Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0174/13.0BEVIS
Data do Acordão:01/25/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CPPT
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - É de admitir a revista relativamente à questão de saber se, relativamente a uma complexa operação de reestruturação empresarial, estão, ou não, verificados os pressupostos da aplicação da cláusula geral anti-abuso por parte da AT, tendo por referência o disposto no n.º 10 do art. 67.º do CIRC (na redacção prévia à republicação de 2010), designadamente no que se refere à relevância do facto de a operação de transmissão das acções da ora Recorrente para uma terceira sociedade não se ter concretizado.
III - A referida questão jurídica, bem caracterizada, apresenta-se como relevante, suscita dificuldades de interpretação do regime jurídico e na aplicação do mesmo aos factos dados como provados, a justificar a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo em sede de revista.
Nº Convencional:JSTA000P30501
Nº do Documento:SA2202301250174/13
Data de Entrada:10/10/2022
Recorrente:C..., S.A.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: preciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 174/13.0BEVIS

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada como Recorrente, inconformada com os acórdãos proferidos pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 9 de Junho de 2021 e 19 de Maio de 2022 – o primeiro, que negou provimento ao recurso por ela interposto e manteve a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) dos anos de 2008 e 2009, consequentes à aplicação das disposições anti-abuso previstas, à data, no n.º 10 do art. 67.º do Código do IRC (CIRC) e do art. 38.º da Lei Geral Tributária (LGT) e, o segundo, que deferiu o pedido de rectificação de erros materiais e indeferiu o pedido de reforma do anterior acórdão –, deles interpôs recursos para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentando as alegações de recurso.
Pelos motivos que adiante exporemos, só será apreciada a admissibilidade do primeiro daqueles recursos, pelo que apenas referiremos as conclusões que nele foram formuladas e que são do seguinte teor:

«I. O presente Recurso de Revista vem interposto, nos termos do artigo 285.º do CPPT, contra o Acórdão proferido pelo TCAN, em 09/06/2021, no âmbito do recurso interposto pela ora Recorrente, no processo de impugnação judicial que correu termos, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, com o n.º de processo 174/13.0BEVIS, que teve como objecto a contestação dos actos de liquidação de IRC de 2008 e 2009 da Recorrente;

II. Tem decidido o STA que o recurso de revista excepcional “só é admissível se for claramente necessário para uma melhor aplicação do direito ou se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, sendo que esta importância fundamental tem de ser detectada não perante o interesse teórico da questão, mas perante o seu interesse prático e objectivo, medido pela utilidade da revista em face da capacidade de expansão da controvérsia ou da sua vocação para ultrapassar os limites da situação singular” (cfr. acórdão da 2ª Secção do STA, proferido em 27/11/2013, no processo n.º 01355/13);

III. Exige-se que “[a] questão a apreciar seja de complexidade jurídica superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas que cumpra efectuar, quando se esteja perante um enquadramento normativo particularmente complexo ou quando se verifique a necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis ou se exija ao intérprete e ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas. E tal relevância jurídica não pode ser meramente teórica, medida pelo exercício intelectual que seja possível praticar sobre as normas discutidas, mas uma relevância prática, com interesse e utilidade objectiva.”;

IV. Segundo o acórdão do STA, de 10 de Setembro de 2014, proferido no processo n.º 01013/14: “A admissão para uma melhor aplicação do direito justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, com recurso a interpretações insólitas, ou por aplicação de critérios que aparentem erro ostensivo, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa é reclamada para dissipar dúvidas acerca da determinação, interpretação ou aplicação do quadro legal que regula certa situação”;

V. No caso vertente, a relevância social das questões controvertidas resulta, em primeiro lugar, da necessidade de aferir se existem ou não limites à actuação da AT e aos poderes de natureza pública que a mesma exerce perante os contribuintes, nomeadamente no que respeita à forma como realiza o procedimento de inspecção tributária, sobretudo numa situação em que esteja em causa a aplicação de medidas mais castradoras dos direitos dos contribuintes, como a aplicação da cláusula anti-abuso;

VI. E isto é relevante para evitar que a situação se repita e que outros contribuintes sejam afectados por comportamentos da AT que não obedecem ao princípio da boa-fé e também ao princípio da legalidade;

VII. Nessa medida, importa aferir se a AT deve ou não pautar-se pelo cumprimento escrupuloso das normas, dos prazos e dos procedimentos previstos, por exemplo, na LGT e no RCPIT ou, pelo contrário, tem a liberdade de as interpretar e (re)adaptar, a seu favor, por forma a justificar a arrecadação de impostos. Se deve ou não a AT colocar-se na posição do contribuinte, previamente à aplicação da cláusula anti-abuso;

