Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0849/15
Data do Acordão:04/14/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:INJUNÇÃO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:O «procedimento de injunção» é utilizável na área administrativa, sempre que o respectivo operador económico o pretenda, e desde que se trate de um atraso de pagamento em «transacções comerciais», independentemente do valor da dívida.
Nº Convencional:JSTA00069653
Nº do Documento:SA1201604140849
Data de Entrada:10/01/2015
Recorrente:MUNICÍPIO DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO E OUTRA
Recorrido 1:A........, SA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - REC REVISTA EXCEPC.
Legislação Nacional:DL 404/93 DE 1993/12/10 ART6.
DL 269/98 DE 1998/09/01.
DL 186-A/99 DE 1999/05/31.
DL 32/2003 DE 2003/02/17 ART7
DL 107/2005 DE 2005/07/01.
DL 62/2013 DE 2013/05/10 ART2 N1 N2 A ART10 ART3 C.
DL 168/2000 DE 2000/08/05.
DL 285/2003 DE 2003/11/08.
PORT 433/99 DE 1999/06/16.
PORT 234/2003 DE 2003/03/17.
PORT 808/2005 DE 2005/09/09.
PORT 728-A/2006 DE 2006/07/24.
PORT 220-A/2008 DE 2008/03/04.
Legislação Comunitária:DIR 2000/35/CE DE 2000/06/29.
DIR 2011/7/UE DE 2011/02/16.
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. O MUNICÍPIO DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO [MVRSA] e B…………, SA [B…….], identificados nos autos, interpõem recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS], com data de 26.03.2015, que concedeu provimento ao recurso de apelação para ele interposto pela A…….., SA [A…….], e, em conformidade, revogou a sentença, de 22.05.2012, pela qual o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé [TAF] tinha absolvido da instância os ora recorrentes [MVRSA e B………] com base em «erro na forma de processo» e «ineptidão do requerimento inicial».

Conclui assim as suas alegações de revista:

1- Nos termos do nº1 do artigo 150º do CPTA, o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo é um meio reactivo que depende do preenchimento de um conjunto de pressupostos taxativamente previstos;

2- Exige-se que esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou que a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

3- No tocante à verificação dos pressupostos ou requisitos de que depende a admissibilidade de interposição do presente recurso de revista, têm os Recorrentes a dizer que deve o mesmo ser admitido tendo em vista uma melhor aplicação do direito, sendo certo que a questão aqui colocada também se reveste de uma importância fundamental. Verificam-se, pois, ambos os requisitos previstos no nº1, do artigo 150º, do CPTA;

4- Em 1º lugar, o presente recurso de revista deve ser admitido por se afigurar claramente necessário em face da importância fundamental [relevância jurídica e social] da questão colocada, procurando os Recorrentes uma resposta peremptória e definitiva para o seguinte problema: é possível mobilizar, em situações como a dos autos, o procedimento de injunção, no âmbito de litígios que se encontram cometidos à jurisdição administrativa? É esta a questão a que importa dar resposta, por via da admissão e consequente apreciação e decisão do presente recurso de revista;

5- A prova inequívoca da necessidade de resposta à questão em alusão encontra-se, antes de mais, [i] na circunstância de, nestes autos, ter sido proferida em 1ª instância, sem qualquer hesitação, uma decisão favorável à pretensão dos Recorrentes e [ii] no facto de existirem outros casos onde idêntica questão foi suscitada, sendo inequívoca a elevada probabilidade de a mesma se voltar a colocar em situações futuras;

6- A importância fundamental [relevância jurídica e social] da questão colocada deriva ainda da necessidade que se sente, na comunidade jurídica, de ser proferida, quanto à mesma, uma decisão de fundo, pelo Supremo Tribunal Administrativo. Tal necessidade resulta reforçada, atento o teor do parecer nº33/2011 da Procuradoria-Geral da República, no qual se concluiu, precisamente, que não é possível recorrer ao procedimento de injunção quando os litígios emerjam de relações jurídico-administrativas;

7- Em 2º lugar, o presente recurso de revista deve ser admitido por se revelar necessário para uma melhor aplicação do direito. Tendo o TCAS, no acórdão recorrido, sufragado a tese de que a A……….., SA, «podia lançar mão do procedimento de injunção quer contra o Município de Vila Real de Santo António, quer contra a B………., SA, dado estar em causa uma transacção comercial», dúvidas não podem restar de que o Tribunal a quo incorreu num manifesto erro judiciário carecido de correcção superior, por via da válvula de segurança do sistema legalmente prevista;

8- É assim porque, na situação em alusão, está em causa uma transacção estabelecida entre entes públicos e as obrigações resultantes de tais negócios não estão sujeitas ao mecanismo de injunção, atento o preceituado na alínea a) do artigo 3º do DL nº32/2003, de 17.02, aqui aplicável [ver o segmento final do artigo 13º, nº1 do DL nº62/2013, de 10.05], devendo ainda o disposto na alínea b) do mesmo preceito ser objecto de adequada interpretação e aplicação;

9- Justifica-se, assim, que as Recorrentes se dirijam a V. Exas., devendo o presente recurso ser admitido - e em fase subsequente apreciado e decidido - por verificação integral dos pressupostos legais previstos no nº1, do artigo 150º do CPTA;

