Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0999/19.3BEAVR
Data do Acordão:11/19/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:PROPORCIONALIDADE
COMPARTICIPAÇÃO
CANDIDATURA
Sumário:Deve ser considerada excessiva a solução jurídica que preconiza a exclusão da candidatura ao internato médico de quem, reunindo todos os requisitos de admissão ao ingresso no mesmo internato médico, procedeu ao pagamento da comparticipação para o procedimento dois dias após o termo do prazo de entrega da candidatura – ainda antes, portanto, da elaboração e publicitação da lista provisória de candidatos admitidos e excluídos.
Nº Convencional:JSTA000P26799
Nº do Documento:SA1202011190999/19
Data de Entrada:10/09/2020
Recorrente:ACSS IP
Recorrido 1:A..................
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. Administração Central do Sistema de Saúde, IP (ACSS, IP), devidamente identificada nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do acórdão do TCAS, de 30.04.2020, que negou provimento ao recurso por si interposto da decisão da 1.ª instância, mantendo-a.

Na origem do recurso interposto para o TCAN esteve uma decisão do TAC de Lisboa, de 14.01.2020, que julgou procedente o presente processo cautelar e, consequentemente, condenou a entidade requerida a admitir provisoriamente a requerente cautelar ao procedimento concursal de ingresso no Internato Médico 2020, aberto pelo Aviso n.º 13438-A/2019.


2. Inconformado com a decisão do TCAS, o requerido cautelar, ora recorrente, apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. 722-32 – paginação SITAF):

1. O presente recurso deve ser admitido, pois verificam-se os pressupostos constantes do artigo 150.º/1 do CPTA para o efeito.

2. Isto porque é necessária uma melhor interpretação da solução jurídica encontrada na decisão recorrida, já que a mesma põe em causa os princípios da igualdade e da boa fé, na medida em que cria um regime de exceção e benefício à Recorrida, e demais candidatos em situações idênticas, que não tem suporte legal.

3. Por outro lado, e atendendo à natural concorrência entre médicos na fase de admissão para o internato médico, é manifesta também a relevância social do presente recurso.

4. O presente recuso justifica-se ainda pelo facto de ser necessária uma melhor aplicação do direito quanto ao preenchimento dos requisitos do periculum in mora e da ponderação de interesses.

5. Isto porque o Venerando Tribunal a quo errou ao considerar que a não possibilidade de a Recorrida realizar a PNA gerava danos de difícil reparação quando é certo que estes exames são de realização anual; e errou ao considerar que não existirá danos para o interesse público com o decretamento da presente providência cautelar, quando é evidente a desigualdade de situações entre candidatos e a implementação da cultura de que os prazos legalmente estipulados não são para cumprir.

6. O Tribunal a quo julgou o processo cautelar procedente e, em consequência, condenou a ACSS a admitir provisoriamente A…………… ao procedimento concursal de ingresso no internato médico 2020, julgando verificados os pressupostos para tal, incorretamente, como se demonstra com as presentes alegações.

7. Quanto ao fomus boni iuris, o Despacho n.º 4412/2018 no ponto 4 prevê no ingresso ou mudança de área de especialização/local de formação, os candidatos devem proceder, obrigatoriamente e no momento da candidatura, ao pagamento integral da quantia de 90 €, a título de comparticipação para o procedimento, pelo que a admissão à PNA pressupõe o pagamento tempestivo e na íntegra da comparticipação prevista, dentro dos prazos e formalismos previstos.

8. No caso em apreço o Aviso de Abertura do concurso e a própria candidatura faziam referência ao documento comprovativo da entrega da comparticipação.

9. A Recorrida pagou a comparticipação 2 dias após o termo do prazo, a 22.09.2019, pelo que a decisão de exclusão da Requerente pelo facto de não haver procedido ao pagamento da comparticipação dentro do prazo legal, afigura-se legal, pois a cominação da falta de pagamento integral e atempado da comparticipação encontrava-se prevista no Aviso de Abertura,

10. Pois, segundo o Ponto 6.B) do Aviso de Abertura, constitui motivo de exclusão da candidatura, a invalidade dos documentos exigidos no Ponto 5.1 do Aviso de Abertura, na qual se incluem o documento comprovativo da entrega da comparticipação para o procedimento concursal.