VIII. No que se refere à questão mais substantiva, teremos necessariamente que perceber – porque se trata de uma questão que ultrapassa em muito o âmbito do presente recurso – se a AT pode agir de forma leviana, não cuidando sequer de confirmar se o facto tributário em que assentou a sua correcção se verificou;

IX. Até que ponto está a AT sujeita ao ónus probatório que decorre do disposto no artigo 74.º da LGT numa situação como esta e quando, em concreto, tinha inúmeras evidências de que aquele facto tributário não se verificou porque o negócio que supostamente estaria subjacente à aplicação da cláusula geral anti-abuso nunca se verificou?

X. Por outro lado, é imperioso, no entendimento da Recorrente, que o STA afira da legitimidade da AT para acusar contribuintes de práticas abusivas, apenas porque implementaram operações de reestruturação, no âmbito de um grupo económico, com relevância no seu sector de actuação, como foi o caso, quando existem racionais económicos que justifiquem as várias etapas dessa reestruturação;

XI. A decisão proferida pelo TCAN exige uma clarificação quanto ao âmbito de aplicação da norma anti-abuso prevista no artigo 63.º do Código do IRC e, em concreto, quanto à avaliação se essa aplicação exige a obtenção de uma efectiva vantagem fiscal ou se pode ser meramente potencial;

XII. Ou seja, a utilidade jurídica da revista vai muito para lá deste caso concreto e assume, em termos sociais, uma repercussão que justifica lançar mão desta via de recurso excepcional, principalmente no que se refere ao estabelecimento de limites à actuação da AT em situações que já são elas próprias excepcionais;

XIII. Por fim, a necessidade da melhor aplicação do direito, em concreto, resulta ainda da necessidade de proteger, por um lado, a liberdade de cada contribuinte gerir o seu negócio, da forma que considerar mais adequada ao seu florescimento, desde que não tome decisões ruinosas (o que não foi sequer o caso, pois a situação das empresas em causa após a reorganização mantém-se inalterada até hoje), também de proteger a liberdade das partes definirem os termos dos negócios que pretendem celebrar e, por fim, de impedir uma nefasta e inaceitável ingerência da AT nas decisões dos empresários;

XIV. O recurso excepcional de revista depende, nos termos do n.º 2 do artigo 285.º do CPPT, da verificação de um requisito complementar, que é a violação de lei substantiva ou processual, sendo que a decisão proferida pelo TCAN colide frontalmente com as normas plasmadas no artigo 63.º, n.º 4, da LGT, no artigo 63.º, n.º 3, do CPPT e com o princípio da boa-fé, bem como, com as normas que disciplinam o regime de neutralidade fiscal e, nessa medida, com o princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento real;

XV. No que se refere à violação de lei, quanto às normas que regulam o procedimento de inspecção e a caducidade do prazo de aplicação da cláusula anti-abuso, resulta da factualidade apurada nos autos que a AT procedeu à realização de duas acções de inspecção, por referência ao mesmo imposto e período de tributação, em manifesta violação da lei substantiva e, em concreto, do disposto no artigo 63.º, n.º 4, da LGT;

XVI. A situação de excepção consagrada nessa norma nunca foi invocada pela AT, para justificar a realização destes segundos procedimentos inspectivos;

XVII. Nada justificava esta actuação por parte da AT, que já tinha determinado a abertura de procedimentos inspectivos, para análise das informações fiscais e da contabilidade dos anos de 2008 e 2009, e que podia ter lançado mão nessa sede, caso assim o entendesse, da cláusula anti-abuso, quer a que se encontra prescrita no n.º 10 do artigo 73.º (à data dos factos, no artigo 67.º) do Código do IRC, quer a que foi consagrada no n.º 2 do artigo 38.º da LGT;

XVIII. Mas não o fez, decidindo iniciar novo procedimento inspectivo, em 23.10.2012, apenas para poder apresentar as conclusões da anterior inspecção, porquanto a mesma já se encontrava manifestamente caducada;

XIX. Esta é uma das primeiras questões que necessita de ser avaliada na presente revista: pode a AT agir nesta matéria, da forma que bem entender, prorrogando e realizando sucessivamente acções inspectivas com o mesmo objectivo, que é o de arrecadar impostos a todo o custo, sem apresentar justificações ao contribuinte?

