Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0798/14
Data do Acordão:03/08/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:REPRIVATIZAÇÃO DE BENS NACIONALIZADOS
PRINCÍPIO DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DAS AUTARQUIAS
Sumário:I - A decisão de reprivatizar a “Z….., SA” (Z……), inserta no DL n.º 45/2014, de 20/3, foi feita de harmonia com o disposto no art.º 293.º, n.º 1 e da Lei n.º 11/90, de 5/4 (Lei Quadro das Privatizações – LQP) e, por força do mesmo quadro, tinha que revestir a forma de acto legislativo, já que o uso do decreto-lei assim era imposto ou exigido (cf. artºs. 1.º, 4.º, n.º 1, 7.º, n.º 1 e 13.º, todos da LQP) e não através de ato administrativo ou de acto de direito privado, nomeadamente, de deliberação societária.
II. A matéria e regime normativo inserto no referido DL n.º 45/2014 não integra ou preenche o comando constitucional do art.º 165.º, n.º 1, al. u), da CRP.
III. O tribunal não pode conhecer da alegada questão da inconstitucionalidade material das resoluções do Conselho de Ministros concretizadoras da reprivatização da Z…….. se não são invocadas as normas ou princípios constitucionais violados.
IV. Por aplicação do art.º 35.º, n.º 1, do DL n.º 133/2013, de 3/10, nada obstava a que uma empresa pública societária criada por decreto-lei deixasse de ser empresa pública em virtude de outro decreto-lei, não sendo as suas normas estatutárias que exigiam a presença de capital maioritariamente público que o impediam.
V. A referida resolução do Conselho de Ministros não viola os princípios da confiança e segurança jurídica nem da autonomia do poder local.
Nº Convencional:JSTA00070593
Nº do Documento:SA1201803080798
Data de Entrada:06/27/2014
Recorrente:MUNICÍPIOS DE VALENÇA E DE VILA NOVA DE CERVEIRA
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS, Z......, S.A. E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:ACÇÃO ADM ESPECIAL
Objecto:RCM 30/2014
Decisão:IMPROCEDENTE
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM ESPECIAL
Legislação Nacional:RCM 30/2014.
DL 45/2014.
DL 92/2013.
DL 379/93.
DL 532/75.
DL 496/76.
DL 372/93.
DL 166/96.
DL 294/94.
DL 103/2014.
DL 53/97.
L 88-A/97.
L 11/90.
CPA ART6 A.
CONST76 ART266 N2 ART273 N1 ART242 ART165 ART235 ART280 ART293 ART267 ART112.
CSC86 ART1 N2 ART18 ART24 N4 ART85 ART373 N2 ART377 A.
DL 113/96.
DL 133/2013 ART35.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0800/14 DE 2016/10/13.; AC STA PROC0780/14 DE 2016/10/13.; AC STA PROC0855/14 DE 2018/02/01.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

