Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0475/14
Data do Acordão:11/20/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PRESCRIÇÃO
RELATOR
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
FIXAÇÃO
PENA DISCIPLINAR
Sumário:I - Ocorreu a prescrição do procedimento disciplinar, prevista nos arts. 4º, n.º 2, do ED de 1984 e 6º, n.º 2, do ED actual, se a instrução e o acto punitivo nenhuns factos censuráveis acrescentaram aos que a PGR já conhecia muito antes dos prazos referidos nessas normas.
II - A designação, por despacho, do relator na Secção Disciplinar do CSMP violou o estatuído nos arts. 30º, n.º 1, do EMP e 16º do Regulamento Interno da PGR.
III - Não sofre de falta de fundamentação o acto que enuncie os seus motivos de forma clara, suficiente e congruente.
IV - É impossível afirmar uma desigualdade de tratamento se o termo de comparação não existir ou for dissemelhante.
V - Na fixação concreta da pena disciplinar, a Administração goza de prerrogativas de avaliação e de decisão só judicialmente sindicáveis em caso de erro manifesto.
Nº Convencional:JSTA000P18246
Nº do Documento:SA1201411200475
Data de Entrada:04/23/2014
Recorrente:A.............
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:

O Dr. A……………, Procurador-Geral Adjunto jubilado, interpôs a presente acção administrativa especial com vista a erradicar da ordem jurídica o acórdão do Plenário do CSMP, de 28/1/2014, que indeferira a sua reclamação do acto de 24/9/2013, da Secção Disciplinar do mesmo Conselho, que lhe havia aplicado a pena de 20 dias de multa por infracções advindas da violação dos deveres de zelo e de prossecução do interesse público.
O autor crê que o acto impugnado é ilegal por prescrição do procedimento disciplinar, por ofensa do princípio da igualdade, por violação de formalidades procedimentais, por erro na determinação da pena concreta e por falta de fundamentação.

O CSMP contestou, negando a existência dos vícios arguidos e defendendo a completa legalidade do acto. Nessa altura, o CSMP juntou aos autos o documento de fls. 178 e ss..

O autor alegou, formulando as seguintes conclusões:
a) Deve ser declarada nula ou, se assim não se entender, deve ser anulada a deliberação de 28 de Janeiro transacto do Plenário do Conselho Superior do Ministério Público, notificada em 3 do mês seguinte, que indeferiu em definitivo a pretensão do autor desatendendo a reclamação que este apresentou;
b) Com efeito, o Venerando Conselho Superior ora demandado desconsiderou erradamente - directamente ou por apropriação - que o procedimento disciplinar prescreveu;
c) Mais, agiu no limite do que pode ser considerado como venire contra facturn proprium ao desconsiderar a nomeação e renovação em comissão de serviço do autor enquanto inspector do Ministério Público - o que releva não só ter agido de forma incompatível com a intenção punitiva que veio a fazer vencimento, como se disse, como também em incumprimento dos rígidos prazos de prescrição de lei;
d) Viola outrossim o princípio de igualdade, pois ignora que a produtividade registada ao autor e que, no fundo, é o substrato da matéria acusatória, não é diferente da produtividade evidenciada aos seus Colegas Inspectores, sem que resultasse demonstrado o como e porquê da discriminação negativa dirigida ao autor;
e) E ofende a doutrina que emerge do acórdão do Supremo Tribunal de 15 de Janeiro de 2013, confirmado pelo Pleno da Secção do Contencioso Administrativo de 27 de Março de 2014, arestos de que resultou a alteração do Regulamento Interno da P.G.R. deliberada pelo Conselho Superior com publicação na folha oficial em 24 de Maio de 2014;
f) Motivo pelo qual resultam ainda inobservados os princípios que enformam o Regulamento Interno da Procuradoria-Geral da República, maxime a identificada alteração;
g) Em suma, deve ser declarada nula - ou, se assim não for entendido, deve ser anulada - a deliberação do Conselho Superior do Ministério Público de 28 de Janeiro de 2014 que indeferiu a anterior reclamação do autor interposta contra anterior deliberação da Secção Disciplinar do mesmo Conselho, e confirmou a pena disciplinar de 20 (vinte) dias de multa.

O CSMP contra-alegou, concluindo do modo seguinte:
1 A impugnada deliberação do CSMP de 28 de Janeiro de 2014, que indeferiu a sua reclamação deduzida contra o acórdão da Secção Disciplinar do CSMP de 24 de Setembro de 2013, que lhe aplicou a pena disciplinar de 20 dias de multa, não enferma de nenhum dos vícios que o autor lhe atribui;
2 Não ocorreu a prescrição do procedimento disciplinar, desde logo porque o respectivo prazo não começa a correr na data dos factos, como pretende o autor, só porque o CSMP e o Procurador-Geral da República tinham o controlo do desempenho funcional do autor;
3 Pois a avaliação do desempenho para efeitos disciplinares terá sempre de se alicerçar numa indagação sobre o serviço desenvolvido que torne conhecida a existência da infração;
4 Por outro lado, está em causa uma infração disciplinar permanente, duradoura, pelo que o prazo de prescrição não começa a correr enquanto não cessar a conduta faltosa;
5 Também não ocorreu a preclusão do direito de instaurar procedimento disciplinar pelo decurso do respectivo prazo (de prescrição), por efeito da deliberação do CSMP de 17 de Setembro de 2008 em que se decidiu adiar a proposta da renovação da comissão de serviço do autor como inspector do Ministério Público;
6 Esse adiamento ocorreu porque foi considerado de “interesse e conveniência para o serviço”, não ligada ao desempenho do autor mas a uma circunstancial falta de inspectores do Ministério Público, e não foi por isso que o prazo de prescrição decorreu, nem tão pouco começou a correr antes da conclusão do inquérito disciplinar;
