Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01954/19.9BEBRG
Data do Acordão:06/17/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANÍBAL FERRAZ
Descritores:PENHOR
PRIVILÉGIO MOBILIÁRIO
Sumário:I - Num concurso de credores em que esteja a graduar-se créditos, por dívidas de cotizações e contribuições à Segurança Social, garantidos por penhora e outros assegurados por qualquer tipo de penhor (incluindo o mercantil), mesmo que constituído anteriormente à data da efetivação da penhora, aqueles merecem e têm, por vontade, inquestionável, do legislador, primazia - artigo 204º nº 2 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS).
II - Na estruturação da hermenêutica jurídico-tributária, não podemos olvidar o respeito de objetivos como o de assegurar o pagamento regular (se não, coercivo) de contribuições e de quotizações por parte das pessoas singulares e coletivas que se relacionam com o sistema previdencial de segurança social e, desse modo, permitir o suporte financeiro para a efetivação do direito (tendencialmente, universal) à segurança social e fins, mais generalistas, como o da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas.
Nº Convencional:JSTA000P26071
Nº do Documento:SA22020061701954/19
Data de Entrada:06/01/2020
Recorrente:A......., S.A.
Recorrido 1:INSTITUTO DE GESTÃO FINANCEIRA DA SEGURANÇA SOCIAL DE VIANA DO CASTELO – SECÇÃO DE PROCESSOS.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
***

Acórdão proferido no Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa;

# I.


A………….., S.A., com os demais sinais dos autos, neste processo de reclamação de ato/decisão do órgão da execução fiscal, recorre da sentença proferida Inicialmente, para o Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), que declarou a sua incompetência, em razão da hierarquia., no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga, em 9 de janeiro de 2020, que a julgou totalmente improcedente, mantendo a decisão reclamada (despacho da Coordenadora da Secção de Processo, do IGFSS, Viana do Castelo) de verificação e graduação de créditos.
O recorrente (rte) formalizou alegação, terminada com o seguinte quadro conclusivo: «

1. Conforme resulta dos autos, foi reclamado pelo A…………, S.A. um crédito no montante de € 10.000,00, garantido por penhor, constituído pela sociedade B………………, Lda., sobre valores mobiliários, 3088 UP’s, denominado “Fundos de Investimento - E.S. Monetário”, com a cotação de € 6,4829, valorizadas em € 20.019,20, do dossier nº 060005784622, associado à conta de depósitos à ordem nº …………, aberta junto do Banco reclamante.

2. Por sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito do processo de execução fiscal nº 0301201200072222 e aps., foi o crédito do Banco recorrente graduado em 2º lugar, logo atrás do crédito exequendo da Segurança Social, relativo a contribuições e cotizações, crédito esse garantido apenas por penhora.

3. Não pode o Banco recorrente deixar de manifestar a sua total discordância relativamente ao teor de tal decisão, porquanto tal crédito deveria ter sido graduado em 1º lugar, atendendo ao penhor existente.

4. É certo que o artigo 204º, nº 2 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social estabelece que:

1 - Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.

2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.

5. Entende, porém, o Banco recorrente que tal norma deve ser interpretada de forma restritiva, porquanto os privilégios creditórios em geral assumem natureza excecional, que afetam o princípio da igualdade entre os credores,

6. Pelo que, sendo normas excecionais, não podem ser aplicadas por analogia e, em relação a elas, deve prevalecer o critério da sua interpretação restritiva [(5)CF. Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª edição, Almedina, pag. 311].

7. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06/05/2010, proferido no âmbito do processo nº 744/08.9TBVFR-E.P1, em que foi relator o Exmo. Sr. Desembargador Filipe Caroço, em que sumariou: “Em processo de graduação de créditos relativa a bens móveis em que concorram crédito garantido por penhor, créditos laborais abrangidos pelo art. 377º do Cod. Do Trab., crédito de impostos a favor do Estado e crédito por contribuições para a Segurança Social, estando todos estes últimos garantidos por privilégio mobiliário geral, devem ser graduados por esta mesma ordem”.