1.Os Municípios de Valença e de Vila Nova de Cerveira intentaram, contra o Conselho de Ministros e em que eram contra-interessadas a “Z………., SA” e a “X…………., SA”, acção administrativa especial para impugnação dos actos contidos nos artºs. 1.º e 2.º, nºs. 1 e 2, ambos do DL n.º 45/2014, de 20/3 e na Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, de 3/4, imputando-lhes diversos vícios de violação de lei, por padecerem de inconstitucionalidade orgânica e material, infringirem os princípios da confiança, da autonomia local e da participação dos interessados na gestão dos serviços públicos e por consubstanciarem uma alteração aos estatutos da concessionária “X………..” efectuada pelo Estado-Legislador à margem de assembleia geral societária, com violação do dever de lealdade entre accionistas.
Na sua contestação, a Presidência do Conselho de Ministros suscitou a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria, com o fundamento que os actos impugnados, tendo sido praticados no exercício da função política e legislativa, estavam excluídos da jurisdição administrativa.
Pelo requerimento de fls. 232 a 234 dos autos, os AA., ao abrigo do art.º 63.º, do CPTA, ampliaram o objecto do processo, pedindo a anulação do acto contido no DL n.º 103/2014, de 2/7, que procedera à alteração dos estatutos da “X………..”.
O Exmº. Sr. Procurador-Geral-Adjunto junto deste STA, ao abrigo do art.º 85.º, do CPTA, pronunciou-se sobre o mérito da causa, tendo concluído que a acção deveria ser julgada improcedente.
Pelo despacho do relator de fls. 487 a 493 dos autos, foi julgada procedente a excepção da incompetência material do tribunal para apreciação da impugnação dos actos contidos nos DLs. nºs. 45/2014 e 103/2014, absolvendo-se os RR. da instância quanto ao pedido da sua anulação e improcedente a mesma excepção no que concerne ao pedido anulatório contido na Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, determinando-se a notificação das partes para efeitos do disposto no art.º 91.º, n.º 4, do CPTA.
Os AA. alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Os actos concretos contidos na Resolução do Conselho de Ministros n°. 30/2014, datada de 3 de Abril de 2014, publicada no D. R., Iª Série, n°. 69, de 8 de Abril de 2014, constituem, materialmente, actos jurídico-administrativos, que afectam, directamente, os Municípios do Vale do Minho (Caminha, Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira), as suas populações, os seus direitos e interesses legalmente protegidos.
II. Não retira o carácter individual e concreto dos actos praticados e, consequentemente, a natureza de actos administrativos, o facto de os mesmos se repercutirem na esfera jurídica de vários municípios, uma vez que isso nada mais significa do que a prática de actos plurais ou colectivos.
III. Os referidos actos têm eficácia externa, face ao facto de os mesmos produzirem efeitos jurídicos externos imediatos, afectando claramente os municípios do Vale do Minho detentores de participações no capital social da X……….juntamente com a Z……….., que se vêm confrontados com uma privatização que não quiseram, que lhes é imposta, sobre a qual não foram previamente ouvidos e que atenta contra todo o edifício societário e administrativo construído a partir da constituição da X……….., os seus objectivos, o interesse público inerente a essa constituição e aos valores ambientais que presidiram à constituição da empresa, à concessão do sistema aludido e à sua correcta gestão e exploração em benefício das populações abrangidas. -artigo 51° do CPTA.
IV. Estão em causa actos materialmente administrativos, praticados pelo Conselho de Ministros, dotados de eficácia externa e, como tal, impugnáveis nos Tribunais da jurisdição administrativa - artigo 51° do CPTA - sendo que o facto de constarem de acto legislativo é inócuo, tendo em, conta que a lei consagra claramente o princípio da irrelevância da forma - artigos 268.º/4 da CRP e 52.º/1 do CPTA.
V. As sociedades gestoras dos sistemas multimunicipais de resíduos constituem empresas públicas, tal como sucessivamente foram caracterizadas, quer pelo Decreto-Lei n.° 558/99, de 27 de Dezembro, quer pelo actual Decreto-Lei n.° 133/2013, de 3 de Outubro.
VI. A alienação do capital social das sociedades gestoras dos sistemas multimunicipais configura uma transformação jurídico-societária de natureza extintiva e não apenas uma operação de alienação de acções.
VII. É da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre as "Bases gerais do estatuto das empresas públicas" - alínea d) do artigo 161.° da Constituição e u) do n.° 1 do artigo 165.° da CRP.
VIII. O Decreto-Lei n.° 133/2013, de 3 de Outubro, que estabelece os princípios e regras aplicáveis ao sector público empresarial, incluindo as bases gerais do estatuto das empresas públicas (n.° 1 do artigo 1.°), determina que a alteração dos estatutos de empresas públicas deve ser realizada nos termos do Código das Sociedades Comerciais quando esteja em causa uma sociedade comercial, devendo, neste caso, os projectos de alteração ser devidamente fundamentados e aprovados pelo titular da função accionista.
IX. Relativamente à extinção de empresas públicas, determina-se no n.° 1 do artigo 35.° que esta é realizada através de decreto-lei ou nos termos do Código das Sociedades Comerciais, consoante se trate de entidade pública empresarial ou sociedade comercial, embora se ressalvem os casos em que estas últimas tenham sido constituídas por decreto-lei, podendo, nestes casos, aplicar-se a mesma forma para efeitos de extinção.
X. Não obstante a Constituição não estabelecer o conceito de leis de bases, como tem entendido o Tribunal Constitucional, (cfr., entre outros, os Acs. do TC n.° 493/05 e n.° 620/2007), ainda que a própria lei não se qualifique como tal, presume-se que são leis de bases as leis da Assembleia da República nas matérias em que a reserva de lei se limita justamente às bases dos regimes jurídicos previstas nos artigos 164.° e 165.° da Constituição.
XI. Atendendo aos dados anteriores e ao contexto processual/procedimental e societário que envolve as empresas de gestão e exploração dos sistemas multimunicipais é defensável concluir-se que um tal processo e o ambiente societário específico - uma empresa mista, por integrar capitais do Estados e dos municípios - que o tem por objecto não se assume como uma situação jurídico-constitucional que convoca o âmbito extensivo e intensivo do conceito constitucional das bases gerais das empresas públicas.
XII. Os diplomas que procedam a alterações ou concretizem os actuais estatutos das empresas gestoras dos sistemas multimunicipais de resíduos consubstanciam materialmente actos administrativos sob a forma legal, unilateral e concretamente definidores de inovações estatutárias, ao arrepio do que estabelecem e impõem as bases gerais das empresas públicas.
XIII. Os Municípios accionistas, por força dos actos substancialmente administrativos do Estado-Administração — e não do Estado-accionista -, quais sejam os que contam da Resolução 30/2014, de 3/4, vêem-se impedidos de acautelar na sede própria da sociedade - a Assembleia Geral - os interesses próprios que o respectivo estatuto constitucional de que são titulares pressupõe e que se projectam na qualidade de accionistas de tais empresas, o que os inquina de inconstitucionalidade material.
XIV. Os diplomas que alteraram os estatutos das sociedades públicas gestoras dos sistemas multimunicipais padecem ainda de inconstitucionalidade orgânica, porquanto o Governo está, nesta matéria, a invadir a competência exclusiva da Assembleia da República.
XV. Partindo do pressuposto de que o conceito constitucional de bases gerais de empresas públicas abarca qualquer fenómeno jurídico que determine a respectiva extinção, não pode deixar de concluir-se que um processo como aquele que se discute, podendo, pelo menos, eventualmente conduzir à extinção material ou substancial de empresas públicas, não se acha habilitado, nem pelo decreto-lei autorizado que estabelece as bases gerais das empresas públicas, nem sequer na respectiva lei de autorização.
XVI. A reprivatização da Z……….. terá consequências que não se limitam à relação entre a Águas de Portugal e a Z………., mas que têm reflexos nas várias sociedades em que esta participa, maxime nos planos económico, administrativo e jurídico, sendo certo que, subtraindo à Z....... a natureza de entidade pública, atinge o estatuto jurídico de todas as suas participadas.
XVII. No caso das sociedades ora em análise, o legislador, no acto da sua constituição, consagrou expressamente (ou nos estatutos, ou através de remissão expressa para a "lei comercial", i.é, para o regime do CSC), que as eventuais alterações ao estatutos que se viessem a verificar posteriormente estariam sujeitas à disciplina do CSC, o que, na prática, significa que são as próprias sociedades quem, recorrendo aos instrumentos de modificação dos estatutos constantes do referido diploma, detêm aquele poder.
XVIII. Apesar de criadas por acto do governo, este órgão, após esse acto, está impedido de, unilateralmente, alterar os estatutos das sociedades, que pressupõe a intervenção destas últimas e, uma vez que o regime estatutário de cada uma das sociedades participadas é imperativo, a operação de reprivatização da Z……… não pode deixar de o respeitar, não obstante esteja sustentada pelo poder legislativo do Governo.
XIX. A operação de reprivatização colide, quer com os diplomas legais que criaram as sociedades, quer com os estatutos de cada uma delas, sendo por esse mesmo motivo que a citada reprivatização abrange a alteração de ambos, precisamente porque, na redacção actual, nenhum consente a reprivatização almejada.
XX. Tendo em conta que o que releva é o objectivo de impedir a prática de qualquer acto que atinja a base pública da sociedade, deve entender-se que os preceitos estatutários que consagram limites à transmissão de participações nas sociedades concessionárias aplicam-se, quer às transmissões directas, quer às indirectas.
XXI. Ainda que dos limites à alienação de acções se encontram excluídas as transmissões indirectas que restrinjam o limiar da titularidade obrigatória por entidades públicas, deveria desconsiderar-se a personalidade jurídica da Z………, fazendo coincidir a operação de reprivatização com a transmissão (indirecta) das acções das sociedades concessionárias e determinando, em consequência, a aplicação do respectivo regime.
XXII. Independentemente dos impedimentos expressos consagrados nos estatutos e na lei societária à operação de reprivatização da Z…….., o dever de lealdade a que a Z………. e o Estado estão sujeitos sempre obstariam a que a operação se pudesse efectuar à margem ou mesmo contra a vontade dos accionistas das sociedades concessionárias.
XXIII. Os actos contidos na Resolução do Conselho de Ministros 30/2014, de 10/4, são formal e materialmente inconstitucionais, e ilegais, por vício de violação de lei, devendo, pois, ser anulados (art. 13371, a contrario e 135°, do CPA)”.

A entidade demandada e as contra-interessadas, nas respectivas alegações, concluíram pela improcedência da acção.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Consideramos provado os seguintes factos:
a) Em 8/4/2014, foi publicada no DR, I Série, n.º 69, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, de 3/4, do seguinte teor:

“Nos termos do n.º 1 do art.º 14.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, e das alíneas c) e g) do art.º 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:
1-Determinar que são alienadas 100% das ações da Z........ e que o concurso público previsto no n.º 2 do art.º 2.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, tenha por objeto ações representativas de 95% do capital social da Z……….
2-Aprovar o caderno de encargos do concurso público, constante do anexo I à presente resolução, da qual faz parte integrante, no qual se estabelecem os termos e condições específicos a que obedece o concurso público previsto no número anterior.
3-Aprovar os termos do exercício pelos municípios da opção de alienação das participações sociais por aqueles detidas no capital das entidades gestoras de sistemas multimunicipais nas quais a Z………. é acionista, bem como do exercício do direito de preferência pelos restantes municípios da mesma entidade gestora, relativamente à referida alienação, os quais constam do caderno de encargos a que se refere o número anterior.
4-Determinar a abertura do concurso público previsto no n.º 2 do art.º 2.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, através do envio para publicação do anúncio no Jornal Oficial da União Europeia e no Diário da República.
5-Aprovar, no anexo II à presente resolução, da qual faz parte integrante, algumas condições da oferta pública de venda de ações da Z…….. dirigida exclusivamente a trabalhadores da Z……….., no âmbito da qual os referidos trabalhadores podem adquirir ações representativas de 5% do capital social da Z……….
6-Determinar que as ações que não sejam vendidas a trabalhadores, assim como aquelas cuja transmissão não se concretize, acrescem automaticamente às ações a adquirir pelo vencedor do concurso público, obrigando-se este a adquirir tais ações pelo preço por ação constante da sua proposta vinculativa.
7-Determinar que, ao abrigo do art.º 16.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, compete à Ministra do Estado e das Finanças, com faculdade de subdelegação no Secretário de Estado das Finanças, aprovar o convite e todos os aspetos que, nos termos do caderno de encargos, devam ser fixados no mesmo.
8-Constituir uma comissão especial nos termos do art.º 20.º da Lei n.º 11/, de 05.04, alterada pelas Leis nºs. 102/2003, de 15.11, e 50/2011, de 13.09, a qual é composta por três membros a nomear por despacho do Primeiro-Ministro.
9-Determinar que, nos termos do art.º 19.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, o Governo, através da PARPÚBLICA, coloca à disposição do Tribunal de Contas toda a documentação que integra o processo de venda, incluindo os pareceres e relatórios previstos na lei que regula estes processos.
10-Determinar que a presente resolução entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”.
b) Entre os Municípios AA. e a Z…………, foi, em 11/6/96, celebrado o “Acordo Parassocial”, constante de fls. 95 a 103 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
c) Entre o Estado Português e a “X……….., SA” foi, em 6/11/96, celebrado o contrato de concessão constante de fls. 31 a 55 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3.Sobre a pretensão jurídica formulada pelos AA. nos presentes autos – que, em face da decisão tomada no despacho saneador, se reduz à anulação da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014 – já este Supremo se pronunciou em várias acções administrativas especiais intentadas por municípios portugueses para impugnação da aludida Resolução, tendo sempre concluído no sentido da sua improcedência (cf. Acs. de 13/10/2016 – Procs. nºs. 0800/14, 0860/14 e 0910/14, de 3/11/2016 – Proc. n.º 0845/14, de 10/11/2016 – Proc. n.º 0786/14, de 23/11/2016 – Procs. nºs. 0780/14 e 0801/14, de 7/12/2016 – Proc. n.º 0859/14, de 11/5/2017 – Proc. n.º 854/14 e de 1/2/2018 – Proc. n.º 855/14).
Por concordarmos com esta jurisprudência e uma vez que, quanto aos vícios arguidos pelos AA., os presentes autos não apresentam qualquer novidade, limitar-nos-emos, em relação a cada um deles, a reproduzir parte do texto desses acórdãos.
Assim, quanto à alegada inconstitucionalidade orgânica, é de julgar improcedente pelos fundamentos constantes do citado Ac. de 13/10/2016, proferido no Proc. n.º 800/14, onde se escreveu:
“(…)
"XXVII. Como resulta dos próprios termos insertos no DL n°45/2014 [ver preâmbulo e quadro normativo de habilitação invocado no mesmo] o processo de reprivatização da «A » rege-se «pelo disposto na Lei n°11/90 [...] (Lei Quadro das Privatizações)», sendo que o Governo emanou o referido DL ao abrigo das competências e poderes que, constitucionalmente, lhe são conferidos pelas alíneas a) e c) do artigo 198° da CRP.
XXVIII. Para além do assento na competência legislativa do Governo definida pelo comando constitucional, faz-se, ainda, apelo no mesmo e enquanto também padrão normativo de referência à «LQP», diploma este que aprovou e no qual está contida a disciplina das operações de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 previstos no n°1 do artigo 293° da CRP [ver artigo 1° da «LQP»].
XXIX. Resulta deste preceito, o qual tem por epígrafe «reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974», que «lei-quadro, aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, regula a reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974, observando os seguintes princípios fundamentais: [...] a) A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois do 25 de Abril de 1974 realizar-se-á, em regra e preferencialmente, através de concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública; [...] b) As receitas obtidas com as reprivatizações serão utilizadas apenas para amortização da dívida pública e do sector empresarial do Estado, para o serviço da dívida resultante de nacionalizações ou para novas aplicações de capital no sector produtivo; [...] c) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares; [...] d) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização adquirirão o direito à subscrição preferencial de uma percentagem do respectivo capital social; [...] e) Proceder-se-á à avaliação prévia dos meios de produção e outros bens a reprivatizar, por intermédio de mais de uma entidade independente» [n°1], sendo que, nos termos do seu n°2, «as pequenas e médias empresas indiretamente nacionalizadas situadas fora dos sectores básicos da economia poderão ser reprivatizadas nos termos da lei».
XXX. Foi em concretização deste comando que veio a ser publicada a referida «LQP» da qual e no que releva se extrai que «a reprivatização da titularidade realizar-se-á, alternativa ou cumulativamente, pelos seguintes processos: a) Alienação das acções representativas do capital social; b) Aumento do capital social» [artigo 06°, n°1] e que esses processos são «realizados, em regra e preferencialmente, através de concurso público ou oferta pública nos termos do Código dos Valores Mobiliários» [ver n°2 deste preceito], sendo que «a reprivatização através de concurso público será regulada pela forma estabelecida no artigo 4°, no qual se preverá a existência de um caderno de encargos, com a indicação de todas as condições exigidas aos candidatos a adquirentes» [ver artigo 7°, n°1], ou seja, sujeita ao disposto nesta lei e mediante emissão de decreto-lei [ver artigo 4°, n°1 - DL esse através do qual se «aprovará o processo, as modalidades de cada operação de reprivatização, designadamente os fundamentos da adopção das modalidades de negociação previstas nos n°s 3 e 4 do artigo 6°, as condições especiais de aquisição de acções e o período de indisponibilidade a que se referem os artigos 11°, n°1, e 12°, n°2» - ver artigo 13°, n°1] e em que «a sociedade anónima que viera resultar da transformação continua a personalidade jurídica da empresa transformada, mantendo todos os direitos e obrigações legais ou contratuais desta» [ver artigo 4°, n°3], competindo ao Conselho de Ministros a emissão de «decisão final sobre a apreciação e selecção dos candidatos» [ver n°2 do referido artigo 7°], bem como a aprovação «por resolução, de acordo com a lei, as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização» [ver artigo 14°]. '
XXXI. De referir, ainda, que o regime da «LQP» aplica-se também e com as devidas adaptações «à reprivatização da titularidade das empresas nacionalizadas que não tenham o estatuto de empresa pública» [ver seu artigo 25°].
XXXII. Tratando-se no caso da «A………….…....…...» dum processo de transferência do sector público para o sector privado de bem antes pertencente a este último sector e que havia sido nacionalizado após o 25 de Abril de 1974, [...] daí denominar-se de «reprivatização» e não «privatização», afigura-se, à luz do que conjugadamente se disciplina nos artigos 165°, n°1, alíneas I) e u), e 293° da CRP, como correto e acertado o padrão normativo a que se fez apelo no DL n°45/2014, porquanto este diploma radica efetivamente o seu enquadramento e emissão no regime definido pela «LQP» enquanto concretização do comando constitucional previsto não no dito artigo 165° mas no artigo 293°.
