Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0682/07
Data do Acordão:11/12/2008
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ANGELINA DOMINGUES
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
FACTO ILÍCITO
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CULPA DO SERVIÇO
HOSPITAL
DANO FUTURO
DANO MORAL
DANO NÃO PATRIMONIAL
Sumário:I - Tendo sido apresentado requerimento de ampliação do pedido, que implicava a alteração (parcial) da causa de pedir, por se cumular à causa de pedir constante dos articulados uma outra, não podia a ampliação ser aceite, na fase em que já decorria a audiência de julgamento (art.ºs 273º, nº 2 e 268º do C. P. Civil).
II - O relatório dos peritos médicos do Código de Especialidade Médica da Ordem dos Médicos é um meio de prova pericial sujeito ao regime da livre apreciação da prova pelo tribunal (art.ºs 655º e 591º do C.P.C. e 389º do C. Civil).
III - Não tendo o tribunal de recurso acesso aos depoimentos das testemunhas (por, designadamente, não se ter procedido à respectiva gravação) que, conjuntamente com os demais elementos referenciados pelo Tribunal Colectivo de 1ª instância (na motivação do acórdão que decidiu a matéria de facto) influenciaram as respostas a determinados quesitos da Base Instrutória, e não impondo os elementos fornecidos pelo processo decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, está excluída a possibilidade de ser alterada a decisão do tribunal de 1ª instância, quanto aos aludidos itens (art.º 712º, nº 1, alíneas a) e b) do C.P.C.).
IV - Tendo sido provado que foi a falta de vigilância à Autora durante o pós operatório da cirurgia a que foi submetida (Instrumentação de Harrington-Luque e toracoplastia à direita) que levou a que não fosse detectado o processo de isquemia que conduziu à situação de paraplegia da Autora, logo na sua fase inicial, o que determinou as lesões subsequentes da mesma, verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual do Hospital Réu (facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano).
V - Não se revela desajustada a atribuição de uma indemnização à Autora menor, a título de lucros cessantes/danos futuros, pela perda da capacidade de ganho, que tem em conta a idade da Autora à data da lesão, a incapacidade de que ficou a padecer, a sua dependência de terceira pessoa, mesmo para os actos normais do quotidiano, e que presumivelmente a partir dos 21/22 anos de idade (senão mais cedo) poderia entrar no mercado de trabalho e auferir um rendimento mensal pelo menos igual ao salário mínimo nacional, com uma expectativa de vida activa de cerca de 45 anos, atendendo ainda ao limite de vida activa em Portugal para as mulheres, à possível evolução dos salários, taxas de juro e inflação.
Nº Convencional:JSTA00065337
Nº do Documento:SA1200811120682
Data de Entrada:07/27/2007
Recorrente:B...- C...
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF PORTO.
Decisão:NEGA PROVIMENTO/PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Área Temática 2:DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional:CPC96 ART268 ART273 N2 ART591 ART655 ART712 N1 A.
CCIV66 ART89.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC505/05 DE 2006/01/10.; AC STA PROC419/07 DE 2007/07/03.; AC STA PROC443/07 DE 2007/07/03.
Referência a Doutrina:JORGE SINDE MONTEIRO ASPECTOS PARTICULARES DA RESPONSABILIDADE MÉDICA IN DIREITO E BIOÉTICA PAG133.
EDUARDO CORREIA DIREITO CRIMINAL VI PAG421.
ALBERTO DOS REIS COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL V3 PAG92.
ANTUNES VARELA E OUTROS MANUAL DE PROCESSO CIVIL PAG342.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na secção do contencioso administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1.1. D... e esposa E... (idos a fls. 2) intentaram no Tribunal Administrativo de Círculo do Porto acção de responsabilidade civil extra-contratual com fundamento em acto/s ilícito/s e culposo/s, por si e na qualidade de legais representantes da sua filha menor C..., contra o Hospital B..., sito no Largo..., pedindo o pagamento de uma indemnização no valor total de 58.746.590$00, com vista à reparação dos danos patrimoniais e morais sofridos pela sua filha C... e pelos próprios Autores.
1.2. Os Autores formularam o requerimento de ampliação do pedido constante de fls. 484 a 487, inc. (na fase em que decorria a audiência de julgamento)
1.3. Após oposição do Réu, a Senhora Juiz a quo admitiu o requerimento de ampliação de pedido formulado pelos Autores, através do despacho de fls. 501 e 502.
1.4. O Réu agravou para este STA do despacho referenciado em 1.3, apresentando as alegações de fls. 528 e segs, que concluiu do seguinte modo:
“1)
A pretensão dos AA implica, necessariamente uma alteração ainda que apenas parcial da causa de pedir
2)
De facto, um dos elementos da causa de pedir, que é complexa, são os danos sofridos pela Autora, na sequência do facto, alegadamente ilícito, praticado pelo Réu.
3)
Ora, os AA, com o requerimento em causa, pretendem alterar, nessa parte, a causa de pedir, alegando, ainda que encapotadamente, que, por causa das sequelas, a Autora terá de submeter-se a tratamentos fisioterápicos e intervenções ou correcções cirúrgicas, facto que não consta dos articulados.
4)
Todavia, esse facto é essencial à decisão da causa - na parte respeitante ao pedido ora formulado - uma vez que os AA só terão direito ao pedido que agora fazem, se necessário para debelar as suas lesões, os tratamentos de fisioterapia e as novas intervenções cirúrgicas.
5)
Por isso, esse facto teria de ser sujeito a contraditório e posteriormente, a julgamento.
6)
Deste modo, ou esse facto era novo ou conhecido pelos AA após o fim dos articulados e nesse caso teriam de recorrer ao incidente do articulado superveniente, alegando a superveniência desses factos, ou esse facto não era novo e já era conhecido deles à data da propositura da acção e então, terminada que foi a fase dos articulados … nada haveria a fazer, neste processo.
7)
Decidindo de modo diferente o tribunal “a quo” violou o disposto nos art°s 273, n°s 2 e a 6 e 268 do CPCivil.
1.5. Os Autores contra-alegaram pela forma constante de fls. 539 e segs. sustentando a improcedência do recurso.
1.6. Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida a fls. 547 e segs, foi julgada procedente a acção e condenado o Réu a pagar aos Autores os seguintes montantes:
“a) à A. C..., o montante indemnizatório global de € 274.338,84 (duzentos e setenta e quatro mil trezentos e trinta e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), sendo € 224.459,05 a título de indemnização pela incapacidade funcional e € 49.879,79 a título de danos morais sofridos, bem como uma prestação mensal sob a forma de renda equivalente ao valor do salário mínimo nacional em vigor no mês a que respeite, a atribuir durante a vida da referida Autora;---
b) aos AA. D... e esposa E..., o montante indemnizatório global de € 16.742,60 (dezasseis mil setecentos e quarenta e dois euros e sessenta cêntimos), sendo € 6.766,64 por danos patrimoniais sofridos, na vertente de dano emergente, e o montante de € 9.975,96 a título de danos não patrimoniais;---
c) e ainda à A. E..., o montante indemnizatório de € 1.945,31 (mil novecentos e quarenta e cinco euros e trinta e um cêntimos), a título de danos patrimoniais.”
1.7. O Hospital B... não se conformando com a decisão referenciada em 1.6, dela interpôs recurso para este STA e A. C..., notificada da interposição do recurso do Réu, veio, nos termos do disposto nos nos 1 e 2 do artigo 682.º do C.P.C., dela interpor recurso subordinado relativamente à parte em que julga improcedente o pedido (na parte ampliada) de que o Réu seja condenado no pagamento de todas as despesas com exames médicos, tratamentos fisioterápicos e intervenções ou correcções cirúrgicas necessárias a debelar ou minorar as consequências e sequelas funcionais produzidas na A. C..., pelas intervenções cirúrgicas a que a mesma foi submetida em 13 e 14 de Junho de 1995.
1.8. O Réu agravante apresentou as alegações de fls. 631 e segs., que concluiu do seguinte modo:
“1. Porque dos autos constam todos os elementos que levam à resposta de não provado o quesito 18º;
2. E porque a resposta “provado” não está conforme a realidade fáctica decorrente do relatório dos senhores peritos médicos deve a resposta ser não provado”
3. Ser dado como provado que os funcionários, nomeadamente os enfermeiros da Ré actuaram com zelo, cuidado, vigilância atempada, transmitido aos médicos logo que detectadas as lesões (respostas positivas aos quesitos 58°, 59° e 60°, de resto.
