apesar de requerer, e insistir, junto do TC [pontos 41 a 47 do provado], e de requerer junto do STA [pontos 48 e 49 do provado], a apreciação da questão da «prescrição» do PD, tal acabou por, erradamente, não ser feito, sendo certo que se essa questão fosse apreciada, e a punição anulada, seria reconstituída a sua situação existente antes do cumprimento da pena.

Ora, estamos obviamente perante invocados «erros» in judicando na medida em que condicionam, na visão do autor, «o sentido e o conteúdo da decisão judicial proferida pelos tribunais em causa».

Nos termos do artigo 4º, nº1 alínea f), do actual ETAF [ver artigo 4º, nº1 alínea g) do ETAF na versão anterior ao DL nº214-G/2015], «Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a: […] g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do nº4 do presente artigo». E diz esta norma, salvaguardada, que «Estão […] excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição […]» [ver artigo 4º, nº3 alínea a), da anterior versão do ETAF].

Resulta, pois, sem sombra de dúvida, que o conhecimento do pedido formulado pelo autor e referente aos alegados erros judiciários imputados ao TC não pode, porque a lei o proíbe, ser apreciados por este STA.

Razão pela qual, quanto a esse pedido, decidimos absolver o Estado Português da instância - ver artigos 577º, alínea a), e 278º, nº1 alínea a), do CPC, ex vi 1º do CPTA.

2. No saneador-sentença proferido pelo TAC foi autonomizada, como já foi dito, a causa de pedir «com fundamento no funcionamento anormal dos serviços do Ministério Público» da que deriva do referido erro judiciário, e, quanto àquela, o tribunal julgou procedente a questão da prescrição do direito de indemnização e absolveu o réu do pedido. Ou seja, o tribunal considerou «prescrito» o invocado direito do autor a ver-se indemnizado pelos danos que ele alega terem derivado da ilegal e nula execução da suspensão de funções ocorrida nos dias 15 a 18 de Dezembro de 2003, ordenada pelo Procurador-Geral Distrital nesse primeiro dia, e da conduta alegadamente ilícita consistente no envio «por via postal simples do ofício que lhe comunicava a suspensão do vencimento por aplicação da pena de inactividade».

Esta decisão de absolvição do pedido com base na prescrição do direito do autor, embora integre também o objecto da apelação dirigida ao TCAS não foi por ele conhecida. De facto, o tribunal de 2ª instância, apenas apreciou o alegado erro de julgamento de direito alusivo à decidida «incompetência do TAC em razão da hierarquia», e, julgando-o improcedente, decidiu negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida, pois, segundo diz, «nada mais importa apreciar» [ver página 11 do acórdão do TCAS]. Ou seja, o «tribunal de apelação», segundo tudo indica, a partir do momento que entendeu ser este STA o tribunal competente, em razão da hierarquia, para conhecer do objecto da acção, nada mais apreciou, deixando esse conhecimento ao tribunal competente.

Efectivamente é assim, uma vez que requerida a remessa dos autos ao tribunal competente [ver ponto 4 do Relatório - último parágrafo], e como resulta bastante claro da lei, apenas subsistirão os respectivos articulados [artigo 99º, nºs 1 e 2, do CPC, ex vi 1º CPTA].

Este STA, onde pende actualmente este processo, e que através da sua Secção de Contencioso Administrativo o tramita em 1º grau de jurisdição - e não enquanto tribunal de apelação ou de revista - confronta-se, pois, com a necessidade de apreciar, e decidir, a referida questão da prescrição.

3. Temos, assim, que o autor pretende ver-se indemnizado pelos danos que diz terem derivado da ilegal e nula execução da suspensão de funções ocorrida nos dias 15 a 18 de Dezembro de 2003, ordenada pelo Procurador-Geral Distrital no primeiro desses dias [20 e 21 do provado], e ainda da conduta alegadamente ilícita que teve lugar a 18.12.2009 e se consubstancia «no envio por via postal simples do ofício a comunicar-lhe a suspensão do vencimento por aplicação da pena de inactividade» [35 e 36 do provado].

Ou seja, o autor alicerça o pedido de indemnização por «prejuízos derivados da indevida execução da suspensão preventiva» - nos dias 15 a 18.12.2003 - em facto datado de 15.12.2003, de que teve inegável conhecimento [20 e 21 do provado], e em conduta de 18.12.2009, de que teve conhecimento pelo menos a 07.03.2010 [36 do provado].

