Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01576/21.4BEPRT
Data do Acordão:02/16/2023
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
PROGRAMA DE CONCURSO
CLAUSULA ILEGAL
PRINCÍPIO DA CONCORRÊNCIA
DISCRICIONARIEDADE
Sumário:É de admitir revista na qual se pretende discutir a ilegalidade das cláusulas 6.1 d) e 10 do programa do concurso, por porem em causa a concorrência, sendo, segundo as instâncias, violadores do princípio da concorrência previsto no art. 1º-A do CCP, por se tratar de interpretação que envolve dificuldades óbvias, nomeadamente, quanto aos limites da discricionariedade administrativa, e dita consequências práticas relevantes no âmbito dos concursos públicos, podendo, assim, ser repetível, tanto administrativamente, como em sede judicial.
Nº Convencional:JSTA000P30598
Nº do Documento:SA12023021601576/21
Data de Entrada:02/02/2023
Recorrente:AGERE - EMPRESA DE ÁGUAS, EFLUENTES E RESÍDUOS DE BRAGA, E.M.
Recorrido 1:S..., LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Formação de Apreciação Preliminar

Acordam no Supremo Tribunal Administrativo


1. Relatório
AGERE – Empresa de Águas, Efluentes e Resíduos de Braga, EM, Demandada nos autos em que é Autora S..., Lda, e Contra-interessada (CI) C..., Lda, vem interpor recurso de revista, nos termos do art. 150º do CPTA, do acórdão do TCA Norte de 07.12.2022, que negou provimento ao recurso que interpusera da sentença proferida pelo TAF do Porto, Juízo de Contratos Públicos, de 26.08.2022, que reconheceu o direito da A. a ser indemnizada na presente acção de contencioso pré-contratual que intentou, convidando as partes a acordarem no montante da indemnização.
No seu recurso defende a Recorrente que se encontram preenchidos os requisitos estabelecidos no art. 150º, nº 1 do CPTA para a admissão da revista, já que a questão em apreço tem relevância jurídica e social para a Administração Pública, por a contratação pública ser inerente à actividade diária dos entes públicos, sendo necessária uma melhor aplicação do direito.

Em contra-alegações a Autora/ Recorrida defende que o recurso de revista não deve ser admitido, por não se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos, ou que deve improceder.

2. Os Factos
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

3. O Direito
O art. 150º, nº 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de uma importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como resulta do próprio texto legal, e a jurisprudência deste STA tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como, aliás, o legislador sublinhou na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, considerando o preceito como uma “válvula de segurança do sistema”, que só deve ter lugar, naqueles precisos termos.

A Autora da presente acção de contencioso pré-contratual pediu, em síntese, i) a declaração de ilegalidade e consequente desaplicação dos pontos 6.1 al. d) e 10 do Programa do Procedimento; ii) a anulação do acto de adjudicação e do contrato, caso o mesmo tenha sido ou venha a ser celebrado; iii) a condenação da R. a readmitir a proposta da A., avaliando-a e graduando-a por aplicação do critério de adjudicação, ou, subsidiariamente; iv) a anulação do procedimento concursal por ilegalidade das peças do procedimento (PP e CE).

O TAF do Porto, decidiu o seguinte:
a. Reconhece-se o bem fundado da pretensão deduzida pela A., no que respeita ao pedido de anulação da deliberação do Conselho de Administração da Agere de 20.5.2021 de exclusão da proposta da A. e adjudicação à proposta da C... do concurso público para – Aquisição de Varredora Compacta classe 4mc descarga elevada e Serviço de Manutenção, à anulação do contrato celebrado entre a Entidade Demandada e a Contrainteressada em 25.6.2021 tendo por objeto a aquisição da varredora urbana compacta classe 4 mc descarga elevada e serviços de manutenção e à condenação da ED a reiniciar o procedimento pré-contratual, eliminando do Programa do Procedimento as disposições contidas nas cláusulas 6.1. al. d) e 10, e a proceder à reabertura do procedimento concursal, prosseguindo com a sua normal tramitação;”.
No entanto, conforme a alínea b. da decisão, reconheceu-se ser de todo impossível reinstruir o procedimento pré-contratual, por, entretanto ter sido celebrado e executado o contrato, pelo que se reconheceu pelo referido em b., ter a A. direito a ser indemnizada, convidando-se as partes a acordarem no montante da indemnização devida no prazo de 30 dias (als. c. e d. do decisório).