4. Que o aparecimento e detecção das lesões não tiveram como causa directa e imediata a conduta dos funcionários da Ré, nomeadamente o dever de vigilância por parte dos Enfermeiros.
5. Que, em qualquer caso, uma vez instalada a doença jamais a mesma poderá ser controlada pelo Homem sendo a mesma irreversível.
6. Que o aparecimento da doença não foi por culpa humana.
7. Os enfermeiros efectuaram uma vigilância atenta e responsável da doente no período da noite, não se tendo verificado qualquer anormalidade, nomeadamente o aparecimento de lesões compatíveis com as que vieram a aparecer cerca das 10 horas da manhã e não sete como, cremos, por lapso de escrita consta da sentença.
8. Logo que apareceram e foram detectadas os enfermeiros delas deram de imediato conhecimento aos médicos, que prontamente intervieram no bloco operatório.
9. Inexiste nexo de causalidade entre o comportamento dos funcionários da Ré, nomeadamente dos enfermeiros e médicos, que de resto actuaram de modo diligente, cuidadoso, interessado e com todos os cuidados que à situação se impunham, e de acordo com a as boas práticas e artes médicas, evitando que a situação da A. C... fosse agora ainda pior.
10. Pelo que não deve a Ré ser condenada no pagamento aos AA da indemnização peticionada.
11. E a sê-lo deverá ser fixada em montante referidos na presente peça processual.
12. A, aliás douta, sentença recorrida, violou o disposto nos art° 514° do CPC art°s 2°, 3°, 4° e 6° do DL 48.05l de 21 de Novembro de 1967 e art° 483° e 487°, todos do Cód. Civil.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável deve:
a) a resposta ao quesito 18, 58, 59 e 60 da base instrutória ser alterada nos termos propostos nas conclusões;
b) a, aliás douta, sentença recorrida ser revogada e substituída por, aliás douto, acórdão, que, contemplando as conclusões enumeradas, absolva o R. nos pedidos formulados;
c) pois que assim será feita INTEIRA JUSTIÇA”
1.9. Os Autores apresentaram as contra-alegações de fls. 648 e segs. em relação ao Recurso do Réu e, na mesma peça, alegaram em relação ao respectivo recurso subordinado, concluindo:
“1. A douta sentença de que se recorre, ao não acolher a factualidade provada demonstrativa da necessidade da A. C... de cuidados médicos decorrentes da situação em que ficou, negando-lhos, violou, nomeadamente, a previsão do n.° 2, do art. 659.°, do Código de Processo Civil;
2. A decisão recorrida, ao dar por adquirido que a situação de paraplegia da A. C... é irreversível e ao negar-lhe a cobertura dos cuidados médicos que, inafastavelmente, não deixará de vir a necessitar, agrediu, sobretudo, o disposto na alínea c), do n.° 1, do art. 668.° do Código de Processo Civil, bem como no n.° 2, do art. 257.°, do Código Civil.”
1.10. O Hospital B... contra-alegou em relação ao recurso subordinado interposto pelos Autores pela forma constante de fls. 658 e segs, defendendo o improvimento do recurso.
1.11. A Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste STA emitiu o parecer de fls. 664 e segs, que se transcreve:
“1- Recurso interposto pelo Réu. Hospital B..., E.P.E, do despacho de fls. 501 a 502, que admitiu a ampliação e aplicação do pedido.
Somos de parecer que o mesmo deverá ser mantido, pelos fundamentos que dele constam, os quais não merecem qualquer reparo.
II — Recurso interposto da Sentença pelo Réu.
Afigura-se-nos que não assiste razão ao Recorrente pelas razões que passamos a referir.
Contrariamente ao invocado por este, parece-nos não constarem dos autos elementos susceptíveis de alterarem a resposta aos quesitos n°s 18°, 58°, 59° e 60°.
O Tribunal de recurso apenas pode modificar a matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão ou se os elementos por ele fornecidos impuserem decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, ou se o Recorrente apresentar documento novo que, por si só, baste para destruir a prova em que se fundamentou a decisão – art° 712°, n° 1. als. a), b), e c), do C.P.C..
Vide, neste sentido os Acs. deste S.T.A., de 03.07.2007, Proc. n° 0419/07, de 17.11.2005, Proc. n° 01074/03, de 19.09.2006, Proc. n° 0330/06.
Nos presentes autos, foi produzida prova testemunhal, que não foi reduzida a escrito nem gravada, e as respostas aos quesitos em causa estão fundamentadas, também, no depoimento das testemunhas.
Assim, a resposta ao quesito 18° tem por fundamento, além da análise do processo clínico da A. C..., os depoimentos de dois enfermeiros que integravam o turno da noite, bem como dos médicos, Dr. F..., especialista de ortopedia, perito na atribuição de dano corporal, bem como do Prof. G..., que chefiou a equipa cirúrgica e do Dr. H..., testemunhas do R. (cfr. fundamentação da fixação da matéria de facto, fls. 518 a 520).
O Recorrente invoca que o relatório dos peritos médicos devia, ter conduzido à resposta de «não provado» ao quesito n° 18°.
Ora, os relatórios periciais não constituem elementos de prova que imponham ao Tribunal uma decisão insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (art° 712°, n° 1, b), do C.P.C.).
A prova pericial é livremente apreciada pelo Tribunal (art° 515°, 519° e 655°, do C.P.C. e 389°, do C. Civil e Acs. de 01.10.98, Proc. n° 29147, de 12.10.2000, Proc. n° 044343, de 20.10.2004, Proc. n° 2005/03 e de 10.01.2006, Proc. n° 0505/05).
Assim, além do parecer dos peritos, o Tribunal valorou os restantes elementos de prova produzida, conforme consta da fundamentação da sua convicção.
Por sua vez, quanto à matéria de facto considerada não provada (na qual se inclui a contida nos quesitos 58°, 59º e 60º, em causa nas alegações) a resposta aos quesitos «fundou-se quer na ausência de meios de prova que demonstrassem tal matéria, quer por tal matéria resultar contrariada por aquilo que resultou provado».
Do exposto, decorre que não pode, ser alterada a matéria de facto fixada. No que concerne ao nexo de causalidade, este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a considerar que o art° 563°, do Código Civil consagra a teoria da causalidade adequada, devendo adoptar-se a sua formulação negativa correspondente aos ensinamentos de ENNECERUS-LEHMANN, segundo a qual uma condição do dano só deixará de ser causa dele sempre que seja de todo indiferente para a produção do dano e só se tenha tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias (cfr. sumário do Ac. de 03.07.2007, Proc. n° 0443/07).
Neste sentido podem ler-se além dos Acs. constantes da extensa enumeração feita no Ac. de 03.07.2007, ainda os Acs. de 25.09.2007, Proc. n° 0142/07 e de 21.02.2008, Proc. n° 01001/07.
Considerando o entendimento supra referido, o qual foi perfilhado pela sentença, e a matéria de facto dada como provada, relativa a todo o circunstancialismo posterior à intervenção cirúrgica da A. C..., afigura-se-nos que a sentença no que se reporta à verificação do nexo de causalidade não merece qualquer reparo.
III — Recurso interposto da Sentença pelos Autores, na parte em que esta julgou improcedente o pedido constante da ampliação
Somos de parecer que o recurso deverá ser julgado procedente pelos fundamentos que se encontram invocados pelos Recorrentes os quais acompanhamos.”
2. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2.1. Com interesse para a decisão, a sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos:
“A) A A. C... é filha dos AA. D... e E..., tendo nascido em 24.07.82.---
B) Quando a C... tinha 12 anos, os A.A. observaram que a mesma teria um problema na coluna.---
C) Consultaram um especialista em ortopedia que lhe diagnosticou escoliose dorsolombar grave e que aconselhou o seu intervencionamento cirúrgico.—
D) Nessa conformidade, os AA. foram encaminhados por tal especialista, em 02.10.94, para os serviços de ortopedia do R., onde foi observada por um seu agente e equipa, em 22.12.94, que propuseram operá-la.---
E) Os AA. pais acederam que a sua filha C... fosse operada.—
F) Para tanto, a A. C... foi internada nas instalações do Réu no dia 12/6/95 com o diagnóstico de escoliose dupla idiopática toráxica e lombar.---
G) No dia seguinte, 13/6/95, pela tarde, a C... é submetida a uma cirurgia — “Instrumentação de Harrington-Luque e toracoplastia à direita” -, a qual, de acordo com os registos clínicos do R., se iniciou pelas 14h30m e ficou concluída pelas 16h50m.---
H) Após a cirurgia foi tirado um raio X de controlo à C..., que permaneceu em recobro no bloco operatório entre 1h00 e 1h30m, sendo a última avaliação registada às 17h45m.---
I) Findo esse período, a C... foi reenviada para a enfermaria, donde tinha partido antes da operação, e onde deu entrada pelas 18h50m.---
J) O referido Raio X de controle desapareceu do seu processo clínico.---
K) A enfermaria referida supra em I) não tem qualquer sistema de monitorização.—
L) O pessoal de enfermagem do turno da noite de 13.06.95 para 14.06.95 não assinalou no respectivo registo de turno qualquer ocorrência anormal durante esse turno relativamente ao estado da A. C....---
M) O turno da noite no Hospital Réu, para o pessoal de enfermagem e pessoal auxiliar, prolonga-se entre as 20.00 horas de um dia e as 08.00 horas do dia imediato.--.
N) O pós-operatório de doentes como a A. C... exige vigilância neurovascular para a detecção de possíveis alterações a esse nível.---
O) Segundo os registos médicos do R. - diário de ortopedia -, o pessoal médico foi informado pelas 10h00 da manhã de 14.06.95, pelo Enfermeiro Chefe I..., do facto de a doente C... apresentar alterações neurológicas nos membros inferiores, tendo-lhe sido de imediato realizado exame clínico que concluiu por uma situação de paraplegia, motivo pelo qual foi a A. C... submetida a uma cirurgia para lhe ser extraída a instrumentação, o que ocorreu pelas 11h00 da manhã.---
P) No diário da UCI (Unidade de Cuidados Intensivos), foi registado que a situação de paraplegia referida antes em O) foi notada cerca das 7h00 do dia 14.06.95.---
Q) Em 23.06.95 a A. C... foi sujeita a nova intervenção cirúrgica para tratamento de perfuração de úlcera duodenal.---
R) No pós-operatório fez quadro de trombose venosa profunda ilíaco/femural do membro inferior esquerdo.-
S) No dia 12.08.95 a A. C..., sob anestesia geral, efectuou limpeza cirúrgica a escara na região dorsal.---
T) Pelo menos desde Abril de 1996 que a A C... se desloca com o auxílio de canadianas e aparelhos longos.-
U) Na enfermaria para onde foi reenviada após a cirurgia referida supra em G), a vigilância imediata à A. C... estava a cargo do pessoal de enfermagem, que no caso de detectar alguma anomalia deveria alertar os médicos afectos ao serviço de urgência.---
V) As enfermarias do serviço de ortopedia eram compostas por cerca de 42 camas (homens/mulheres), sendo que aquela para onde foi enviada a A. C..., referida em I), tinha seis camas.---
W) A vigilância nas referidas enfermarias, no turno da noite, era efectuada por três enfermeiros.---
X) A situação de paraplegia referida supra em O) ocorreu durante o turno da noite referido em L).---
Y) Durante esse turno não foi feita a regular vigilância neurovascular que o caso da A. C... exigia.---
Z) Por isso não foram detectadas as alterações vasculares e neurológicas que estavam a ocorrer com a A. C...---
AA) Ocorreu a perfuração de úlcera referida supra em Q), sendo que a Autora C... havia sido medicada com corticoides em doses elevadas.---
BB) A A. C... esteve internada nas instalações do R. até 5/12/95.---
CC) Altura em que teve alta.---
DD) Passando a regime de Hospital de Dia até 12/7/96.---
EE) Data a partir da qual ficou em regime de consulta externa.---
FF) Durante o período que mediou entre Agosto/Setembro de 1995 até Janeiro de 1996, verificou-se um agravamento de deformidade da coluna vertebral. ---
GG) Foi indicada pelo médico cirurgião a suspensão da utilização do colete, durante o referido período.---
HH) A partir de Janeiro de 1996, o referido clínico indicou novamente a utilização do colete.---
II) A qual se mantém até à presente data.---
JJ) Encontra-se estabilizada a deformidade da coluna vertebral.---
KK) Foi a falta de vigilância à Autora C... durante o pós-operatório da cirurgia referida em G) que levou a que não fosse detectado o processo de isquemia que conduziu à situação de paraplegia referida em O) logo na sua fase inicial, o que determinou as lesões subsequentes da referida Autora.---
LL) A A. C... nunca mais terá uma vida normal, quer pessoal, quer na sua relação com os outros.---
MM) A A. C... era uma criança livre, independente, segura, dotada de grande vivacidade, alegre e expansiva.—
NN) A sua situação de paraplegia torna-a totalmente dependente de terceiros.---
OO) Por força da lesão de que sofre, a A. C... modificou a sua personalidade, tornando-se numa menina triste, com uma vida emocional alterada.---
PP) O seu estado é de profunda depressão e desânimo.---
QQ) Na medida em que se confronta diariamente com a sua deficiência, a sua revolta é grande.---
RR) Por seu lado, os AA. estão destroçados com a situação da sua filha única.-
SS) Dor moral e desgosto profundo que os tem acompanhado desde o início de todos estes acontecimentos.---
TT) Dor e desgosto que o tempo aviva, ao verem-se confrontados no dia a dia com os problemas da filha, o que os traz abalados e angustiados.---
UU) Sendo essa angústia tanto maior quando pensam no futuro da C... e na sua necessidade de ter sempre alguém a seu lado para lhe prestar assistência, situação que muito os aflige e atormenta.---
VV) A mãe da C... desde o acontecido foi obrigada a deixar o seu emprego para poder assistir e acompanhar a filha.---
WW) Que precisa de ajuda permanente.---
XX) Pois não pode executar os actos normais do quotidiano, nem desenvolver actividades próprias de crianças da sua idade.---
YY) Estando completamente dependente da ajuda que lhe possam prestar até durante a noite, já que necessita de ser reposicionada de três em três horas.-
ZZ) O seu quotidiano ficou totalmente alterado, pois não há um dia desde esse evento que não se veja confrontada com as suas incapacidades, mau estar permanente e ainda com tratamentos que são diários.---
AAA) Tudo lhe causando grandes incómodos e dores, amargurando-lhe a existência.---
BBB) Com as diversas intervenções cirúrgicas a que foi submetida, bem como com os tratamentos a que foi sujeita, a A. C... teve um enorme sofrimento físico.---
CCC) De Outubro a Dezembro de 1996, a C..., por anorexia e depressão, perdeu 19 Kg.---
DDD) As lesões e incapacidades apresentadas pela C... fazem com que necessite de cuidados específicos e permanentes como consumo diário de medicamentos, utilização diária de produtos de higiene determinados e transporte particular diário na sua condução à escola.---
EEE) Em tais medicamentos, produtos de higiene e transportes, no período compreendido entre Dezembro de 1995 e 12 de Junho de 1998, os AA. gastaram, em medicamentos 88.000$00, em fraldas 840.000$00 e, de Janeiro de 1996 até 5 de Junho de 1998, com duas deslocações diárias de táxi para a escola, 428.590$00.---
FFF) A A. mãe, desde 18/3/98, que se encontra na situação de licença sem vencimento, para prestar assistência à filha.---
GGG) Tendo por tal facto, e desde essa data até 12.06.98, perdido a sua remuneração de trabalho, no valor de 130.000$00 mensais.---
HHH) A dependência da A. C... da ajuda de terceiros será para toda a vida.-
III) A sua situação de paraplegia é irreversível.---
JJJ) A cirurgia a que a A. C... foi submetida e referida supra em G), além dos riscos inerentes a toda e qualquer intervenção cirúrgica (acidentes anestésicos, infecções operatórias, tromboembolismo, etc.), acresciam os ligados a lesões neurológicas.-