XXXIII. Com efeito, presente a evolução registada no texto constitucional, após a várias revisões, e uma vez analisados os termos e o teor dos atuais comandos em confronto, ressalta, por um lado, a existência duma clara separação entre aquilo que é a cláusula de reserva de competência legislativa referente às «bases gerais do estatuto das empresas públicas» [alínea u), do n°1, do artigo 165° da CRP] e aquilo que constitui cláusula competencial respeitante à definição dos «meios e formas de [...] privatização dos meios de produção» [alínea I), do n°1, do artigo 165° da CRP], tanto mais que não são confundíveis a legiferação que disciplina as regras de transferência de propriedade e da natureza duma empresa, fazendo-a abandonar o universo jurídico-público e ingressar no sector privado, mas mantendo-a, enquanto unidade jurídico/produtiva ou aglomerado económico, sob controlo de sujeitos privados, por contraposição com aquela em que se definem as bases gerais ou o regime jurídico aplicáveis às empresas públicas enquanto tais.
XXXIV. Para além disso, da evolução e teor dos aludidos comandos constitucionais extrai-se, ainda, uma outra separação ou diferenciação em termos de reservas competênciais entre aquilo que é a definição do regime normativo para as operações de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 [previsto no artigo 293° da CRP e nele se incluindo apenas as operações de reprivatização incidentes sobre os meios de produção e bens alvo de nacionalização por parte das leis ordinárias publicadas entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da Constituição de 1976 [ver Jorge Miranda e Rui Medeiros in: Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra 2007, página 980; António de Sousa Franco e Guilherme D' Oliveira Martins in: A Constituição Económica Portuguesa. Ensaio Interpretativo, Coimbra 1993, página 278] e a definição geral do regime legal relativo às operações de privatização ou reprivatização que incidam sobre a titularidade ou direitos de exploração de meios de produção ou outros bens que ali não estejam abrangidos [ver artigo 165°, n°1, alínea I), da CRP - no qual se incluem, assim, a legiferação sobre as operações que vierem a recair sobre meios de produção/bens que nunca tenham sido alvo de nacionalização, bem como as operações incidentes sobre meios de produção/bens que tenham sido alvo de nacionalização antes de 25 de Abril de 1974 e, bem assim, das nacionalizações que ocorreram ou venham a ocorrer após a data da entrada em vigor da Constituição de 1976 (ver, Jorge Miranda e Rui Medeiros in: ob. cit, páginas 979/981)].
XXXV. Aliás, como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros a «figura da privatização, ou seja, [...] o processo de transferência para o sector privado de bens integrantes do sector público que nunca anteriormente estiveram integrados naquele sector privado [...] está assim fora da órbita de atuação do artigo 293° da Constituição, sendo matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165°, n°1, alínea I)]», sendo que da conjugação dos referidos preceitos «divisam-se claramente dois regimes básicos relativos à transferência de bens do sector público para o sector privado» já que quanto ao regime da reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 o mesmo é «objecto de concretização jurídica através de lei-quadro parlamentar aprovada segundo um procedimento qualificado e com respeito de determinados princípios materiais» ao passo que o regime de privatizações dos restantes bens ou meios de produção públicos será fixado «através de uma lei da competência legislativa de reserva relativa da Assembleia da República, bastando para a sua aprovação uma maioria simples de deputados, podendo também ser fixado mediante decreto-lei autorizado, em qualquer caso sem subordinação aos princípios substantivos e procedimentais consagrados no n°1 do artigo 293° da Constituição» [in: ob. cit, página 979] [ver, igualmente, Paulo Otero in: Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Participações Sociais no Interior do Sector Público, Coimbra 1999, páginas 43/44].
XXXVI. Aquela «LQP» foi concebida, tal como sustentou o Tribunal Constitucional [ver Acórdão n°71/90 (...)] «como uma norma sobre a produção normativa [à semelhança do que sucede com as leis de autorização legislativa, com as denominadas leis de enquadramento ...], destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que constitui pressuposto da prática, pelo Governo, dos atos normativos de reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada [os decretos-leis de transformação das empresas em causa em sociedades anónimas ... e as resoluções do Conselho de Ministros que aprovam as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização...] e dotada de uma primariedade material e hierárquica [porque conformadora daqueles decretos-leis e daquelas resoluções e sobre uns e outras naturalmente prevalecente, não só em razão da sua específica função hierárquico-normativa, mas também por força do princípio da repartição de competências entre os órgãos de soberania - já que versando matéria sobre a qual primariamente só o Parlamento detém competência legislativa]», tratando-se de uma lei de «princípios, à semelhança das leis de bases, porquanto a Constituição revista consagra ela própria expressamente, em disposição final e transitória [artigo 296°] -[correspondente ao atual artigo 293°]» e «ordenadora ou de enquadramento de um processo normativo composto por um conjunto de atos nela previstos e a ela subordinados, a praticar pelo Governo, e nisto consistirá a sua função habilitante e simultaneamente conformadora», na certeza de que sendo a «LQP» uma «lei com valor reforçado» caberá ao mesmo Tribunal sindicar e controlar uma eventual ilegalidade de ato legislativo por violação da referida lei, aferindo se é, pelo menos, plausível, ou se não é manifestamente inexistente, que «o interesse nacional ou a estratégia definida para o sector» exijam o afastamento do recurso preferencial às modalidades-regra de privatização, ou se «a situação económica ou financeira da empresa o recomenda», ou se tal afastamento implicou «uma violação dos limites da discricionariedade consentida ao legislador», mas já não «sindicar especificamente o tipo de modalidade de reprivatização escolhido pelo legislador» [ver, neste sentido o Acórdão n°683/2006 do mesmo Tribunal].
XXXVII. No caso ora sob apreciação a decisão de privatizar a «A » inserta no DL n°45/2014, foi-o, pois, como referido, em respeito e obediência ao quadro constitucional e ordinário invocado e, por força do mesmo quadro, e na sequência do atrás exposto, tinha que revestir a forma de ato legislativo já que o uso de DL assim era imposto ou exigido [ver artigos 1°, 4°, n°1, 7°, n°1, e 13° todos da «LQP»] e não através da forma ou de ato administrativo ou de ato de direito privado, nomeadamente, de deliberação societária como se extrai da tese afirmada pelo município autor.
XXXVIII. Tal resultava imposto pelo disposto no artigo 293°, n°1, em articulação com o artigo 112°, n°s 3e 5, ambos da CRP, e com a «LQP» [ver artigos 4°, 7° e 13°], sob pena de verificação ou de inconstitucionalidade, dada a realização de operação de reprivatização por um órgão que não é para tanto competente, ou, então, pelo menos, de ilegalidade reforçada, mercê da violação da exigência quanto à forma fixada pela referida lei-quadro para a concretização de qualquer ato de reprivatização, dado o desrespeito, por conseguinte, do valor reforçado de que goza a «LQP» enquanto «norma sobre a produção normativa» com uma «função habilitante» e que se mostra dotada de «primariedade material e hierárquica» [ver o citado Acórdão do TC n°71/90], infrações essas suscetíveis de, nomeadamente, conduzirem à sua desaplicação concreta por inconstitucionalidade [ver artigo 280°, n°2, alíneas b) e d), da CRP].
XXXIX. Defendem, aliás, Jorge Miranda e Rui Medeiros, quanto à forma de concretização da referida lei-quadro que «não obstante o assinalado silêncio do legislador constitucional, tudo aponta para que a lei-quadro de reprivatizações deva ser concretizada por ato legislativo», para assim apontando não só o elemento literal «a expressão lei-quadro sugere diretamente a ideia de uma lei destinada a servir de moldura a outras leis» já que «se quisesse que as reprivatizações em concreto fossem objeto de atos não legislativos a Constituição ter-se-ia referido, simplesmente, a lei das reprivatizações», mas também os elementos sistemático e histórico [in: ob. c/r., página 996] [vide igualmente Lino Torgal em Da lei-quadro na Constituição Portuguesa de 1976, in: Perspectivas Constitucionais, II, (1997), páginas 923/926; M. Esteves Oliveira e outros in: Privatizações e Reprivatizações. Comentário à Lei-Quadro das Privatizações (2011), páginas 24/26, 36 e 62/63; Paulo C. Rangel em A concretização legislativa da Lei-Quadro das Reprivatizações (a propósito da inconstitucionalidade do Decreto-lei n.° 380/93 ... in: Legislação n°23, página 10].