10- Relativamente aos fundamentos materiais do presente recurso, há que notar que o Tribunal a quo incorreu num notório erro de julgamento. In casu, não podia a Recorrida ter lançado mão do procedimento de injunção, uma vez que a situação dos autos - em que a Recorrida peticionou o pagamento de 1.047.521,55€ - não cabe, nem na regra prevista no artigo 1º do DL nº269/98, de 01.09 [obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15.000,00€], nem tão-pouco no regime excepcional do artigo 7º do Anexo ao DL nº269/98, de 01.09 [obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo DL nº32/2003, de 17.02], uma vez que não estamos perante uma transacção que tenha sido efectuada: [i] entre empresas ou [ii] entre empresas e entidades públicas, mas antes realizadas, exclusivamente, entre entidades públicas;

11- Acrescente-se, ainda, que o presente caso não assenta numa transacção comercial realizada entre uma entidade pública e uma empresa, pois as actividades desenvolvidas pela Recorrida, pelos Recorrentes B……… e MVRSA - de interesse geral, público e sem carácter comercial - não se incluem, de modo algum, no conceito de empresa definido na alínea b) do artigo 3º do DL nº32/2003, de 17.02. Errou, pois, o Tribunal a quo ao adoptar um conceito amplo de empresa que habilitaria a Recorrida a mobilizar, no caso concreto, o procedimento de injunção;

12- De resto, no contexto do DL nº32/2003 [aqui aplicável] não foi intenção do legislador abarcar no conceito de «transacção comercial» os contratos públicos, conforme decorre do artigo 1º da Recomendação da Comissão, de 12.05.1995, sendo evidente que, no caso concreto, estamos perante a existência de um contrato administrativo;

13- Ora, não estando o caso vertente abrangido pela letra da lei [acima referida], nem tão pouco pela sua ratio e sendo proibida a aplicação analógica de normas [e de regimes] excepcionais [ver a regra geral prevista no artigo 11º do Código Civil], resta concluir que estamos perante um erro na forma de processo;

14- Nesta sequência, deverá o presente Supremo Tribunal revogar o acórdão recorrido e julgar verificado tal erro, não podendo haver lugar ao aproveitamento dos actos já praticados, uma vez que isso levaria a uma clara diminuição das garantias dos Recorrentes;

15- Num processo que se inicia com o procedimento de injunção [especialmente quando comparado com uma acção judicial proposta ab initio], as garantias das partes são, por natureza, muito limitadas, pelo que, o presente erro na forma de processo deverá importar a anulação de todo o processado, nos termos do estabelecido no artigo 193º, nºs 1 e 2, e ainda do artigo 278º, nº1, alínea b), do CPC [aplicáveis ex vi artigos 1º e 42º, nº1, do CPTA], tal como decidiu o TAF, julgamento que o TCAS erradamente, afastou.

Terminam pedindo a admissão e o provimento do recurso de revista.

2. A recorrida A…….. apresentou contra-alegações que concluiu assim:

A) É de todo inquestionável que foi efectuada uma correcta aplicação do direito pelo acórdão recorrido, tendo sido o direito devidamente aplicado;

B) O Parecer Jurídico não foi tido em consideração, e mui respeitosamente nem deve ser tido em consideração, salvo melhor opinião, pois atenta uma leitura e análise detalhada do mesmo, é claro que não mostra inequivocamente a inidoneidade do meio processual utilizado pela Recorrida A……….., SA;

C) A providência de injunção constitui um procedimento extrajudicial nos dois planos relevantes para o estabelecimento da respectiva natureza: institucional e funcional;

D) As secretarias actuam nesse procedimento como simples entidades administrativas desligadas da dependência funcional de um juiz;

E) Existe uma autonomia processual e institucional entre a providência de injunção que corre numa secretaria e o processo judicial que pode ter origem naquele;

F) A Constituição constituirá sempre um limite a desvios morfológicos e, fundamentalmente, à confusão entre: a) Um procedimento que corre perante agentes administrativos e sem produção de prova, visando um simples acto de verificação de requisitos formais; e b) uma acção judicial que envolve, pelo menos, duas partes e um juiz independente e terceiro;

G) A providência de injunção regulada no Regime Anexo ao DL nº269/98, de 01.09, constitui um procedimento extrajudicial instaurado por um alegado credor contra o seu alegado devedor que visa, na sequência de omissão de oposição do requerido, a formalização de um título executivo por um agente administrativo;

H) Esse procedimento administrativo só dá origem a uma acção declarativa em tribunal se se frustrar a notificação [e o requerente tiver expresso o desejo que, mesmo assim, o processo seguisse para a acção em tribunal] ou se o requerido tiver deduzido oposição;

I) A autonomia entre o procedimento de injunção e a acção jurisdicional declarativa precedida por providência de injunção determina, nomeadamente, que os pressupostos processuais, entre os quais a competência, devam ser apreciados pelo juiz depois da distribuição no tribunal judicial ou no tribunal administrativo e fiscal;

J) A providência de injunção constitui um procedimento autónomo da função jurisdicional sendo inadmissível uma metamorfose do procedimento administrativo em jurisdicional ou do título gerado pelo mesmo em judicial;

K) O Estado como pessoa colectiva pública pode ser sujeito de providência de injunção, desde que a mesma seja relativa a obrigações pecuniárias: a) emergentes de contratos de valor até 15.000€; ou então b) independentemente do valor, transacções comerciais estabelecidas com empresas privadas, comerciantes, profissionais liberais ou outras entidades públicas que originem o fornecimento de mercadorias ou a prestação de serviços;

