Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02175/07.9BELSB
Data do Acordão:01/25/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:LOCAÇÃO FINANCEIRA
PERDA DE BENS
IVA
Sumário:No caso de perda total por sinistro dos veículos objecto de contrato de locação financeira, a Autoridade Tributária e Aduaneira não pode exigir que a locadora liquide imposto sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários, por os veículos estarem a coberto de contrato de seguro e, por isso, o respectivo valor lhe ter sido directamente pago pelas seguradoras e, nessa medida, reduzida a contraprestação (que limita o valor sujito a IVA) devida pelo locatário.
Nº Convencional:JSTA000P30495
Nº do Documento:SA22023012502175/07
Data de Entrada:05/31/2022
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:S... – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou totalmente procedente a Impugnação Judicial que S... – Instituição Financeira de Crédito, S.A. deduziu da liquidação de IVA relativa ao exercício de 1999 e de juros compensatórios, respectivamente nos valores de €228.029,43 e €33.325,85, interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Nas alegações de recurso apresentadas, formulou a Recorrente as seguintes conclusões:

«a. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou a Impugnação Judicial procedente e, consequentemente, anulou a liquidação de IVA impugnada nos autos, com as legais consequências.

b. Salvo o devido respeito, a douta sentença enferma de erro de julgamento resultante da incorreta valoração da factualidade assente, como também da errónea interpretação e aplicação do direito, tendo, assim, violado as normas previstas nos artigos 1º, n.º 1, 7.º, 8.º e 16º, n.º 2, alínea h), do Código do IVA.

c. A sentença proferida pelo tribunal a quo considerou que a indemnização recebida pela Impugnante no âmbito do contrato de seguro tem carácter indemnizatório e não pode considerar-se como remuneração da locadora pelo contrato de locação financeira ou pela cessação do mesmo. Tendo concluído ainda que não pode considerar-se que o valor em causa deveria ser entregue pela Impugnante ao locatário que, por seu turno, acertaria as contas com a locadora.

d. Fundamentou esta posição com base na cláusula 7.ª, alínea m), do contrato tipo de locação financeira referido na última letra do probatório que, “em caso de sinistro, fica o locador desde já autorizado pelo locatário a receber directamente da companhia seguradora o montante da indemnização devida”.

e. Como será demonstrado de seguida, em rigor, é a douta decisão que incorre em erro judicativo por não ter procedido a uma valoração correta da prova produzida e a interpretação da norma prevista no 16º, n.º 2, alínea h), do Código do IVA.

f. Do ponto 14 dos factos provados deriva que a Impugnante celebrou contratos de locação financeira onde se estipulou que, em caso de perda total do bem locado, o contrato de locação financeira considerasse resolvido, ficando o locatário obrigado a pagar à locadora o valor residual atualizado com a taxa de juro adicionado do montante das rendas vencidas e não pagas e acrescenta ainda que deve o locador entregar ao locatário a indemnização que venha a receber da seguradora (montante recebido por força do contrato de seguro existente sobre o bem).

g. Nos termos do disposto no artigo 16º, n.º 2, alínea h), do Código do IVA, nos casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável será, para as operações resultantes de um contrato de locação financeira, o valor da renda recebida ou a receber do locatário.

h. Prevê o artigo 10.º, n.º 1, alínea j), do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho que, no âmbito dos contratos de locação financeira, o locatário é obrigado a segurar o veículo locado contra o risco da sua perda ou deterioração.

i. Em caso de perda total do veículo, verificando-se a condição resolutiva do contrato, a companhia seguradora paga à locadora beneficiária as quantias correspondentes às indemnizações, de acordo com o capital constante das apólices.

j. A responsabilidade pelo seguro pertence ao locatário, mas a indemnização é paga diretamente pelas seguradoras à locadora que, posteriormente, deverá proceder ao encontro de contas com o locatário, restituindo ou exigindo a diferença, caso o valor da indemnização recebida seja respetivamente superior ou inferior ao capital afeto.