XL. Por outro lado e como supra sustentado, tendo aquele DL sido emitido ao abrigo do artigo 293°, n°1, da CRP, em conjugação e no quadro da «LQP», soçobra um qualquer entendimento que faça apelo àquilo que são os comandos constitucionais insertos no artigo 165°, n°1, alíneas I) e u), e a uma sua pretensa infração, já que a matéria e regime normativo inserto no DL n°45/2014 não os integram ou preenchem minimamente, visto não estarmos em presença nem de ato legislativo relativo a bases gerais do estatuto das empresas públicas [ver aquela alínea u) do citado comando constitucional e o DL n°133/2013] e que, por isso, possa contender ou lhe deva qualquer respeito, nem sequer de um ato de privatização dos meios de produção que resulte abrangido na referida alínea I) do n°1 do artigo 165°.

XLI. Do facto de se dever caracterizar e inserir a «A…» [de per si e quanto àquilo que são as suas participações] como sendo uma empresa pública integrada no sector empresarial do Estado, face ao que decorre conjugadamente do disposto nos artigos 5°, n°1, e 9°, n°1, 13°, n°1, 56° e 57°do citado DL n°133/2013, [...], já que enquanto organização empresarial constituída sob a forma de societária nos termos da lei comercial, o Estado, através da detenção das participações na «C………..», exerce de forma indireta uma influência dominante na mesma considerando, mormente, os vários pressupostos descritos no referido n°1 do artigo 9° daquele DL, tal todavia não implica, nem deriva minimamente que a disciplina daquilo que é a definição do enquadramento ou do regime da alienação da titularidade da mesma, através de operação de reprivatização, se deva conformar ou fundar/acolher naquilo que são as bases gerais do estatuto das empresas públicas insertos naquele DL n°133/2013, porquanto, como vimos, tratam-se de domínios ou planos diversos, sem que se possa sustentar que ocorra qualquer infracção aos artigos 5°, 9°, 13°, n°1, 34°, n°1, 56° e 57° do citado DL, ou ainda do artigo 165°, n°1, alínea u), da CRP."

Por sua vez, a inconstitucionalidade material dos actos impugnados é invocada pelos AA. com o fundamento que estes implicam que os Municípios accionistas da “X………..” se vejam impedidos de acautelar em Assembleia Geral dessa sociedade os interesses próprios de que são titulares.
Porém, para aferir se este vício tinha autonomia relativamente a outros que são alegados pelos AA. e para permitir que este tribunal se pronunciasse sobre a conformidade constitucional das normas em crise, impunha-se que, além dos fundamentos da sua verificação, fossem invocadas as normas ou princípios constitucionais violados, o que, no caso vertente, não sucedeu. Assim, não pode este tribunal conhecer da referida questão da inconstitucionalidade material (cf. mencionado Ac. do STA de 1/2/2018).
Quanto à alegada violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica, ínsitos no art.º 2.º, da CRP, escreveu-se no citado Ac. de 13/10/2016, proferido no Proc. n.º 0780/14:
“(…)
"LI. Enquanto fundamento de ilegalidade assacado ao ato impugnado pelo A. conta-se ainda o da infração por parte do mesmo e do quadro normativo que este veio concretizar dos princípios da proteção da confiança/segurança jurídica, da boa-fé, da legalidade, da proporcionalidade [arts. 02.°, 266.°, 267°, da CRP, e 6.°-A do CPA].

LII. Inexistem dúvidas de que o Estado no momento da constituição da «E…….», através do DL n.° 53/97, quis instituir um regime nos termos do qual a atuação da referida sociedade se regeria para além dos seus estatutos pela lei comercial, mas, todavia, fê-lo por ato legislativo, enquanto afirmação duma opção político-legislativa primária, sendo que a natureza daquele ato não pode ser minimamente esquecida e/ou desconsiderada e sua sujeição ao princípio da autorrevisibilidade dos diplomas legais.

Llll. Ora tais opções político-legislativas e normas que as corporizam não tinham que ficar congeladas ou imóveis no tempo, como sustenta o A. fazendo apelo ao tempo decorrido desde a criação da «E ………»,detendo o Governo, no quadro da sua competência legislativa genérica [cfr. art. 198°, n.° 1, aí. a), da CRP], o poder de alterar/rever as políticas preexistentes e que se mostram vertidas em DL.

LIV. No caso e como vimos na sequência da alteração à Lei Delimitação de Setores produzida pela Lei n.° 35/2013 veio a ser publicado o aludido DL n.° 92/2013, diploma através do qual se procedeu, no que aqui releva, à reformulação do regime dos sistemas multimunicipais de exploração e gestão de resíduos sólidos, eliminando a obrigação de manutenção da titularidade maioritariamente pública do capital das sociedades concessionárias, regime esse que apontava e exigia a necessidade de conformação também das regras e estatutos daquelas mesmas sociedades concessionárias a ser feito também neste domínio por ato legislativo, como de facto o foi.

LV. É certo que, enquanto princípio, a liberdade de conformação conferida pela CRP ao legislador, no caso ao Governo nessa veste, não é absoluta, dado nunca poder afirmar-se sem reservas, já que possui limites, nomeadamente, o da segurança e da confiança na ordem jurídica garantida pelo Estado de direito.

LVI. Na verdade, a exigência da proteção da confiança constitui uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito, já que o princípio do Estado de Direito Democrático garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expetativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança das pessoas e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado [cfr. art. 02°da CRP].

LVII. Não podemos deixar de ter sempre como presente que as pessoas para além de liberdade carecem de segurança para poderem conduzir, planificar, estruturar e conformar de forma autónoma e responsável a sua vida e atividade.

LVIII. Nessa medida, a vida num Estado de Direito Democrático terá de estar ancorada necessariamente nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, cientes de que o princípio da boa-fé, tendo plena valia no plano da disciplina das relações administrativas e do respeito dos direitos e interesses em confronto, não constitui, todavia, um padrão de aferição da validade ou da legalidade quanto aquilo sejam as opções consagradas legislativamente em ato privatizador já que aí o padrão de aferição normativa se terá de fazer por referência aos princípios estruturantes da proteção da confiança e da segurança jurídica.

LIX. O princípio da segurança jurídica, enquanto implicado no princípio do Estado de Direito Democrático, encerra em si duas ideias basilares. Uma, a de estabilidade, no sentido de que as decisões dos entes públicos "não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes". A outra, a da previsibilidade, que no essencial se "reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos".

LX. Daí que a realização e efetivação do princípio do Estado de Direito, no nosso quadro constitucional, impõe que seja assegurado um certo grau de estabilidade e previsibilidade às pessoas sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na atuação dos entes públicos, porquanto "sem a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da atuação dos poderes públicos suscetíveis de se repercutirem na sua esfera jurídica" cada pessoa se converteria "em mero objeto do acontecer estatal" [cfr. Jorge Reis Novais in: "Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa" (Coimbra 2004), págs. 261 e 262].

LXI. É, assim, que os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica pressupõem um mínimo de previsibilidade em relação aos atos do poder, no caso vertente do poder legislativo, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos atos que pratica.

LXII. A propósito da "segurança jurídica" e da "proteção da confiança" refere o J.J. Gomes Canotilho que "... a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito -enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança são exigíveis perante qualquer ato de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico ..." [in: "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", 7.a edição, pág. 257].

LXIII. E, um pouco mais à frente, afirma ainda o mesmo Professor que a "mudança ou alteração frequente das leis (de normas jurídicas) pode perturbar a confiança das pessoas, sobretudo quando as mudanças implicam efeitos negativos na esfera jurídica dessas mesmas pessoas. O princípio do Estado de direito, densificado pelos princípios da segurança e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objetivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas; por outro lado, como dimensão garantística jurídico-subjetiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respetivas situações jurídicas. Daqui a ideia de uma certa medida de confiança na atuação dos entes públicos dentro das leis vigentes e de uma certa proteção dos cidadãos no caso de mudança legal necessária para o desenvolvimento da atividade dos poderes públicos" [in: ob. c/r., págs. 259 e segs.].