7 Do alegado conhecimento da prestação funcional do autor pelo PGR e pelo CSMP, no exercício poder de superintendência sobre os Serviços de Inspecção Ministério Público, também não pode extrair-se, como o faz o autor, que ocorreu a prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar pelo decurso do prazo de 30 dias previsto no artigo 6º n.º 2 do EDTFP, contado sobre a data dos factos;
8 Para efeitos do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento disciplinar o que releva é o conhecimento da infracção - e não dos factos -, e esse conhecimento por parte do CSMP só ocorreu em 1 de Outubro de 2012, data em que lhe foi presente o inquérito a que se procedeu justamente para averiguação da existência de infracção;
9 Finalmente, também não ocorreu a prescrição do procedimento disciplinar pelo facto de o inquérito ter dado entrada nos serviços da PGR em 11 de Junho de 2012 e o CSMP ter ordenado a instauração de processo disciplinar em 1 de Outubro de 2012;
10 Pois o prazo de 30 dias previsto no artigo 6.º n.º 2 do EDTFP não se conta a partir da data da recepção do inquérito nos serviços da PGR, como pretende o autor, mas sim na data em que o CSMP tomou conhecimento do relatório, ou seja, quando reuniu nesse dia 1 de Outubro de 2012;
11 O facto de o CSMP em 21 de Setembro de 2005 ter renovado a comissão de serviço do autor como inspector do Ministério Público não é revelador de desinteresse em o perseguir disciplinarmente, nem incompatível com a intenção de punir;
12 Pois, para efeitos disciplinares, a avaliação do desempenho tem que se alicerçar em dados objectivos, que são recolhidos no âmbito de um inquérito ao serviço prestado, especificamente orientado para a averiguação da existência de infracção disciplinar, e não pode resultar de ilações decorrentes da forma de preenchimento ou de manutenção do lugar;
13 E no caso dos autos o CSMP só tomou conhecimento da infracção em 1 de Outubro de 2012, e mesmo a instauração do inquérito só ocorreu em 11 de Outubro de 2011, data em que se considerou existirem razões para apuramento de eventual responsabilidade disciplinar;
14 E pelas mesmas razões a renovação da comissão de serviço não podia ter criado nenhuma expectativa ao autor de não ser objecto de perseguição disciplinar, pelo que não ocorreu qualquer violação do princípio da boa-fé;
15 Uma vez que não tinha conhecimento da infracção, o CSMP não podia nem devia tomar decisões desfavoráveis ao autor, e por isso procedeu normalmente à renovação da comissão de serviço do autor em 2005, o que em nada põe em causa a validade do exercício do poder disciplinar em 2013;
16 Também não ocorreu a violação do princípio da igualdade consagrado nos artigos 13.º n.º 1 e 266.º n.º 2 da Constituição e com expressão no artigo 5º do CPA por pretensa discriminação negativa, pois não corresponde à verdade que a produtividade do autor fosse idêntica à dos seus colegas Inspectores do Ministério Público;
17 Pelo contrário, apurou-se no processo disciplinar que o autor realizou apenas cerca de um terço das inspecções que lhe foram distribuídas, que ao longo dos anos foram redistribuídas a outros inspectores, que tiveram de as realizar por acréscimo àquelas que lhes couberam na distribuição anual equitativa;
18 Sem prejuízo, dir-se-á ainda que no procedimento disciplinar não existe conhecimento da existência de situações semelhantes à do autor relativamente a outros inspectores do Ministério Público, para efeitos de comparação, pelo que o princípio da igualdade fica assegurado em abstracto com a sujeição estatutária de todos os magistrados do Ministério Público a procedimento disciplinar por razões do seu desempenho funcional, com observância do princípio da igualdade de tratamento;
19 O ato impugnado também não é inválido por violação das normas dos artigos 30.º n.º 1 do EMP e 16.º n.º 1 do Regulamento Interno da PGR relativas à distribuição dos processos, desde logo porque a distribuição do inquérito também se fez por sorteio, e o inquérito nem sequer foi aproveitado para o processo disciplinar;
20 E relativamente ao processo disciplinar do autor, a distribuição realizou-se em conformidade com as normas dos artigos 30º n.º 1 do EMP e 16º do Regulamento Interno da PGR, pelo que o ato administrativo impugnado não enferma da ilegalidade que o autor lhe atribui por pretensa violação dessas normas;
21 Pelas razões expostas, o ato administrativo impugnado não padece dos vícios que lhe vêm imputados, nem de quaisquer outros que o invalidem, pelo que deverá ser mantido na ordem jurídica, na improcedência do pedido de anulação formulado pelo autor.

Consideramos assentes os seguintes factos, pertinentes à decisão:
1 - O autor é Procurador-Geral Adjunto, encontrando-se jubilado desde Novembro de 2013.
2 - Exerceu as funções de Inspector do MºPº desde 2002, em regime de comissão de serviço que foi renovada pelo CSMP em 21/9/2005 e que, após o acto do mesmo Conselho, de 17/9/2008, se prolongou de facto até 2011.
3 - Em 11/9/2011, o Plenário do CSMP ordenou a abertura de um inquérito disciplinar à actuação do autor como Inspector do MºPº.
4 - Esse processo de inquérito foi culminado pelo relatório final cuja cópia consta de fls. 39 a 48 dos autos, onde se propôs o seu arquivamento.
5 - Tal processo de inquérito foi recebido na PGR em 15/6/2012 (fls. 97 do processo administrativo apenso).
6 - A propósito desse processo de inquérito, a Vice-Procuradora-Geral da República, em 18/6/2012, proferiu o seguinte despacho: «ao Conselho Superior do Ministério Público. Designo como relator o Ex.º Senhor Dr. B…………..».
7 - Por acórdão de 1/10/2012, relatado pelo Conselheiro assim designado e que consta de fls. 99 a 108 do processo administrativo apenso, a Secção Disciplinar do CSMP deliberou instaurar processo disciplinar contra o autor, sem concomitante aproveitamento do inquérito.
8 - Esse processo disciplinar foi culminado pelo relatório final cuja cópia consta de fls. 90 a 107 destes autos, onde o Sr. Instrutor, em 18/4/2013, propôs o arquivamento do processo.