11. Apenas a falta de documentação, e não o incumprimento atempado do pagamento da comparticipação, era suscetível de suprimento, em sede de audiência prévia da lista provisória, nos termos legais, ao contrário do entendimento do Tribunal recorrido.

12. Admitir interpretação diversa, isto é que a Recorrida pudesse, em sede de audiência prévia à lista provisória, proceder ao pagamento do montante fixado a título de comparticipação para o procedimento, seria gravemente violador dos princípios da igualdade, ao contrário do que entende (erradamente, salvo o devido respeito) o Tribunal a quo, pois tal iria permitir que alguns candidatos tivessem um tratamento privilegiado em relação aos demais e significaria que, todos os candidatos que não entregassem o comprovativo do pagamento da comparticipação, no momento da candidatura, teriam mais tempo para efetuar o pagamento da comparticipação (v.g. Parecer Externo, de 21.10.2019, cfr. Processo Instrutor, págs. 99-144).

13. A ACSS está obrigada a atuar de acordo com a lei e o direito, dentro dos limites que lhe foram confiados e em conformidade com os respetivos fins, nos termos do artigo 3.º do CPA. por isso, a ACSS não poderia ter atuado de forma diversa, dado que a legislação não o permite. Assim, considera-se que não está verificado o requisito do fumus boni iuris, pelo que este processo cautelar deveria ser considerado improcedente.

14. Quanto ao periculum in mora, julgamos que o julgamento do Venerando Tribunal a quo se encontra viciado, por não terem sido ponderados todos os factos relevantes, como por exemplo o facto de estar em causa uma prova de realização anual, pelo que em caso de procedência de uma ação sempre terá a Recorrida a possibilidade de prestar a PNA. Assim, deveria ter sido julgado não verificado o requisito do periculum in mora.

15. Relativamente à ponderação de interesses, é notório que o prejuízo para o interesse público com a adoção da presente providência cautelar é enorme e superior aos interesses da Recorrida, pois está a protelar-se uma situação contra a lei, em manifesta violação da igualdade entre os outros candidatos, o que poderá criar sentimentos de injustiça entre a classe médica.

16. Além disso, não se vislumbra como é que, no futuro, os candidatos aos diversos procedimentos concursais promovidos vão ter presente a ideia de que existem prazos que têm de ser cumpridos, nomeadamente no que concerne ao pagamento de comparticipações concursais quando um tribunal vem professar um entendimento contrário, sendo tal lesivo do interesse publico.

NESTES TERMOS
Deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se na íntegra o Acórdão proferido e deverá julgar-se a ação cautelar em causa totalmente improcedente, com as demais consequências legais”.


3. A requerente cautelar, ora recorrida, devidamente notificada, não produziu contra-alegações.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 10.09.2020, veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)

6. O TAC/L concedeu a tutela cautelar peticionada pela aqui recorrida, para o efeito fundando seu juízo no entendimento de que in casu estavam preenchidos os requisitos previstos e exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do art. 120.º do CPTA [cfr. fls. 575/598], considerando, em suma, não só que ocorriam o periculum in mora e, bem assim, o fumus boni iuris, já que provável a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal dado ser ilegal o ato de exclusão da candidatura da ora recorrida ao procedimento concursal de ingresso no internato médico 2020 [enquanto fundada no não pagamento no prazo de apresentação da candidatura (20.09.2019) da quantia de 90,00 €, a título de comparticipação para o procedimento, valor esse que veio a ser liquidado entretanto pela mesma a 22.09.2019], como também do juízo de ponderação dos interesses em presença não deriva a recusa da concessão da tutela cautelar.