LXIV. Temos, portanto, que para apreciar uma eventual lesão da proteção da confiança mostra-se essencial apurar se o Estado, no uso dos seus poderes, tomou efetivamente decisões ou encetou comportamentos suscetíveis de gerar nas pessoas expetativas de continuidade, se as mesmas tomaram decisões ou fizeram planos de vida ou de atividade com fundamento nessas mesmas expetativas, mas também se tais expetativas na continuidade da política estadual eram legítimas, já que fundadas ou justificadas por razões sérias apoiadas em bens e valores constitucionalmente protegidos, e se a mudança entretanto havida do comportamento dos poderes públicos não foi ela reclamada ou exigida por um interesse público que, pela sua acuidade, imperiosidade e valor, se deva sobrepor ao valor da tutela das expetativas criadas.

LXV. Tal entendimento corresponde àquilo que constitui a nossa jurisprudência constitucional, extraindo-se da fundamentação do Acórdão n.° 408/2015 do Tribunal Constitucional [no qual reitera e retoma os critérios firmados na sua jurisprudência anterior - cfr, entre outros, os Acórdãos n.°s 287/90, 303/90, 556/2003, 128/2009, 176/2012, 187/2013, 355/2013, 862/2013, 202/2014, 413/2014 e 575/2014] de que o "princípio da proteção da confiança assume, na jurisprudência constitucional portuguesa, um conteúdo normativo preciso, que faz depender a tutela da confiança legítima dos cidadãos da verificação de alguns requisitos ou testes cumulativos. (...) Os primeiros testes procuram escrutinar a consistência e a legitimidade das expetativas dos cidadãos afetados por uma alteração normativa, havendo de concluir-se que aquela existe quando (1) o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nestes cidadãos expetativas de continuidade, (2) estas expetativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, (3) e as pessoas tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do comportamento estadual", sendo que "[cjaso todas estas condições se verifiquem, o percurso decisório quanto ao princípio da proteção da confiança culmina num exercício de ponderação entre interesses contrapostos, levado a cabo de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito: de uma parte, a confiança (legítima) dos particulares na continuidade do quadro normativo vigente e, de outra, as razões de interesse público que motivaram a alteração" [consultável no mesmo sítio].

LXVI. Aqui chegados e cientes dos considerandos de enquadramento tecidos impõe-se, então, que nos interroguemos da procedência da argumentação expendida pelo A. para sustentar a tese que esgrimiu nos autos.

LXVII. E para concluir, desde já, pela sua improcedência.

LXVIII. Motivando tal juízo é certo que cada município conjuntamente com a «A » aceitou integrar e participar no capital social das sociedades concessionárias dos sistemas multimunicipais de valorização e tratamento de resíduos sólidos, como ocorreu com o aqui A. na «E », e que, muito possivelmente, o fizeram no pressuposto de que as mesmas se manteriam no universo jurídico-público, pese embora, não se vislumbre que opções então tomadas pelos municípios, seja por razões de natureza económica ou outra, se tenham estribado ou considerado essencial, enquanto legítima expetativa, na consideração de que a sociedade se iria sempre reger pela lei comercial.

LXIX. Ocorre que o ato impugnado e quadro normativo que concretiza e aplica não envolve, presentes os considerandos tecidos e a situação apurada nos autos, uma qualquer violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade, da proteção da confiança e da boa-fé [cfr. arts. 02°, 266° da CRP e 06.°-A do CPA/91] e da participação [cfr. art. 267° da CRP].

LXX. Desde logo, importa ter presente que, de harmonia com o atrás referido, a forma utilizada do DL para a reprivatização e depois a emissão duma resolução por parte do Conselho de Ministros não envolve qualquer atuação ou exercício de poder de forma arbitrária, a ponto de por em causa o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, tanto mais no contexto da mudança/reforma operada na orientação política naquele domínio e após prévia participação e audição dos municípios, nomeadamente do A., se fez uso do DL para proceder à reprivatização da «A » e da «RCM» para a materializar, atuação essa feita no quadro do Estado de direito e em observância do quadro constitucional.

LXXI. Por outro lado, não é minimamente infringida a confiança legítima dos municípios, como o aqui A., já que os mesmos puderam acompanhar a evolução legislativa ocorrida neste domínio desde o desencadear das alterações havidas na Lei de Delimitação de Setores e dos diplomas atrás referidos e, assim, antecipar aquilo que eram as necessárias consequências e decorrências para a sua esfera e posição, na certeza de que o próprio ato reprivatizador consagrou solução através da qual se permitia a sua saída do capital social das sociedades participadas com a «A », desonerando-os de terem de conviver no seio destas com uma maioria de capital privado.

LXXII. Com efeito, quer nos termos previstos no DL n.° 45/2014 [cfr. art. 11.°], como no ato impugnado [cfr. arts. 41.°/44.° do caderno de encargos aprovado em anexo à «RCM»], é conferido aos municípios acionistas daquelas mesmas sociedades, mormente ao A. na «E », o direito de, querendo, alienarem as suas participações, desvinculando-se, dessa forma, dos compromissos assumidos num determinado enquadramento ou contexto e em função de determinados pressupostos.

LXXIII. Daí que no contexto daquilo que foi sendo a reforma operada no setor através do quadro normativo referido, iniciada em julho de 2013 com a Lei n.° 35/2013 e cimentada com o regime inserto no DL n.° 92/2013, da participação/audição e acompanhamento que foi feito pela Associação Nacional de Municípios e pelos próprios Municípios, o ato de reprivatização e o ato impugnado concretizador da mesma não surgem como atos inesperados, de surpresa e ao arrepio daquilo que seria a marcha normal de todo aquele processo e a ponto de não contarem ou não poderem contar ou antecipar tal desfecho, inexistindo, como tal, ofensa da confiança legítima.

LXXIV. O A., para além de estar a par da mudança que se ia operar no setor e no sistema, também no quadro do processo reprivatizador não viu a sua posição jurídica totalmente ignorada, tendo-lhe sido conferida liberdade para alienar a sua participação social na «E » e assim não ficar "amarrado" à mesma contra aquilo que seria a forma de defesa e prossecução dos seus interesses.

LXXV. Entender que o desenvolvimento do processo de reprivatização só seria válido e legal, respeitando este princípio, se feito nos termos propugnados pelo A., envolve uma leitura desacertada do mesmo e que não se mostra compatível com a tutela da confiança e da segurança jurídica [cfr. art. 02° CRP] ou com a boa-fé [cfr. arts. 266° da CRP, 06.°-A do CPA], nem com aquilo que são traves mestras do nosso ordenamento jurídico-constitucional, subvertendo aquilo que são as bases da soberania nacional e do Estado de direito, mercê do condicionamento ilegítimo que uma tal tese implica no e para o processo legislativo enquanto forma por excelência de prossecução do interesse nacional em cada momento, bem como para aquilo que são os poderes e as competências constitucionais dos órgãos de soberania.

LXXVI. No contexto do regime normativo que se mostra aprovado não é aceitável que a decisão de reprivatização tomada por órgão soberania e o procedimento aplicador da mesma [desenvolvido pelo mesmo órgão, mas agora na veste de órgão superior da Administração] careça, como condição de regularidade e de legalidade para prosseguir, de "autorização" dada através duma deliberação societária vinculativa tomada no quadro de assembleia geral de acionistas da sociedade participada pela empresa alvo da decisão reprivatizadora.