XX. A resposta a essa questão não se afigura determinante apenas para o presente caso, mas para todos os outros, pois a AT terá encontrado a partir de agora a fórmula para prolongar ad aeternum os procedimentos inspectivos, em manifesta violação e desrespeito do disposto no artigo 63.º, n.º 4, da LGT e também no artigo 36.º, n.º 2 e n.º 3, do RCPIT;

XXI. Não só nunca foi invocado pela AT, conforme exigido pelo n.º 3 (actual n.º 4) do artigo 63.º da LGT, qualquer facto ou pressuposto novo que pudesse justificar a abertura de um novo procedimento de inspecção externa ao IRC dos anos de 2008 e 2009, como, nem o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, nem o próprio TCAN, identificaram qualquer justificação para tal;

XXII. A AT não o fez por mera incúria, porquanto não surgiram factos novos ou factos que só tenham chegado ao seu conhecimento na data em que estas segundas inspecções foram desencadeadas;

XXIII. Ao sancionar entendimento distinto deste, está o TCAN também a sancionar o procedimento ardiloso que foi utilizado pela AT, para tentar corrigir os seus próprios erros (a caducidade do prazo de realização das primeiras acções inspectivas relativos a 2008 e 2009), promovendo a “legalização” de uma conduta que era claramente contra legem e que, desse modo, permitiu a realização de correcções em sede de IRC, infundadas, de que resultou o apuramento dos montantes de imposto em causa;

XXIV. Só poderão ser considerados como “factos novos”, para justificar a eventual realização de uma segunda inspecção, aqueles que resultem de circunstâncias que a AT não tivesse o dever de conhecer, no âmbito da primeira inspecção ou aqueles cujo desconhecimento seja exclusivamente imputável ao sujeito passivo – veja-se, pela sua manifesta relevância, o acórdão do TCAS, de 14.03.2019, proferido no processo n.º 1028/12.3BELRA;

XXV. Transportando este caso para a generalidade de todas as outras situações em que a AT realiza um normal procedimento inspectivo, existe um sério receio de que esteja encontrada a fórmula perfeita para a AT “contornar” a regra vertida no artigo 63.º, n.º 4, da LGT e os prazos de duração máxima da inspecção, constantes do artigo 36.º, n.º 2 e n.º 3, do RCPIT;

XXVI. Esta conduta é também susceptível de violar o princípio da boa-fé e o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrados no artigo 266.º, n.º 2, da CRP, mas também no artigo 55.º, da LGT;

XXVII. O arrojo da AT neste caso não se ficou por aqui, pois utilizou outro artifício, desta vez para justificar o prolongamento do próprio procedimento de aplicação da cláusula anti-abuso, alegando sem fundamento que os negócios em causa não ocorreram apenas em Outubro de 2008, mas em período mais alargado, até ao final do ano de 2009, apenas para justificar, uma vez mais, o prolongamento daquele procedimento até ao dia 21.12.2011;

XXVIII. Mas entende a Recorrente que os efeitos jurídicos e tributários das operações de trocas de activos, realizadas nos dias 1 e 20 de Outubro de 2008, em nada se relacionam com os efeitos jurídicos e tributários dos contratos de compra e venda de acções celebrados nos dias 21 e 29 de Dezembro de 2009, como demonstra o facto de a AT ter aplicado, quanto às operações realizadas em 2008, a norma prevista no então n.º 10 do artigo 73.º do Código do CIRC e, quanto às operações realizadas em 2009, a norma prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT;

XXIX. Com o seu silêncio nesta matéria, o TCAN acaba por validar o entendimento de que pode ser considerado, para efeitos de contagem de um prazo ligado a um acto específico, um conjunto de operações que a própria AT tratou como distintas, no âmbito da aplicação de normas anti-abuso, quando o próprio TCAN acabou por cindir, para efeito da apreciação da questão substantiva, o acto de aquisição dos centros de inspecção, da Recorrente pela I…, do acto de aquisição dos centros de inspecção, da I… pela Recorrente;

XXX. A decisão que agora se pretende que seja revista acaba por legitimar uma actuação da AT que ocorreu fora de prazo, baseada no pressuposto manifestamente erróneo, de que, no caso das entradas de activos da C... na I…, se deve considerar a data de início da contagem do prazo de 3 anos, para efeitos de abertura do procedimento com base na norma específica anti-abuso constante do n.º 10 do artigo 73.º do Código do IRC, tendo em atenção ao conjunto de actos praticados e entendendo-o como uma única transacção;

XXXI. E a questão jurídica que assume relevância social, por se estender a outros processos semelhantes, e por ser crucial firmar jurisprudência nesta matéria, é a de saber se a AT pode considerar, para efeito da aplicação da cláusula anti-abuso em causa, uma sucessão de operações ou actos societários como um todo, quando esses actos englobam, por um lado, operações de troca e activos e, por outro lado, contratos de compra e venda de acções;