L) Nas providências de injunção constitui um ónus do requerente identificar o requerido e o local da respectiva notificação bem como o tribunal para onde deve ser remetido o procedimento instaurado no Balcão Nacional de Injunções caso o mesmo deva dar origem a uma acção jurisdicional;

M) A secretaria responsável pela tramitação do procedimento extrajudicial de injunção não tem quaisquer competências de correcção oficiosa da pessoa do requerido indicada pelo requerente, nem do local da respectiva notificação, nem do tribunal competente para apreciar os autos [no caso de estes serem apresentados à distribuição], devendo, apenas, rejeitar o requerimento que omita esses dados;

N) Os direitos de acção e de acesso à justiça compreendem, nomeadamente, o direito do autor ou requerente escolher o visado pelo requerimento, não podendo o exercício dessa dimensão da autonomia privada ser condicionado por comando «a priori», sem força de lei, de qualquer entidade estatal;

O) Incorre-se em claro erro de hermenêutica quando se tenta excluir do conceito de transacção comercial, o crédito que a Recorrente detém sobre a empresa B………., EM, decorrente dos contratos de fornecimento de água e de recolha de efluentes, celebrados entre a sociedade A………., SA - concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de A……….. e a Sociedade B……. - e o Município de Vila Real de Santo António e, esta edilidade e a Sociedade B………, empresa a quem o Município adjudicou a concessão e gestão dos serviços públicos de distribuição de água e de saneamento de águas residuais;

P) A Recorrida reconheceu que passou a assumir a responsabilidade pelas dívidas inerentes ao período que seguiu ao Município e nada parece obstar a que a Recorrente se socorra do procedimento de injunção para se fazer pagar do crédito que detém sobre a empresa municipal e que provém de uma transacção comercial;

Q) Do requerimento de injunção constam todos os elementos pertinentes e necessários, ditos no artigo 467º do CPC, para que se possa conhecer uma decisão;

R) Foram juntos aos autos como prova documental, os contratos de abastecimento de água e de recolha de efluentes, contrato de concessão entre o Estado Português e o Município de VRSA, Acordo de Regularização de dívida, correspondência entre as partes, e as facturas dos serviços prestados;

S) Com o alargar do objecto do processo de injunção ao âmbito das relações jurídico-administrativas, por força do disposto no DL nº32/2003, de 17.02, deve ser entendido que os tribunais administrativos passam a ter competência para receber requerimentos de injunção, se estiver em causa dívida resultante de relação contratual com índole administrativa [neste sentido ver AC do TCAN de 01.07.2010, Rº00337/09.3BEAVR];

T) Em face da natureza administrativa destes contratos [de fornecimento de água para consumo humano e de saneamento] celebrados entre a Requerente e o Município de VRSA, no âmbito da concessão pelo Estado Português ao sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Algarve, o litígio existente entre as partes é do âmbito da competência dos tribunais administrativos [artigo 4º, nº1, alínea f), do ETAF, e artigo 212º, nº3, da CRP].

Termina pedindo que seja negado provimento a este recurso de revista, com a consequente manutenção do decidido pelo acórdão recorrido.

3. O recurso de revista foi admitido por acórdão deste STA [Formação a que alude o nº5 do artigo 150º do CPTA], nos termos seguintes:

[…]

«2.3. O problema de base que vem suscitado no recurso é o da aplicação na jurisdição administrativa dos procedimentos regulados no regime anexo ao DL nº269/98, de 01.09. Na expressão dos recorrentes o que realmente importa dilucidar, em definitivo, é saber se, em casos estruturalmente análogos ao dos autos, se pode lançar mão do procedimento de injunção no âmbito de litígios que se encontram cometidos à jurisdição administrativa.

O TAF concluiu em sentido negativo; o TCA em sentido contrário.

Conquanto ambas as decisões tenham assentado, depois, numa análise dos termos concretos do requerimento inicial de injunção, para a verificação da sua aptidão, enquanto petição inicial, a verdade é que partiram de uma primeira solução, também divergente, quanto àquela fundamental questão base.

A divergência das instâncias revela a sua dificuldade e importância, que se ilustra, também, no Parecer da Procuradoria-Geral da República nº33/2011, no sentido de que: Os procedimentos regulados no regime anexo ao DL nº269/98, de 01.09 [acção declarativa especial e injunção], têm aplicação apenas no âmbito da jurisdição comum, sendo inaplicáveis na jurisdição administrativa.

A matéria merece, portanto, uma pronúncia deste Supremo Tribunal que possa servir de orientação clarificadora.

3. Pelo exposto, admite-se a revista.»

[…]

4. O Ministério Público [notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigos 146º, nº1, do CPTA] não se pronunciou.

5. Colhidos os «vistos» legais, cumpre apreciar e decidir.

II. De Facto

Das instâncias vem provada a seguinte matéria de facto:

A. No dia 26.05.2001 foi celebrado entre o Estado Português e as A……… acordo escrito denominado «Contrato de Concessão entre o Estado Português e A……….., S.A.» - ver folhas 79 a 101 dos autos;

B. Foi outorgado entre o Município de Vila Real de Santo António e a B……….., S.A., acordo escrito denominado «Contrato de Gestão entre o Município de Vila Real de Santo António e a B……….., S.A.» - ver folhas 136 a 164 dos autos;

C. No dia 18.02.2005 foi celebrado entre o Município de Vila Real de Santo António e a A……., S.A., acordo escrito denominado «Contrato de Fornecimento entre o Município de Vila Real de Santo António e a A………., S.A.» - ver folhas 227 a 231 dos autos;

D. A………., S.A., requereu, em 05.12.2012, no Balcão Nacional de Injunções, fossem notificados o Município de Vila Real de Santo António e a B…….., ….., S.A., para proceder ao pagamento da quantia de 1.047.521,55 €, sendo 992.663,19 € a título de capital e 54.705,36 € a título de juros de mora – ver folhas 4 e 5 dos autos;

E. Consta do referido requerimento o seguinte:

[…]

«Contrato de: Fornecimento de bens ou serviços

Data do contrato: 01.12.2010. Período a que se refere: 01.12.2010 a 30.05.2011.

