Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0151/03
Data do Acordão:10/29/2003
Tribunal:3 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:JORGE DE SOUSA
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
RAZÕES HUMANITÁRIAS.
GRAVE INSEGURANÇA.
ÓNUS DE PROVA.
SISTEMÁTICA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS.
Sumário:I - A concessão de autorização de residência por razões humanitárias, prevista no n.º 1 do art. 8.º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março, depende da existência no país da nacionalidade do interessado de uma situação de «grave insegurança devida a conflitos armados», não podendo como tal considerar-se uma situação de paz, mesmo que precária ou com existência de um clima de tensão.
II - Por outro lado, só se estará perante uma «sistemática violação dos «direitos humanos», para aquele efeito, quando esteja em causa a violação de direitos humanos relacionados com a segurança dos cidadãos e que as violações ocorram frequentemente de forma que gerem na generalidade dos residentes nesse país um sentimento de grave insegurança.
III - Recai sobre o requerente de autorização de residência o ónus da prova dos factos em que baseia a sua pretensão.
Nº Convencional:JSTA00060029
Nº do Documento:SA1200310290151
Data de Entrada:01/21/2003
Recorrente:A...
Recorrido 1:MINAI
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DESP MINAI DE 2002/05/31.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
Legislação Nacional:L 15/98 DE 1998/03/26 ART8 ART13.
CCIV66 ART10 N3.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A... interpôs recurso contencioso do despacho do Senhor Ministro da Administração Interna de 31-5-2002, que lhe recusou renovação da autorização de residência que lhe havia sido concedida por razões humanitárias, ao abrigo do art. 8.º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março.
O Recorrente apresentou alegações com as seguintes conclusões:
a) – A realidade Serraleonesa continua a ser a de um país que dá agora os primeiros passos na sua caminhada para uma paz e segurança consolidadas.
b) – Os ataques à população civil continuam a verificar-se, as violações dos direitos humanos permanecem, a paz está longe de ser um dado adquirido.
c) – O fim da guerra referido pela Autoridade Recorrida, nem sempre significa o fim dos atropelos sistemáticos aos direitos humanos e a grave insegurança que geralmente os acompanha.
6) – Mantêm-se assim, os pressupostos que determinaram a concessão ao ora recorrente de protecção humanitária ao abrigo do art. 8º da Lei 75/98 de 26 de Março.
e) – Está assim a decisão recorrida inquinada do vício violação de Lei.
f) – Não foi observado o princípio do benefício da dúvida.
A Autoridade Recorrida contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
A) Nos presentes autos, apenas está em causa a renovação da autorização de residência, requerida nos termos do artigo 8- da Lei n. – 15/98, não podendo, por isso, ser atacado o acto com referência ao artigo 1º, da mesma Lei;
B) A situação político-social na Serra Leoa evoluiu, de forma muito positiva, desde a data em que foi concedida, inicialmente, a autorização de residência ao ora recorrente;
C) Esta evolução é atestada pela Comunidade Internacional, através dos seus representantes;
D) Face aos elementos constantes do processo administrativo – que contrariam, por completo, através de factos concretos, as teses do recorrente – a situação político-militar na Serra Leoa é, hoje, totalmente diferente daquela que se verificava à data em que foi concedida, ao ora recorrente, autorização de residência por razões humanitárias;
E) Não se verificam, pois, as condições necessárias para que fosse concedida a pretendida renovação da autorização de residência;
F) O acto recorrido respeitou integralmente o disposto nos artigos 8.º e 73.º, da Lei n.º 15/98, de 26 de Março;
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer nos seguintes termos:
Nas conclusões das suas alegações de recurso, o recorrente imputa ao acto contenciosamente impugnado da autoridade recorrida Ministro da Administração Interna, de 31/5/02, que lhe indeferiu a concessão de renovação de autorização de residência por razões humanitárias, o vício de violação do Art. 8º da Lei 15/98, de 26 de Março, por erro nos pressupostos de facto subjacente à avaliação da situação político-militar na Serra Leoa, onde, alegadamente, continuam a verificar-se os ataques à população civil, as violações aos direitos humanos permanecem e a paz está longe de ser um dado adquirido – cfr. fls. 88, al. c).
O acto contenciosamente impugnado fundamentou-se expressamente na proposta formulada pelo Comissário Nacional para os Refugiados, considerando inverificados os requisitos previstos no Art. 8º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março – cfr. fls. 155, 125 e segs e 148 e segs do processo instrutor.