9 - Tal processo foi distribuído no CSMP, conforme acta cuja cópia consta de fls. 178 e ss. destes autos.
10 - E, a propósito desse processo, o Vice-Procurador-Geral da República exarou em 24/4/2013 o seguinte despacho: «ao Conselho Superior do Ministério Público. Apresente ao relator a quem foi distribuído o processo, o Ex.º Senhor Dr. C……………».
11 - Por acórdão de 12/7/2013, cuja cópia consta de fls. 108 a 115 dos autos, a Secção Disciplinar do CSMP deliberou ouvir o aqui autor nos termos do art. 101º do CPA.
12 - O autor pronunciou-se através da peça cuja cópia está a fls. 116 a 118 dos autos.
13 - Por acórdão de 24/9/2013, relatado pelo Conselheiro referido em 10 e cuja cópia consta de fls. 119 a 125 dos autos, a Secção Disciplinar do CSMP deliberou aplicar ao autor a pena disciplinar de 20 dias de multa, por violação dos deveres de zelo e de prossecução do interesse público.
14 - O autor reclamou desse acórdão para o Plenário do CSMP, fazendo-o através da peça cuja cópia consta de fls. 127 a 137 destes autos.
15 - Por acórdão de 28/1/2014, cuja cópia consta de fls. 139 a 146 dos presentes autos, o Plenário do CSMP indeferiu a reclamação do aqui autor.

Passemos ao direito.
O autor impugna o acórdão do Plenário do CSMP que manteve na ordem jurídica o acto, emanado da Secção Disciplinar do mesmo Conselho, que lhe aplicara a pena de 20 dias de multa por violação dos deveres funcionais de zelo e de prossecução do interesse público.
São múltiplas as causas de invalidade que o autor atribui ao acto impugnado. E convém que comecemos por enfrentar o vício ligado à falta de fundamentação, pois o tratamento desse assunto, permitindo captar desde já o conteúdo do acto, favorecerá a análise dos demais vícios arguidos.
O autor diz que o acto não está fundamentado, já que lhe teria reconhecido qualidades profissionais e pessoais incompatíveis com a existência das infracções disciplinares ou, pelo menos, com a decisão de não se lhe atenuar extraordinariamente a pena.
Conforme vimos, o acórdão impugnado indeferiu a reclamação que o autor deduzira de um acórdão da Secção Disciplinar. E este, por sua vez, remeteu para outro acórdão, da mesma Secção, que mandara cumprir «o disposto no art. 101º do CPA». Assim, a fundamentação do acto ora «sub judicio» há-de discernir-se, não apenas no seu texto, mas também no teor dessas duas pronúncias da Secção Disciplinar.
E, olhando conjuntamente os três acórdãos, constata-se que o CSMP, após descrever uma longa série de 103 factos, onde avultam os ocorridos entre 17/6/2002 e os finais de 2011 - período em que o autor exerceu as funções de Inspector do MºPº - disse basicamente três coisas: que, durante esse tempo, o autor não cumpriu uma parte, capazmente discriminada, do serviço que lhe fora distribuído; que essas omissões do autor corresponderam à ofensa dos deveres funcionais de zelo e de prossecução do interesse público, isto é, ao cometimento de faltas disciplinares; e que, tendo em conta as circunstâncias do caso, designadamente as que depunham a favor dele - como o crédito pessoal e profissional de que gozava - entendia-se ser adequado puni-lo com a referida pena, de 20 dias de multa.
Ora, esta fundamentação mostra-se clara, suficiente e congruente, transmitindo ao autor as razões por que se decidiu assim e não num outro sentido qualquer. Até porque o facto do acto admitir que o autor era altamente considerado, em termos pessoais e profissionais, não impedia logicamente a conclusão de que ele, contrariando tais expectativas, afinal cometera infracções disciplinares. E o pormenor do acto não ter procedido à atenuação extraordinária da pena pode traduzir uma ilegalidade; mas de índole substantiva e, nessa medida, alheia ao plano meramente formal em que se colocam as exigências de fundamentação.
Assim, é seguro que o acto impugnado não enferma do vício de falta de fundamentação que lhe vem assacado. E, cientes agora da estrutura do acto, consideraremos seguidamente a denúncia de que ele é ilegal por prescrição do procedimento disciplinar.
Tal prescrição vem caracterizada pelo autor deste modo: «primo», o Procurador-Geral da República e o CSMP, até devido aos seus poderes de superintendência, conheceram todos os factos constitutivos das alegadas faltas disciplinares à medida que eles foram ocorrendo - pelo que o direito de instaurar procedimento disciplinar estaria prescrito, «ex vi» do art. 6º, n.º 2, do Estatuto Disciplinar (ED, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9/9); «secundo», igual efeito extintivo se deve atribuir ao acto que, em 21/9/2005, renovou a comissão de serviço do autor como Inspector do MºPº e à deliberação do CSMP, de 17/9/2008, que o manteve no exercício dessas funções - pois tais actos conteriam um juízo favorável sobre o anterior desempenho do autor na actividade de inspecção; «tertio», decorreram mais de 30 dias entre a recepção do inquérito na PGR e a data em que o CSMP determinou a instauração do processo disciplinar - pelo que teria sido desrespeitado o prazo previsto no art. 6º, n.º 5, al. b), do ED e seria certa, por esta outra via, a prescrição do procedimento disciplinar.
Comecemos por este último ponto. O autor parece aceitar que o inquérito à sua conduta suspendeu o prazo prescricional em causa, como dispunha o art. 6º, n.º 4, do ED. Acrescenta, porém, que essa suspensão apenas persistiria se o procedimento disciplinar subsequente fosse instaurado «nos 30 dias seguintes à recepção» do processo de inquérito, «para decisão, pela entidade competente» (art. 6º, n.º 5, al. b), do ED). Ora, o processo de inquérito foi recebido na PGR em 15/6/2012; e, como o acórdão do CSMP que impôs a abertura do processo disciplinar apenas foi prolatado em 1/10/2012, o autor diz que tanto o Procurador-Geral da República como o CSMP deixaram transcorrer aquele prazo de 30 dias sem instaurarem, como podiam, o procedimento disciplinar - motivo por que teria sobrevindo a denunciada prescrição.