Exposição dos factos que fundamentam a pretensão:

1º - A requerente é uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos e concessionária, em regime de exclusivo, da concessão da exploração e gestão, as quais abrangem a concepção, a construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção, do sistema multimunicipal de abastecimento de A………., para captação, tratamento e distribuição de água para consumo público dos municípios de Albufeira, Alcoutim, Aljezur, Castro Marim, Faro, Laga, Lagos, Loulé, Monchique, Olhão, Portimão, São Brás de Alportel, Silves, Tavira, Vila do Bispo e Vila Real de Santo António [DL nº285/2003, de 8 de Novembro].

2º - No âmbito dessa concessão, a Requerente celebrou com o Município de Vila Real de Santo António, que é utilizador do sistema multimunicipal, ora Requerido e aqui representado pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal, um contrato de fornecimento de água para consumo humano e um de recolha de efluentes, nos termos e de acordo com as condições previstas nos contratos firmados.

3º - No entanto o Município de Vila Real de Santo António cedeu a sua posição contratual à B………., S.A., ora Requerida, e aqui representada pelo Sr. Presidente do Conselho de Administração, com efeitos a partir de 1 de Novembro de 2010, pelo que os Requeridos são solidariamente responsáveis.

4º - No exercício da referida concessão, a Requerente prestou aos Requeridos, serviços que respeitam a captação, tratamento e distribuição da água para consumo humano, conforme as facturas que passamos a enunciar:

[…] - ver folhas 3 e 4 dos autos.

E é tudo quanto a factualidade provada.

III. De Direito

1. Em 05.12.2011 a A…….. apresentou junto do Balcão Nacional de Injunções [BNI] um «requerimento de injunção», reclamando do MVRSA e da B…….. o pagamento da quantia de 1.047.521,55€, incluindo capital e juros de mora.

Invocava, para tal, o contrato de fornecimento celebrado em 01.12.2010 entre ela e o MVRSA - que posteriormente cedeu a sua posição contratual à B…….. - no âmbito do qual teria prestado a este último «serviços de captação, tratamento e distribuição de água para consumo humano», cujo pagamento, embora devidamente facturado e reclamado, ainda não tinha sido satisfeito.

No requerimento de injunção a A…….. expressou a vontade de ver submetido o respectivo requerimento a «distribuição», no caso de tal se mostrar necessário, e indicou como tribunal competente para a mesma o TAF de Loulé.

Notificados, os requeridos deduziram «oposição», por impugnação e excepção, na sequência da qual, e nos termos legais, foi o requerimento enviado ao TAF de Loulé para distribuição.

Por «saneador-sentença» de 22.05.2012, o TAF de Loulé entendeu não ser de aplicar, ao caso, o procedimento de injunção, entendeu que ocorria «erro na forma de processo», e entendeu que o requerimento de injunção era inepto por «falta de indicação da causa de pedir ou de qualquer suporte fáctico que a permitisse descortinar, mesmo que implicitamente», e, deste modo, era inaproveitável para efeitos de adequação formal [normas citadas: artigos 12º, do DL nº269/98, de 01.09, alterado e republicado pelo DL nº107/2005, de 01.07; 7º, do Anexo ao DL nº269/98, de 01.09; 3º, alínea a), do DL nº32/2003, de 17.02; 199º, 265º-A, 462º, 494º, alínea b), 495º, e 288º, nº1 alínea b), todos do CPC].

O TCAS, por acórdão datado de 26.03.2015, concedeu provimento ao recurso de apelação interposto pela A………, revogou a dita decisão do TAF de Loulé, e mandou baixar os autos para aí prosseguirem a sua pertinente tramitação, caso nada mais obstasse a tal.

Entendeu, para isso, que a A………. podia, no caso, socorrer-se do procedimento de injunção - por estarem em causa «transacções comerciais» entre «uma empresa e uma entidade pública» -, e que o requerimento inicial não sofria de «ineptidão por falta de indicação da causa de pedir», como considerou o TAF de Loulé, dado o mesmo conter «a exposição dos factos que fundamentam a pretensão» [normas citadas: artigos 7º, do DL nº269/98, de 01.09, na redacção dada pelo DL nº32/2003, de 17.02; 1º do DL nº269/98, de 01.09, na redacção dada pelo DL nº303/2007, de 24.08; 2º, e 7º, nº2, do DL nº32/2003, de 17.02].

Os recorridos MVRSA e B…….., discordando do decidido pelo TCAS interpõem este recurso de revista, apontando ao acórdão recorrido erro de julgamento de direito porque, em seu entender, a A…….. não podia ter usado o procedimento de injunção, e esse erro na forma de processo deverá conduzir à «anulação de todo o processado», como decidiu a primeira instância.