KKK) Sendo que tais complicações podem surgir, com frequência, horas ou dias após a intervenção.---
LLL) E são explicadas, pelo actual conhecimento ortopédico, por um processo de isquemia progressiva da medula.---
MMM) A cirurgia referida em G) foi realizada como único meio tecnicamente adequado, à face dos actuais conhecimentos da ciência, para debelar à A. C... a doença de que padecia.---
NNN) No Hospital Réu a vigilância neurológica supra referida em N) é somente clínica, fazendo-se através da pesquisa da actividade motora e da sensibilidade, aí não sendo utilizada qualquer aparelhagem de monitorização para esse efeito.---
OOO) Quando foi reenviada para a enfermaria, conforme supra referido em I), a A. C... encontrava-se consciente e colaborante, estável do ponto de vista hemodinâmico, respirando normalmente, com normalidade do estado neurovascular dos membros inferiores.---
PPP) O pessoal de enfermagem incumbido da vigilância tinha ao seu dispor todos os meios necessários para acorrer a qualquer anormalidade, sendo que a ocorrência de alguma implicava para aquele pessoal de enfermagem a obrigação da sua imediata comunicação, fora do horário de rotina, à equipa médica do Serviço de Urgência.---
QQQ) Que, a qualquer hora do dia ou da noite, observará o doente e que procederá às actuações que entender necessárias podendo solicitar a colaboração de qualquer médico ou serviço.---
RRR) A situação de paraplegia referida supra em O) resultou das lesões neurológicas tardias a que se referem supra as alíneas JJJ), KKK) e LLL).---
SSS) A taxa de ocupação no Serviço de Ortopedia ronda os 70%---
TTT) A necessidade do envio de doentes operados a escoliose para a Unidade de Cuidados Intensivos resulta de critérios clínicos rigorosos determinados pelas especialidades de Ortopedia e Anestesiologia, e respeita a situações de escolioses neuromusculares, ou seja, doentes paralíticos por miopatias ou neuropatias em que existe o risco potencial de insuficiência respiratória no período pós-operatório imediato, bem como a intervenções cirúrgicas a escolioses idiopáticas em que a abordagem cirúrgica é feita por via anterior, nomeadamente por toracotomia, ou seja, operações com tórax aberto.---
UUU) Não era esse o caso da C..., em que a abordagem cirúrgica foi feita pela via posterior, e em que não existiram quaisquer indicações pré, per ou pós-operatórias para o seu envio para a Unidade de Cuidados Intensivos, diferentemente do que veio a suceder após a 2 intervenção, a 14/06/1995, quando já se verificaram critérios para o seu envio para a UCI, tais como alterações neurológicas, anemia por perdas hemáticas na reintervenção, administração de medicamentos importantes mas potencialmente agressivos como heparina per-operatóriamente e corticoterapia em altas doses.---
VVV) A “última avaliação” supra referida sob a alínea H) é a avaliação feita por Ortopedia e Anestesia no final do recobro e destina-se a avaliar se o doente se encontra em condições de ser enviado à enfermaria.---
WWW) O RX de controle referido também na alínea H) destinou-se a verificar a correcção da colocação da instrumentação, ou seja, da colocação das barras, ganchos e aramagens metálicas feita sob controlo visual e revelar o grau de correcção da deformidade da coluna conseguido comparativamente com o pré-operatório, tendo-se concluído pela completa normalidade.---
XXX) O RX de controle referido em H) foi examinado de imediato pela equipa médica do Bloco Operatório, e depois em reunião do Serviço de Ortopedia por cerca de vinte médicos.-
YYY) Sem que ninguém tivesse detectado qualquer anormalidade.---
ZZZ) A extracção da instrumentação cirúrgica em casos de lesão neurológica tardia não é justificada por qualquer anormalidade da referida instrumentação, mas sim para ser aliviado o estiramento da medula (e consequente isquemia) devido à correcção da deformidade escoliótica.---
AAAA) A administração de corticoides em doses elevadas nas situações de lesões medulares agudas é um procedimento universalmente recomendado e actual.---
BBBB) A medicação administrada à C... foi a adequada ao quadro clínico que ela apresentava.---
CCCC) Mesmo adoptando todas as medidas preventivas, é possível o surgimento de complicações gastro-intestinais em consequência da administração de corticoides em doses elevadas.---
DDDD) Na situação em que se encontrava a A. C..., aquela possibilidade de surgimento de complicações nunca seria razão para não fazer essa administração.---
EEEE) A suspensão da utilização do colete referida supra na alínea GG) foi justificada pelo aparecimento de sinais clínicos e radiográficos de fusão óssea no local da intervenção cirúrgica, por o colete dificultar o tratamento intensivo de fisioterapia e por o seu uso prolongado originar atrofia muscular e provocar zonas de pressão cutânea.---
FFFF) E dessa suspensão não resultou agravamento da escoliose inicial, antes se tendo verificado o aparecimento de deformidade escoliótica distal à zona de fusão óssea, na transição lombosagrada, secundária à lesão neurológica, pelo desequilíbrio muscular.---
GGGG) O colete apenas em parte poderia controlar esse desequilíbrio muscular.---
HHHH) A estabilização da deformidade da coluna vertebral não se deveu exclusivamente ao reinicio da utilização do colete, mas ao conjunto dos tratamentos, nomeadamente os fisioterápicos para correcção de atrofias musculares.---
IIII) A A. C... desloca-se pela forma referida supra em T) desde que teve alta hospitalar.---
JJJJ) A unidade de escolioses do Serviço de Ortopedia do ora R. é das mais antigas e prestigiadas do País.---
KKKK) E está dotada de meios técnicos actualizados e de pessoal experiente e em constante actualização técnica e teórica, nomeadamente nos centros mundiais mais famosos no tratamento desta doença.---
LLLL) Os pais da A. C... só tiveram percepção da real dimensão das lesões irreversíveis sofridas pela sua filha C... pelo menos quinze dias após a intervenção cirúrgica de 13.06.95.---”
2.2. O Direito
2.2.1 Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida a fls. 547 e segs., foi julgada procedente a acção de responsabilidade civil extra-contratual, com fundamento em facto ilícito, intentada pelos Autores D... e mulher E..., por si e na qualidade de legais representantes da sua filha menor C..., contra o Hospital B... – E.P.E., quanto à parte do pedido constante da petição da acção, e improcedente na parte objecto do pedido de ampliação (formulado no reqtº de fls. 484 e segs. e admitido pelo despacho de fls. 501 e 502).
Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso o Réu Hospital B... e os Autores (recurso subordinado), estes últimos na parte em que decaíram.
Foi ainda interposto recurso de agravo pelo Réu, quanto ao despacho judicial que deferiu o requerimento de “ampliação do pedido inicial”, constante de fls. 484 a 487.
Conhecer-se-á, pois, em primeiro lugar, do recurso principal interposto pelo Réu da sentença final, seguidamente do agravo do despacho que admitiu o requerimento de ampliação do pedido inicial (se não ficar prejudicado pelo conhecimento do primeiro recurso), e, por último, do recurso subordinado dos Autores, se não ficar prejudicado pela decisão do/s precedente/s recurso/s.
2.2.2 Quanto ao recurso da sentença de fls. 547 e segs., interposto pelo Hospital Réu.
A discordância do Réu Recorrente em relação à sentença do T.A.F. – que o condenou no pagamento de indemnização aos Autores, pelos danos sofridos em consequência de actuação ilícita e culposa, da qual teria resultado a situação de paraplegia da Autora C... – centra-se, em síntese, nos aspectos seguintes:
- Julgamento da matéria de facto, concretamente no respeitante à constante do quesito 18º e dos quesitos 58º, 59º e 60º da Base Instrutória (conclusões 1ª, 2ª e 3ª das alegações)
- Juízo da sentença quanto à existência de uma actuação ilícita e culposa dos agentes do Réu (conclusões 7ª, 8ª e 9ª)
- Verificação do nexo de causalidade entre a actuação imputada ao Réu e a ocorrência de paraplegia de que foi vítima a Autora C... (conclusões 4ª, 5ª, 6ª e 9ª)
- Excessividade dos montantes indemnizatórios que foi condenado a pagar aos Autores (conclusão 11ª)
Vejamos se lhe assiste razão
2.2.2.A.1. Quanto à matéria das conclusões 1ª, 2ª e 3ª
O Réu sustenta que a resposta ao item 18º da Base instrutória, que foi considerado provado pelo Tribunal Colectivo, deverá ser alterada para Não Provado e, as respostas de Não provado que foram dadas aos itens 58º, 59º e 60º deverão ser mudadas para Provado.