Esta problemática tem alguma afinidade com o assunto tratado no acórdão do STA de 12/3/2008 (proc. n.º 867/06), embora este incidisse sobre o ED pretérito (o aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16/1). À luz do EMP, a competência para ordenar a instauração de procedimentos disciplinares aos respectivos Magistrados tanto incumbe ao Procurador-Geral da República como ao CSMP (art. 27º, al. a). E, sobre isso, escreveu-se em tal aresto o seguinte:

Aliás, este é um dos raros casos em que dois órgãos dispõem simultaneamente de competência para a prática individualizada de actos de certo tipo, sucedendo que o exercício desse «munus» por um deles impedirá uma similar acção do outro. Mas, simetricamente, as consequências porventura ligadas ao não exercício da competência por um deles deverão projectar-se também na esfera do outro órgão, salvo circunstâncias excepcionais; pois, e afinal, aquela simultaneidade das competências significa que a iniciativa atribuível a um dos dois órgãos, consista ela num agir ou numa pura abstenção dotada de efeitos jurídicos, se repercutirá ainda no outro, a quem será vedado retomar uma competência «in casu» já esgotada - seja pelo respectivo exercício, seja pela falta dele.
A importância das anteriores considerações é óbvia: decerto que ninguém sustentará que o CSMP conheceu «a falta» do autor, indiciada no inquérito, na data em que este entrou nos serviços da PGR - ante a claríssima impossibilidade de um órgão colegial conhecer algo sem efectivamente reunir e isso constar da ordem do dia (cfr. o art. 18º do CPA). Mas, e ao menos «primo conspectu», esse mesmo conhecimento era imputável ao Procurador-Geral da República, que poderia, «motu proprio», ter ordenado a instauração de processo disciplinar contra o agora autor. E, nesta linha de raciocínio, não repugna admitir que este último órgão pudera conhecer «a falta» a partir de 6/3/2006, pelo que a circunstância de ele não ter instaurado o processo disciplinar ao autor durante os 3 meses seguintes teria acarretado a prescrição do correspondente direito - consequência que, como vimos, seria impeditiva de o CSMP instaurar por si o procedimento disciplinar.”

As anteriores considerações afastam, «de plano», a ideia de que a prescrição ocorreu porque o CSMP só deliberou instaurar o procedimento disciplinar mais de 30 dias depois da recepção do inquérito na PGR. É que um tal efeito pressuporia algo que não está provado - que o mesmo Conselho tomara conhecimento do inquérito mais de 30 dias aquém de 1/10/2012.
Permanece, todavia, a questão de saber se o Procurador-Geral da República, ao abster-se de instaurar, «motu proprio», o processo disciplinar nos 30 dias seguintes a 15/6/2012, terá então esgotado a competência para o efeito - tornando juridicamente impossível que o CSMP, em 1/10/2012, a reassumisse e exercesse.
Ora, afigura-se-nos que tal esgotamento não se deu. A disposição prevista no art. 6º, n.º 5, al. b), do ED funda-se num presumível desinteresse da «entidade competente» em promover a perseguição disciplinar do faltoso - para além da norma pretender evitar que o subordinado permaneça indefinidamente na expectativa de ser, ou não, alvo de um processo disciplinar. Mas, se a abertura do inquérito fora ordenada pelo CSMP - que tomara, portanto, a iniciativa de encetar essas averiguações de cariz disciplinar - não fazia sentido que o Procurador-Geral da República interferisse no procedimento em curso e exercesse a competência própria de que dispõe para instaurar processos disciplinares. Aliás, enquanto solicitado pelo CSMP, era este órgão colegial o destinatário do inquérito; e, estando esse procedimento administrativo, então em curso, delineado de tal forma - ordem de abertura do inquérito, efectuação deste e ulterior pronúncia sobre o seu resultado - não parecia curial que o Procurador-Geral da República, instaurando «per se» um procedimento disciplinar contra o aqui autor, retirasse ao CSMP a possibilidade de terminar o que antes começara. O que, portanto, significa que a inércia do Procurador-Geral da República a partir de 15/6/2012 não traduz uma qualquer manifestação do desinteresse em perseguir disciplinarmente o autor; mas sim uma atitude de reserva perante um procedimento administrativo já aberto e possibilitador do mesmo resultado.
Aliás, esta ideia parece colher-se do próprio teor do art. 6º, n.º 5, al. b), do ED. O «dies a quo» do prazo de 30 dias aí referido consiste na recepção do processo de inquérito, «para decisão, pela entidade competente». Ora, esta «entidade», que deverá decidir, é decerto aquela que, a montante, mandou abrir o processo de inquérito e que, a jusante, haverá de recebê-lo e apreciá-lo. Assim, a letra da norma - que manifestamente não curou de competências duais - sugere logo que o órgão ordenador do inquérito é o que depois o receberá, «para decisão». E isto reforça a tese de que a passividade do Procurador-Geral da República, após a recepção do inquérito na PGR, nenhuma influência teve no prazo prescricional.
Torna-se agora claro que não ocorreu a prescrição denunciada segundo a perspectiva a que atrás nos ativemos. Por um lado, não se pode atribuir àquela inércia do Procurador-Geral da República o sentido que subjaz ao efeito prescricional previsto no art. 6º, n.º 5, al. b), do ED; por outro lado, e conforme dissemos, é impossível afirmar que o CSMP, enquanto órgão colegial, tomou conhecimento das faltas detectáveis no inquérito mais de 30 dias antes da data em que, sobre elas, se debruçou.
Passemos às outras duas denúncias de ocorrência da prescrição, que são susceptíveis de um tratamento conjunto, já que se relacionam com o conhecimento das infracções - por parte do Procurador-geral da República e do CSMP - mais de 30 dias antes de 11/10/2011 - data em que o CSMP ordenou a instauração do inquérito (art. 6º, ns.º 2 e 4, do ED).