2. O procedimento de injunção foi criado pelo DL nº404/93, de 10.12, visando, sobretudo, atalhar a chamada «litigância em massa», que entupia os tribunais da jurisdição cível com cobranças de dívidas a devedores relapsos e que davam origem a acções sumaríssimas que terminavam, normalmente, em condenações de preceito [artigo 795º do CPC então em vigor]. Surgiu, segundo o seu preâmbulo, como fase intercalar criada no âmbito da revisão da legislação processual civil, então em curso, com natureza desjurisdicionalizada, que, alegadamente, não diminuía as garantias das partes intervenientes no tocante ao «direito constitucional de acesso à justiça através dos tribunais».

Visava-se, por um lado, libertar os juízes de processos de natureza «bagatelar», e, por outro lado, criar estruturas judiciárias e fórmulas processuais simples, e céleres, que permitissem, num tempo razoável, resolver as questões relativas à cobrança de dívidas de pequeno montante que não tinham, na sua maioria, um qualquer litígio subjacente.

Em 12.05.1995, uma recomendação da Comissão Europeia, relativa «aos prazos de pagamento nas transacções comerciais» [in JO L 127, de 16.06.95, página 19], convidou os Estados-Membros a «tomar as medidas jurídicas e práticas necessárias para respeitar os prazos de pagamento contratuais nas transacções comerciais, e para assegurar prazos de pagamento melhores nos contratos públicos», visando, e para além do mais, «melhorar o pagamento nos contratos públicos» [artigo 1º].

Segundo a mesma, «Convém assegurar que os credores vítimas de atrasos de pagamento tenham à sua disposição meios de recurso rápidos e pouco onerosos, com vista a obterem o pagamento e a reparação dos prejuízos sofridos», e, neste sentido, convidou os vários Estados-Membros a «Promover a aplicação de processos extrajudiciais de resolução dos litígios, que possibilitem uma conclusão rápida, eficaz e pouco onerosa dos litígios relativos a pagamentos» [artigo 4º].

O DL nº269/98, de 01.09, reconhecendo ser «inadiável» contrariar os «efeitos perversos» da instrumentalização dos nossos tribunais, por parte dos grandes utilizadores, como órgãos de reconhecimento e cobrança de dívidas, aprovou o regime dos procedimentos «para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância» [Anexo], entre os quais se conta o «procedimento de injunção» [capítulo II do Anexo].

No preâmbulo desse diploma, o legislador manifesta a intenção de «incentivar o uso do procedimento de injunção», cuja tramitação manteve, no essencial, com o figurino que lhe foi dado pelo diploma de 1993 [DL nº404/93, de 10.12].

Através da Portaria nº902/98, de 15.10, foi aprovado o «modelo de impresso» do requerimento de injunção.

O DL nº186-A/99, de 31.05 - que aprovou o regulamento da Lei nº3/99, de 13.01 [LOFTJ] - veio prever a possibilidade de criação, no âmbito dos tribunais judiciais de 1ª instância, de secretarias judiciais que se destinassem a assegurar a tramitação do procedimento de injunção [artigo 16º, nº4].

Através da Portaria nº433/99, de 16.06, foram criadas secretarias destinadas a assegurar a tramitação do procedimento de injunção em Lisboa e no Porto, que ficaram conhecidas por «secretarias-gerais de injunção».

A Directiva 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29.06.2000, veio prever «medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais», fazendo referência, nos seus considerandos, à dita recomendação da Comissão, de 12.05.95, e, sobre «Procedimentos de cobrança de dívidas não impugnadas» prescreve que «Os Estados-Membros devem assegurar que seja possível obter um título executivo válido, independentemente do montante da dívida, em regra no prazo de 90 dias a contar da apresentação do requerimento ou petição pelo credor ao tribunal ou outra entidade competente, desde que não haja impugnação da dívida ou de aspectos processuais. […]» [artigo 5º].

O DL nº32/2003, de 17.02, fixou o «regime especial relativo a atrasos de pagamento em transacções comerciais», transpondo a Directiva 2000/35/CE, tendo alterado vários artigos do DL nº269/98. Estatui no seu artigo 7º, sobre a «Aplicação do regime da injunção», que «1- O atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida; 2- Para valores superiores à alçada do tribunal de 1ª instância, a dedução de oposição no processo de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum». Este regime especial aplica-se a «todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais», sendo excluídos os «contratos celebrados com consumidores» [artigo 2º nº1 e nº2 alínea a)].

Pela Portaria nº234/2003, de 17.03, foi aprovado novo «modelo de impresso» do requerimento de injunção.

O DL nº107/2005, de 01.07, veio introduzir várias alterações ao regime jurídico anexo ao DL nº269/98. Diz-se no seu preâmbulo que «Com o presente diploma, e tendo em conta a boa experiência obtida neste domínio, procede-se ao alargamento do âmbito de aplicação do regime jurídico da injunção, que passa a destinar-se a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação, actualmente de 14.963,94€. Espera-se, desta forma, descongestionar significativamente os tribunais, permitindo a transferência anual de milhares de acções para as secretarias de injunção».

E altera o artigo 7º do DL nº32/2003, onde se passa a estatuir que «[…] 2- Para valores superiores à alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum. 3- Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais. […]».

Pela Portaria 808/2005, de 09.09, foi aprovado novo «modelo de impresso» de requerimento de injunção.

A Portaria nº728-A/2006, de 24.07, por sua vez, veio regulamentar a «entrega do requerimento de injunção pela internet», prosseguindo na senda, adoptada, de desmaterialização dos processos.