7. Aduziu, em suma, como motivação para a verificação do requisito do fumus boni iuris que «as regras de acesso ao procedimento concursal do internato médico, designadamente, os requisitos de acesso, contendem com a liberdade de escolha da profissão, prevista no artigo 47.º, da CRP, pelo que estão sujeitas a reserva de lei (artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP) e ao princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP)» que «no RJIM, no RegIM e no aviso do procedimento inexiste uma norma que consagre que o pagamento da compensação prevista no artigo 35.º, n.º 2, do RJIM, até ao termo do prazo de candidatura, é um requisito de acesso ao procedimento concursal do internato médico na vertente de formação especializada», que «no RJIM, no RJIM, no RegIM e no aviso do procedimento inexiste uma norma que determine que o não pagamento da compensação prevista no artigo 35.º, n.º 2, do RJIM, até ao termo do prazo de candidatura é uma causa de exclusão do procedimento concursal do internato médico na vertente de formação especializada», sendo que «nem o n.º 4 do Despacho n.º 4412/2018 do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, de 27/04/2018, nem o ponto 9.5, do Aviso n.º 13438-A/2019, dispõem sobre os requisitos de admissão ou sobre os motivos de exclusão do procedimento concursal de acesso ao internato médico» e que «no RJIM, no RJIM, no RegIM e no aviso do procedimento inexiste uma norma que discipline diretamente as consequências do pagamento da comparticipação financeira depois do termo do prazo de candidatura», termos em que «o elemento teleológico-sistemático da interpretação jurídica e o princípio da interpretação conforme com a CRP repelem a interpretação conjugada do artigo 35.º, n.º 2, do RJIM, com o n.º 4 do Despacho n.º 4412/2018 do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, de 27/04/2018, e com ponto 9.5, do Aviso n.º 13438-A/2019 no sentido de consagrarem que o pagamento da comparticipação financeira dentro do prazo de candidatura é um requisito de admissão ao procedimento e que a consequência do pagamento intempestivo, mas dentro do prazo de audiência prévia é a exclusão do procedimento», já que «o RegIM permite, no artigo 31.º, n.º 3, que no prazo de audiência prévia os candidatos supram a falta de entrega de documentos que devem instruir a candidatura» e «elemento teleológico-sistemático da interpretação jurídica e o princípio da interpretação conforme com a CRP promovem a extensão desta norma ao pagamento da comparticipação financeira, o que significa que os candidatos que até ao termo do prazo de audiência prévia comprovem o pagamento da comparticipação financeira não podem ser excluídos do procedimento concursal».

8. O TCA/S no acórdão ora sob impugnação manteve integralmente o juízo do TAC/L.

9. O requerido cautelar, aqui ora recorrente, funda a necessidade de admissão da presente revista não só na relevância social da questão, mas, essencialmente, na melhor aplicação do direito, acometendo-o de erro de julgamento, entendendo não estarem verificados os requisitos exigidos pelo art. 120.º do CPTA.

10. No caso, não se vislumbra uma especial relevância social da questão já que não se descortina ocorrer uma qualquer repercussão do litígio na comunidade, na certeza de que o mesmo mostra-se desprovido totalmente de interesse até para os demais candidatos contrainteressados envolvidos no procedimento, sendo que, tratando-se de procedimento anual sujeito a específicas regras que aprovam as condições de candidatura, o seu interesse comunitário apresenta-se como circunscrito ao caso, não denotando virtualidade de expansão de controvérsia que extravase os contornos do caso concreto e daquilo que foi e é a sua especial singularidade.

11. Já quanto à necessidade de admissão da revista para uma melhor aplicação de direito temos que, presente a motivação expendida pelo recorrente e o quadro normativo em crise, se apresenta, desde logo, como não isenta de dúvidas e carecida de reanálise por este Supremo a questão respeitante ao acometido erro de julgamento quanto ao juízo de preenchimento do requisito do fumus boni iuris por incorreta interpretação e aplicação feita in casu do referido quadro normativo, aferindo da efetiva probabilidade da ora recorrida vir a obter ganho de causa no processo principal.

12. Flui do exposto a necessidade de intervenção clarificadora deste Tribunal, e daí que se justifique a admissão da revista”.

5. A Digna Magistrada do Ministério Público, notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu pronúncia “no sentido de ser negado provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido”, tendo a mesma merecido resposta concordante da ora recorrida.