Concluiu-se nesta proposta, com base na Informação nº 119/GAR/01 do SEF, ter-se verificado, na Serra Leoa, país da nacionalidade do recorrente, o termo da situação de insegurança decorrente de situação de conflito armado generalizado no território, associado a graves violações dos direitos humanos, existente no momento em que lhe foi concedida autorização de residência por razões humanitárias, e pela existência actual de uma situação sócio-político-militar estável – cfr fls. 127 e 160 do processo instrutor, designadamente.
Destaca-se, a propósito, na mesma proposta, com suporte expresso na referida Informação, a efectivação do processo de desarmamento traduzido na entrega das armas por parte dos rebeldes e o retorno de milhares de deslocados de guerra que se encontravam nos países vizinhos, conforme é reconhecido pela própria Organização das Nações Unidas.
Esta factualidade encontra-se clara, objectiva e circunstanciadamente descrita na mesma Informação sobre a situação daquele país – cfr. fls. 120/123 do processo instrutor – sendo que o recorrente não alega factos concretos susceptíveis de a pôr em causa e só abstractamente questiona a natureza duradoura da actual situação de paz no país.
Porém, a análise da evolução da situação no país da nacionalidade do recorrente aponta segura e claramente no sentido da cessação da situação de grave insegurança que impedia ou impossibilitava o recorrente de aí regressar, devido à situação cfr guerra civil, que fundamentou a concessão de autorização de residência por razões humanitárias (cfr. fls. 61/62 e 70 do processo instrutor) e, portanto, no sentido da inverificação dos requisitos de renovação de autorização de residência por razões humanitárias previstos no Art. 8- da Lei n. º 15/98, de 26 de Março.
Improcederá, assim, o alegado vício de violação de lei, por ofensa deste dispositivo legal.
Deverá, pelo exposto, em nosso parecer, ser negado provimento ao recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Com base nos elementos que constam do processo e do processo instrutor apenso, consideram-se provados os seguintes factos:
a) O Recorrente é um cidadão da Serra Leoa que veio residir para Portugal, onde requereu a concessão de asilo.
b) Por despacho de 23/2/99, proferido pelo Senhor Director dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, foi recusada a concessão de asilo ao Recorrente, mas foi-lhe concedida autorização de residência provisória;
c) Em 26-2-99, foi emitida ao ora Recorrente uma autorização de residência provisória, válida até 29-4-99 (fls. 39 do processo instrutor);
d) Por despacho de 27-4-99, do Senhor Secretário de Estado da Adjunto do Ministro da Administração interna, foi concedida ao ora Recorrente uma autorização de residência por razões humanitárias, ao abrigo dos arts. 8.º, n.º 3, e 23.º, n.º 5, da Lei n.º 15/98 (fls. 70 do processo instrutor);
e) Em 19-5-2000, foi emitida em nome do Recorrente a autorização de residência n.º 273944, válida até 27-4-2000;
f) Em 12-10-2000, o ora Recorrente requereu a renovação da autorização de residência (fls. 82 do processo instrutor);
g) Em 18-10-2000, o Senhor Comissário Nacional para os Refugiados propôs a renovação da autorização de residência (fls. 96-99 do processo instrutor);
h) Por despacho de 13-11-2000, do Senhor Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, foi concedida ao ora Recorrente uma autorização de residência por razões humanitárias, ao abrigo dos arts. 8.º, n.º 3, e 23.º, n.º 5, da Lei n.º 15/98 (fls. 104 do processo instrutor);
i) Em 11-4-2001, foi emitida em nome do Recorrente a autorização de residência n.º 284053, válida até 27-4-2002 (fls. 111 do processo instrutor):
j) Em 11 de Fevereiro de 2002, o Recorrente requereu a renovação da autorização de residência (fls. 112);
k) Em 1-4-2002, o Senhor Comissário Nacional Adjunto para os Refugiados elaborou o projecto de proposta de indeferimento do pedido de renovação que consta de fls. 125 a 129 do processo instrutor, cujo teor se dá como reproduzido, de que consta o seguinte:
RENOVAÇÃO DO DIREITO E AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA POR
RAZÕES HUMANITÁRIAS
I – RELATÓRIO
Por douto despacho prolatado em 13 de Novembro de 2000, foi renovada a autorização de residência por razões humanitárias ao cidadão de nacionalidade serraleonesa de nome A....
Em 11 de Abril de 2001, o cidadão – demandante veio solicitar a renovação de autorização concedida, nos termos do nº. 2 da Lei n.º 15/98, de 26 de Março.