A Portaria nº220-A/2008, de 04.03, extinguiu as secretarias-gerais de injunção, criadas em 1999 [Portaria nº433/99, de 16.06], e criou uma «secretaria-geral» designada por «Balcão Nacional de Injunções» [BNI], atribuindo-lhe competência em todo o território nacional para a tramitação dos procedimentos de injunção [artigo 3º].

A Directiva 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.02.2011, visando estabelecer medidas de luta «contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais», a fim de, para além do mais, «assegurar o bom funcionamento do mercado interno […]» [seu artigo 1º, nº1], procedeu a uma substancial reformulação da Directiva 2000/35/CE - que revogou com efeitos a partir de 16.03.2013 [artigo 13º] - e declarou aplicar-se «a todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais» [artigo 1º nº2]. Sobre «Procedimentos de cobrança de dívidas não impugnadas» prescreveu que «Os Estados-Membros asseguram que seja possível obter-se um título executivo válido, incluindo por via de procedimentos expeditos e independentemente do montante da dívida, normalmente no prazo de 90 dias de calendário a contar da apresentação do requerimento ou da petição pelo credor ao tribunal ou outra entidade competente, desde que não haja impugnação da dívida ou de aspectos processuais. […]» [artigo 10º].

Por fim, o DL nº62/2013, de 10.05, transpôs para a ordem jurídica interna esta Directiva, procedendo à revisão do respectivo regime e à sua substituição à luz do novo texto comunitário [diploma actualmente em vigor].

Mas manteve em vigor o regime que facilita ao credor a «obtenção de um título executivo», permitindo-lhe o recurso à injunção independentemente do valor da dívida. Este diploma aplica-se a todos os pagamentos feitos «como remuneração de transacções comerciais», sendo excluídos os contratos «celebrados com consumidores» [artigo 2º nº1 e nº2 alínea a)].

No seu artigo 10º diz, expressamente, que «1- O atraso no pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida. 2- Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum. 3- Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais».

3. O procedimento de injunção surge, assim, como um meio célere, simplificado e desburocratizado, visando a obtenção de um «título» para o respectivo credor poder aceder à acção executiva. Mas surge ainda como meio facultativo, já que a lei não o impõe, antes fornece elementos literais eloquentes no sentido dessa natureza não obrigatória [ver, entre outros, artigos 449º, nº2 alínea d), do CPC, na redacção dada pelo DL nº34/2008, de 26.02; 10º, nº2 alínea j), e 13º-A, do regime Anexo ao DL nº269/98, de 01.09, republicado pelo DL nº107/2005, de 01.07].

Inicia-se com a entrada do requerimento de injunção no actual ....... , sendo este o acto inaugural do procedimento tendente a alcançar o desiderato de obtenção de um título executivo, e que equivale, em termos simplificados, a uma petição inicial. Efectivamente, nesse requerimento deverá o requerente, além do mais, «Expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão», ou seja, expor a causa de pedir, e formular o pedido «com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas» [alínea d) e e) do nº2 do artigo 10º do regime Anexo ao DL nº269/98, de 01.09, republicado pelo DL nº107/2005, de 01.07].

«Notificado» deste requerimento de injunção, a alternativa que se apresenta ao requerido é esta: ou opta por «não deduzir oposição», sujeitando-se ao efeito cominatório da atribuição de exequibilidade imediata à pretensão mediante a aposição da correspondente fórmula executória pelo secretário judicial, assim possibilitando ao credor requerente a passagem imediata à fase executiva, sem necessidade do processo seguir para julgamento; ou «deduz oposição» através da apresentação de todos os meios de defesa pertinentes, impedindo, assim, a produção do referido efeito cominatório e obrigando a julgamento judicial [regime Anexo ao Dl nº269/98, de 01.09, republicado pelo DL nº107/2005, de 01.07].

Temos, pois, que o procedimento de injunção, enquanto meio célere, simples e desjurisdicionalizado, alcança o seu «objectivo» se, notificado o requerido, este não deduz oposição, caso em que o secretário aporá a fórmula executória [artigo 14º do regime Anexo ao DL nº269/98, de 01.09, republicado pelo DL nº107/2005, de 01.07], constituindo-se, assim, um «título extrajudicial», pois que não resulta da actividade de um juiz.

Note-se que a natureza administrativa da autoridade que dirige o procedimento de injunção não é posta em causa pela possibilidade de ocorrerem incidentes judiciais por força da impugnação da «recusa do requerimento de injunção» ou de outra questão sujeita a decisão judicial [artigo 11º, nº2, e artigo 16º, nº2, do regime Anexo ao DL nº269/98, de 01.09, republicado pelo DL nº107/2005, de 01.07]. Estas intervenções judiciais têm uma natureza avulsa no procedimento de injunção, sendo um desvio no iter que conduz à verificação, pelo secretário, dos requisitos para aposição da «fórmula» que atribui a força executiva ao documento: «Este documento tem força executiva» [artigo 14º, nº1, do regime Anexo ao DL nº269/98, de 01.09, republicado pelo DL nº107/2005, de 01.07].

Frustrando-se o seu «objectivo», o que sucede se for deduzida oposição ou não for possível notificar o requerido, cessa o procedimento de injunção e os autos passam a tramitar-se em juízo, após «distribuição» [artigos 16º e 17º do regime Anexo ao DL nº269/98, de 01.09, republicado pelo DL nº107/2005, de 01.07].

Por isso mesmo, além dos já referidos, e de outros, o operador económico deve indicar, no requerimento de injunção, o tribunal competente para a apreciação dos autos se forem apresentados à distribuição [artigo 10º, nº4, do regime em referência].