6. Sem vistos legais, nos termos do disposto no artigo 36.º, n.º 1, al. f), do CPTA, vêm os autos à conferência para decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto:

Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.


2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar as questões suscitadas pela ora recorrente – delimitado que está o objecto do recurso apresentado pelas conclusões das alegações –, que têm que ver com alegados erros de julgamento relacionados com o preenchimento dos critérios de concessão das providências cautelares constantes do artigo 120.º do CPTA.

2.2. No que respeita ao requisito do fumus boni juris, sustenta a ora recorrente que não é provável que a pretensão formulada pela requerente cautelar venha a proceder em virtude, fundamentalmente, de:

i) estar previsto o pagamento de uma contribuição que deve acontecer até ao momento da apresentação candidatura, sendo que um dos documentos que a deve acompanhar é, justamente, o comprovativo de pagamento da comparticipação para o procedimento;

ii) a cominação da falta de pagamento integral e atempado da comparticipação encontrava-se previsto no Aviso de Abertura, mais concretamente na alínea b) do ponto 6., nos termos do qual é motivo de exclusão da candidatura a invalidade dos documentos previstos no ponto 5.1. do Aviso de Abertura;

iii) apenas a falta de documentação, e não também o pagamento da comparticipação em falta, pode ser suprido em sede de audiência prévia da lista provisória de acordo com o artigo 31.º, n.º 3, da Portaria n.º 79/2018, de 16.03 (Regulamento do Internato Médico - RIM).

Vejamos se lhe assiste razão.

A 1.ª instância, ao tratar desta questão, começou por enquadrá-la no plano constitucional por entender que estava em causa um condicionamento ou restrição à liberdade de escolha de profissão (art. 47.º da CRP), motivo pelo qual se deveria ter em consideração, não apenas o artigo 47.º, mas, de igual forma, o artigo 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. b), da CRP. Particular atenção lhe mereceu o princípio da proporcionalidade (“Com efeito, até ao termo do prazo de audiência prévia o procedimento não pode prosseguir e a administração terá que analisar os documentos entretanto entregues pelos candidatos, nos termos do artigo 31.º, n.º 3, do RegIM. Tal significa que permitir que o candidato efetue e comprove o pagamento da comparticipação até ao termo do prazo de audiência prévia não derrota o objetivo que preside à exigência de pagamento da comparticipação para admissão à realização da PNA nem coloca em causa o andamento célere e eficaz do procedimento”; “Ao invés, desconsiderar o pagamento da comparticipação feito até ao termo do prazo da audiência prévia sacrifica de forma desnecessária e desrazoável os interesses de quem pretende iniciar a formação que permitirá o exercício da medicina numa dada área de especialização médica”). Feito esse enquadramento, passou a analisar a questão do ponto de vista das normas legais aplicáveis ao caso concreto, concluindo, a partir, sobretudo, da ideia de que não há norma que expressamente imponha a exclusão de uma candidatura ao ingresso no internato médico por falta de pagamento atempado da comparticipação para o procedimento, que a pretensão da requerente cautelar, com a probabilidade exigida pelo artigo 120.º do CPTA, iria proceder. Remata a sua apreciação com novas considerações sobre a desproporcionalidade da solução aplicada pela ora recorrente: “Por outro lado, a interpretação da entidade demandada também não é a mais consentânea com as disposições da CRP em matéria de restrições à liberdade de exercício de uma profissão, especificamente com o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 47.º, n.º 1, da CRP”. E, entre outras coisas, conclui: “Do exposto é possível concluir que: - as regras de acesso ao procedimento concursal do internato médico, designadamente, os requisitos de acesso, contendem com a liberdade de escolha da profissão, prevista no artigo 47.º, da CRP, pelo que estão sujeitas a reserva de lei (artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP) e ao princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP); (…)”.

Desta sentença recorreu a entidade demandada para o TCAS, optando por cingir-se ao plano da estrita legalidade. Já a ora recorrida sustenta, nas suas contra-alegações, e entre outros argumentos, que “8. Em face do exposto, são vários os argumentos em militam em prol da recorrida. De facto, a sentença proferida em primeira instância concretiza o mais elevado sentido de justiça e proporcionalidade”.