Este género de ataques a actos punitivos é muito frequente; e costuma soçobrar porque normalmente confunde um conhecimento singelo de factos com a efectiva percepção da sua relevância disciplinar («vide», v.g., o acórdão do STA de 9/9/2009, proferido no processo n.º 180/09). Mas, «in casu», as coisas apresentam-se de outro modo.
A punição do autor adveio da ofensa de deveres funcionais, detectada na factualidade acolhida pelo acto impugnado. Percorrendo os 103 factos aí reunidos, vemos que as condutas censuráveis imputadas ao autor consistem, basicamente, na não realização, a partir de 2002, de inspecções de que fora incumbido em cada um desses anos - salvo 2005 - o que determinou a redistribuição de muitas delas nos anos imediatos. Aliás, o autor não realizou nenhuma das 10 e das 12 inspecções que lhe foram atribuídas nos anos de 2010 e 2011, respectivamente. Esse foi um desempenho profissional que a própria factualidade do acto encara como um défice «de produtividade quantitativa». Mas - notemo-lo desde já - esse elenco factual não contém um único dado imediatamente demonstrativo de uma culpa do autor nos atrasos funcionais em que incorreu.
Deixemos bem claro que a ausência de factos directamente caracterizadores da culpa não inquina, «ex necessitate», as punições disciplinares - desde que a culpa se possa deduzir dos comportamentos imputados. E isso é assim porque as exigências expositivas a cumprir nos processos disciplinares estão muito abaixo das indispensáveis nos processos penais. Mas - e este é um ponto fulcral - tal ausência pode relevar no plano do conhecimento das faltas, de modo a trazer a prescrição do procedimento disciplinar.
Já atrás referimos que uma coisa é conhecer os factos, outra é captar a sua ressonância disciplinar. Assim, e no que respeita a atrasos no desempenho funcional, pode perfeitamente suceder que eles, encarados «a se», ainda não se assumam como disciplinarmente relevantes, só passando a valer nesse plano após se apurar do desleixo, incúria ou desinteresse do arguido. Aliás, tudo isto se liga ao dificultoso problema de saber onde acaba o demérito funcional do agente e começa a verdadeira infracção disciplinar - assunto que depende do estabelecimento, pelos dirigentes do serviço, de padrões genéricos de exigência.
O acto impugnado admitiu - como consta do facto 87.º, inserto no acórdão da Secção Disciplinar do CSMP, de 24/9/2013 - que «a hierarquia possuía conhecimento permanente acerca do estado do serviço a cargo do arguido Lic. A…………….. (bem como do serviço dos restantes inspectores)». Portanto, todos esses atrasos em que o autor incorreu desde 2002 foram sendo conhecidos, ao menos, pelo Procurador-Geral da República. Se os atrasos tinham uma imediata relevância disciplinar, por indiciarem a concomitante culpa do autor na ofensa de deveres funcionais, impunha-se que o Procurador-Geral da República - e, eventualmente, também o CSMP - nos prazos de 3 meses (ao tempo do ED de 1984 - art. 4º, n.º 2) ou de 30 dias (após a entrada em vigor do ED aprovado pela Lei n.º 58/2008 - art. 6º, n.º 2) a contar do conhecimento de cada falta, perseguisse disciplinarmente o autor, sob pena de prescrição. Se, ao invés, essa relevância disciplinar não estava de imediato à vista, por depender da colheita de outros factos que a mostrassem, então tais prazos só correriam depois disso - dado que não se poderia dizer que houvera um conhecimento anterior das infracções.
Ora, o processo mostra que a «hierarquia», subsequentemente ao seu «conhecimento permanente» do fraco desempenho profissional do autor, não ampliou os dados factuais de que antes já dispunha por forma a que o problema fosse transferido do plano do simples demérito do autor para o da responsabilidade disciplinar dele. E mostra-o de duas maneiras: porque o inquérito e o processo disciplinar não trouxeram esse «plus» e até concluíram pela ausência de quaisquer infracções disciplinares; e porque o acto - na esteira do processo disciplinar, como se impunha - nenhuns factos, designadamente os ligados à culpa do arguido (à sua atitude perante os deveres funcionais tidos por incumpridos), acrescentou aos meros atrasos que a «hierarquia» permanentemente conhecera.
Sendo assim, temos que o autor foi alvo de perseguição disciplinar pelos exactos factos que, há meses ou anos, eram conhecidos pela «hierarquia». E esta, assim como ultimamente qualificou tais factos como infracções disciplinares, podia tê-lo feito nesses tempos passados - pois nada entretanto sobreveio «ab extra» que incrementasse o conhecimento da «hierarquia» e tornasse disciplinarmente censurável a já conhecida conduta do autor.
É, pois, claríssimo que a única mudança se deu no íntimo da própria «hierarquia» que, a dado passo, optou por atribuir relevância disciplinar a comportamentos que, até aí, tolerara. Mas, ao fazê-lo, o CSMP não reparou no óbvio - que agia «contra legem», pois iniciava um procedimento disciplinar já prescrito porque excessivamente afastado, e em muito, das datas do conhecimento da maioria das infracções.
Verifica-se, portanto, o vício que esteve sob análise, o que provoca a anulação do acto impugnado. Por isso, torna-se inútil averiguar da existência do mesmo vício pela perspectiva advinda das renovações ou prolongamentos da comissão de serviço do autor como Inspector do MºPº – já que ninguém inquire de um conhecimento provável se antes o dera como certo.
E mais: ficamos também dispensados de activar o disposto no art. 95º, n.º 2, do CPTA e de anular o acto por força do que se dispõe no art. 6º, n.º 1, do ED. Esta norma veda que se persiga disciplinarmente o arguido por faltas cometidas há mais de um ano – prazo esse que, no ED de 1984, era de três anos (cfr. o seu art. 4º, n.º 1). Ora, o acto impugnado, que culmina uma reacção disciplinar iniciada em Setembro de 2011, sancionou o autor por comportamentos ocorridos a partir de 2002, justificando-o com a espantosa afirmação de que as infracções eram permanentes. Mas tal permanência é absurda, pois era impossível que o autor, ao longo desses anos, continuasse a negligenciar deveres funcionais relativamente a inspecções que lhe haviam sido já retiradas e redistribuídas.