Vejamos:
No quesito 18º pergunta-se:
Foi a falta de vigilância durante o pós-operatório da cirurgia referida em G) que determinou as lesões subsequentes da A. C...?” (fls. 260)
A este quesito, o Tribunal Colectivo respondeu:
provada que foi a falta de vigilância à Autora C... durante o pós-operatório da cirurgia referida em G) que levou a que não fosse detectado o processo de isquemia que conduziu à situação de paraplegia referida em O) logo na sua fase inicial, o que determinou as lesões subsequentes da referida Autora”. (fls. 517)
Conforme consta da motivação aduzida pelo Tribunal Colectivo, a resposta a este item baseou-se na análise do processo clínico da Autora C..., nos depoimentos das testemunhas Dr. F..., médico especialista de Ortopedia, Prof. Dr. G... e Dr. H..., bem como na análise e ponderação dos relatórios de exame médico-legal efectuadas à A. C... pelo INML – Delegação do Porto e pelo Colégio da Especialidade de Ortopedia da Ordem dos Médicos.
Nos termos do art.º 712º, nº 1, a) do C. P. Civil, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de recurso, “se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº. 696º-A, a decisão com base neles proferida.”.
Este Tribunal não tem acesso aos depoimentos das testemunhas (por não se ter procedido à respectiva gravação) que, conjuntamente com os demais elementos referenciados pelo Tribunal Colectivo de 1ª instância, influenciaram a decisão sobre a resposta ao quesito em análise (18º), pelo que, excluída está a possibilidade de ser alterada a decisão do Tribunal de 1ª instância quanto ao aludido ponto, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art.º 712º do C. P. Civil.
O mesmo se diga quanto ao previsto na alínea b) do citado preceito legal.
Efectivamente, os elementos fornecidos pelo processo não impõem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
O relatório dos peritos médicos do Colégio de Ortopedia da Ordem dos Médicos, a que o recorrente faz apelo para justificar a alteração da resposta ao quesito 18º, é um meio de prova pericial sujeito ao regime da livre apreciação da prova pelo tribunal (art.ºs 655º e 591º do C.P.C. e 389º do C. Civil), pelo que, não constando do processo o registo da prova testemunhal, nem quaisquer outras provas que só por si impusessem decisão diversa, não é possível alterar a decisão do Tribunal recorrido quanto ao quesito em análise. (cfr. acºs. deste S.T.A. de 3.7.07, rec. 419/07; de 10.1.06, rec. 505/05; de 3.7.07, rec. 443/07)
2.2.2.A.2. Quanto à requerida alteração das respostas aos quesitos 58º, 59º e 60º da base instrutória
Indaga-se nos aludidos itens:
58º Durante o turno da noite supra referida em L (turno da noite de 13.6.95 para 14.6.95) a A. C..., além da vigilância comum a todos os doentes da enfermaria, teve vigilância específica e individualizada às 20.30 horas, 24.00 horas, 03.00 horas e 07.00 horas, durante as quais foi massajada, posicionada, tendo sido verificada a sensibilidade e mobilidade dos membros inferiores e a sua situação neurovascular?
59º … nada de anormal se tendo verificado?
60º A referência às “7h” constante da UCJ, supra referida sob a alínea P’, deveu-se a lapso ou erro na transmissão da informação àquela unidade?
As respostas de não provado dadas pelo Tribunal Colectivo a estes quesitos “fundou-se quer na ausência de meios de prova que demonstrassem tal matéria, quer por tal matéria estar contrariada por aquilo que resultou provado” (ver acórdão do Tribunal Colectivo, pag. 521).
Vale, pois, também, aqui, o que supra se deixou expresso a propósito da análise das conclusões 1ª e 2ª das alegações, quanto à impossibilidade de alteração da matéria de facto, uma vez que este Tribunal não tem acesso a todos os meios de prova, nomeadamente testemunhal, em que se fundou a decisão do Tribunal Colectivo.
Acresce que, tal como se refere no acórdão do Tribunal Colectivo, a matéria a que se referem os quesitos em análise (alegada pelo Réu) “está contrariada por aquilo que resultou provado”, nomeadamente, em face das respostas positivas aos quesitos 5º (A situação de paraplegia referida supra em O) ocorreu durante o turno da noite referido em L) – X) da Mat. de facto – provada -, 6º (Durante esse turno não foi feita a regular vigilância neurovascular que o caso da A. C... exigia? – Y da Mat. de facto provada -, 7º (Por isso não foram detectadas as alterações vasculares e neurológicas que estavam a ocorrer com a A. C...) – Z) da Mat. de facto provada
Improcedem, assim, as conclusões 1ª, 2ª e 3ª deste recurso do Réu.
2.2.2.B. Quanto à impugnação da sentença, na parte em que concluiu pela ilicitude e culpa da actuação dos agentes do Réu e existência de nexo de causalidade entre tal conduta e os danos cuja indemnização é pedida. (conclusões 4ª a 10ª).
Alega o Recorrente, em síntese – no respeitante à impugnação do decidido quanto à ilicitude e culpa -, que os funcionários do Réu, nomeadamente os enfermeiros, efectuaram uma vigilância atenta e responsável da doente no período da noite, não se tendo verificado qualquer anormalidade, nomeadamente o aparecimento de lesões compatíveis com as que vieram a aparecer cerca das 10 horas da manhã (“e não sete”, alega, atribuindo a discrepância a lapso de escrita da sentença).
Logo que apareceram e foram detectadas os enfermeiros delas deram de imediato conhecimento aos médicos.
Não tem, todavia, razão.
De resto, a improcedência do alegado a este respeito, resulta, desde logo, da improcedência das conclusões 1ª a 3ª, inc. das alegações, respeitantes à requerida alteração da matéria de facto provada.
E o mesmo se diga, no concernente à impugnação do juízo da sentença recorrida quanto à existência de um nexo de causalidade adequada entre o comportamento ilícito e culposo do Réu, através dos seus agentes, e os danos cujo ressarcimento é reclamado na acção, decorrentes da situação de paraplegia de que a Autora C... foi vítima. (Cfr., nomeadamente, a resposta ao quesito 18º, alínea KK) da matéria de facto)
Efectivamente, a respeito dos referidos pressupostos de responsabilidade civil extra-contratual por acto ilícito e culposo, no concernente ao caso concreto em análise, a sentença recorrida ponderou, designadamente:
“Ora, no caso sub judice, temos que o pós-operatório de doentes como a A. C..., face ao tipo de cirurgia a que foi submetida, exigia vigilância neurovascular para a detecção de possíveis alterações a esse nível (cfr. al. N) da MFP), sendo que na enfermaria para onde foi reenviada a A. após a cirurgia (e onde deu entrada pelas 18h50, com normalidade do estado neurovascular dos membros inferiores - cfr. als. I) e OOO) da MFP), a vigilância imediata à A. C... estava a cargo do pessoal de enfermagem, que no caso de detectar alguma anomalia deveria alertar de imediato os médicos afectos ao serviço de urgência (cfr. als. U) e PPP) da MFP). No entanto, o pessoal de enfermagem do turno da noite de 13.06.95 para 14.06.95 não assinalou no respectivo registo de turno qualquer ocorrência anormal durante esse turno relativamente ao estado da A. C..., sendo certo, porém, que foi durante esse turno que ocorreu a situação de paraplegia que sobreveio para a A. C..., situação essa que não obstante ter sido notada cerca das 7h00 do dia 14.06.95, conforme registo efectuado no diário da UCI (Unidade de Cuidados Intensivos), apenas foi dada a conhecer ao pessoal médico pelas 10h00 da manhã, que de imediato procedeu ao exame clínico da doente e concluiu pela verificação dessa situação, razão pela qual foi a A. C... submetida de imediato a nova cirurgia para lhe ser extraída a instrumentação, o que ocorreu pelas 11h00 da manhã (cfr. als. L), O), P) e X) da MFP).