O acórdão recorrido adere ao decidido na sentença e correspondente fundamentação, designadamente quanto à verificação do requisito do fumus boni juris, começando por transcrever um excerto da mesma, o qual já reproduzimos supra, nessa medida nos dispensando de novamente o fazer. Além desta transcrição, o acórdão recorrido aborda a questão do fumus boni juris no plano legal, concluindo, igualmente, que não há norma que expressamente preveja a exclusão da candidatura para casos como o dos autos e, ainda, sustentando que, sendo a comparticipação devida para a prova nacional de acesso a realizar no âmbito da formação especializada, não será a mesma exigida no momento da candidatura.

Na sequência da notificação do acórdão do TCAS, a ora recorrente interpõe a presente revista, apresentando argumentos relacionados apenas com o plano da legalidade, optando por não apreender a questão também no plano da constitucionalidade, tal como o fez a 1.ª instância de forma expressa e, depois, o acórdão recorrido ao aderir sem reservas à sentença da 1.ª instância.

Quid juris?

Não existe norma que, de forma específica e expressa, regule o não pagamento atempado da comparticipação para o procedimento.

O prazo para apresentação da candidatura respeita à apresentação do requerimento de admissão e à entrega de fotocópias simples dos documentos que o deverão acompanhar – prazo cujo termo era, in casu, o dia 20.09.2019 (cfr. ponto 4.1. do Aviso n.º 13438-A/2019, de 26.08, relativo ao Procedimento concursal de ingresso no Internato Médico 2020).

O ponto 4.4. deste Aviso determina que “Em anexo ao requerimento de admissão devem constar fotocópias simples dos documentos elencados no ponto 5. do presente Aviso”. A al. k) do ponto 5. (Documentos que devem acompanhar o requerimento de admissão) menciona de forma expressa o documento comprovativo da entrega da comparticipação para o procedimento concursal. Esta exigência de acompanhamento do requerimento de admissão pelos documentos necessários decorre do artigo 30.º, n.º 3, do RIM.

Do ponto 9. do Despacho n.º 4412/2018, de 04.05 (“A prova referida no n.º 6 deve ser entregue até ao fim do prazo fixado para a apresentação da candidatura ao respetivo procedimento concursal”) também corrobora esta ideia da necessária entrega do comprovativo de pagamento da comparticipação no prazo de entrega da candidatura.

Pela candidatura ao procedimento concursal que visa o ingresso ou mudança de área de especialização/local de formação, os candidatos devem proceder, obrigatoriamente e no momento da candidatura ao pagamento integral da quantia de (euro) 90 (noventa) euros a título de comparticipação para o procedimento”. E, “A entidade responsável pelo procedimento concursal deve proceder à emissão do respetivo recibo”. E ainda, “A prova referida no n.º 6 deve ser entregue até ao fim do prazo fixado para a apresentação da candidatura ao respetivo procedimento concursal” (cfr. n.os 4, 6 e 9 do Despacho n.º 4412/2018, de 04.05).

A falta da documentação prevista no n.º 3 do número anterior deve ser suprida, em sede de audiência prévia da lista referida no n.º 2, determinando, a não apresentação dos documentos, a não admissão ao procedimento concursal” – cfr. artigo 31.º, n.º 3, do RIM).

No caso da requerente cautelar, não se tratou apenas da não apresentação atempada de documentos em falta, uma vez que a apresentação tardia do comprovativo da comparticipação para o procedimento teve que ver com a circunstância de que ela procedeu a esse pagamento 2 dias após o termo do prazo previsto para a apresentação das candidaturas.

Isto faz com que a sua situação preencha, não a al. b), como equivocadamente sustenta a ora recorrente, mas a al. a) do ponto 6 (Motivos de Exclusão) do Aviso supra mencionado. Ou seja, a causa de exclusão será “O não cumprimento do prazo previsto em 4.1.” (o prazo para apresentação da candidatura, ou seja, requerimento de admissão e documentos exigidos), e não, como pretende o ora recorrente, “A invalidade dos documentos referidos em 5.1.”.