k. Em caso de acidente com perda total do veículo, verifica-se a resolução do contrato de locação financeira, havendo que distinguir entre a prestação que o locatário paga à locadora e que se refere ao valor do capital ainda em dívida e a indemnização que a companhia seguradora venha a pagar à Impugnante, distinção esta que o tribunal a quo não fez.

l. Sobre questão idêntica à dos presentes autos, também o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou no acórdão de 31-10-2012, proferido no processo n.º 01158/11, disponível em www.dgsi.pt, no seguinte sentido: «(…) Em caso de acidente com perda do veículo, este evento implica a resolução automática do contrato de locação e, por conseguinte, a interrupção da relação sinalagmática existente entre locadora e locatário. Neste caso, há que distinguir entre a prestação que o locatário paga à locadora e que respeita ao montante de eventuais rendas vencidas e não pagas e respectivos juros de mora e aquela que vai ser paga pela seguradora. Na primeira situação, a prestação em causa ainda tem a sua fonte no contrato (rendas já vencidas e respectivos juros) e, por conseguinte, na relação sinalagmática que existia entre locador e locatário, que está normalmente sujeita a IVA, porquanto a locação financeira configura a cedência, mediante retribuição, do gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, pelo que constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do nº 1 do art. 4º do CIVA. Na verdade, aplicando ao caso o que ficou dito sobre o critério identificador do conceito de indemnização remuneratória, vemos que nas relações entre locador e locatário havia uma relação sinalagmática e onerosa enquanto a locadora propiciava ao locador, no âmbito do contrato de locação, o uso do veículo. Já no que respeita à segunda situação as coisas são diferentes. Com o acidente dá-se a intervenção de um evento externo que interrompe essa relação e constitui a causa da indemnização a pagar pela seguradora à locadora. (...)Pelo contrário, o valor pago pela seguradora visa apenas indemnizar a recorrida do capital afecto às operações, compensando-se da saída do seu activo dos bens que se perderam».

m. Verifica-se, assim, que a responsabilidade pela celebração do contrato de seguro pertence ao cliente da ora Recorrida, mas a indemnização supra mencionada será paga diretamente pela companhia de seguros à locadora que, posteriormente, poderá proceder ao encontro de contas com o locatário, restituindo ou exigindo a diferença, caso o valor da indemnização recebida seja respetivamente superior ou inferior ao capital afeto.

n. Da leitura da Cláusula 8.ª resulta claro que o valor ali estipulado, no momento de ocorrência do sinistro com perda total do bem, a responsabilidade do pagamento da dívida ao locador, é exigida automaticamente ao locatário.

o. Pelo que deveria o tribunal a quo ter decidido que estamos na presença de uma prestação de serviços, atendendo ao seu carácter residual, previsto no n.º 1, do artigo 4.º do CIVA e como tal sujeita a IVA.

p. A propósito de situação semelhante à dos presentes autos, entendeu o Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão de 25-06-2020, proc. n.º 1552/11.5BELRS, disponível em www.dgsi.pt, a que se adere, «No âmbito de um contrato de locação financeira, as indemnizações pagas pelas seguradoras e destinadas a compensar os danos causados pela perda dos veículos automóveis, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço (arts. 1º, n.º 1, 4º, n.º 1 e 16º, n.º 6, alínea a), do CIVA), nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA. // As indemnizações pagas pelo locatário à locadora, traduzidas no pagamento de eventuais rendas vencidas e respectivos juros, porque radicam no cumprimento de obrigações contratualmente assumidas, tendo estes contratos a natureza de contratos de prestação de serviços, tais quantias representam, ainda, contraprestações de operações tributáveis em IVA» (sublinhado nosso).

q. Não pode o Tribunal a quo fazer tábua rasa do que se encontra estipulado na cláusula 8.ª do contrato de locação financeira pelo que atento o supra exposto e a jurisprudência citada é forçoso concluir que a resolução antecipada dos contratos de locação financeira e o consequente pagamento à locadora, pelo locatário, do valor das rendas vincendas e valor residual configura uma prestação de serviços sujeita a IVA, nos termos dos artigos 1º, 4º, 16º, n.º 2, h), do Código IVA.

r. Com efeito, conclui-se, salvo melhor entendimento, que a sentença recorrida enferma de vício de violação de lei, devendo ser a mesma revogada e ser decidido pela legalidade da liquidação de IVA, aqui em causa.