Com a dedução de «oposição», pelo requerido, o «procedimento de injunção» convola-se, ou transmuta-se, portanto, em «acção declarativa de condenação», cabendo ao requerente assegurar-se de que no requerimento de injunção estão todos os elementos factuais necessários a preencher a «causa de pedir», sendo certo que, como acima vimos, sempre pode, e deve, o respectivo juiz «convidar ao aperfeiçoamento», se necessário.

4. Nos dois últimos pontos deste acórdão procuramos referir-nos, brevemente, à génese, à teleologia, e ao regime do procedimento de injunção, com o fito de encararmos, ainda que focados, somente, no objecto deste recurso de revisão, a questão da aplicação, ou não, desse procedimento extrajudicial no âmbito da jurisdição administrativa.

O circunstancialismo histórico, e o elemento teleológico, que estiveram na base da criação da figura do procedimento de injunção, obviamente que não tiveram em conta a jurisdição administrativa [ponto 2 supra]: a «injunção» surgiu como uma das medidas legislativas que visou acorrer à litigância em massa que se estava a verificar no âmbito da jurisdição cível.

Tão pouco era previsto no contencioso administrativo o processo sumaríssimo, que o artigo 6º do DL nº404/93, de 10.12, mandava observar na «tramitação» de procedimento de injunção sujeito a distribuição, por ter havido oposição ou por se ter frustrado a notificação do requerido. Efectivamente, até 31.01.2003, tanto as acções relativas a contratos administrativos como as acções relativas a responsabilidade civil por actos de gestão pública seguiam, independentemente do seu valor, os termos do processo civil de declaração na forma ordinária [artigo 72º, nº1, da LPTA].

Sem negar, porém, aquele cordão umbilical civilista, e esse fim eminentemente prático do procedimento de injunção, verdade é que se detecta uma autonomia processual e institucional entre o mesmo, que corre na secretaria, e o processo judicial a que pode dar origem. Sendo que tal independência jurídico-processual verificada entre um e outro convive com a possibilidade de conexão diacrónica entre esses procedimentos extrajudiciais e eventuais acções judiciais.

No plano desta conexão diacrónica, de procedimento de injunção que «transite para acção judicial», deverá o juiz apreciar o requerimento e a oposição, caso a mesma exista, numa perspectiva «jurisdicional», aferindo a competência do seu tribunal, e mandando aperfeiçoar as peças, se necessário, para valerem como articulados.

Deste jeito, o procedimento de injunção, sublinhamos, constitui «procedimento extrajudicial» quer no plano institucional quer no plano funcional, e sendo certo que pode dar origem a uma acção judicial é «autónomo» dela. Assim, à partida, nada, em princípio, parece impedir que este meio célere e desburocratizado de obter um documento com força executiva possa ser utilizado fora do âmbito da jurisdição comum.

É nesta perspectiva que devemos entender o aproveitamento que o legislador, ao transpor para a ordem interna as directivas acima referidas, lançou mão do procedimento de injunção como instrumento, por ele criado em 1993, e revisto em 1998, e apto a obter um título executivo válido, de forma célere, nos termos que lhe eram impostos pelo Direito da União Europeia [Directiva 2000/35/CE, transposta pelo DL nº32/2003, de 17.02; Directiva 2011/7/UE, transposta pelo DL nº62/2013, de 10.05].

Resulta, assim, que pelo menos no âmbito que aqui nos interessa, por referente ao objecto deste recurso de revista, o procedimento de injunção é utilizável na área administrativa, sempre que o respectivo operador económico o pretenda, e desde que se trate de um atraso de pagamento em «transacções comerciais», independentemente do valor da dívida, e que, para valores superiores à alçada da Relação, a dedução de «oposição», no procedimento de injunção, determina a remessa dos autos para o tribunal competente, «aplicando-se a forma de processo comum» [artigo 7º, nº1 e nº2, do DL nº32/2003, de 17.02, alterado pelo DL nº107/2005, de 01.07; e artigo 10º, nº1, do DL nº62/2013, de 10.05].

Aliás, se dúvidas razoáveis houvesse, e cremos não haver, sempre as mesmas deveriam ser resolvidas em sentido positivo, pois não admitir o «procedimento de injunção» na jurisdição administrativa, e no universo litigioso em referência, corresponderia a uma discriminação negativa de credores de entidades públicas que contraria o princípio da interpretação conforme o direito da União Europeia.

O DL nº32/2003, de 17.02, vigente no período temporal aqui em causa [ver matéria provada], e na linha da directiva que transpôs, definia «transacção comercial» como sendo «qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração». E, precisando conceitos ínsitos na definição de «transacção comercial», definia «empresa» como «qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular» [artigo 3º, alíneas a) e b), do DL nº32/2003, de 17.02; artigo 2º, ponto 1, da Directiva 2000/35/CE; e, sem alterações substanciais, artigo 3º, alíneas b) e d), do DL nº62/2013, de 10.05, e artigo 2º, pontos 1 e 3, da Directiva 2011/7/UE].

«Entidade pública», embora não definida no DL nº32/2003, mostrava-se definida na directiva que ele transpôs como sendo qualquer autoridade ou entidade contratante definida nas directivas relativas aos concursos públicos [92/50/CEE, 93/37/CEE e 93/38/CEE].

Nas palavras da actual alínea c) do artigo 3º do DL nº62/2013, entidade pública é «uma entidade adjudicante definida no artigo 2º do CCP, independentemente do objecto ou do valor do contrato».