Há que articular com o artigo 31.º, n.º 3, do RIM, o qual estabelece a possibilidade de suprir, em sede de audiência prévia, a falta da documentação prevista no n.º 3 do artigo 30.º, sob pena de não admissão da candidatura. Como se disse já, no caso da requerente cautelar, não se trata apenas da falta de apresentação da documentação exigida, mas de não pagamento atempado (até ao termo do prazo para entrega da candidatura) da comparticipação para o procedimento, o que, numa primeira leitura, levaria à exclusão da sua candidatura nos termos aludidos. Mas, tal como intuiu, bem, a 1.ª instância (a cuja sentença aderiu o acórdão recorrido), a solução aplicada pela ora recorrente não pode ser apreciada apenas num plano de estrita legalidade, pelo que cumpre averiguar/confirmar se ela, de facto, não será excessiva ou, por outras palavras, se não será desconforme com o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão da necessidade ou exigibilidade.

Antes de avançar, é oportuno corrigir mais dois equívocos cometidos pelo ora recorrente. Em primeiro lugar, o pagamento da comparticipação para o procedimento não configura um requisito de admissão (os quais constam do ponto 3 do Aviso n.º 13438-A/2019), e até, de acordo com o n.º 2 do artigo 35.º do DL n.º 13/18, 26.02 (Regime do Internato Médico) é uma mera possibilidade: “O despacho referido no número anterior pode prever a fixação de uma comparticipação a suportar pelos candidatos à formação especializada, (…)” [negrito nosso]. Em segundo lugar, não está aqui em causa o pagamento de uma tal contribuição em sede de audiência prévia, mas da entrega de documento comprovativo do seu pagamento após o termo do prazo de entrega da candidatura, mas ainda antes da elaboração da lista provisória.

Feito este esclarecimento, o que importa perguntar é se não será desproporcionado excluir a candidatura de alguém que reúne todos os requisitos de admissão ao ingresso no internato médico, mas que procedeu ao pagamento da comparticipação para o procedimento dois dias após o termo do prazo de entrega da candidatura, sendo certo, ainda, que os candidatos podem suprir, em sede de audiência prévia, a falta da entrega de documentos como, entre outros, os relacionados com a sua identidade pessoal, com o seu currículo académico e com o seu registo criminal (posta a questão de um outro modo, pode perguntar-se se tem sentido tratar o pagamento da comparticipação para o procedimento no mesmo patamar, por exemplo, que as exigências relacionadas com a aptidão para o prosseguimento da formação médica, ou se o mesmo merecia um tratamento autónomo, designadamente quanto ao problema do seu não cumprimento atempado). E a resposta não poderá deixar de ser positiva. Por essa razão, e sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, subprincípio concretizador do princípio do Estado de Direito (cfr. arts. 2.º e 266.º da CRP), deve ser encontrada uma solução casuística para o caso concreto dos autos, a qual deverá passar pela não aplicação da al. a) do ponto 6 (Motivos de Exclusão) do Aviso e pelo recurso “aos princípios hermenêuticos de integração-interpretação de normas jurídicas” (cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra, 2010, p. 520). Por assim dever ser, considera-se que se encontra verificado o requisito do fumus boni juris, na medida em que, nos termos aqui assinalados, pode ser feito um juízo positivo sobre a probabilidade da procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal.

2.3. No que concerne ao requisito do periculum in mora, sustenta o recorrente que não foi tido em consideração pelo acórdão recorrido o facto de “estar em causa uma prova de realização anual”. A ora recorrida não apresentou contra-alegações na presente revista, mas, na sua p.i., mencionava, em especial, o atraso na sua carreira médica (pois já tinha 35 anos) e questões de natureza económica.

Quanto a este específico requisito, o acórdão recorrido acompanha a decisão da 1.ª instância que cita e da qual extrai alguns excertos que, também agora, reproduzimos:

O Tribunal a quo também considerou verificado o requisito do periculum in mora, por considerar a denegação da providência terá um impacto direto e relevante no desenvolvimento profissional da Recorrida.