1.3. S... – Instituição Financeira de Crédito, SA, contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Está provado que o valor pago pela seguradora visa exclusivamente reparar o dano emergente da destruição do veículo locado.

B) O valor que é pago à locadora, que vise exclusivamente a reparação do dano emergente da destruição do veículo, do qual a locadora é proprietária, não está sujeito a IVA, por não ter subjacente nenhuma contraprestação (quer esse valor seja pago pela seguradora à locadora quer seja pago pelo locatário à locadora).

C) Efetivamente, tal montante apenas visa colmatar o prejuízo que se traduz na destruição do veículo objeto de locação financeira de que a entidade locadora é proprietária.

D) Mesmo equacionando, por mera hipótese de raciocínio académico, que a indemnização paga pela seguradora à locadora é depois devolvida pela locadora ao locatário e admitindo ser devida pelo locatário à locadora o valor igual à soma das rendas vincendas com o valor residual atualizado, ainda assim, mesmo nesta hipótese académica, haveria sempre uma parcela desse montante (a pagar pelo locatário à locadora) que corresponde ao ressarcimento dos danos emergentes da destruição do veículo propriedade da locadora - ou seja, que corresponde ao valor da indemnização recebida da seguradora.

E) Consequentemente, essa parcela - correspondente ao ressarcimento do dano emergente - mesmo na hipótese de ser paga pelo locatário à locadora, está excluída do âmbito de incidência do IVA, uma vez que o desiderato tributário deste imposto reside apenas em abranger as operações que são remuneradas através de uma contrapartida e não as meras compensações ressarcitórias.

F) Desta forma conclui-se que o valor da indemnização que visa o ressarcimento do dano emergente da perda do veículo está excluído das normas de incidência do IVA e haverá sempre que ser pago à locadora - porque lhe é devido enquanto proprietária do veículo - quer seja pela seguradora quer seja pelo locatário e, em qualquer dos casos, nunca tal valor poderá estar abrangido pelas normas de incidência do IVA, uma vez que não tem subjacente qualquer contraprestação.

G) «A natureza da indemnização não depende dos sujeitos passivos intervenientes, mas sim da causa e do objeto que a mesma visa reparar. Isto é, o facto de o risco referente à perda total dos veículos ter sido transferido para um terceiro não altera a natureza da indemnização, seja esta paga pela seguradora ou diretamente pelo particular, o que releva é que a mesma ... tem como propósito reparar o prejuízo sofrido.... Assim sendo, por força da sua natureza é evidente que os montantes recebidos a título de indemnizações de risco coberto por contrato de seguro, na parte em que se destinem a reparar o dano consubstanciado na perda do veículo (ou do capital utilizado para sua aquisição) não podem estar sujeitos a IVA.» (cfr. Acórdão do STA de 31.10.2012, proferido no processo 01158/11).

H) «I - As indemnizações pagas no âmbito de um contrato celebrado entre o locatário e a seguradora e que tem a locadora como beneficiária, destinadas a compensar os danos causados pela perda total dos bens locados, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço [cf. arts. 1°, n.° 1, 4.°, n.° 1 e 16.°, n.° 6, alínea a), do CIVA], nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA» (cfr. acórdão de 12 de maio de 2021, proferido no processo n° 02433/11).

I) Assim sendo, andou bem a sentença do tribunal a quo ao validar o enquadramento jurídico acima exposto nestas conclusões e, consequentemente, ao conceder integral provimento à pretensão da impugnante.

1.4. A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal Administrativo, emitiu parecer no sentido de que deverá ser concedido provimento ao recurso julgando-se improcedente a impugnação deduzida.