Passemos a outro dos vícios arguidos pelo autor. Ele considera que o acto impugnado feriu o princípio da igualdade, previsto no art. 5º do CPA, porquanto o seu desempenho foi quantitativa e qualitativamente semelhante ao dos demais Inspectores do MºPº e, todavia, só contra ele se abriu um procedimento disciplinar e apenas ele veio a ser alvo de punição (cfr. o art. 96º da petição inicial). Assim, a denúncia do autor desdobra-se em duas, cujos objectos consistem no acto que instaurou o procedimento disciplinar e no acto punitivo. Mas, e em bom rigor, o que ele deveras critica é o primeiro desses actos; pois, se não houver quaisquer razões de igualdade que impedissem a abertura do procedimento disciplinar, também essas razões não poderão valer contra o acto sancionatório imposto «in fine».
Constatada uma infracção disciplinar, o órgão competente está vinculado a proceder disciplinarmente contra o infractor. Ora, a vinculação opõe-se à discricionariedade. E, como o princípio administrativo da igualdade constitui um dos limites internos do exercício de poderes discricionários, pareceria que a denúncia do autor não tem sentido, por se referir à ofensa de um princípio inatendível no campo da vinculação.
Mas não é exactamente assim. Por vezes, a constatação da falta disciplinar é precedida de juízos administrativos estabelecedores da diferença entre a má prestação funcional, que só afecta a avaliação de desempenho, e a infracção de deveres, já disciplinarmente punível. Essa diferença tem por base determinados critérios de exigência - como «supra» dissemos. Ora, a Administração dispõe, na formulação desses juízos, de alguma margem de liberdade, que se pode caracterizar como uma discricionariedade imprópria. E é seguro que, nesse exercício, a Administração não pode olvidar os princípios ordenadores da actividade administrativa, como o princípio da igualdade.
Portanto, e «in abstracto», a denúncia do autor não é inidónea. Mas é flagrante que ela fraqueja «in concreto». Com efeito, os quadros do serviço atribuído aos Inspectores do MºPº e pendente em 2009 e 2010 (cfr. o art. 92º da factualidade provada, de que o acto se apropriou) mostram que o autor foi, nesse período, o Inspector que tinha mais inspecções por completar. Assim, o que esses quadros revelam é uma efectiva desigualdade entre o desempenho do autor e o dos seus colegas. E, perante essa desigualdade, é em vão que ele lobriga aí uma igualdade.
Ademais, a mesma matéria de facto refere que o autor não realizou «nenhuma» das 22 inspecções que lhe foram atribuídas em 2010 e 2011. E, relativamente a essas omissões, não vem invocada qualquer comparação com o desempenho dos outros Inspectores. Acresce que o autor também foi disciplinarmente investigado por atrasos ocorridos desde 2002. E, também aqui, não há dados demonstrativos de que essa sua fraca produtividade fora semelhante à dos colegas.
Assim, a afirmação de que a abertura do procedimento disciplinar violou o princípio da igualdade não encontra apoio nos factos alegados e disponíveis, já que nada permite asseverar que os demais Inspectores tiveram, nos anos a que a averiguação disciplinar se referiu, um desempenho funcional essencialmente assimilável ao dele. E, conforme vimos, esta conclusão é transponível para a denúncia de que a punição teria ofendido o mesmo princípio. Inexiste, pois, o vício que esteve ultimamente em apreço.
O autor também diz que a sanção é excessiva e desproporcionada, pois justificar-se-ia que se atenuasse extraordinariamente a pena (art. 23º do ED) e se suspendesse a sua execução (art. 25º do ED).
Todavia, ele parece esquecer que, nestes domínios, a Administração dispõe de amplas prerrogativas de avaliação e de decisão, só judicialmente sindicáveis quando esse exercício padecer de algum erro manifesto. Ora, não se entrevê que as circunstâncias ligadas à culpa atribuída ao arguido impusessem que meramente se lhe aplicasse uma repreensão escrita (cfr. o art. 9º do ED); ou que as finalidades da punição - que também envolvem propósitos de prevenção geral - fossem plenamente atingidas através do instituto da suspensão da execução da pena. Deste modo, nada indicia que o acto, ao aplicar ao autor a pena de 20 dias de multa, haja violado aqueles arts. 23º e 25º do ED ou tenha, sequer, escolhido uma pena inadequada à ilicitude das faltas, à culpa do autor e às demais circunstâncias do caso.
Pelo que improcede igualmente o vício que esteve agora sob análise.
Por último, o autor sustenta que o acto sob impugnação está inquinado por pretéritas ofensas de formalidades procedimentais, já que os relatores dos ditos acórdãos de 1/10/2012 e 24/9/2013, da Secção Disciplinar, teriam sido designados «ad hoc» por despacho, em vez dos respectivos processos lhes terem sido aleatoriamente distribuídos - como impunham os arts. 30º, n.º 1, do EMP, e 16º do Regulamento Interno da PGR.
No primeiro desses dois acórdãos, o CSMP, confrontado com o inquérito, deliberou instaurar um processo disciplinar ao autor. No segundo, e já presente o processo disciplinar, o CSMP deliberou aplicar ao autor a pena de 20 dias de multa. Ora, está em causa saber se os relatores desses acórdãos receberam os processos através da distribuição prevista nas aludidas normas ou se, para tanto, foram designados «contra legem».