(…)

Resulta da sentença recorrida, a este propósito, o seguinte: «Com efeito, a não concessão da providência retardará o início do processo de formação da requerente numa dada área de especialidade médica, logo retardará a aquisição de experiência nessa área.

Assim, a denegação da providência terá um impacto direto e relevante no desenvolvimento profissional da requerente.

As regras da experiência dizem-nos que a experiência profissional é um fator relevante no mercado do trabalho. Ora, na hipótese de a ação principal ser julgada procedente só com muita dificuldade será possível reconstituir a situação profissional da requerente, isto é, será muito difícil colocar a requerente na posição em que estaria não fora a atuação da entidade requerida»”.

Deste modo, está verificado o periculum in mora».

Ora, não se vislumbra que assim não seja, porquanto, caso não fosse corrigida esta situação e a Requerente/recorrida não fosse reintegrada provisoriamente no concurso procedimental de acesso ao internato médico para o ano de 2020, não poderia fazer a Prova Nacional de Acesso no dia 18 de novembro de 2019 e ficaria precludida do acesso à área de especialização médica no ano de 2020, causando uma lesão irreparável no seu direito de livre acesso à profissão, nos termos do art. 47º da Constituição da República Portuguesa e perder um ano é perder um ano que não poderia ser recuperado, caso a ação principal venha a ter procedência.

Pelo que, também se verifica o requisito do periculum in mora”.

No que respeita ao preenchimento deste requisito do periculum in mora, e considerando a situação concreta que existia à data dos factos, temos que, embora não acompanhemos a tese de que há uma restrição à liberdade de escolha de profissão por este exacto motivo, sempre entendemos que os danos para a formação profissional da requerente cautelar, danos que acarretava o seu não ingresso no Internato Médico 2020, dificilmente serão integralmente reparados caso venha a ser reconhecida na acção principal a ilegalidade do acto impugnado, nessa medida podendo considerar-se existir, no limite, um prejuízo de difícil reparação. Desta forma, há que considerar igualmente preenchido o requisito do periculum in mora.

2.4. No que respeita ao requisito da ponderação de interesses, o acórdão recorrido começa por reproduzir o segmento da sentença da 1.ª instância em que se apreciou e julgou o preenchimento, ou não, do requisito legal em apreço. Destacaríamos a parte em que na sentença se afirma o carácter meramente hipotético dos danos invocados pelo recorrente.

Precisamente, no que toca aos danos invocados, o acórdão identifica-os deste modo: “A este propósito, considera a Recorrente que é notório que o prejuízo para o interesse público com a adoção da presente providência cautelar é enorme e superior aos interesses da Recorrida, pois está a protelar-se uma situação contra a lei, em manifesta violação da igualdade entre os outros candidatos, o que poderá criar sentimentos de injustiça entre a classe médica”. Quanto aos danos invocados pela requerente cautelar, são os que foram identificados na sentença da 1.ª instância, que são o desrespeito da liberdade de escolha da profissão, na medida em que se põe em causa o prosseguimento da formação médica especializada da requerente cautelar. Prossegue-se afirmando que, “A concessão de uma providência cautelar depende ainda dum juízo de ponderação dos interesses em jogo na situação concreta, de forma que a providência deve ser recusada se os danos que se pretendem evitar com a mesma se mostrarem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, isto é, quando o prejuízo resultante para o requerido se mostre superior ao prejuízo que se quer afastar com a providência”. Concretizando este raciocínio e apoiando-se na doutrina de Vieira de Andrade, esclarece que “não está em causa, quando analisamos os interesses em jogo, a ponderação ou não do interesse público com o interesse privado, mas sim a ponderação dos danos que possam resultar para qualquer das partes. Se os danos ou prejuízos forem de valor significativo para alguma dos lados, então tem de se avaliar se deve ou não deferir a providência”. Para concluir que está verificado o requisito relativo à ponderação de interesses, pois que “Assim, ponderados os interesses públicos e privados da requerente, que se deixaram plasmados supra, resulta que os danos que resultariam da não concessão da presente providência seriam superiores àqueles que poderiam resultar da sua recusa”.