Apurou-se assim que durante o turno da noite de 13.06.95 para 14.06.95, não foi feita a regular vigilância neurovascular que o caso da A. C... exigia, em função dos riscos associados a lesões neurológicas inerentes ao tipo de cirurgia a que aquela fora submetida, e por isso não foram detectadas as alterações vasculares e neurológicas que estavam a ocorrer com a A. C... (cfr. als. Y), Z) e JJJ) da MFP), ou se foram detectadas não foram prontamente comunicadas e avaliadas pelo pessoal médico habilitado para tal, como deveriam ter sido, sendo certo que as referidas complicações neurológicas são explicadas, pelo actual conhecimento ortopédico, por um processo de isquemia progressiva da medula, que não obstante se poder desencadear não só horas mas também dias após a intervenção cirúrgica, é um processo que se manifesta por sinais progressivos (cfr. als. KKK) e LLL) da MFP), que se desenvolvem por um período de várias horas até à instalação da situação de paraplegia, impondo uma actuação o mais precoce possível, logo aos primeiros sinais de isquemia, já que o prognóstico destas complicações, que não podem ser evitadas, depende da precocidade com que é feito o respectivo diagnóstico, seguido da extracção ou redução da distracção da instrumentação, antes pois de instalada a paraplegia, pois que uma vez esta instalada, a mesma é irreversível.
Assim, perante a matéria de facto provada, não podemos deixar de concluir no sentido de a conduta do R. ser tida como ilícita, atenta a deficiente vigilância neurovascular que foi feita no pós-operatório da A. C..., claramente violadora das leges artis, já que as complicações neurovasculares que sobrevieram à A. nesse pós-operatório só foram detectadas/intervencionadas já na fase de paraplegia, num momento pois em que eram irreversíveis, quando é certo que poderiam e deveriam ter sido detectadas mais cedo, por forma a permitir uma intervenção precoce, que poderia ter evitado a instalação da paraplegia, pela extracção ou redução da distracção da instrumentação logo que se verificaram os primeiros sinais de isquemia da medula.
Aliás, em casos como o presente, justifica-se uma inversão do ónus da prova do denominado nexo de ilicitude (para alguns autores também denominada “causalidade da violação do dever”), pois que, se através da violação de uma “lei da arte” é aumentado o risco de dano, vindo a verificar-se uma lesão localizada dentro do círculo de perigos que aquela pretende controlar, deve impor-se ao infractor, para sua exoneração, a prova de que o dano se verificou independentemente da violação (vide Jorge F. Sinde Monteiro, “Aspectos Particulares da Responsabilidade Médica”, in Direito da Saúde e Bioética, LEX, pp. 133 e ss.).
No caso sub judice, não foi efectuada a vigilância neurovascular que o caso exigia, fosse através da utilização de adequada monitorização electrofisiológica (de que o Hospital Réu não dispunha - cfr. als. K) e NNN) da MFP), fosse através de exame clínico, feito por pessoal competente e de forma atempada, para pesquisa da actividade motora e da sensibilidade dos membros inferiores da A., pelo que foi aumentado o risco do dano que sobreveio à A. - a paraplegia -, lesão que inequivocamente se localiza dentro do círculo de perigos que aquela vigilância neurovascular pretendia controlar, não tendo o Réu provado que o dano se produziu independentemente da violação daquela “lei da arte” que impunha a referida vigilância, pelo que também por esta via se pode afirmar a ilicitude da conduta do Réu.
E tal conduta é igualmente merecedora de um juízo de reprovação ou censura, e por isso culposa na modalidade de negligente, já que o pessoal médico e de enfermagem ao serviço do estabelecimento hospitalar ora Réu não agiu de acordo com o cuidado, diligência e conhecimentos compatíveis com os padrões exigíveis aos bons profissionais da sua categoria e especialidade, aos profissionais medianamente competentes, prudentes e sensatos do seu tempo, quiçá por terem confiado, infundadamente, que atenta a reduzida percentagem de casos em que surge este tipo de complicações neurológicas, as mesmas não ocorreriam com a A. C..., o que infelizmente se veio a verificar.
Tal conduta é tanto mais censurável quanto é certo que a unidade de escolioses do Serviço de Ortopedia do ora Réu é das mais antigas e prestigiadas do País, encontrando-se dotada de meios técnicos actualizados e de pessoal experiente e em constante actualização técnica e teórica, nomeadamente nos centros mundiais mais famosos no tratamento desta doença (cfr. als. JJJJ) e KKKK) da MFP), sendo certo que se é verdade que a obrigação que sobre o R. impendia ao realizar o tratamento cirúrgico a que foi submetida a A. C... era uma obrigação de meios, e não de resultado, devendo pois empregar todos os meios ao seu dispor, técnicos e humanos, tendentes à cura da doença de que padecia a A., ou a minorá-la, sem contudo ter obrigação de assegurar a cura efectiva ou que nenhuma complicação sobreviria, já que estas podem sempre surgir em qualquer intervenção cirúrgica, sendo que no caso particular da intervenção a que foi submetida a A. acresciam os riscos ligados a lesões neurológicas, como se viu já, o certo também é que os factos que resultaram provados relativamente à ausência da necessária vigilância neurovascular no pós-operatório da A. permite concluir que não foram empregues todos os meios de que o R dispunha para assegurar o melhor tratamento à A., tendo sido violado um dever objectivo de cuidado, sendo que, como refere o Prof. Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Reimpressão, I, pp. 421 e ss., “antes de tudo a negligência é omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência”, consistindo a violação desse dever “em o agente não ter usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o dano” cuja produção, face às regras da experiência, se apresente naturalmente apta a produzir o resultado ou que esse resultado se apresente como “previsível”.
É pois de concluir que, exigindo o pós-operatório de doentes como a A. uma particular vigilância neurovascular para a detecção de possíveis alterações a esse nível, e não tendo tal vigilância sido efectivada no pós-operatório da A., o que permitiu que o processo de isquemia que surgiu para a A. nesse pós-operatório progredisse até que a situação se tornou irreversível, pela instalação da paraplegia, sem que o Réu nada tenha feito para tentar obviar esta lesão, que era previsível, houve uma clara violação do dever de cuidado exigível, configurando-se pois a actuação do Réu como negligente.
De resto, atenta a prova da ilicitude da conduta do Réu, violadora das legis artis, e sendo praticamente indefinida a fronteira entre os conceitos de culpa e de ilicitude no domínio da responsabilidade civil extra-contratual dos entes públicos por actos ilícitos de gestão pública, e na ausência de qualquer demonstração de que não houve culpa da sua parte, assim como na ausência de quaisquer factos que nos permitam afirmar a culpa do lesado, sempre teria de se ter como provada a culpa do R. no caso em apreço.
Verificado pois o facto ilícito e culposo, assim como resultando dos factos provados a produção de danos, resta averiguar se se verifica o nexo de causalidade entre o facto e os danos, de acordo com a teoria da causalidade adequada já acima referida.”
E, prossegue:
“Ora, face à matéria de facto provada constante da alínea KK) da MFP supra enunciada, dúvidas não pode haver relativamente à verificação do referido nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e os danos, já que foi a omissão da adequada vigilância neurovascular durante o pós-operatório da A. C..., que no caso se impunha, que levou a que não fosse detectado logo na sua fase inicial o processo de isquemia progressiva da medula que conduziu à situação de paraplegia que lhe sobreveio, com os danos inerentes, sendo certo que aquela falta de vigilância, em face da experiência comum e das leges artis aplicáveis, era adequada a impedir a detecção do referido processo de isquemia e a permitir a progressão deste até à instalação da paraplegia, pela não actuação em tempo oportuno, não sendo de modo algum indiferente à verificação daquela lesão.
Verificam-se pois, in casu, todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, incorrendo assim o Réu Hospital B... na obrigação de indemnizar o(s) lesado(s) pelos danos produzidos.”
Nenhuma censura nos merece esta ponderação, bem como o concluído pela sentença recorrida, pelo que, improcedem as conclusões 4ª a 10ª, inc.
2.2.2.C. Quanto à impugnação do decidido quanto aos montantes indemnizatórios a serem pagos aos Autores. (conclusão 11ª)
O Réu Recorrente defende, ainda que sem prescindir, que a ser condenado, a indemnização deverá ser fixada nos montantes por ele indicados nas respectivas alegações de recurso.
Quanto a este aspecto, alega apenas:
“De qualquer modo, e para o caso de assim se não entender, o que não concebe nem concede, sempre os montantes fixados são manifestamente exagerados.
É vasta a jurisprudência publicada e é prática dos Tribunais Superiores fixarem montantes manifestamente mais ajustados e de acordo com os critérios de justiça e proporcionalidade e de acordo com os recursos de que dispomos.