Tomadas declarações ao peticionante refere que pediu a renovação da autorização porque neste momento a situação ainda não está estável na Serra Leoa.
Trabalha como servente para um sub-empreiteiro chamado ..., cuja empresa se chama “..." e habita na Travessa do ..., n. º ... – ...- em Lisboa.
Foi junto relatório cronológico – evolutivo da situação político-militar na Serra Leoa – cfr. fls. 120 a 123.
II – FUNDAMENTOS
Estipula o n.º 2 do Art. 8º da Lei n-. 15/98, de 26 de Março que "a autorização de residência referida no nº. anterior é válida pelo período máximo cfr cinco anos e renovável após análise da evolução da situação no país de origem ”.
São pressupostos da concessão de autorização de residência por razões humanitárias serem os requerentes:
a) estrangeiros ou apátridas;
b) que não estejam em condições de adquirir o estatuto de refugiado, com base nos fundamentos contidos no art. 1º;
c) e que:
1) por motivo de grave insegurança devida a conflitos armados ou sistemática violação dos direitos humanos, que se verifique no país da sua nacionalidade ou residência sejam impedidos de regressar a esse país; ou,
2) ou por esses motivos se sintam impossibilitados de regressar ao
seu país de nacionalidade ou residência.
Para que a renovação seja deferida com base na protecção humanitária – de cariz subsidiário ao direito de asilo – referida na legislação especial do direito de asilo torna-se necessário, do nosso ponto de vista, que "a contrario sensu”, a situação do país de origem se mantenha inalterada relativamente ao momento em que o direito de autorização foi concedido.
Vale por dizer que para que a renovação de autorização – frisa-se ao abrigo deste regime especial de protecção humanitária – possa ser concedida tem que a situação do pais de origem manter o mesmo grau de insegurança devido a conflitos armados ou existir uma sistemática violação dos direitos humanos – cfr. parte final nº. 1 do art. 8 da Lei nº. 15/98, de 26 de Março.
Da análise a fazer para a renovação da autorização de residência há-de ter-se em consideração a evolução concreta do país de origem em qualquer das vertentes fáctico-conceptuais contidas no segmento de norma indicado.
No caso concreto dos cidadãos provindos da Serra Leoa o motivo que ocorreu para a concessão do direito de autorização de residência por razões humanitárias foi a insegurança decorrente do conflito armado que grassava no território e, como em situações similares acontece e /he anda associada, das graves violações dos direitos humanos.
A análise necessária para proceder à proposta de renovação terá, assim, que ter em conta a actual situação político-militar do país de origem do recorrente.
O relatório cronológico – evolutivo elaborado pela Divisão de Refugiados permite ressumar pontos de avaliação que terão que ser tomados em consideração em qualquer tipo de análise jurídico-político. Assim, e referindo os últimos acontecimentos podemos, extrapolar as seguintes referências:
– A situação político-militar que se vive na Serra Leoa tem melhorado consideravelmente, traduzindo-se na entrega das armas por parte dos rebeldes;
Os refugiados que se encontravam alojados em campos, na Guiné-Conacri, têm vindo a ser encorajados a regressar;
As melhorias assinaladas são prenunciadoras de um nível de estabilidade razoável, o que permite prever que a vida das pessoas poderá ser retomada com normalidade razoável.
Deixou de se verificar uma situação de conflito generalizado e de violação dos direitos das pessoas.
Em vista deste quadro, somos de entender que o quadro normativo que justificou o direito concedido inicialmente ao peticionante deixou de se verificar pelo que não deverá ser concedido o pedido de renovação de autorização de residência.
Assim propõe-se que seja indeferido o pedido de renovação de autorização de residência por razões humanitárias.
I) O Recorrente foi notificado para se pronunciar sobre esta proposta, no prazo de 10 dias (fls. 133 do processo instrutor);
m) O Recorrente pronunciou-se sobre aquela proposta como consta de fls. 135-140 do processo instrutor, cujo teor se dá como reproduzido;
n) Em 24-4-2002, o Senhor Comissário Nacional Adjunto para os Refugiados elaborou a proposta de indeferimento do pedido de renovação que consta de fls. 148 a 151 do processo instrutor, cujo teor se dá como reproduzido, de que consta o seguinte:
RENOVAÇÃO DO DIREITO E AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA POR RAZÕES HUMANITÁRIAS
O requerente de renovação de autorização de residência por razões humanitárias, cidadão, de nacionalidade serraleonesa, A..., pede que seja alterada a proposta por nós projectada, de modo a que, em reformulação desse projecto de proposta, se proponha a renovação de autorização de residência por razões humanitárias.