Cremos que esta conclusão não merece censura, e isto porque entendemos que a solução encontrada não é ilegal, numa perspectiva de igualdade material não trata de forma desigual os candidatos, e, ainda, a criação de supostos sentimentos de injustiça é algo de hipotético e subjectivo. Já quanto à ideia de a solução encontrada que pode induzir os candidatos a não cumprir os prazos procedimentais, sendo ela bastante meritória, a verdade é que, por um lado, o legislador moderou a exigência da entrega atempada dos documentos exigidos ao prever a possibilidade do seu suprimento em sede de audiência prévia relativa à publicação da lista provisória. Por outro lado, e como já se salientou, o que está em causa nos presentes autos não é admitir o pagamento da comparticipação em sede de audiência prévia, mas de comprovar o pagamento – que, não sendo tempestivo, foi anterior à elaboração da lista provisória dos candidatos – em sede de audiência prévia.

Do lado da requerente cautelar, o atraso na sua formação médica é um dano que, por comparação com aqueles alegados danos invocados pela ora recorrente, tal como os sopesámos, a eles se sobrepõe.

III – DECISÃO


Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento ao presente recurso, e, consequentemente, em confirmar o acórdão recorrido embora com fundamentação algo distinta.


Custas pela recorrente.

Lisboa, 19.11.2020

A presente decisão foi adoptada por maioria pelas Senhoras Conselheiras Maria Benedita Urbano (Relatora) e Cristina Gallego dos Santos, e vai assinada apenas pela Relatora, com o assentimento (voto de conformidade) da Senhora Conselheira Adjunta Cristina Gallego dos Santos, de harmonia com o disposto no artigo 15-A (Recolha de assinaturas dos juízes participantes em tribunal colectivo) do DL n.º 10-A/2020, de 13.03 – preceito introduzido pelo DL n.º 20/2020, de 01.05.

Com voto de vencido da Sr.ª Conselheira Suzana Tavares da Silva em anexo.

Declaração de voto

Vencida. Considero que no caso não se encontra preenchido o requisito do fumus boni iuris, uma vez que o teor da regra que impõe o pagamento da comparticipação para o procedimento concursal, como requisito de admissão ao mesmo, até 20 de Setembro de 2019 deflui com clareza do disposto no ponto 4.7., al. k) do ponto 5.1 e ponto 9.5 do Aviso n.º 13438-A/2019, cujo legitimidade assenta no disposto no artigo 30.º da Portaria n.º 79/2018, de 29 de Julho, emitida, por seu turno, ao abrigo do disposto no artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 13/2018, de 26 de Fevereiro. E creio também que o teor assertivo do disposto no ponto 9.5 do Aviso n.º 13438-A/2019 não permite sustentar a interpretação de que a falta de pagamento até ao dia 20 pudesse ser suprida em sede de (ou até à) audiência prévia referida no n.º 3 do artigo 31.º da Portaria n.º 79/2018.

Acresce que o fundamento alegado pela A. – insuficiência de meios económicos na data limite para a realização do pagamento – para o incumprimento do prazo teria solução expressa no ponto 7 do Despacho n.º 4412/2018, mediante a outorga/reconhecimento de isenção da obrigação de pagamento da referida comparticipação, tendo a A. o dever de apresentar o documento comprovativo dessa insuficiência de meios económicos ou do preenchimento do requisito equivalente (ter sido beneficiária de bolsa de estudo), previsto na já mencionada al. k) do ponto 5.1. do Aviso n.º 13438-A/2019 até ao dia 20 de Setembro de 2019. Falece, por isso, na análise perfunctória que se pode e deve formular nesta espécie processual, a possibilidade de sucesso de um juízo assente em erro desculpável da concorrente ou caso força maior.

No mais, não acompanho a fundamentação que fez vencimento quanto à possibilidade de poder ser aplicado neste caso um juízo de proporcionalidade para afastar as normas que cominam com a não admissão ao concurso os candidatos que não preencham atempadamente os requisitos de admissão ao concurso.

Lisboa, 19 de Novembro de 2020.

Suzana Tavares da Silva