Pelo que sempre será de fixar montantes mais correspondentes com realidade da economia nacional e cujos montantes se nos apresentam razoáveis e que serão da ordem correspondente a UM TERÇO do fixado na sentença recorrida e que serão os seguintes:
À A. C... o montante de € 91.446, 28
Aos AA. D... e E... o montante de € 5.580, 87 e
À A. E... a titulo de danos patrimoniais o montante de € 648,44.
Em qualquer caso nunca à A. C... deverá ser atribuída a prestação mensal sob a forma de renda de montante equivalente ao salário mínimo nacional em vigor ao mês a que respeita atribuído durante a vida desta, pois, para além da A. não estar totalmente incapacitada de exercer qualquer profissão ou actividade produtiva, a mesma sempre poderá recorrer às prestações sociais em vigor e pagas pelo Estado Português para casos de incapacidade, nomeadamente apoio de terceira pessoa.”
Também, aqui, é de improceder a alegação do Réu.
Vejamos:
A sentença recorrida, após discorrer sobre os princípios contidos nos artos 562.º e segs. do Código Civil, ponderou quanto ao caso em apreço:
“No caso sub judice, os AA. peticionaram as seguintes quantias a título indemnizatório:
a) pela incapacidade funcional que adveio para a A. C... (que ficou paraplégica, sendo tal situação irreversível), 45.000.000$00 (€ 224.459,05);
b) por danos morais sofridos pela A. C... (dores e incómodos, desgosto e tristeza), 10.000.000$00 (€ 49.879,79);
c) por danos patrimoniais, na vertente de dano emergente (consumo diário de medicamentos, utilização diária de produtos de higiene determinados, transporte particular diário na sua condução à escola), 1.356.590$00 (€6766,64);
d) por danos patrimoniais sofridos pela A. mãe (perda de remuneração do trabalho), 390.000$00 (€ 1945,31);
e) por danos não patrimoniais sofridos pelos AA., pais da C..., 2.000.000$00 (€ 9975,96);
f) e ainda a fixação de uma prestação mensal no valor do salário mínimo nacional durante a vida da C..., para contratar uma pessoa que dela possa cuidar.
E em sede de ampliação do pedido, pediram ainda que o R. seja também condenado no pagamento de todas as despesas com exames médicos, tratamentos fisioterápicos e intervenções ou correcções cirúrgicas necessárias a debelar ou minorar as consequências e sequelas funcionais produzidas na A. C..., pelas intervenções cirúrgicas a que foi submetida em 13 e 14 de Junho de 1995.
Quanto aos montantes indemnizatórios peticionados a título de danos patrimoniais nas alíneas c) e d) do pedido, são os mesmos de arbitrar, em face da matéria de facto provada enunciada sob as alíneas DDD), EEE), VV), WW), FFF) e GGG).
Quanto ao montante indemnizatório peticionado relativamente à incapacidade funcional que adveio para A. C..., diremos desde já que o mesmo também se nos afigura equitativo.
Na verdade, resulta dos factos provados que em consequência da conduta ilícita e culposa do Hospital Réu, a A. veio a ficar paraplégica, sendo tal situação de paraplegia irreversível. A A. C... nunca mais terá uma vida normal, quer pessoal, quer na sua relação com os outros, sendo que aquela situação de paraplegia torna-a totalmente dependente de terceiros, carecendo de ajuda permanente (cfr. als. (KK), LL), NN), WW) e III) da MFP).
De acordo com o relatório pericial do INML, a A. ficou a padecer de uma Incapacidade Permanente Geral na ordem dos 75%.
Tal traduz-se necessariamente numa incapacidade funcional, implicando uma correspondente perda de capacidade de ganho, traduzindo-se assim em lucros cessantes/danos futuros, para cuja avaliação haverá que tentar encontrar um capital que considere a produção de um rendimento ou renda periódica durante todo o tempo de vida activa da vítima, adequado ao que auferiria se não fora a lesão.
Para proceder ao cálculo da indemnização correspondente a tal dano futuro, não existem regras rígidas ou tabelas precisas, embora a jurisprudência se sirva frequentemente de tabelas e fórmulas de carácter matemático ou estatístico, nem sempre coincidentes, mas todas tendo em vista o cálculo daquele rendimento de forma a conseguir critérios objectivos, o mais possível conformes com os princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade.
Tais critérios, porém, são extremamente falíveis, em face de todos os imponderáveis e variáveis económicas tais como a perenidade do emprego, a variação dos rendimentos do trabalho e das taxas de juro, a evolução dos salários, a inflação, etc.
Deste modo, e porque se trata de dano cujo valor exacto não pode ser averiguado, é essencial o recurso à equidade (cfr. n° 3 do art. 566° do C. Civ. e, a título exemplificativo, o Ac. do STJ, de 11.03.97, in BMJ, n° 465. pp. 537 e ss), atendendo-se à evolução dos salários, à idade do lesado, ao grau e natureza da incapacidade, às possibilidades de ganho que lhe restam, sendo ainda de considerar o limite de vida correspondente ao da média de vida em Portugal, que será de 70 anos para os homens e de 75 para as mulheres, não se considerando como limite de vida o limite de vida activa já que “finda a vida activa do lesado (...), não é razoável ficcionar que a vida física desaparece no mesmo momento e com ela todas as suas necessidades” (cfr. Ac. do STJ, de 28.9.95, in CJ - Acórdãos do STJ, 1995, Tomo 3, p. 36), além de que o simples facto de se atingir a idade da reforma não significa que o lesado a obtenha nem que deixe de trabalhar na medida das suas forças e necessidades e de obter rendimentos, nomeadamente os provenientes da pensão de reforma.
No caso sub judice, a dificuldade na avaliação dos danos em causa é agravada pelo facto de a lesada, à data da lesão, ter apenas 12 anos de idade (estava a cerca de um mês de fazer 13 anos), presumindo-se que era estudante, como o devem ser todos os jovens dessa idade, não tendo qualquer actividade profissional pela qual auferisse rendimentos, e desconhecendo-se qual seria a actividade que poderia vir a desempenhar no futuro.
No entanto, tem sido entendimento jurisprudencial o de que não se verifica qualquer relação proporcional necessária entre a incapacidade funcional e o salário auferido pelo exercício profissional, não se esgotando o dano patrimonial na perda ou na diminuição da capacidade de ganho, pois, a ser assim, ficaria sem justificação a indemnização dos lesados sem profissão ou aguardando colocação no mercado de emprego, o que atentaria contra o disposto nos arts. 562° a 566° do C.Civ., sendo certo, ademais, que a redução da capacidade para o lesado de granjear o seu sustento não deixa de o atingir e limitar como pessoa, acarretando-lhe um “dano biológico”, como o rotula alguma doutrina, o qual é também ressarcível (neste sentido, vide Sinde Monteiro, in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, p. 248, nota 540).
Ora, partindo destes considerandos, e tendo em conta a idade da Autora à data da lesão, a incapacidade de que ficou a padecer, a sua dependência de terceira pessoa mesmo para os actos normais do quotidiano, dependência essa que será para toda a vida, a que previsivelmente a partir dos 21/22 anos de idade (senão mesmo mais cedo) poderia entrar no mercado de trabalho e auferir um rendimento mensal pelo menos igual ao salário mínimo nacional, com uma expectativa de vida activa de cerca de 45 anos, atendendo ainda ao limite de vida correspondente ao da média de vida em Portugal para as mulheres, à previsível evolução dos salários, taxas de juros, inflação, etc, temos como equitativo fixar o montante indemnizatório devido à A. a titulo de lucros cessantes/danos futuros, pela perda de capacidade de ganho, no montante peticionado de €224.459,05.
Quanto aos danos de natureza não patrimonial, peticionaram os AA. o montante de 10.000.000$00 (€ 49.879,79) pelos danos morais sofridos pela A. C... e de 2.000.000$00 (€9975,96) pelos danos morais sofridos pelos AA. pais da C....
Nos termos do n° 1 do art. 496° do C.Civ., na fixação da indemnização “deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”
Com o assim preceituado o legislador terá querido que se não aceitem de ânimo leve como compensáveis, num campo tão fluido como o das lesões não patrimoniais, prejuízos de pequeno relevo ou de anómala motivação.