1.5. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva oficiosamente conhecer, o âmbito de intervenção do tribunal de recurso é determinado pelo teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte da decisão de mérito proferida quanto a questões por si suscitadas, desta forma impedindo que essas questões voltem a ser reapreciadas pelo Tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC). Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida nos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, tendo por referência o que ficou dito, é no essencial uma a questão a decidir, qual seja, a de saber se a sentença errou ao decidir que não se impunha à Recorrente, enquanto locadora de um bem que se perdeu por sinistro e enquanto beneficiária do contrato de seguro que cobria o risco de perda desse bem, que liquidasse IVA sobre o montante de todas as rendas vincendas e sobre o valor residual do bem, contratualmente estabelecido ou, pelo contrário, se bem julgou ao decidir que a liquidação impugnada é ilegal por não resultar da Lei, contrariamente ao que defende a Autoridade Tributária, que é devido IVA pelo valor correspondente à totalidade das rendas vincendas à data da perda do bem acrescido e do valor residual.

2.3. Da delimitação que realizamos antevê-se que, pese embora a Recorrente tenha afirmado nas conclusões que a sentença enferma de erro de julgamento resultante de uma incorrecta valoração da factualidade assente [alíneas b) e f)], como também da errónea interpretação e aplicação do direito, não ter procedido a uma valoração correta da prova produzida e a interpretação da norma prevista no 16º, n.º 2, alínea h), do Código do IVA, em nenhum momento das suas alegações e das conclusões coloca em causa qualquer ponto do probatório. Pelo contrário, nas alegações confirma mesmo o teor da cláusula e o teor do facto 14. do probatório [como se vê, entre outros, do artigo 7.º, 8.º e 14.ª das alegações e f)]. Com o que a Recorrente está verdadeiramente inconformada, como nos é revelado pela conclusão r) em que faz a súmula final da sua pretensão recursória e invoca o “vício de violação de lei” é com a conclusão do julgado na parte de direito, ou seja, com a conclusão aí assumida, com fundamento nos artigos 1.º, 4.º, 16.º, n.º 2 al. h) do CIVA, e tendo presentes os factos provados, que, repetimos, não contesta, de que a resolução antecipada dos contratos de locação financeira e o consequente pagamento à locadora, pelo locatário, do valor das rendas vincendas e valor residual não configure uma prestação de serviços sujeita a IVA.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1.1. Em 1ª instância foram fixados como provados os seguintes factos.

1) A Impugnante é uma instituição de crédito que tem como objecto social a actividade de locação financeira, operando no âmbito da locação financeira mobiliária e estando enquadrada em sede de IVA no regime normal mensal - cfr. teor do relatório de inspecção tributária (RIT), ínsito no processo administrativo tributário (PAT) a fls.66, apenso.

2) Ao abrigo da Ordem de Serviço n.° 97/2001 de 25-07-2001, a Impugnante foi alvo de um procedimento de inspecção tributária de âmbito geral aos exercícios de 1997, 1998 e 1999, tendo sido elaborado o respectivo RIT, ínsito no PAT apenso.

3) Os Serviços de Inspecção Tributária (SIT) detectaram que a contabilidade da Impugnante evidencia a falta de liquidação de IVA nas operações de perdas totais. Assim, com a mesma fundamentação do item 3.1.1. e de harmonia com os artigos 7° e 8° e alínea h) do n°2 do artigo 16° do Código do IVA, apuraram o IVA em falta no valor de 10.393.226$00 (cfr. anexo n°10 do RIT):