8. Conforme se referiu naquele Acórdão, apelando ao princípio da proteção da confiança e da segurança do comércio jurídico e interpretando restritivamente a norma do artigo 10º do Decreto-lei nº 103/80, há que retomar a regra geral da inexistência de relação ou conexão entre o crédito e os bens que o garantem que os privilégios especiais pressupõem; os privilégios mobiliários gerais não têm a mesma natureza, de direitos de garantia, daqueles e, ao contrário dos privilégios especiais, conforme o artigo 750º, não serão, consoante o artigo 749º do Código Civil, oponíveis a outros direitos reais, como é o caso do penhor.

9. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25/05/2017, proferido no processo nº 703/13.0TBMDLK.G, em que foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Fernando Fernandes Freitas, do qual resulta que “Os créditos garantidos por penhor, quando concorram com créditos dos Trabalhadores, do Estado e da Segurança Social, que gozam de privilégio mobiliário geral, devem ser graduados em primeiro lugar relativamente aos bens sobre os quais foi constituído o penhor, seguindo-se-lhes, pela ordem por que foram mencionados, os créditos privilegiados”.

10. Sobre esta temática versou ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Porto, de 11/09/2018, proferido no processo nº 1211/17.5T8AMT-E.P1, de onde resulta que “os créditos garantidos por penhor mercantil, referenciados em III, IV, V e VI do dispositivo da douta sentença recorrida devem ser graduados por forma a que lhes seja conferido o primeiro lugar, com relação aos créditos privilegiados da Segurança Social”.

11. No mesmo acórdão pode ler-se ainda que “Na graduação em que concorram em simultâneo (1) créditos privilegiados, por contribuições à Segurança Social, (2) garantidos por penhor, a favor das entidades bancárias recorrentes, e (3) privilegiados, de natureza laboral, deve dar-se prevalência aos créditos garantidos por penhor mercantil dado que os privilégios creditórios em geral assumem uma natureza excecional – à margem do princípio da autonomia privada, afectam o princípio da igualdade entre os credores – artº 604º nº 1 CCiv e, sendo normas excepcionais, não podem ser aplicadas por analogia (artº 11º CCiv)”.

12. Pelo que o recorrente considera que o crédito garantido por penhor deverá ser graduado à frente do crédito da Segurança Social, alterando-se a sentença de graduação de créditos em conformidade.

TERMOS EM QUE DEVERÁ SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E BEM ASSIM DEVE SER REVOGADA E SUBSTITUÍDA A SENTENÇA RECORRIDA POR OUTRA QUE JULGUE PROCEDENTE A RECLAMAÇÃO APRESENTADA PELO A…………., S.A. E, EM CONFORMIDADE, GRADUE EM 1º LUGAR O CRÉDITO DO BANCO RECORRENTE, GARANTIDO POR PENHOR, COM O QUE SE FARÁ

JUSTIÇA! »


*

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS) - SPE Viana do Castelo contra-alegou e concluiu: «

A) Que o artigo 204º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social configura de forma clara e expressa que os créditos da Segurança Social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio sobre qualquer penhor;

B) Que da referida norma, bem como do entendimento da jurisprudência resulta que havendo conflito entre o penhor e os créditos da Segurança Social, prevalecem os créditos da Segurança Social;

C) E que a decisão recorrida deve ser mantida.

TERMOS EM QUE,

DEVEM V. EXAS. NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, MANTENDO-SE A DECISÃO RECORRIDA.

ASSIM FAZENDO A DESEJADA JUSTIÇA!»


*

A Exma. Procuradora-geral-adjunta não emitiu parecer.

*

Com dispensa de vista, dada a natureza urgente do processo, compete conhecer e decidir.