Naturalmente que, atendendo a estas datas, o prazo de prescrição de «3 anos» previsto no artigo 498º do CC [ver, ainda, artigo 5º da Lei 67/2007 de 31.12], e respeitado pelo artigo 41º, nº1, do CPTA, já tinha decorrido quando ele, em 19.08.2013 [ver ponto 50 do provado], intentou a presente acção.

Importa verificar, pois, se ocorreu, como alega, algum motivo de interrupção ou de suspensão da sua contagem, quer nos termos dos pertinentes artigos do CC - 318º e 323º - quer de acordo com o nº3 do artigo 41º do CPTA «então em vigor» - anterior ao DL nº214-G/2015, de 02.10.

E a verdade é que tal não acontece. Efectivamente, não ocorre «qualquer caso legal de suspensão nem de interrupção da prescrição», dos previstos na lei civil, nem sequer o previsto na lei processual administrativa então em vigor, segundo o qual «A impugnação de actos lesivos exprime a intenção, por parte do autor, de exercer o direito à reparação dos danos que tenha sofrido, para o efeito de interromper a prescrição deste direito, nos termos gerais».

Segundo o autor, a exposição do ofício, a comunicar-lhe a suspensão do vencimento, aconteceu porque os serviços do Ministério Público não tiveram o cuidado de registar o sobrescrito com o mesmo, tendo preferido a via simples, ao contrário do que é exigido por lei. Ou seja, a indemnização pelos danos que descreve nos artigos 55º a 62º da sua petição inicial, e que diz resultantes desta conduta «ilegal», é baseada em facto de Dezembro de 2009 de que teve conhecimento em Março de 2010, facto que se traduz num comportamento alegadamente censurável, e não num acto lesivo susceptível de impugnação.

Não se verifica, pois, quanto a este comportamento, o motivo de interrupção da prescrição previsto na citada norma do CPTA.

Nem se verifica, também, relativamente à «ordem» que lhe foi comunicada pelo Procurador-Geral Distrital em 15.12.2003 para suspender imediatamente funções.

Esta «ordem», enquanto acto de execução da suspensão preventiva determinada pelo CSMP [4, 5, 20 do provado] - «suspensão preventiva» que foi objecto de pedido de «suspensão de eficácia», «indeferido» por acórdão do STA, objecto de «recurso para o Tribunal Constitucional» [4 a 6, 8, 13 e 14 do provado] - foi declarada «ineficaz» por acórdão do STA de 14.05.2004 [22 do provado]. A partir daqui, a tramitação processual intensa desenvolvida pelo autor, conforme consta do provado, tem a ver com a sua discordância relativamente à «pena disciplinar» que lhe foi aplicada [25 a 32 do provado] e não relativamente à medida preventiva que o CSMP decretou e o Procurador-Geral Distrital mandou executar.

Donde resulta que desde Maio de 2004 o autor estava em condições de exercer o seu direito a obter uma indemnização pelos danos que invoca como derivados da referida ordem ilegal, e que, a partir de então, não há qualquer motivo legal para considerar interrompida a prescrição.

Deverá, assim, ser julgada procedente a questão da prescrição, sendo, por via disso, o réu absolvido do respectivo pedido [artigos 493º, nºs 1 e 3, 496º do CPC aplicável, ex vi 35º do CPTA].

4. Resta, ainda, conhecer apenas da «responsabilidade civil extracontratual que é imputada ao Estado-julgador» por alegado erro judiciário do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, sendo certo que, como deixamos consignado [ver ponto 5 do «Relatório»], o autor «deixou cair» os pedidos que formulou sob as alíneas a) e c) do seu petitório.

Segundo o autor, o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA, no âmbito da acção administrativa especial nº219/05 e por acórdão de 06.03.2007 julgou improcedente o seu pedido de «declaração de nulidade ou anulação» da deliberação punitiva do CSMP. Um dos fundamentos dessa acção, que soçobrou, consubstanciava-se na alegação segundo a qual o artigo 203º do EMP - que manda notificar o «relatório final» do PD com a «decisão final» do mesmo - violava o «direito de audiência e defesa» do ali arguido, estando por isso desconforme com os ditames do artigo 32º, nº10, da CRP - «Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa» - e com os princípios do contraditório e do processo equitativo - artigos 6º, parágrafo 1º, da CEDH, 2º e 14º, nº1, ambos do PIDCP, e 47º, nº2, da CDFUE - sendo que o tribunal «manteve a aplicação daquele artigo do EMP» por entender que ele não violava a dita norma constitucional. Todavia, para o autor trata-se de um julgamento errado, pois se tivesse sido abordada a questão em confronto com os princípios do contraditório e do processo equitativo a decisão teria sido outra, e a acção não teria soçobrado, com tudo o que isso significa.