Quanto à quantificação deste tipo de danos, não pode deixar de se salientar a grande dificuldade e delicadeza de tal operação. A este propósito escreveu o Prof. Vaz Serra, in BMJ, 83/83: “a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização, no sentido de um equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo ofensa moral, não é susceptível de equivalente
Na verdade, os danos morais, nomeadamente o sofrimento humano não têm a expressão numérica directa. Daí que se tenha de recorrer à equidade (arts. 496°, n° 3, 494° e 4°, al. a)), tendo em consideração desde logo a natureza dos danos sofridos e o respectivo grau de gravidade, bem como factores como a ocasião em que os factos ocorreram, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, a desvalorização da moeda, etc..
No caso dos autos, tendo em conta os factores referidos, bem como os factos provados supra nas alíneas T), LL), MM), OO), PP), QQ), YY), ZZ), AAA) e CCC) da MFP, quanto aos danos morais sofridos pela A. C..., e os factos provados nas alíneas RR), SS), TT) e UU) da MFP, quanto aos danos morais sofridos pelos AA. pais da C..., temos como parcimoniosos os valores peticionados pelos AA. a tal título, pelo que se entende ser de arbitrar a título de danos morais sofridos pelos AA. os montantes indemnizatórios peticionados.
A este propósito cumpre dizer que quanto ao direito indemnizatório dos AA. pais da C..., o mesmo não prescreveu, nos termos invocados pelo R., face à matéria de facto provada sob a al. LLLL), ao facto de a presente acção ter sido interposta em 15.06.98 e ao disposto nos arts. 498° do C.Civil (por remissão do art. 71°, n° 2 da LPTA) e 323°, n° 2 do mesmo Código.
Quanto ao pedido de que o R. seja ainda condenado a pagar uma prestação mensal no valor do salário mínimo nacional durante a vida da C..., para esta poder contratar uma pessoa que dela possa cuidar, entendemos que o mesmo também é de proceder, atendendo a que ficou provado que a situação de paraplegia que adveio para a A. C... e irreversível, tal situação torna-a totalmente dependente de terceiros, carecendo de ajuda permanente, não podendo executar os actos normais do quotidiano, encontrando-se completamente dependente da ajuda que lhe possam prestar até durante a noite, já que necessita de ser reposicionada de três em três horas, sendo a sua dependência da ajuda de terceiros para toda a vida.
Na verdade, nos termos do n° 2 do art. 564° do C.Civil, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis, sendo que nos termos do n° 1 do art. 567° do mesmo Código, “atendendo à natureza continuada dos danos, pode o tribunal, a requerimento do lesado, dar à indemnização, no todo ou em parte, a forma de renda vitalícia ou temporária, determinando as providências necessárias para garantir o seu pagamento”.
Assim, tendo-se provado a factualidade supra mencionada, e que portanto a A. carece de ajuda permanente, não podendo executar os actos normais do quotidiano, encontrando-se completamente dependente da ajuda de terceiros, sendo tal dependência para toda a vida, justifica-se o arbitramento da peticionada indemnização, sob a forma de renda vitalícia mensal, nos termos do citado art. 567°, n° 1 do C.Civil, no valor do salário mínimo nacional em vigor no mês a que diga respeito, uma vez que esse será o valor mínimo que terá de ser dispendido pela A. para contratar uma terceira pessoa que lhe preste o apoio permanente de que carece.”
Nenhuma censura nos merece esta ponderação e a subsequente decisão, que está de acordo com os princípios legais e doutrinais sobre a matéria em análise e com a orientação da jurisprudência, designadamente com a evolução desta quanto à fixação de montantes indemnizatórios, com recurso à equidade, em situações afins.
De resto, a alegação do Recorrente a este propósito é meramente conclusiva, como o evidencia o trecho acima transcrito.
Em súmula:
A sentença recorrida não violou nenhum dos preceitos legais que o Recorrente aponta como infringidos (cf. conclusão 12ª), improcedendo todas as conclusões das alegações do Réu.
2.2.3 Quanto ao recurso de agravo da decisão de fls. 501 e 502 (1.3. do Relatório)
Através do reqtº de fls. 487 dos autos, no decorrer da fase de audiência de julgamento, os Autores vieram, invocando o disposto no art.º 273º, nº 2 do C. P. Civil, “ampliar o pedido para que o réu seja também condenado no pagamento de todas as despesas com exames médicos, tratamentos fisioterápicos e intervenções ou correcções cirúrgicas necessárias a debelar ou minorar as consequências e sequelas funcionais produzidas na A. C... pelas intervenções cirúrgicas a que foi submetida em 13 e 14 de Junho de 1995”.
A Srª Juiz a quo (com a oposição do Réu) deferiu a ampliação do pedido formulado pelos Autores, por considerar, em síntese, que a mesma não traduzia qualquer ampliação da causa de pedir, sendo um mero desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, tendo origem no mesmo complexo de factos, na mesma causa de pedir, sem que implique qualquer modificação da relação substancial em apreço, e sem que conduza à necessidade de qualquer alteração ou aditamento à base instrutória.
O ora agravante discorda deste entendimento, sustentando, em súmula, que a ampliação do pedido peticionada pelos Autores determina, necessariamente, uma alteração, ainda que parcial, da causa de pedir, nomeadamente quanto aos danos, implicando a alegação de facto essencial à decisão da causa, que teria de ser sujeito a contraditório, pelo que nunca a ampliação em causa poderia ter lugar finda a fase dos articulados (art.ºs 273º, nº 2 e 268º do C. P. Civil).
Desde já se adianta que assiste razão ao agravante.
Efectivamente:
De harmonia com o art.º 268º do C. P. Civil, citado o Réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
No art.º 273º do C. P. Civil, prevê-se a possibilidade de alteração do pedido e da causa de pedir na falta de acordo, prescrevendo o nº 1 que, na falta de acordo a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada na réplica, se o processo a admitir, a não ser que a alteração ou ampliação seja consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor.
Quanto ao pedido, dispõe o nº 2 do preceito em referência, que pode também ser alterado ou ampliado na réplica.
E, na 2ª parte deste preceito, prescreve-se que “pode, além disso, o autor em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”.
Do que vem de expor-se resulta já que, nos termos dos preceitos do C. P. Civil em referência, não pode haver ampliação do pedido após a réplica, se a mesma implicar alteração da causa de pedir. (Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, pag. 92 e segs.; Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, pag. 342 e segs.)
Nesse caso, já não estaremos perante o mero “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”, exigido pela última parte do art.º 273º, nº 2 do C. P. Civil.
Ora, no caso presente, como bem alega o Réu existe uma alteração, ainda que parcial, da causa de pedir, cumulando-se à causa de pedir inicial uma outra.
Na verdade, nos articulados, não foi invocado que, por causa das consequências e sequelas funcionais produzidas na Autora C..., a mesma teria necessidade de tratamentos fiosioterápicos, de correcções e intervenções cirúrgicas, para detectar ou minorar as mesmas.
E, consequentemente, também nada foi incluído na base instrutória quanto ao/s aludido/s facto/s, de forma a possibilitar ao Tribunal, provando-se, arbitrar a correspondente indemnização, relegando, se necessário, a respectiva liquidação para execução de sentença.
Em súmula:
O requerimento de ampliação do pedido englobava alteração (parcial) da causa de pedir, pelo que já não era possível ser formulado nesta acção, na fase processual em que foi apresentado, ao invés do considerado no despacho recorrido.
Procede, assim, o recurso de agravo em relação ao despacho de fls. 501 e 502, justificando-se a sua revogação.
2.2.4. Face à procedência do recurso referenciado em 1.4 do Relatório, fica, logicamente, prejudicada a apreciação do recurso subordinado interposto pelos Autores (cf. 1.9 do Relatório).
3. Nos termos e pelas razões expostas, acordam:
a) Negar provimento ao recurso interposto pelo Réu da sentença de fls. 547 e segs.
b) Conceder provimento ao recurso de agravo do Réu, do despacho de fls. 501 e 502, que, assim, se revoga,
c) Considerar prejudicado, face à decisão referida em b), o conhecimento do recurso subordinado dos Autores.
Custas pelo Réu e pelos Autores, na parte em que decaíram.
Lisboa, 12 de Novembro de 2008. – Maria Angelina Domingues (relatora) – Fernanda Martins Xavier e Nunes – António Bento São Pedro.