Considera, com interesse para a proposta que exora, que a situação na Serra Leoa, no piano político, social e militar ainda não está totalmente pacificada, para o que alinha diversas opiniões de organizações e órgãos de comunicação social, ao que sempre acrescerá o facto de se encontrar a trabalhar, de forma estável e duradoura, sendo contribuinte da segurança social e contribuinte fiscal.
O novo quadro sócio-político-militar da República da Serra Leoa tem vindo a ser espelhado pelas notícias que têm vindo a público, e que dão conta de que esse país tem vindo a consolidar as esperanças de paz e de retorno à estabilidade governativa que é presságio de uma estabilização do vivenciar colectivo.
Aceita-se que o demandante possua uma situação estável em Portugal e que deseje mantê-la só que não nos parece que quem beneficiou de um estatuto humanitário o pretenda abastardar ou alvitar para satisfazer necessidades económicas. Não se desconhece que irrompem em países como a Nova Zelândia, Austrália e, mesmo, nos Estados Unidos, correntes doutrinais que advogam que o estatuto de refugiado pode ser reclamado por pessoas que possuem um viver económico qualificado como estando abaixo do limiar daquele que é considerado pelas organizações internacionais como o nível mínimo de sobrevivência humana aceitável. A nível doutrinal não descartamos a hipótese de se poder avançar para um estádio desses a nível mundial, mas no plano jurídico-legal, parece-nos, francamente, que seria o estraçalhar da letra da lei nacional e das convenções internacionais que nos regem nesta matéria.
Neste momento a situação sócio-político-militar na República da Serra Leoa é estável e permite, como a própria Organização das Nações Unidas, reconhece, o retorno de deslocados de guerra que se encontravam nos países vizinhos.
A ser assim, como entendemos ser, afigura-se-nos, que o demandante deverá lançar meio dos mecanismos legais que possibilitam a legalização de estrangeiros em Portugal. Até porque nos parece, que sendo um caso excepcional, dado o específico estatuto com que se encontrava no país, deverá ser tratado excepcionalmente. Vale por dizer que nos parece que tendo o demandante beneficiado de um estatuto excepcional lhe deverá ser proporcionada a possibilidade de um regime de regularização extraordinário, para que possa permanecer em Portugal, se estiver em condições laborais, fiscais e de segurança social que lhe permitam esse estatuto ou explicitando melhor a ideia, o demandante que até este momento esteve com estatuto especial não pode ser prejudicado relativamente a um período de legalização que decorreu e para qual não poderia ter concorrido, pelo seu especial estatuto, mas que terminado este lhe deveria ser facultada a possibilidade de proceder à sua legalização, se reunir os requisitos necessários.
Por aquilo que deixamos expresso extrai-se, com meridiano clareza, que continuamos a pensar que o demandante deve deixar, à luz dos princípios reguladores do direito humanitário estatuído na Lei n.º 15/98, de 26 de Março, maxime o seu art. 8º, e ainda da Convenção de Genebra, de beneficiar do estatuto de que vinha beneficiando, podendo, no entanto, poder vir a beneficiar, como qualquer outro trabalhador estrangeiro, do regime correspondente.
Em face do que fica dito, entendemos ser de manter o projecto de proposta que formulamos e que, por economia de termos, nos abstemos de iterar.
PROPOSTA :
Em consonância do que ficou dito no projecto de proposta de fls. 125 a 129, e que por economia de meios aqui se deixa reproduzida, repristina-se o dispositivo do mencionado projecto proposta – cfr. fls. 129.
o) Em 31-5-2002, o Senhor Ministro da Administração Interna proferiu o despacho que consta de fls. 155 do processo instrutor, que tem o seguinte teor:
Ao abrigo do art. 33º da Lei n.º 15/98 de 26 de Março, e nos termos do art. 23º, nº 5, conjugado com o art. 26º, da mesma Lei, com base na Proposta do Comissariado Nacional para os Refugiados, não é concedida renovação da autorização de residência por razões humanitárias ao cidadão de nacionalidade serraleonesa A..., por já não se verificar o quadro normativo que justificou o direito concedido inicialmente ao abrigo do art. 8º da supra mencionada lei.
Nos termos do artigo 25- do mesmo diploma legal, o cidadão pode permanecer em território nacional durante um período de 30 dias, findo o qual fica sujeito à legislação sobre estrangeiros.