*******

# II.


Na sentença, em sede de julgamento factual, vem expresso: «

A) Encontra-se a correr termos na Secção de Processo Executivo de Viana do Castelo, contra “B…………….., LDA.”, ……………., o processo de execução fiscal n.º 0301201200072222 e outros, para cobrança coerciva de cotizações e contribuições e respetivos juros, no valor de € 55.446,98 – cfr. fls 15 a 19 do suporte físico dos autos, aqui reproduzidas;

B) O “A…………, S.A.” (que sucedeu ao “C……….., S.A.”), prestou a favor da “D……………, S.A.”, uma garantia bancária com o número ………., emitida em 17.10.2007, no valor de € 40.000,00 – cfr. fls. 24 do suporte físico dos autos, aqui reproduzidas;

C) Para garantia do cumprimento das obrigações assumidas através da garantia referida na alínea antecedente, a 17.10.2007, a sociedade executada “B………….., Lda.”, prestou a favor do reclamante penhor de valores mobiliários, 3088 UP`S, denominado “Fundos de Investimentos - E.S. Monetário”, com a cotação de € 6.4829, valorizadas em € 20.019,20, do dossier n.º 060005784622, associado à conta de depósitos à ordem n.º ………….., aberta junto do Banco reclamante - cfr. fls. 25 a 27 do suporte físico dos autos, aqui reproduzidas;

D) A 26.11.2012, o IGFSS, para garantia do crédito exequendo, procedeu à penhora de valores mobiliários, 3088 UP`S, denominado “Fundos de Investimentos - E.S. Monetário”, com a cotação de € 6.4829, valorizadas em € 20.019,20, do dossier n.º 060005784622, associado à conta de depósitos à ordem n.º …………..., aberta junto do Banco reclamante, já mencionados na alínea antecedente - cfr. fls 16 a 19 do suporte físico dos autos, aqui reproduzidas;

E) O Banco reclamante, notificado para o efeito, apresentou reclamação de créditos no valor de € 10.000,00, a título de capital, para verificação, reconhecimento e graduação de:

a) No valor de € 10.000,00, acrescidos dos juros vincendos até integral pagamento, contados sobre o capital, à taxa indicada, atendendo ao penhor existente, no lugar que lhe competir.

F) Por despacho da Coordenadora da Secção de Processo de Viana do Castelo, foi proferida decisão de verificação e graduação de créditos, com o seguinte teor, na parte que ora importa:

“(...).

1. Relatório

Nos presentes autos de Reclamação de créditos, por apensos à execução fiscal n.º 0301201200072222 e aps, que a Secção de Processo Executivo de Viana do Castelo instaurou à B………………, LDA.”, (…), vêm reclamados os seguintes créditos:

• Pelo A…………… S.A., (…), o crédito no montante de € 10,00, garantido por Penhor sobre Valores mobiliários, 3088 UP`s, denominado “Fundos de Investimentos – E.S. Monetário”, n.º 060005784622, com a cotação de € 6.4829, valorizadas em € 20.019,20, constituído pela executada, encontrando-se penhorados à ordem do processo a quantia de € 55.446,98.

[…].

3.2. DE DIREITO

[…].

A graduação de créditos de bem imóvel, caso sejam reclamados créditos de todos estes tipos, seja a seguinte:

1.º lugar – Custas da execução fiscal (art.º 455.º do CPC).

2.º lugar – Despesas de justiça (art.º 738.º e 746.º do CC).

3.º lugar – Penhor de coisa ou direito não suscetível de hipoteca (artigos 666.º e 750.º do CC).

• O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, pelo valor dos créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca.

• Havendo conflito entre penhor e créditos da segurança social, prevalecem os últimos (n.º 2 do art.º 204.º do Código Contributivo), veja-se ainda AC. STA 0782/10, de 16/12 e AC Tribunal Constitucional 108/2009 de 10/03.

4. Lugar (…).

[…].

4- Decisão

Nestes termos, decide-se considerarem-se verificados e reconhecidos os créditos reclamados, que são graduados pela ordem seguinte:

1. Lugar - Créditos exequendos, e respetivos juros de mora, garantidos por penhora.

2. Lugar - O crédito reclamado pelo A……………, S.A., garantido por penhor.

As custas saem precípuas do produto da venda dos bens penhorados (artigo 455.º do CPC).