XXXII. E não se pense, como já decorre do supra exposto, que o fundamento da revista aqui enunciado não extravasa o caso concreto, pois são inúmeras hoje em dia as situações em que a AT considera ter legitimidade para aplicar as disposições anti-abuso, fruto do incremento das políticas de combate à evasão fiscal e da análise mais apertada que tem sido feita – e bem – às operações de reestruturação de grupos de sociedades;

XXXIII. Contudo, não pode admitir-se que o controlo desse tipo de operações seja feito à custa da violação de normas e prazos aplicáveis, passando a AT por cima das regras nucleares que a legitimam a lançar mão desses procedimentos, como se o propósito da arrecadação de impostos fosse superior aos direitos e garantias dos contribuintes;

XXXIV. Nestes termos, deve ser desde logo revista a decisão do TCAN nesta parte, porque materializada na violação de lei;

XXXV. A decisão agora proferida também merece ser revista, na parte em que se pronunciou sobre a aplicação das disposições anti-abuso e do regime de neutralidade fiscal, pois também nesse caso o TCAN sufragou um entendimento susceptível de se materializar em violação de lei, sendo apontadas as mesmas razões de relevância jurídica e social e que justificam, em face da decisão agora proferida, a sua revisão para uma melhor aplicação do direito;

XXXVI. Tal decorre de um notório erro de julgamento que culminou na violação da lei aplicável aos factos aqui em crise e que o TCAN não deu relevância, desde logo, o de que a venda das acções da I…, por parte da T... SGPS à E..., nunca ocorreu;

XXXVII. Em momento algum, a AT logrou juntar aos autos prova que lhe permitisse demonstrar que a referida venda ocorreu, porque essa prova efectivamente não existia, e não o fez porque lhe interessava manter a dúvida sobre essa circunstância, concentrando a sua argumentação nas possíveis consequências fiscais de uma operação de reestruturação que teria tido como único objectivo a venda de acções, com a consequente diminuição do pagamento de impostos, independentemente de essa venda ter ou não ocorrido;

XXXVIII. A decisão proferida pelo TCAN foi claramente contaminada pelo logro que constituiu toda a argumentação expendida no Relatório de Inspecção Tributária e acabou por traduzir-se numa errónea formulação da questão a decidir;

XXXIX. Aquilo que o TCAN deveria ter questionado e analisado – e não fez porque, julgamos, foi induzido em erro pelos fundamentos invocados pela AT – era se a correcção em causa e, em concreto, a aplicação das disposições anti-abuso, poderia verificar-se quanto a um conjunto de operações que não assumiram qualquer materialidade, pois não deram origem ao negócio em que a AT assentou essa mesma correcção;

XL. Se a venda das referidas acções nunca ocorreu, pode a AT proceder à aplicação da cláusula anti-abuso apenas com base em meras hipóteses? Mais grave ainda. Pode fazê-lo quando não se verificou, nem resulta provada, a existência de um ganho?

XLI. Também resulta evidenciado de toda a prova produzida nos autos que o Grupo T... continua, na presente data, a controlar 100% do capital, quer da I…, quer da Recorrente;

XLII. Isto é, o resultado que a AT sugere que a Recorrente – e o Grupo em que se insere – pretendiam supostamente almejar, no plano fiscal, mediante a sucessão de operações e actos sociais por si realizados, desde o ano de 2008, nunca se verificou, pois a situação e a estrutura societária mantêm-se inalteradas até aos dias de hoje;

XLIII. Mesmo que o TCAN não considerasse outros factos adjacentes, como provados, ou não lhes desse a devida relevância, nunca poderia ignorar – e muito menos deixar de investigar a sua veracidade – que a venda das acções da I… à E… nunca ocorreu, pois só dessa forma estaria a promover um efectivo julgamento em sede de recurso;

XLIV. No que se refere especificamente ao regime de neutralidade fiscal, a decisão proferida pelo TCAN limita-se a referir o seguinte: “compulsada a matéria factual presente nos autos e também na ausência de melhor identificação pela Recorrente dos factos que suportam a sua tese naqueles dois supra enunciados pontos, não podemos chegar à pretendida conclusão que a estratégia de reorganização empresarial que encetou tivesse os apontados e legítimos contornos e que aquela fosse indiferente quanto ao seu desfecho do ponto de vista fiscal”;