O TCA Norte para o qual a Demandada apelou, no acórdão recorrido concordou com o decidido na 1ª instância, considerando, em síntese que na ilegalidade das cláusulas 6.1, d) e 10 do Programa do Procedimento, julgada verificada pela sentença do TAF, entendimento que se apoiava “em elementos que resultara, na livre apreciação do Tribunal «a quo», em prova pericial, como devidamente fundamentado na decisão sobre a matéria de facto e acervo probatório assente”.
Mais considerou que, face à alegação da Recorrente que não podia ver coarctada a sua discricionariedade técnica com vista a suprir diferentes capacidades das empresas, tendo a sentença incorrido em erro de julgamento de direito, concretamente das referidas cláusulas, “(…), neste caso, como se disse, não se vislumbra a possibilidade de uma tal apreciação, independentemente do resultado, poder restringir a sua discricionariedade técnica, questão que não se confunde com a imposição de decisão jurisdicional que, no caso concreto, impeça que, no exercício dessa discricionariedade técnica, a Recorrente possa violar a juridicidade aplicável”, não consubstanciando a discricionariedade técnica uma liberdade ilimitada, antes tendo limites, internos e externos.
Por fim, alegou a Recorrente de que a própria A./Recorrida alegara nos artigos 88 a 97 da sua p.i. que o seu equipamento era equivalente e a sua proposta deveria ter sido admitida ao abrigo do art. 49º, nº 10 do CCP; no entanto, ao não apresentar a amostra a Recorrida colocou-se, voluntariamente, na situação de exclusão do procedimento, por não poder o júri verificar se o art. 49º, nº 10 do CCP era ou não de aplicar [e só com a apresentação da amostra e com a pronúncia do júri sobre a equivalência do equipamento é que a Recorrida podia concluir pela ilegalidade das referidas cláusulas 6.1. d) e 10 do Programa do Procedimento]. O acórdão recorrido entendeu que “As especificações técnicas exigidas pelo Caderno de Encargos são de tal forma singulares e únicas (reportadas, aliás, a uma única marca/oferta operante no mercado), desprovidas da menção «ou equivalente», que a própria Recorrente releva o facto de a Recorrida dispor de quatro equipamentos em stock que cumpriam algumas – apenas algumas - das especificações técnicas. (…). Como tal, em face da rigidez e singularidade das especificações técnicas, que não previam qualquer «equivalência», como, aliás, exige a alínea b) do nº 7 do artigo 49º do CCP, a situação não se subsume à previsão normativa do disposto no nº 10 e alínea b) do nº 7, do artigo 49º do CCP.
A questão é a da possibilidade de preenchimento ou não preenchimento, pelos concorrentes nas suas propostas, das especificações técnicas que foram efectivamente exigidas e, quanto a estas, a conclusão de que a singularidade das mesmas traduz uma ofensa da concorrência, nos termos e fundamentos que a sentença recorrida bem ponderou e que a Recorrente não coloca em crise com esta alegação.
Assim, negou provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

A Entidade Demandada recorre de revista deste acórdão alegando, em síntese, que o mesmo incorreu em erro de julgamento ao considerar que as cláusulas 6.1 d) e 10 do Programa do Procedimento são ilegais, na medida em que obrigam os concorrentes em fase concursal, a apresentar um exemplar do equipamento a adquirir pela entidade adjudicante e que teria de cumprir as especificações da cláusula 18ª do caderno de encargos, cláusula esta que se considerou demasiado fechada/restritiva, levando ao juízo de ilegalidade, por a amostra a apresentar ser tão específica (para cumprir aquela cláusula 18ª) que violava o princípio da concorrência. Alega que o art. 49º do CCP prevê a possibilidade das entidades adjudicantes imporem aos concorrentes a apresentação de amostras, bem como as especificações técnicas, não tendo este preceito sido violado pela Recorrente, porque as especificações técnicas constantes das peças concursais são um exercício legítimo de discricionariedade administrativa no contexto da prossecução do interesse público na procura da melhor solução para a necessidade que a levou ao mercado.
Pese embora a concordância das instâncias sobre a ilegalidade das cláusulas 6.1 d) e 10 do programa do concurso, por porem em causa a concorrência, sendo violadores do princípio da concorrência previsto no art. 1º-A do CCP (segundo as instâncias), a presente revista deve ser admitida.
Efectivamente, trata-se de interpretação que envolve dificuldades óbvias e dita consequências práticas relevantes no âmbito dos concursos públicos, podendo, assim, ser repetível, tanto administrativamente, como em sede judicial, sendo que este Supremo Tribunal não tem tido particular oportunidade de se pronunciar sobre esta problemática (o que fez no ac. de 13.01.2011, Proc. nº 839/10, indicado pela Recorrente), pelo que se justifica a admissão da revista para uma melhor dilucidação de assuntos de natureza similar.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Lisboa, 16 de fevereiro de 2023. – Teresa de Sousa (relatora) – Carlos Carvalho – José Veloso.