(…).”- cfr. fls. 16 a 19 do suporte físico dos autos, aqui reproduzidas. »


***

Compulsada a alegação e conclusões, apresentadas pelo rte, o quid decidendum deste recurso, reconduz-se, unicamente, à sua proposta de se proceder (ao invés do assumido na sentença recorrida) a uma interpretação restritiva do artigo (art.) 204º nº 2 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS) Aprovado (em anexo) pela Lei n.º 110/2009 de 16 de setembro e, desse modo, na situação dos autos, graduar antes dos créditos exequendos e juros moratórios, respeitantes a cotizações e contribuições em dívida, à Segurança Social (SS), garantida por penhora efetivada no processo executivo, o crédito que, na mesma execução (a correr termos pela secção de processos (SPE) de Viana do Castelo), reclamou, quanto à sociedade executada, garantido por penhor sobre valores mobiliários. Doutro modo, mais linear, o rte pretende que, não obstante o citado normativo ditar, expressa, clara e terminologicamente, que o privilégio mobiliário geral, de que gozam os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora, “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”, nesta sede, se entenda e diga, que não é assim; tal privilégio não prevalece …

Desde já, avançando que não o vamos fazer, antes de mais, porque mantém atualidade Atente-se em que, a redação do art. 10.º do Dec.Lei n.º 103/80 de 9 de maio corresponde, ipsis verbis, à do art. 204.º do CRCSPSS., faz uma síntese compacta e esclarecedora, da problemática em apreço, passamos a transcrever uma parcela do discurso fundamentador vertido no acórdão, do STA, de 22 de junho de 2011 (0781/10) Presente no sítio www.dgsi.pt: «

(…).
Como se sabe, o penhor constitui uma das garantias especiais das obrigações. Ele confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro - artigo 666.º do Código Civil. No fundo, e como salienta ANTUNES VARELA (In “Das Obrigações em Geral”, 4ª edição, II vol., pag. 510 e segs.), «equivale a um direito de preferência sobre o produto da alienação da coisa empenhada, e que é oponível erga omnes».

Por seu turno, privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros - artigo 733.º do C.Civil. Os privilégios dividem-se em mobiliário e imobiliários (artigo 735.º nº 1 do C.Civil). Os mobiliários podem ser gerais (se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor, à data da penhora ou acto equivalente) ou especiais (quando compreendem só o valor de determinados bens móveis). Já os privilégios imobiliários são sempre especiais (artigo 735.º nº 3 do C.Civil).

Ora, segundo o disposto no artigo 749.º do C.Civil, «O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.». Como esclarece ALMEIDA COSTA (In “Direito das Obrigações”, 5ª edição, pag. 824.), «Tratando-se de privilégio geral (mobiliário) este não vale contra terceiros que sejam titulares de direitos oponíveis ao credor exequente, quer dizer, que não possam abranger-se pela penhora; mas tratando-se de privilégio especial, como a garantia incide sobre determinados bens, o legislador adoptou o critério da prioridade da constituição. Apura-se desde logo que os privilégios mobiliários gerais não conferem ao respectivo titular o direito de sequela sobre os bens em que recaiam (art. 749º). Daí que se devam excluir da categoria de verdadeiras garantias reais das obrigações. Apenas existe algo de parecido com a eficácia própria dos direitos reais, enquanto o titular do privilégio goza de preferência na execução, relativamente aos credores comuns do devedor.».

(…).

Do que fica referido, e revertendo ao caso concreto, resulta no confronto entre o privilégio mobiliário geral consagrado no artigo 111.º do CIRS e no artigo 736.º do C.Civil para os créditos de IRS e de IVA, e a garantia resultante do penhor de que goza o crédito reclamado pela A…, que esta prevalece sobre aquele, devendo ser graduadas antes.

E não pode colher a argumentação tecida pelo julgador, no sentido de que deve aplicar-se, em nome da unidade do sistema jurídico, o regime especial de graduação constante do artigo 10.º do Dec.Lei n° 103/80, de 9 de Maio, pois que, tratando-se de diploma legal que contém um regime especial, ele só pode ser levado em linha de conta quanto à matéria que expressamente regula, ou seja, quando esteja em causa a graduação de créditos emergentes das contribuições da Caixa de Previdência. E tratando-se de norma excepcional, a mesma não comporta aplicação analógica - artigo 11.° do Código Civil.