LXXVII. A admitir em tese que existisse no caso uma expetativa legítima e daí tivesse derivado um investimento de confiança sempre improcederia este fundamento de ilegalidade dado falhar o último requisito ou teste cumulativo, porquanto no exercício da ponderação entre interesses contrapostos, levado a cabo de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, a confiança dos municípios, nomeadamente, do aqui A., na continuidade do quadro normativo vigente não se pode sobrelevar em face das razões de interesse público que motivaram a alteração do quadro normativo neste domínio, termos em que inexiste qualquer ofensa aos princípios da proteção da confiança, da boa-fé ou da proporcionalidade.

LXXVIII. Para além disso e presente tudo o atrás exposto temos que o ato impugnado em nada infringe o princípio da legalidade [cfr. art. 266° da CRP], quer na vertente da precedência da lei como no da prevalência da lei, já que o mesmo se mostra proferido no quadro e ao abrigo do que havia sido disciplinado pelo DL n.° 45/2014, diploma que o antecedeu e lhe conferiu sua base normativa, assim como nos seus termos observa e respeita aquilo que era e é o seu quadro normativo de referência e, bem assim, o demais que lhe é aplicável, na certeza de que inexiste alegação suficiente e demonstração probatória cabal nos autos de que na opção tomada de prossecução do interesse público através daquela decisão jurídico-pública de privatizar, tendo subjacentes os deveres de eficiência e de boa administração, a mesma no contexto não constituísse a forma mais eficiente de promover e satisfazer tal interesse.

LXXIX. Improcede, por conseguinte, de harmonia com o supra exposto toda a argumentação expendida pelo A. conducente às ilegalidades do ato impugnado por alegada infração, nomeadamente, dos arts. 02° e 266° da CRP, 06.°-A do CPA/91 e princípios convocados. "

No que concerne à violação do princípio da autonomia local, entendeu-se no mesmo acórdão proferido no proc. nº. 800/14 que ela não se verificava, pelos seguintes motivos:
“(…)
"LVI. A garantia constitucional da autonomia do poder local tem sido alvo de sucessivas e repetidas pronúncias por parte do Tribunal Constitucional, colhendo-se entre os mais recentes a pronúncia constante do Acórdão n.° 494/2015 [consultável no mesmo endereço].
LVII. Extrai-se da linha fundamentadora deste acórdão, naquilo que releva para a questão em discussão, que a "autonomia local é um dos pilares fundamentais em que assenta a organização territorial da República Portuguesa, tal como resulta do artigo 6°, n.° 1, da Constituição" e que nesse contexto "deve ser associada ao princípio constitucional geral da unidade do Estado e, lida em contexto com a autonomia regional, o princípio da subsidiariedade e a descentralização administrativa", para depois centrando a sua atenção no citado art. 235° da CRP afirmar que se trata de norma que "garante e impõe a existência de autarquias locais em todo o país e «tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma» (Acórdão n.° 296/2013 ...)", já que as "autarquias locais são mais que «mera administração autónoma do Estado», uma vez que «concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um "âmbito de democracia" (Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com o princípio básico de que toda a pessoa tem direito de participar na adoção das decisões coletivas que a afetam» (cfr. Acórdão n.° 432/93, n.° 1.2., cfr. também Acórdão n.° 296/2013, n.° 13, e o Acórdão n.° 109/2015, n.° 10)".

LVIII. E avançando na sua linha fundamentadora afirma ainda que "segundo o artigo 3°, n.° 1, da Carta Europeia da Autonomia Local, «o princípio da autonomia local pressupõe e exige, entre outros, o direito e a capacidade de as autarquias regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos» (Acórdão n.° 296/2013, n.° 14)" e que, como sustentado no Acórdão n.° 432/93, "esses interesses próprios das populações: «(...) justificam a autonomia e porque a justificam delimitam-lhe o conteúdo essencial. Eles entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização. O espaço incomprimível da autonomia é, pois, o dos assuntos próprios do círculo local, e «assuntos próprios do círculo local são apenas aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria» (...)", na certeza de que a "prossecução dos interesses próprios das populações locais pelas autarquias tem que ser conjugada com a prossecução do interesse nacional pelo Estado. De facto, como o Tribunal Constitucional já afirmou, «como as autarquias locais integram a administração autónoma, existe entre elas e o Estado uma pura relação de supraordenação-infraordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse - o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais» (Acórdão n.° 379/96 ...)", sendo que, atento o disposto no n.° 1 do art. 237° da CRP, "o legislador deve balancear a prossecução de interesses locais e do interesse nacional ou supralocal, gozando de uma vasta margem de autonomia", mas que "ao desempenhar essa tarefa, «o legislador não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios (privativos) das respetivas comunidades locais» (Acórdão n.° 379/96, n.° 5.2., e Acórdão n.° 329/99, n.° 5.4.)".

LIX. Daí que e continua "na síntese efetuada por Artur Maurício sobre a jurisprudência relativa à garantia da autonomia local: «a autonomia do poder local vem sendo essencialmente concebida como uma garantia organizativa e de competências, reconhecendo-se as autarquias locais como uma estrutura do poder político democrático e com um círculo de interesses próprios que elas devem gerir sob a sua própria responsabilidade» só podendo a «restrição legal desses interesses (...) ser feita com o fim da prossecução de um interesse geral, que ao legislador compete definir, não podendo, de todo o modo, ser atingido o núcleo essencial da garantia da administração autónoma». «Nos âmbitos que considera abertos à concorrência do Estado e das autarquias vem ainda o Tribunal entendendo (...) que são constitucionalmente legítimas compressões da autonomia local, não deixando, contudo, de fazer passar as medidas legislativas ou regulamentares em causa pelo crivo da adequação e da proporcionalidade»", sendo que o "condicionamento ou compressão da autonomia local (nomeadamente dos seus elementos) pode apenas decorrer da lei, quando um interesse público nacional ou supralocal o justificar, e sempre com a ressalva do seu núcleo incomprimível", presente que "«a autonomia municipal não pode afetar a integridade da soberania do Estado. De facto, os poderes locais também são, por natureza, limitados, pois não podem ser exercidos para além do âmbito de interesses (necessariamente locais) que os justificam, não podendo invadir espaços de deliberação ou atuação que devem permanecer reservados à esfera da comunidade nacional» (cfr. M. Lúcia Amaral, A Forma da República, Coimbra Editora, 2012, p. 385)".

LX. Cientes do enquadramento relativo ao princípio e garantia em crise que antecede importa ainda ter presente, de harmonia com o já supra referido, que nos sistemas multimunicipais existentes neste domínio assiste-se e apela-se à intervenção do Estado em função de razões de interesse nacional o que acarreta que os interesses dos municípios, como o do aqui A., não são, por conseguinte, os únicos a serem ou deverem ser tidos em consideração, na certeza, porém, de que aos referidos sistemas multimunicipais é também confiada a prossecução de interesses próprios das populações daqueles municípios.

LXI. Na situação em presença constata-se que no âmbito do procedimento/processo legislativo os municípios, através da sua Associação Nacional, tiveram oportunidade de participar e tutelar/defender os interesses próprios das populações, esgrimindo e aduzindo seus argumentos [cfr, no caso, a referência de que foi/foram "ouvidas a Associação Nacional de Municípios Portugueses ..."inserta nos preâmbulos do DL n.° 92/2013, do DL n.° 96/2014, do DL n.° 45/2014, e do DL n.° 102/2014, este último ainda com audição dos "municípios acionistas da ERSUC ..."].