«3.1 - EXERCÍCIO DE 1997

3.1.1 - Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) - Perdas Totais

No âmbito do exercício normal da actividade, constatámos que a perda total dos bens objecto de locação financeira está prevista contratualmente, segundo o qual, em caso de ocorrência, conduz a resolução do contrato sendo o locatário obrigado a pagar o somatório das rendas vincendas e valor residual actualizados. Esta norma consubstancia assim, o vencimento antecipado das rendas, naturalmente sujeitas a IVA de harmonia com o artigo 1º n.° 1 alínea a) e alínea h) do n.° 2 do artigo 16°, ambos do CIVA. Constatámos no entanto que, nos contratos de locação financeira mobiliária, em consequência de perda total dos bens objecto de locação financeira, a empresa não procedeu à liquidação do IVA sobre o vencimento antecipado (actualizado) do capital em dívida, designadamente rendas vincendas e valor residual e ainda juros, desde a última renda vencida até ao momento da perda total. Contudo, a empresa justificou o facto de não ter procedido à liquidação do IVA com a apresentação de uma informação dada pela Direcção de Serviços do IVA, (inf. n.° 1889 de 28 Outubro de 1996) para um caso concreto de um veículo que sofreu um acidente com perda total. Nessa data, o capital em divida era de 1.093.540$00, tendo recebido da companhia de seguros uma indemnização de 850.000$00 e debitado ao locatário o remanescente (243.540$00), para que a divida ficasse integralmente liquidada.

Efectivamente, a empresa tendo dúvidas se deveria ou não liquidar IVA no débito a efectuar ao lesante pelo referido montante, solicitou uma informação aos serviços do IVA tendo este respondido (em conclusão) o seguinte:

• "O Débito da S... à companhia de seguros (no montante de 850 000$00) não é abrangido pelas normas de incidência do IVA, e como tal não deve ser tributado, uma vez que se trata da transferência de responsabilidade civil do segurado.

O Débito da S... ao locatário (no valor de 243 540$00) é tributado em IVA, uma vez que configura uma contraprestação a obter do adquirente de uma operação sujeita a imposto".

Porém de acordo com alínea a) da clausula 8ª das "condições gerais" dos contratos de locação, quando a perda do bem objecto de locação é total, o contrato considerar-se-á resolvido, devendo o locatário pagar ao locador o montante das rendas vincendas e do valor residual, actualizado, adicionado das rendas vencidas e não pagas, devendo o locador entregar ao locatário a indemnização que venha a receber da seguradora.

Deste modo o que está em causa não é o valor a restituir pela locadora ao locatário, relativa à indemnização recebida da seguradora, uma vez que não tem subjacente uma operação sujeita a imposto e como tal não deve ser tributada em IVA, mas sim o valor a pagar à locadora pelo locatário, relativa ao valor das rendas vincendas e valor residual actualizados ao momento da perda total do bem, uma vez que configura uma prestação de serviços face ao n.° 1 do art.º 4º do CIVA (Vide informação n° 1828 de 99/10/08).

Com os fundamentos expostos anteriormente, o valor total do IVA em falta, de harmonia com os artigos 7º e 8º e alínea h) do nº 2 do artigo 16° do CIVA, apurado de acordo com a contabilidade é de 7.750.548$00, conforme se discrimina por valor e período de imposto em documento anexo (cfr. anexo n.° 1).

4) Os contratos de locação financeira celebrados pela Impugnante têm um contrato de seguro associado que cobre os riscos de perda total ou deterioração dos veículos objecto de locação financeira do qual a Impugnante é beneficiária - cfr. documentos n.ºs 16 e 17 juntos com a petição inicial.

5) As seguradoras pagaram sem IVA à Impugnante a indemnização decorrente do contrato de seguro - cfr. documento n.º 18, junto com a petição inicial.

6) Os clientes pagaram com IVA à Impugnante, a quantia correspondente à diferença entre o somatório das rendas vincendas e o valor residual deduzido do valor da indemnização pago à ora Impugnante directamente pela seguradora - cfr. documento n.º 18, junto com a petição.

7) Foi emitida a liquidação adicional de IVA n°1230658, respeitante ao exercício de 1999, no valor de €228.029,43 e respectivos juros compensatórios no valor de €33.325,86 - cfr. documentos n.ºs 2 a 3 juntos com a petição inicial.

8) a Impugnante, em 28-5-2002, deduziu reclamação graciosa contra as liquidações adicionais de IVA resultantes das correcções efectuadas pela Administração Tributária - cfr. processo de reclamação graciosa (PRG), ínsito no PAT apenso aos autos.