Em suma, e como esta Secção de Contencioso Tributário teve já oportunidade de explicar - no acórdão proferido em 8/11/1995, no processo n.º 018828 - «Sobre o valor da coisa ou direito empenhado, o c(r)édito pignoratício logra preferência sobre os créditos privilegiados, por impostos que fruam de privilégio mobiliário geral, desde que ao concurso não venham créditos por contribuições à Segurança Social».

E porque, no caso, o crédito exequendo não é constituído por contribuições em dívida à Segurança Social nem esta reclamou créditos, não há que considerar o dispositivo legal constante do artigo 10.º do Dec.Lei n.º 103/80, merecendo, assim, provimento o recurso.

(…). »
Portanto, relativamente ao argumento, coligido pelo rte, de estarmos em face de norma excecional, insuscetível de aplicação por analogia, tal como resulta deste extrato, adaptando, a mesma (art. 204.º, especialmente, o n.º 2 do CRCSPSS) só pode ser aplicada, acionada, quanto à matéria que expressamente regula, ou seja, quando esteja em causa a graduação de créditos emergentes das contribuições da Caixa de Previdência/Segurança Social. Por outras palavras, num concurso de credores em que, como na situação julganda, esteja a graduar-se créditos, por dívidas de cotizações e contribuições à Segurança Social, garantidos por penhora e outros assegurados por qualquer tipo de penhor (incluindo o mercantil), mesmo que constituído anteriormente à data da efetivação da penhora, aqueles merecem e têm, por vontade, inquestionável, do legislador, primazia.
Outrossim, quanto aos apoios que diz encontrar nos dois arestos (dos Tribunais da Relação do Porto e de Guimarães), se nos ficássemos pelos excertos que reproduz, podíamos, dada a aparente evidência do contributo decisivo para a sua pretensão, ser levados a (re)pensar, criticamente, a jurisprudência deste Supremo Tribunal. Porém, concretizada a leitura e estudo integral dos dois acórdãos referenciados, chegámos à conclusão de que o doutrinado, em ambos, se reporta a situações onde os créditos a graduar têm outras origens e garantias apoiantes, ou seja, não respeitam, como in casu, apenas, a créditos da SS e dívida a credor com garantida penhoratícia; em ambos, estão em causa graduações que envolvem, para os mesmos bens (móveis), créditos suportados em penhores, laborais, de impostos a favor do Estado e, ainda, de contribuições para a SS.
Ora, é neste cenário de concorrência que, por exemplo, na decisão colegial da Relação do Porto se defende: «
(…).
Surge-nos, porém, a excepção no nº 2 do dito crucial art.º 10º do Decreto-lei nº 103/80, de 9 de Maio: “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.

Não há qualquer dúvida se concorrerem apenas os créditos da Segurança Social com créditos garantidos por penhor: por força daquela norma excepcional, o crédito da Segurança Social deve ser graduado à frente do direito do credor pignoratício.

E se a norma é clara no estabelecimento da força especial do privilégio da Segurança Social pelos créditos das contribuições, evidentes são também a contradição e o conflito resultantes da sua conjugação com o nº 1 do mesmo preceito legal e com o nº 1 do art.º 747º do Código Civil, sempre que, além do privilégio mobiliário geral da Segurança Social, concorram créditos por impostos devidos ao Estado, também beneficiário de privilégio mobiliário geral, e penhor sobre os mesmos bens móveis.

É que, subsistindo a prevalência do penhor sobre o crédito de impostos por força da regra geral dos art.ºs 666º, nº 1, 747º, nº 1 e 749º, nº 1, do Código Civil, manda o nº 1 do referido art.º 10º que o crédito da Segurança Social merece ser graduado logo a seguir, atrás, do crédito por impostos, enquanto o nº 1 manda graduar o crédito da Segurança Social à frente do crédito garantido por penhor.