Lisboa, 31 de Maio de 2002
O MINISTRO DA ADMINISTRAÇAO INTERNA
(...)
p) O ora Recorrente foi notificado deste despacho em 9-7-2002 (fls. 166 do processo instrutor);
q) o ora Recorrente requereu a concessão de apoio judiciário, com dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento de honorários do patrono por si escolhido, o que lhe foi concedido (fls. 49 a 55), sendo feita a nomeação de patrono em 17-12-2002 e sendo notificada através de carta expedida em 20-12-2002, a Senhora Advogada nomeada (fls. 55-56);
r) Em 21-1-2003, o ora Recorrente interpôs o presente recurso contencioso daquele despacho do Senhor Ministro da Administração Interna.
3 – O Recorrente imputa ao acto recorrido violação do «Princípio do Benefício da Dúvida», quanto às declarações que prestou relativamente aos factos que constituíram o móbil da sua fuga, com base na situação de insegurança reinante na Serra Leoa.
O Recorrente não concretiza nas alegações qual é o suporte jurídico de tal princípio, nem em que é que ele se consubstancia.
No entanto, infere-se que defende que, perante uma situação de dúvida sobre a existência de uma situação de insegurança na Serra Leoa, a Autoridade Recorrida deveria ter decidido favoravelmente a sua pretensão.
Porém, no acto recorrido não se entendeu existirem dúvidas sobre a situação de insegurança que se vive na Serra Leoa, antes se entendeu que tal situação, presentemente, não existe.
Por isso, não se está sequer perante uma situação em que fosse de equacionar pela Autoridade Recorrida, a valoração de dúvidas em sentido favorável ao Recorrente.
4 – O Recorrente imputa ao acto recorrido vício de violação dos arts. 8.– e 13.º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março, afirmando que estão reunidos os requisitos para a concessão da renovação de autorização de residência por razões humanitárias.
Nas alegações, a argumentação que o Recorrente desenvolve sobre tal matéria, reporta-se apenas à situação existente na Serra Leoa, que o Recorrente entende não ser aquela que no acto recorrido se considerou ser a existente.
Sobre esta matéria, diz o Recorrente nas alegações:
Actualmente, a Serra Leoa vive uma situação de paz verdadeiramente precária, e, de acordo com um relatório recentemente enviado ao Conselho de Segurança, pelo Secretário Geral das Nações Unidas onde afirma que:
A situação actual exige uma observação continuada, assim como a concertação dos esforços de todas as partes envolvidas, para garantir que as eleições sejam um sucesso.
Refere ainda o Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde se refere no seu relatório datado de 19 de Junho de 2002, que certos partidos políticos foram alvo de perseguições por apoiantes do partido no poder, não tendo as eleições sido pacíficas.
Estas provas objectivas acerca da realidade político – militar da Serra Leoa, conjugadas com a situação concreta do ora recorrente, são de molde a aceitarmos a inclusão do caso "sub judice "no preceituado no art. 8º da Lei 15/98 de 26 de Março, ou seja, de aceitarmos por correcto que o clima de tensão na Serra Leoa ainda existe.
É facto assente que as eleições realizadas no corrente ano, na Serra Leoa, decorreram de forma pacífica, o que não quer dizer, que hoje se vive, na Serra Leoa, uma clima de estabilidade, paz e o respeito pelos direitos do homem seja uma constante.
Assim, é de concluir que o Recorrente, embora não use a terminologia mais adequada, imputa ao acto recorrido vício de erro sobre os pressupostos de facto, pois foi a conclusão de que «a situação sócio-político-militar na Serra Leoa, é estável, e, permite, como a própria Organização das Nações Unidas reconhece, o retorno de deslocados de guerra que se encontravam nos países vizinhos» que levou a Autoridade Recorrida a concluir pela não verificação dos requisitos exigidos pelo art. 8.º da Lei n.º 15/98.
Este art. 8.º estabelece o seguinte:
Artigo 8.º
Autorização de residência por razões humanitárias
1 – É concedida autorização de residência por razões humanitárias aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 1. – e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, por motivos de grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifiquem.
2 – A autorização de residência referida no número anterior é válida pelo período máximo de cinco anos e renovável após análise da evolução da situação no país de origem.
3 – Compete ao Ministro da Administração Interna, sob proposta do Comissariado Nacional para os Refugiados, conceder, com dispensa de qualquer taxa, a autorização de residência prevista no presente artigo, segundo modelo estabelecido por portaria.