5. Importa saber, portanto, se no presente caso, tendo em conta a «matéria de facto provada», e tudo o que «de direito» acabamos de dizer, estamos perante um atraso de pagamento em transacção comercial, a que seja aplicável, assim, e independentemente da «natureza da relação jurídica subjacente», o referido procedimento de injunção.

A A….., requerente no procedimento de injunção, autora na acção declarativa de condenação dele emergente, e agora recorrida, foi constituída por fusão das sociedades «………….., SA» e «…………, SA», e «rege-se pelo DL nº168/2000, de 5 de Agosto, pelos seus estatutos e pela lei comercial» [artigo 1º, nº1 e nº2, do DL nº168/2000, de 05.08].

Tem por objecto social «a exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de …………… e do ……………» [artigo 3º do DL nº168/2000, de 05.08], e é, desde 26.05.2001 [data do contrato de concessão – folhas 79 a 101 dos autos] e até 31.12.2025 [artigo 3º do DL nº285/2003, de 08.11], a concessionária exclusiva do «sistema multimunicipal de abastecimento de A………», criado pelo DL nº285/2003, de 08.11 [artigos 1º e 3º deste diploma].

Segundo ao artigo 6º do DL nº285/2003 «1- A articulação entre o sistema explorado e gerido pela concessionária e o sistema correspondente de cada um dos municípios utilizadores é assegurada através de contratos de fornecimento celebrados entre a concessionária e cada um dos municípios», e, por sua vez, os utilizadores finais «devem efectuar a ligação ao sistema explorado e gerido pela concessionária» [nº2].

Trata-se, pois, de uma sociedade de capitais maioritariamente públicos [capítulo III dos Estatutos - Anexo ao DL nº168/2000, de 05.08], concessionária do «sistema multimunicipal de abastecimento de A………», e, enquanto tal, detentora de todo um conjunto de factores de produção, de natureza muito diversa, que lhe permitem levar a cabo a «captação, tratamento e abastecimento de água» nas condições exigidas.

Ou seja, de uma sociedade que dispõe de uma unidade autónoma de produção de serviços, consistentes na «captação, tratamento e abastecimento de água», e que os produz para um mercado pelo qual se regula. O que significa que nos encontramos perante uma «empresa», no sentido amplo do termo, e que é, ao que tudo indica, o sentido utilizado na alínea b), do artigo 3º, do DL nº32/2003, de 17.02.

Por sua vez, não há dúvida de que os requeridos no procedimento de injunção - MVRSA e B…….. - cabem, perfeitamente, no âmbito subjectivo do conceito de «transacção comercial» utilizado nos diplomas que transpõem as duas citadas directivas. O MVRSA, seguramente enquanto «entidade pública» autárquica. E a B……. seja uma coisa ou outra, isto é, seja considerada entidade pública ou empresa.

As «directivas» transpostas visavam «melhorar os pagamentos nos contratos», evitando «atrasos nos pagamentos nas transacções comerciais», tudo na mira do «bom funcionamento do mercado interno». O que significa que, no fundo, é indispensável ao conceito de «transacção comercial» a existência de uma entidade - seja entidade pública propriamente dita ou empresa - carente de bens ou de serviços, e uma empresa que os produza e lhos faculte mediante remuneração.

Estamos, no presente caso, face ao «atraso no pagamento» da verba líquida de 1.047.521,55€, emergente de uma verdadeira «transacção comercial» no sentido definido pelas ditas directivas e diplomas internos que as transpõem.

Nada impedia, assim, que na situação dos autos fosse mobilizado pela A……. o «procedimento de injunção», nos termos em que o fez, independentemente da «natureza jurídica» da relação contratual subjacente.

E, por via disso, o acórdão recorrido, proferido pelo TCAS, ao entender que, no caso, a A……. podia socorrer-se do procedimento de injunção, não havendo, neste aspecto, «erro na forma do processo», fez uma correcta interpretação e aplicação das pertinentes normas legais.

6. «Distribuído» o procedimento de injunção em que foi deduzida oposição ou em que se frustrou a notificação do requerido, já o deixamos dito, deverá o juiz aferir, para além da competência do tribunal, da idoneidade das peças que lhe são distribuídas para servirem como «articulados». E embora resulte das regras gerais, esse comportamento é-lhe imposto, como vimos, por norma especial.

No nosso caso, tanto o pedido como a causa de pedir resultam suficientemente delineadas, cremos, no requerimento de injunção, como se torna patente pela consulta da matéria provada e pela síntese que da mesma acima fizemos [ponto 1], e a oposição deduzida pelas requeridas, que se defenderam por impugnação e por excepção [folhas 14-38 dos autos], demonstra bem a real e efectiva possibilidade de defesa que lhes foi concedida.

De qualquer modo, e assim não sendo entendido, o «convite» referido sempre se impunha ao julgador competente a quem o processo fosse distribuído.

Não há, pois, e novamente, qualquer motivo para qualificar o entendimento do acórdão recorrido - segundo o qual o requerimento inicial não sofria de «ineptidão por falta de indicação da causa de pedir» - como errado e carente de alteração.

Improcede, na sua totalidade, o «erro de julgamento de direito» apontado pelas recorrentes da revista ao acórdão recorrido, cuja decisão se deve manter.

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos negar provimento ao presente recurso de revista, e em conformidade manter a decisão recorrida.

Custas pelas recorrentes

Lisboa, 14 de Abril de 2016. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins PortelaAlberto Acácio de Sá Costa Reis.