Além disso, e naquela mesma acção, apesar de ele ter requerido ao «Pleno» a apreciação da questão da «prescrição do PD», este, por acórdão de 16.11.2012, veio declarar que «tendo o acórdão do TC [Rº627/07] transitado em julgado, já não podia conhecer da questão suscitada». Na visão do autor, esta decisão é errada e teve uma influência decisiva no desfecho da sua acção, já que «se tal questão tivesse sido apreciada, e a decisão punitiva anulada», a sua pretensão venceria, e, em sede executiva, teria sido reconstituída a sua situação actual hipotética.

Mas esta reclamada responsabilização do réu terá de naufragar. Vejamos.

Atenta a situação no tempo dos alegados erros judiciários que vêm imputados a decisões do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA, é aplicável à responsabilização do Estado Português, neles baseada, o regime jurídico que foi aprovado pela Lei nº67/2007, de 31.12 [entrada em vigor a 30.01.2008 – ver seu artigo 6º].

Sobre a «responsabilidade por erro judiciário», estipula assim o seu artigo 13º: «1. Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e privação injustificada de liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto. 2. O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».

São duas, pois, as situações susceptíveis de responsabilizar o Estado com base no erro judiciário: - a decisão jurisdicional ser «manifestamente inconstitucional ou ilegal»; - a decisão jurisdicional ser «manifestamente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto».

Porque os actos de interpretação de normas de direito, e de valoração jurídica dos factos e das provas «constituem o núcleo essencial da função jurisdicional, são insindicáveis». Daí que o erro judiciário só responsabilize o Estado quando, «salvaguardado esse núcleo essencial, se apresente como grosseiro, evidente, crasso, palmar e indiscutível, de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas» - AC STJ de 28.02.2012; e AC STJ de 23.10.2014.

Além disso, a responsabilização do Estado por erro judiciário deve «ser fundada na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», o que, por regra, só se compadece com a via adequada para esse efeito: «o recurso». Este entendimento é o único que se compagina com a natureza da função judicial, a organização hierárquica dos tribunais e com o instituto do caso julgado. E «esta exigência legal» já foi questionada junto do Tribunal Constitucional, que decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 13º, nº2, do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei nº67/2007, de 31.12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente» - AC do TC de 09.07.2015, processo nº363/2015.

Feita esta resenha sobre as condições legais da atribuição de indemnização com base na responsabilidade civil extracontratual por erro judiciário, não se impõe dizer mais, pois é manifesta a falta de preenchimento das mesmas, no caso dos autos, no tocante à única actuação jurisdicional em apreciação: a do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal.

4. Ressuma do exposto, que deverá o réu ser absolvido da instância no tocante à responsabilidade civil extracontratual que lhe é exigida pelo autor e «fundada em erro judiciário imputado ao Tribunal Constitucional», e absolvido do pedido no tocante à mesma responsabilidade, mas fundada, agora, «em erro judiciário imputado ao Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA», e quanto à excepção da prescrição invocada, por ser julgada procedente.

Resta prejudicada a «utilidade» de proceder à instrução dita no último parágrafo da parte II deste acórdão.

IV. Decisão

Nos termos do exposto:

1) Julgamos incompetente a jurisdição administrativa, em razão da matéria, para conhecer do pedido de indemnização fundado em «erro judiciário imputado ao Tribunal Constitucional», absolvendo, quanto a ele, o réu da instância;

2) Julgamos procedente a excepção da prescrição relativamente à conduta que é imputada aos serviços do Ministério Público, absolvendo o réu do respectivo pedido;

3) Julgamos improcedente o pedido de indemnização fundado em «erro judiciário imputado ao Supremo Tribunal Administrativo», dele absolvendo o réu.

Custas pelo autor.

Lisboa, 30 de Maio de 2019. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Jorge Artur Madeira dos Santos.