A questão não é nova e tem vindo a ser debatida na jurisprudência desde há vários anos.

(…).

Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Abril de 1996[6], «o legislador, contradizendo-se normativamente (no que respeita, já se disse, à situação de concurso entre créditos com penhor, créditos da Previdência e créditos do Estado) criou aquilo a que Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1995, pág. 96, chama “lacuna de colisão”, uma contradição normativa «entre normas da mesma hierarquia que entrem em vigor na mesma data…: um espaço jurídico à primeira vista duplamente ocupado fica a constituir um espaço jurídico desocupado, uma lacuna». Das normas que criaram o novo privilégio, uma parte não tem em si própria qualquer contradição - restringindo-se a sua aplicação à situação de simples concurso entre Previdência e penhor, é possível a aplicação da norma - na parte restante, na parte em que surja um concurso entre Estado, Previdência, penhor, há uma contradição insanável e há, assim, uma lacuna a colmatar nos termos do art.º 10º, nº 3, do Código Civil, tendo em conta as circunstâncias concretas do tempo de hoje, tempo em que este legislador tem que criar a norma».

(…).

Por conseguinte, no concurso entre o direito de crédito garantido pelo direito de penhor, o direito de crédito derivado de impostos da titularidade do Estado ou das autarquias locais garantido por privilégio mobiliário geral e direito de crédito da titularidade de instituições de segurança social derivado de taxa contributiva garantido por privilégio mobiliário geral, a prevalência deve operar por essa ordem […].

(…). »

Além desta inequívoca manifestação de que uma (possível) interpretação restritiva do disposto no art. 204.º do CRCSPSS só tem acuidade perante concursos de credores em que se coloque a necessidade de graduar um penhor antes de créditos por impostos em dívida ao Estado (por exemplo, IRS e IVA), sendo que estes, por outro lado, têm de ficar à frente de créditos (das autarquias locais) e da SS – cf. art. 747.º n.º 1 alínea (al.) a) do Código Civil (CC), é evidente que surpreendemos, na argumentação jurídica dos dois acórdãos das Relações, um, compreensível e respeitável, acento tónico em princípios, como o da autonomia privada, da proteção da confiança e da segurança do comércio jurídico, de, sobretudo, cariz/leitura civilista.
Sem prejuízo da defesa e promoção da unidade do sistema jurídico como um todo, para além da solução que propugnamos, também, ser pelos tribunais cíveis acolhida, obviamente, não podemos olvidar na estruturação da hermenêutica jurídico-tributária, o respeito de objetivos como o de assegurar o pagamento regular (se não, coercivo) de contribuições e de quotizações por parte das pessoas singulares e coletivas que se relacionam com o sistema previdencial de segurança social e, desse modo, permitir o suporte financeiro para a efetivação do direito (tendencialmente, universal) à segurança social e fins, mais generalistas, como o da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas.
Destarte, a sentença recorrida não errou ao considerar que, como decidido pelo órgão da execução fiscal, o crédito reclamado (e verificado) pelo, aqui, rte, embora sustentado por penhor, constituído em data anterior à da concretização da penhora, tinha de ser graduado em 2.º lugar, atrás do crédito exequendo e legais acréscimos (cotizações e contribuições em dívida, à SS, bem como, juros de mora), em obediência à regra, impressivamente, imposta pelo art. 204.º n.º 2 do CRCSPSS.

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# III.


Pelo exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, acordamos negar provimento ao recurso.

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Custas a cargo do recorrente.

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[Elaborado em computador e revisto, com versos em branco]

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[Pela Exma. Senhora Conselheira Isabel São Pedro, na condição de 1.ª adjunta e porque lhe é impossível a assinatura digital, por, ainda, não ter acesso ao SITAF, foi-me transmitido, enquanto relator, voto de conformidade, com os fundamentos e a decisão supra – artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março.]

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Lisboa, 17 de junho de 2020. – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (relator) – Maria Isabel São Pedro Soeiro – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.