9) Em 27 de Dezembro de 2002 a ora Impugnante efectuou ao abrigo do plano de regularização de dívidas, previsto no Decreto-Lei n°248-A/2002, de 14 de Novembro, o pagamento da quantia de €96.937,02, respeitante à liquidação adicional n°1230658 - cfr. documento n.º 10, junto com a petição inicial.

10) A Reclamação Graciosa referida em 8) foi indeferida por despacho de 24-05-2005 - cfr. PRG ínsito no PAT apenso;

11) A Impugnante foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa em 08-06-2005 - cfr. PRG ínsito no PAT apenso.

12) Não se conformando com esta decisão, veio a ora Impugnante deduzir recurso hierárquico em 06-07-2005 - cfr. processo de recurso hierárquico (PRH) ínsito no PAT apenso aos autos.

13) Em 23-01-2007, foi a Impugnante notificada da decisão de indeferimento parcial do recurso hierárquico - cfr. PRH ínsito no PAT apenso.

14) No âmbito da sua actividade a ora Impugnante celebra contractos de locação financeira, cujas cláusulas 1ª, 7ª, 8ª e 9ª das respectivas condições gerais estabelecem o seguinte:

[IMAGEM]

15) A petição inicial da presente impugnação foi apresentada em 20-04-2007 - cfr. carimbo aposto a fls. 2 dos autos.

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. O presente recurso vem interposto pela Administração Tributária com fundamento em erro de julgamento por na sentença recorrida se ter perfilhado o entendimento de que a indemnização recebida pela Impugnante no âmbito de contractos de seguro tem carácter indemnizatório e não pode considerar-se como remuneração da locadora pelo contracto de locação financeira ou pela cessação do mesmo, tendo concluído, ainda, que não pode considerar-se que o valor em causa deveria ser entregue pela Impugnante ao locatário que, por seu turno, acertaria as contas com a locadora.

3.2.2. Vejamos, então, o que nos oferece dizer, começando por fazer um breve enquadramento do quadro jurídico que de forma especial nos importa relevar, ou seja, por atentar na disciplina consagrada nos artigos 1.º, 4, e 16.º, do Código de Imposto Sobre o Valor Acrescentado [CIVA – na versão em vigor em 1999, atento o preceituado no artigo 12.º da Lei Geral Tributária (LGT)], dos quais, conjugadamente, resulta que estão sujeitas a IVA as prestações de serviços efectuadas no território nacional a título oneroso por um sujeito passivo actuando como tal, sendo o valor tributável nas operações internas (transmissões de bens ou prestação de serviços sujeitas a imposto) constituído pelo valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, valor esse que, no caso particular dos contratos de locação financeira, corresponde ao valor da renda recebida ou a receber do locatário.

3.2.3. Como está bem de ver, e a doutrina e jurisprudência vem salientando, pretende-se com a consagração deste regime assegurar que o IVA, independentemente da entidade que procede ou deva proceder ao seu pagamento, só incida sobre a contraprestação real ou efectiva da transacção realizada, devendo o conceito de contraprestação, em conformidade com o entendimento sistematicamente veiculado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, ser entendido de forma mais ampla possível, por forma a ser respeitado e observado o princípio da neutralidade. Sem prejuízo, como se salientou já, das regras especiais previstas no n.º 2 do artigo 16.º o CIVA, em que e inclui a delimitação precisa da contraprestação sujeita a IVA nos contratos de locação financeira.

3.2.4. Finalizando esta breve discurso sobre o enquadramento jurídico da questão, recorda-se que o contrato de locação financeira, regulado no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho (tendo sofrido já diversas alterações com a entrada em vigor dos Decretos-Lei n.ºs 265/97, de 2 de Outubro, 285/2001, de 3 de Novembro e 30/2008, de 25 de Fevereiro), define-se como o contrato pelo qual uma das partes (locador financeiro) se obriga, contra retribuição, a conceder à outra (locatário financeiro) o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta e que a mesma pode comprar, total ou parcialmente, num prazo convencionado, mediante o pagamento de um preço determinado nos termos do próprio contrato. Doutrinalmente vem sendo qualificada como contrato nominado misto por o seu regime integrar parcialmente elementos do contrato típico de compra e venda e de locação.