E, desde logo, é inequívoco que o autor não tem razão quanto ao método usado para encontrar o relator do acórdão de 24/9/2013. Como mostra a acta cuja cópia foi junta com a contestação - notificada ao autor - procedeu-se, no CSMP, à «distribuição» do processo que se lhe referia, por forma a determinar o Conselheiro incumbido das funções de relator. E assim se entende que o Vice-Procurador-Geral da República haja despachado no sentido de que o processo fosse entregue ao relator «a quem foi distribuído o processo». Assim, tanto o teor deste despacho como o conteúdo da acta a que nos referimos mostram bem que o relator do acórdão de 24/9/2013 foi encontrado mediante distribuição prévia. E, por isso mesmo, esvai-se a correspondente denúncia do autor, fundada na preterição absoluta do regime previsto nos arts. 30º, n.º 1, do EMP e 16º do Regulamento Interno da PGR.
As coisas ter-se-ão passado de outro modo quanto à designação do relator do acórdão de 1/10/2012. É certo que o CSMP, na contestação, asseverou que esse relator fora sorteado. Mas não há nos presentes autos ou no processo administrativo apenso qualquer documento comprovativo de uma tal distribuição. E, ademais, o despacho da Vice-Procuradora-Geral da República, designativo do relator, não aludiu a alguma distribuição prévia, depreendendo-se dos seus termos que a designação proviera realmente da autora do despacho.
O CSMP procurou desvalorizar tudo isto com a afirmação de que «não tem qualquer relevância o modo como foi distribuído o inquérito uma vez que não foi aproveitado para o processo disciplinar». Mas esta argumentação é errónea, senão sofística, pois a importância do acórdão de 1/10/2012 radica em coisa diversa do destino dado ao inquérito - a qual consiste no pormenor de nele se ter ordenado a abertura de um processo disciplinar contra o aqui autor. E, se tal acórdão assume essa crucial relevância na discussão dos autos, tem igualmente de se atribuir relevo ao modo, legal ou ilegal, como então se determinou o respectivo relator.
Ora, e a propósito deste problema, suscitado por despachos, de designação de relatores, subscritos pela mesma Vice-Procuradora-Geral da República, o STA já teve a oportunidade de se pronunciar («vide» o acórdão de 15/1/2013, proferido no processo n.º 22/12, e o acórdão do Pleno, de 27/3/2014, que, por unanimidade, confirmou o anterior).
Assim, e no primeiro desses arestos, escreveu-se o seguinte:
«Entende o arguido que foi omitido sorteio na escolha do relator do processo disciplinar como impõe o regulamento aplicável.
Como decorre da matéria dada como assente em 6 de Junho de 2011 a Procuradoria-Geral da República respondeu ao autor informando-o de que não “... é possível emitir a pretendida certidão, porquanto a distribuição de processos pelos membros do Conselho Superior do Ministério Público e a designação, em despacho contemporâneo, dos respectivos relatores é feita de harmonia com as normas do Regulamento Interno da Procuradoria-Geral da República, que não impõe formalidade especial em suporte material legalmente exigível.”
Consta ainda a fls. 644 do processo disciplinar um despacho da Sra. Vice-Procuradora Geral da República com o seguinte teor:
“Ao Conselho Superior do Ministério Público. Designo como relator (a) o(a) Ex.mo Sra. Dr.(a) AP… Lisboa, 9 de Maio de 2011”.
Destes dados, infere o autor que não foi efectuado sorteio para a designação do relator o que viola o art. 16°, n.° 2 do Regulamento Interno da Procuradoria-Geral da República, com o seguinte teor: “A distribuição dos processos relativos a avaliação do mérito profissional dos magistrados ou a matéria disciplinar é efectuada por sorteio, respeitando quanto possível, a ordem de entrada nos Serviços de Apoio Técnico e Administrativo”.
O CSMP sustenta que foi efectuado sorteio obedecendo a todas as formalidades legais. O que não existe é um suporte que descreva a realização desse sorteio. O que não há - alega - “é outro registo material das minúcias do acto de sorteio além do despacho da Senhora Vice-Procuradora Geral onde, ao consignar qual o relator nomeado, está implicitamente a dar conhecimento do resultado da operação”.
Da leitura da matéria de facto (que transcreve o que se passou no procedimento disciplinar) resulta que não existe um suporte material das operações de sorteio.
Apesar dessa falta de suporte (escrito, informático ou de qualquer outro tipo) o Pleno do CSMP, perante a nulidade arguida pelo arguido em reclamação da decisão da Secção Disciplinar, ultrapassou esse ponto com a seguinte argumentação:
(...)
3.1. Não se evidencia terem sido omitidas formalidades essenciais relativas ao sorteio do relator do processo na Secção Disciplinar Com efeito este sorteio obedece a exigências peculiares, que têm que levar em conta não apenas a ordem de entrada nos serviços de apoio, como também algum equilíbrio de cargas entre Vogais do Conselho, a exclusão de relatores de fases anteriores e, sobretudo, a regra da categoria e, dentro da categoria, a da antiguidade, plasmada no art. 16°,n.° 3, do Regulamento Interno da Procuradoria-Geral da República (in DR II Série, n.° 50, de 27-2-2002. Tais exigências foram observadas no caso vertente, como detalhadamente explicou na sessão da Secção Disciplinar em que foi votado o projecto de acórdão (salvo erro) a Senhora Conselheira Vice-Procuradora-Geral da República. O que não há é outro registo material das minúncias do acto de sorteio além do despacho da Senhora Vice-Procuradora Geral onde, ao consignar qual o relator nomeado, está implicitamente a dar conhecimento do resultado da operação. A lei e os regulamentos mais não exigem, nem parece indispensável que o façam: os apertados parâmetros da escolha, por um lado, e a credibilidade que merecem quer a entidade que realiza o sorteio quer qualquer dos Vogais do Conselho será garantia bastante da transparência e objectividade que se impõem, isto é do conseguimento de um processo justo e equitativo.
(...)“ - fls. 814 do Processo disciplinar (sublinhado nosso).
Vejamos, antes de mais, o que nos diz a Lei e o Regulamento Interno da PGR.
O art. 30°, n.° 1 do Estatuto do Ministério Público diz-nos o seguinte:
“Os processos são distribuídos por sorteio pelos membros do Conselho nos termos do regulamento interno.