LXII. Se é certo que a pronúncia dos municípios através de seus órgãos autárquicos num procedimento legislativo ou num procedimento societário não é equivalente, nem é a mesma coisa, tal não significa que o art. 235° da CRP exija ou imponha, para ser cumprida e efetivada a garantia nele inserta, um modelo de participação/pronúncia como o existente no âmbito do direito societário e muito menos que tal modelo tenha de ser transposto para o quadro do processo de reprivatização em questão.

LXIII. Esse entendimento constituiria, pois, um entorse àquilo que é a posição constitucional conferida no nosso ordenamento às autarquias locais e àquilo que são os poderes de participação nos procedimentos perante órgãos nacionais quando estejam em causa a colisão com interesses locais, porquanto o n.° 2 do art. 235° da CRP visa tão-só que a opinião das autarquias não seja desconsiderada, que as mesmas sejam ouvidas, mas sem que detenham uma posição de bloqueio do procedimento decisório por parte dos órgãos nacionais.

LXIV. É certo que não nos poderemos esquecer que nosso sistema constitucional aponta para a conjugação do princípio da unidade do Estado com, nomeadamente, o princípio da autonomia local [cfr. citado art. 06°, n.° 1, da CRP] e que não se pode aceitar que um órgão do poder central tome decisões que afetem interesses locais sem dar a oportunidade às autarquias, através de seus órgãos, de contribuírem para a definição do conteúdo dessas decisões [cfr. art. 235°, n.° 2, da CRP].

LXV. Mas o "equilíbrio eficiente" entre princípio da "descentralização local" e o princípio da "unidade de ação na prossecução do interesse público", tal como é afirmado por Jorge Miranda [in: Manual de Direito Constitucional", Tomo III, 6.a edição, págs. 237/239], no quadro da ideia de unidade estatal não se mostra compatível com a exigência de que as decisões tomadas pelos órgãos centrais no quadro dos sistemas multimunicipais, prosseguindo interesses nacionais, tenham de obter a concordância das autarquias locais num quadro ou ambiência disciplinado pelas regras societárias.

LXVI. Aquilo que é a prossecução do interesse nacional neste domínio não pode ficar refém, não pode ficar capturada pela afirmação dum interesse local, pela exigência dum procedimento societário tido como o único compatível do princípio da autonomia do poder autárquico.

LXVII. Para além disso a tese sustentada pelo A. não poderá ser acolhida porquanto não obstante a intervenção do Estado no setor do saneamento e dos resíduos dever envolver as competências dos municípios nesse domínio temos que o princípio em crise admite claramente restrições desde que respeitados o princípio da proporcionalidade e aquilo que é o seu núcleo essencial.

LXVIII. Ora a operação de reprivatização da «A……………….» feita no quadro do processo de transformação do setor de resíduos, mormente, da gestão e exploração dos sistemas, transcende os interesses dos municípios, tanto mais que prossegue interesses que se prendem com a própria sustentabilidade económico-financeira dos sistemas multimunicipais tomados no seu conjunto, interesses a serem prosseguidos pelo Governo no âmbito daquilo que são as suas competências nesta matéria e que para serem prosseguidos não carecem do "acordo" dos municípios."

E também não ocorre a infracção do princípio da participação dos interessados na efectiva gestão dos serviços públicos (art.º 267.º, nºs. 1 e 2, da CRP), desde logo porque da reprivatização da Z....... não resulta qualquer redução do papel dos Municípios, pois estes, se assim o entenderem, mantêm a mesma participação social na concessionária (cf., neste sentido, o referido Ac. do STA de 1/2/2018).
Os AA. invocam ainda a violação do DL n.º 113/96, de 5/8 – pelo qual foi criado o sistema multimunicipal de triagem, recolha selectiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos do Vale do Minho, constituída a sociedade “X……..” e aprovados os respectivos estatutos –, bem como do dever de lealdade entre accionistas, por a transmissão da representação pública (estatal) no capital social da referida concessionária infringir a regra imperativa de 51% do seu capital ter de ser público e por a alteração dos mencionados estatutos ter de ser exercida, nos termos da lei comercial, em assembleia geral de accionistas, pois o Estado fundador esgotou o seu poder jurisgénico específico, passando a deter apenas os poderes próprios de um accionista.
Mas, tal como se entendeu no citado Ac. do STA de 1/2/2018, não têm razão.
Antes de mais, porque o processo de reprivatização da Z……… não implica qualquer transmissão de acções da “X…………” – as quais continuarão a ser detidas pela Z………. e pelos municípios – não sendo, por isso, aplicáveis as limitações estabelecidas pelo DL n.º 113/96 para a transmissão de acções dessa concessionária.
Além disso, este diploma legal – que não é uma lei de valor reforçado – pode ser derrogado, nos termos do art.º 7.º, do Código Civil, por outra lei ordinária posterior, pelo que se tem de entender que as suas normas incompatíveis com as do DL n.º 45/2014, de 20/3, foram por este revogadas, motivo por que os preceitos pretensamente violados não eram aplicáveis à data em que foi emitida a resolução impugnada.
De qualquer modo, por aplicação do art.º 35.º, n.º 1, do DL n.º 133/2013, de 3/10 – onde se prevê que as empresas públicas societárias criadas por decreto-lei, como sucedeu com a “X………..”, sejam extintas também por decreto-lei –, nada obstava a que a concessionária em causa deixasse de ser empresa pública em virtude de um decreto-lei, não sendo as suas normas estatutárias que exigiam a presença de capital maioritariamente público que o impediam, dado que, tendo sido aprovadas por decreto-lei, podiam ser afastadas por outro.
Não pode, assim, proceder o entendimento dos AA. que, uma vez aprovados os estatutos por via legislativa, o Estado não tinha o poder de os alterar desse modo, por não ter reservado para si próprio esse poder, pois não existe qualquer razão jurídica para que o legislador fique sujeito a limitações materiais que a Constituição não prevê. Aliás, como se refere no parecer junto aos autos pela entidade demandada (cf. fls. 289 a 399 dos autos), “afirmar que a concretização da reprivatização de uma empresa pública estaria dependente de uma deliberação das assembleias de todas as sociedades comerciais onde aquela tivesse participação maioritária equivaleria a sugerir que os actos legislativos de que a Constituição e a lei-quadro exclusivamente incumbiram concretizar qualquer reprivatização veriam a sua eficácia bloqueada por actos não legislativos”, o que seria inconcebível à luz da CRP, quer do art.º 3.º, n.º 3 – “que determina que são todos os actos jurídico-públicos que veem a sua validade depender da conformidade com a Constituição, e não a Constituição que vê a sua eficácia depender da conformidade com deliberações societárias de empresas públicas” –, quer do art.º 112.º, n.º 5 – “que, mesmo autorizando, à luz de uma leitura especialmente optimista, a modificação de estatutos aprovados por decreto-lei através de deliberações societárias, seguramente não autoriza que o decreto-lei fique impedido de voltar a modificar os estatutos e, curiosamente, fique mesmo impedido de adoptar medidas substantivas quanto a (outras) entidades que detenham participações maioritárias nas empresas cujos estatutos foram previamente aprovados também por decreto-lei”.
Nestes termos, não se verificando nenhum dos vícios que os AA. imputam à resolução impugnada, terá de improceder a presente acção administrativa especial.

4. Pelo exposto, acordam em julgar a acção totalmente improcedente, absolvendo os RR. do pedido.
Sem custas por isenção [artº. 4º, nº. 1, alínea g), do RCP], sem prejuízo do disposto nos nºs. 6 e 7 desse artº. 4.º.

Lisboa, 8 de Março de 2018. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Jorge Artur Madeira dos Santos.