3.2.5. Posto isto, cumpre ainda salientar que a questão que ora enfrentamos vem sendo recorrentemente apreciada por este Supremo Tribunal Administrativo em acções que, de resto, envolvem as mesmas partes, em processos cujas alegações de recurso e/ou conclusões são praticamente idênticas.

3.2.6. Compulsados os acórdãos proferidos neste Supremo Tribunal Administrativo entre 2011 e 2021, particularmente os que de forma mais profunda e inovatória se debruçaram sobre esta questão [reportamo-nos aos acórdãos de 31-10-2012 (proferido no processo n.º 1158/11) e de 12-05-2021 (proferido no processos n.º 2433/11.8BELRS)], replicados ou acolhidos em outros arestos podemos concluir que este Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo que:

(i) Com base numa interpretação teleológica e sistemática do artº 16º, nº 6, alínea a), do CIVA, em conjugação com o disposto nos arts. 1º, nº 1, e 4º, nº 1, do mesmo normativo, e tendo presente o conceito de indemnização, serão tributadas as indemnizações que correspondam, directa ou indirectamente, à contrapartida devida pela realização de uma actividade económica, isto é, que visem remunerar a transmissão de bens ou a prestação de serviços;

(ii) Se as indemnizações sancionarem a lesão de qualquer interesse sem carácter remuneratório porque não remuneram qualquer operação, antes se destinam a reparar um dano, não são tributáveis em IVA, na medida em que não têm subjacente uma transmissão de bens ou uma prestação de serviços;

(iii) No âmbito de um contrato de locação financeira, as indemnizações pagas pelas seguradoras e destinadas a compensar os danos causados pela perda dos veículos automóveis, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço (arts. 1º, n.º 1, 4º, n.º 1 e 16º, n.º 6, alínea a), do CIVA), nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA.

(iv) As indemnizações pagas pelo locatário à locadora, traduzidas no pagamento de eventuais rendas vencidas e respectivos juros, porque radicam no cumprimento de obrigações contratualmente assumidas, tendo estes contratos a natureza de contratos de prestação de serviços, tais quantias representam, ainda, contraprestações de operações tributáveis em IVA;

(v) No caso de perda total por sinistro dos veículos objecto de contrato de locação financeira, não pode a AT pretender que a locadora devia ter liquidado imposto sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários, por os veículos estarem a coberto de contrato de seguro e, por isso, o respectivo valor lhe ter sido directamente pago pelas seguradoras e, nessa medida, reduzida a contraprestação devida pelo locatário.

3.2.7. No caso concreto, devidamente perscrutados os articulados, o relatório de inspecção, o processo de reclamação gracioso e o recurso hierárquico, bem assim, as alegações e contra-alegações de recurso, o que verdadeiramente separa a Recorrente e Recorrida não é a definição de qual ou quais as prestações ou contraprestações das operações visadas que devem ser objecto de tributação em IVA. Na verdade, se bem atentarmos no que cada uma aduz, ambas estão de acordo que a indemnização paga pela seguradora na sequência da perda total do bem locado não está sujeita a IVA. No que, repetimos, verdadeiramente divergem é quanto ao caminho de determinação do valor sujeito a IVA.

Assim:

- Para a Administração Tributária, o valor sujeito a IVA corresponde ao valor total das rendas vencidas e vincendas, acrescido do valor residual, devidos à data do sinistro que determinou a perda total. Ou seja, ocorrendo a perda total, o locatário, por força do contrato celebrado (e apurado) tem obrigatoriamente que pagar todos esses valores, que, substanciando uma contraprestação contratualmente prevista, está sujeito a IVA.