O Regulamento Interno (DR II Série, n.° 50 de 27-2-2002) no art. 16° sob epígrafe “distribuição de processos” tema seguinte redacção:
“A distribuição tem por fim repartir equitativamente o serviço do Conselho pelos respectivos membros e designar relatores.
A distribuição dos processos relativos a avaliação do mérito profissional ou a matéria disciplinar é efectuada por sorteio, respeitando, quanto possível, a ordem de entrada nos Serviços de Apoio Técnico e Administrativo.
Não poderão ser distribuídos aos vogais magistrados processos relativos a magistrados de antiguidade e categoria às suas.”
Do regime legal e regulamentar exposto resulta que a distribuição dos processos é uma atribuição do CSMP. Esta inferência, decorre desde, logo do facto da mesma não ser atribuída a qualquer outro órgão (designadamente ao Procurador-Geral da República - cfr. art. 12° do EMP - e por se tratar matéria sobre o seu próprio funcionamento. Não existe qualquer delegação de poderes de tal matéria - cfr. Delegação de Poderes n.° 1881/2006, de 20 de Novembro de 2006, publicada no DR, 2 Série, n.° 249, de 29 de Dezembro de 2006. Dos actos relativos ao processo disciplinar o CSMP apenas delegou a “conversão em processo disciplinar dos processos de inquérito ou de sindicância (art. 214°, n.° 1, do EMP)” - cfr. al.u) da referida Deliberação.
Por outro lado, a finalidade do sorteio, não é só a de repartir equitativamente o serviço. Essa finalidade tanto pode ser conseguida com ou sem sorteio. A razão de ser (específica ou própria) do sorteio é a de garantir a transparência e sobretudo a objectividade da distribuição, afastando qualquer dúvida sobre a designação do Conselheiro Relator. Justifica-se, assim, que o sorteio seja documentado, pois quer a transparência, quer a objectividade prosseguida pelo legislador é incompatível com a admissão de um sorteio secreto, isto é sem rosto e sem rasto.
É certo que o processo disciplinar quanto à forma dos actos “limita-se ao indispensável para atingir” o “fim que se tem em vista” (art. 34° do ED). Mas, em boa verdade, o fim tido em vista com o sorteio (como já referimos) só é atingido se esse acto for minimamente documentado. Esse fim é a “transparência” e “objectividade” na escolha (aleatória) do relator. Não se vê como é que um acto pode ser transparente e objectivo, sem dele ficar qualquer sinal objectivo.
No caso dos autos não é possível mostrar que o CSMP “distribuiu” através do sorteio o processo disciplinar em causa. O que pode demonstrar-se, pois é isso que consta do processo disciplinar, é que a Vice-Procuradora Geral da República proferiu o seguinte despacho:
“Ao Conselho Superior do Ministério Público. Designo como relator o Ex.mo Sr. Dr. AP...
Lisboa 9 de Maio de 2011.”
Este despacho mostra-nos, desde logo, que o processo foi remetido ao CSMP já com o relator designado. Por outro lado, da análise dos termos literais do despacho e da sua inserção no processo disciplinar só pode inferir-se que não houve sorteio, designadamente, da expressão “designo como relator”, seguida da expressão “Ao Conselho Superior do Ministério Público”.
Assim, por não existir qualquer suporte documental e ser possível inferir (presunção natural) que, no caso destes autos, o relator do processo no CSMP (secção disciplinar) não foi designado por sorteio, nesse mesmo Conselho, mostra-se violado o art. 30º, 1 do Estatuto do Ministério Público, impondo-se por esse motivo a anulação da deliberação impugnada.»

A transcrita jurisprudência, que aqui reiteramos, é aplicável ao caso vertente. Donde se segue que o autor tem razão quando denuncia, logo no acto de abertura do processo disciplinar que lhe foi movido, a presença de um vício procedimental relacionado com a determinação do relator do acórdão do CSMP. Sabe-se que, em Direito Administrativo, todas as formalidades são, em princípio, essenciais; donde resulta que a própria abertura do processo disciplinar se mostra inquinada, sendo tal vício propagável ao acto punitivo e ora «sub censura» - havendo aqui um outro motivo para a sua anulação.
Pelo exposto, o acto impugnado tem de ser anulado por procedência de dois dos vícios arguidos pelo autor: o vício formal que afecta o acórdão de 1/10/2012, impositivo da abertura do processo disciplinar; e o vício advindo da prescrição do procedimento disciplinar (arts. 4º, n.º 2, do ED de 1984 e 6º, n.º 2, do ED actual) relativamente à maioria das infracções por que o autor foi perseguido e punido. Donde se conclui pela procedência da presente acção, no que respeita ao pedido impugnatório.
Após formular esse pedido, o autor disse que a supressão judicial do acto «deve operar com todas as consequências de lei»; e, a título exemplificativo («designadamente»), referiu-se à «eliminação do registo da folha biográfica» e à «reposição do valor da multa» e seus «juros». Ora, tais afirmações do autor não podem ser tomadas como pedidos complementares veros e próprios - como se deduz da circunstância de ele não ter alegado os factos constitutivos deles, do modo vago como essas «consequências de lei» foram apresentadas e, ainda, da falta de um pedido inequívoco e terminante sobre tais assuntos. E essa interpretação da petição inicial está indirectamente confirmada na alegação do autor, onde ele abstraiu por completo das sobreditas «consequências». Portanto, aquilo que o autor assim referiu não passa de um conjunto, aliás incompleto, de sugestões quanto à maneira como o CSMP, vingando a acção, deverá executar, «sponte sua», o julgado anulatório. E, perante esta visão do assunto, deve concluir-se que as «consequências» indicadas pelo autor extravasam do actual «thema decidendum».

Nestes termos, acordam em julgar procedente a acção administrativa especial dos autos e em anular o acto impugnado.

Custas pelo CSMP.

Lisboa, 20 de Novembro de 2014 . - Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) - Maria Fernanda dos Santos Maçãs - José Augusto Araújo Veloso.