4 – Compete ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras emitir o documento comprovativo de residência, a atribuir nos termos dos nºs 2 e 3 do presente artigo.
Como se vê pelo n.º 1 deste artigo, a concessão da autorização de residência só pode ocorrer se no país da nacionalidade do interessado existir «grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos».
No caso em apreço, o Recorrente nem sequer refere explicitamente que existam conflitos armados, nem diz entre quem, nem onde estão localizados os «focos de insegurança e violação dos direitos humanos» que refere (art. 36.º da petição de recurso), antes é ele próprio que reconhece que «actualmente, a Serra Leoa vive uma situação de paz verdadeiramente precária» (art. 31.º da petição de recurso).
Ora, uma situação de paz, mesmo que precária e com um «clima de tensão» (art. 34.º da petição de recurso) não pode ser considerada uma situação de «conflitos armados», como exige aquele n.º 1 do art. 8.º.
Por outro lado, quanto a violação dos direitos humanos, que é outra das situações referidas naquele n.º 1 do art. 8.º, não é relevante para o efeito a mera ocorrência de violações desse tipo, mas sim, apenas, as situações em que essa violação seja «sistemática», o que aponta no sentido de ser necessário que violações dos direitos humanos ocorram tão frequentemente que gerem na generalidade dos residentes nesse país um sentimento de grave insegurança. Isto é, por um lado, não basta que o respeito dos direitos humanos não seja uma constante, como o Recorrente refere no art. 35º da petição de redacção, sendo exigível, para concessão de autorização de residência, que se demonstre positivamente que essa violação é frequente ou constante; por outro lado, não é qualquer violação de direitos humanos que releva para aquele efeito, mas apenas as de direitos relacionados com a segurança dos cidadãos, que são as susceptíveis de criarem uma situação de grave insegurança (o que não sucede com todas as violações de direitos humanos como, por exemplo, ausência de liberdade de expressão ou de associação).
Ora, no caso em apreço, o Recorrente não afirma sequer que exista uma violação sistemática dos direitos humanos nem refere quais os direitos que são violados, por forma a poder concluir-se que se trata de violações potencialmente geradoras de uma situação de grave insegurança para os residentes naquele país.
Por isso, em vez de estar demonstrado que exista um conflito armado na Serra Leoa e violações sistemáticas de direitos humanos susceptíveis de gerarem grave insegurança, é de concluir, à face dos elementos existentes nos autos e da própria posição assumida pelo Recorrente, que não existe uma situação desse tipo.
5 – Por outro lado, sendo a existência de uma situação de grave insegurança um pressuposto do direito à autorização de residência que o Recorrente pretende ver reconhecido pela Administração, é sobre ele que recai o ónus da prova dos factos necessários para viabilizar a formulação de um juízo afirmativo sobre essa matéria.
Em matéria de ónus da prova em contencioso administrativo não é aplicável directamente a regra básica do ónus da prova contida no n.º 1 do art. 342.º do Código Civil, que estabelece que recai sobre quem invoca um direito o ónus da prova dos respectivos factos constitutivos, pois não existe qualquer remissão genérica ou específica nas leis processuais administrativas para o Código Civil, como legislação subsidiária. Por outro lado, não está directamente em causa nos processos de recurso contencioso o reconhecimento de direitos subjectivos, mas sim apreciação da legalidade de um acto administrativo, o que afasta a possibilidade de aplicar analogicamente aquela norma do art. 342.º do Código Civil ou qualquer das regras especiais dos arts. 343.º e 344.º do mesmo.
No entanto, na falta de regras directa ou analogicamente aplicáveis, é em harmonia com os critérios de razoabilidade subjacentes àquelas regras, que devem servir de modelo na determinação do regime aplicável à sombra do n.º 3 do art. 10.º do Código Civil, será sobre quem apresente à Administração uma pretensão no procedimento administrativo que deve recair o ónus da prova dos pressupostos em que ela assenta.
Por isso, no caso, é sobre o Recorrente que recai o ónus da prova dos pressupostos de que depende a autorização de residência.
Consequentemente, mesmo que se entendesse que existiam dúvidas sobre a existência da situação de facto invocada pelo Recorrente não se poderia considerar demonstrado que o acto recorrido estivesse afectado por vício de erro sobre os pressupostos de facto.
Termos em que acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 200 euros e procuradoria de 100 euros, sem prejuízo do apoio judiciário.
Lisboa, 29 de Outubro de 2003
Jorge de Sousa – Relator – Costa Reis – Isabel Jovita