- Para a Recorrente esse valor deve ser objecto de tributação em sede de IVA, mas dele deve ser excluído o valor recebido a título de indemnização, que a Recorrida, enquanto locadora e beneficiária do seguro obrigatoriamente celebrado pelo locatário recebe e que deduz ao valor que exige à locatária. Ou seja, para a Recorrente deve incidir IVA sobre o valor remanescente pago pela locatária por ser o único que corresponde ainda ao cumprimento de uma obrigação contratual e simultaneamente a uma contraprestação devida.

3.2.8. Ora, do confronto dos pressupostos de direito fundamentadores da jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo que supra enunciamos com os factos apurados, fácil se revela concluir que a sentença recorrida se deve manter na ordem jurídica.

Efectivamente, estando provado que as liquidações impugnadas se reportam a situações em que houve pagamento de indemnizações sem pagamento de IVA por parte das seguradoras (como a Recorrente defende que deve ocorrer) e que esse valor foi directamente entregue à locadora, como expressamente previsto na cláusula 7.º, 2ª parte, do contrato de locação, que apenas exigiu o pagamento do valor remanescente aos locatários, que os pagaram com IVA, nada mais pode ou deve ser exigido.

3.2.9. No fundo, o que a Administração Tributária - que está perfeitamente ciente, como resulta do Relatório de Inspecção, do movimento de encontro de contas realizado e do pagamento do IVA no que respeita ao valor remanescente, que se aceita que ainda corresponda ainda a uma contraprestação contratual para efeitos do preceituado nos artigos 1.º, 4.º e 16.º, n.º 2 do CIVA - pretende com a tese que perfilha, isto é, com o entendimento de que, num primeiro momento, como “operação autónoma”, deve ocorrer a entrega pelo locador ao locatário do valor da indemnização e que o locatário ficaria obrigado a proceder ao pagamento da totalidade das prestações com IVA, é “anular” a exclusão legal de tributação de sujeição a IVA de um valor, que por ter natureza indemnizatória a essa tributação não está sujeito. Ou seja, sabido que as indemnizações pagas pelas seguradoras e destinadas a compensar os danos causados pela perda dos veículos automóveis, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço (arts. 1º, n.º 1, 4º, n.º 1 e 16º, n.º 6, alínea a), do CIVA), nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA, a autonomização total das operações ou a exclusão do encontro de contas entre a locadora e a locatária permitiria afastar esta exclusão legal de tributação.

3.2.10. Em suma, o que linearmente resulta dos autos é que, pese embora o contrato de locação financeira preveja a celebração de um contrato de seguro que tem por objecto o bem locado e vise ressarcir o locador, que é o seu efectivo beneficiário, da sua perda parcial ou total e não obstante desse contrato resulte que o locatário apenas se encontra obrigado a pagar o remanescente (ou seja, o valor de rendas vencidas e vincendas não cobertas pela indemnização paga pela seguradora) e a Administração Tributária bem saiba que sobre aquela indemnização não deva incidir IVA, como não foi, e que sobre o remanescente (contraprestação) incidiu IVA (como resulta do RIT e dos factos apurados), insiste, mais uma vez, em exigir que incida IVA sobre a totalidade das prestações em falta, como se não tivesse havido já, pelo menos parcialmente o ressarcimento do dano (perda total) através do pagamento da indemnização, cujo valor, obrigatoriamente a deduzir ao valor em falta e contratualmente estabelecido, não está sujeita a IVA.

3.2.11. Sem razão alguma. Como se conclui no acórdão que em último citamos, “no caso de perda total por sinistro dos veículos objecto de contrato de locação financeira, não pode a AT pretender que a locadora devia ter liquidado imposto sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários, por os veículos estarem a coberto de contrato de seguro e, por isso, o respectivo valor lhe ter sido directamente pago pelas seguradoras e, nessa medida, reduzida a contraprestação devida pelo locatário.».

3.2.12. E, assim, sendo, confirmando-se a sentença recorrida, julgar-se-á totalmente improcedente o recurso jurisdicional.

3.3. As custas serão suportadas pela Recorrente, integralmente vencida (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT).

4. DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, negar provimento ao recurso jurisdicional.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2023 – Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – José Gomes Correia – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.