XLV. Ou seja, a decisão proferida pelo TCAN é, desde logo, absolutamente acrítica dos factos e ausente de qualquer análise jurídica, para além das considerações acima referidas e da transcrição (quase total) dos fundamentos invocados pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu;

XLVI. Para além disso, o TCAN apenas se sustenta, aparte da falta de substrato jurídico da decisão de improcedência por si proferida, nos factos dados como não provados pelo tribunal de 1.ª instância, apesar de estes não serem essenciais para o apuramento da verdade material e para uma adequada aplicação do direito, nem terem qualquer relação com aquele que é o facto mais relevante, o de que a venda das acções nunca ocorreu;

XLVII. E não se diga que a Recorrente não enfatizou tal circunstância, pois a não realização da operação de venda as acções foi abundantemente referida nas alegações de recurso e, sendo o TCA o tribunal de recurso quanto à matéria de facto, tal exigia que procedesse a uma verdadeira reapreciação da prova produzida (documental e testemunhal gravada) em 1.ª instância;

XLVIII. O TCAN constatou – tal como a Recorrente também o fez – que o tribunal de 1.ª instância não deu relevância, ou não quis confirmar (no limite), se o facto tributário que esteve na base da correcção da AT acabou ou não por se verificar, isto é, se a venda das acções à E… se consumou, o que acaba por limitar o próprio direito de recurso – pois não existe outro grau de recurso que aprecie a matéria de facto –, mas também origina a prolação de uma decisão de mérito que é, substantiva e objectivamente, errada, por violar as normas e os princípios aplicáveis ao caso concreto;

XLIX. Da prova realizada no processo, resulta que não existiu, com a concretização das operações em causa, qualquer vantagem fiscal para a Recorrente, nem para o Grupo onde esta se insere, uma vez que qualquer resultado positivo que viesse a ser apurado no futuro, relativamente à alienação dos activos que foram objecto dessas operações de troca, seria sempre sujeito a tributação em sede de IRC, nos termos gerais, estando a I… encontra-se sujeita ao regime geral de tributação;

L. Para além disso, nem AT logrou provar a verificação de qualquer dos três elementos de que depende a aplicação da cláusula anti-abuso (vantagem fiscal, intenção primordial na sua obtenção e verificação da vantagem económica), e que seriam também os pressupostos para não aplicação do regime da neutralidade fiscal, nem o próprio TCAN fez qualquer referência ou demonstrou a verificação desses mesmos elementos;

LI. É admissível que, numa situação como esta, seja possível aplicar as disposições anti-abuso, quando o próprio Tribunal – seja ou de 1.ª instância ou o de recurso – reconhece que foi praticada uma sucessão de actos de reorganização empresarial de que resultou o incremento dos resultados operacionais das empresas envolvidas?

LII. Não é, para além de uma ingerência na gestão do próprio Grupo, uma visão que acaba por dar cobertura ao único objectivo com que estas correcções foram realizadas pela AT, qual seja, o de arrecadar impostos? Até que ponto deve o tribunal de recurso averiguar se essas razões económicas foram efectivamente válidas, no caso em que a interpretação que foi dada pelo tribunal de 1.ª instância revela evidentes incoerências?

LIII. A existência de uma eventual situação de abuso fiscal, em operações que tenham beneficiado do regime especial de neutralidade em IRC, afere-se pela comparação entre a efectiva carga fiscal suportada pelas entidades envolvidas, após a concretização da operação de reorganização e a que seria suportada na sua ausência, sendo que, no caso vertente, ficou evidenciado que a carga fiscal não diminuiu com as operações de entradas de activos e que nem sequer foi apurada qualquer mais-valia, eventualmente isenta, porque a I… nunca foi alienada à E…;

LIV. A manter-se a decisão agora proferida pelo TCAN, à mingua de decisões em número suficiente ou que tenham uniformizado jurisprudência nesta matéria, continuará legitimado esta inaceitável arbitrariedade da AT interferir inusitadamente nas decisões políticas e empresariais dos particulares, aplicando as disposições anti-abuso, em situações de neutralidade fiscal ou em quaisquer outras, sempre que se depare com uma operação de reorganização mais complexa;

LV. O TCAN não procedeu, como lhe competia/era seu dever, a uma séria e efectiva avaliação das razões económicas que possam ter estado por trás dessas operações de reestruturação, alargando assim o leque de decisões judiciais que, por falta de confirmação efectiva dos pressupostos de aplicação das cláusulas anti-abuso ou do regime de neutralidade fiscal, penalizam fortemente os contribuintes sem motivos válidos que o justifiquem;

LVI. Sem prejuízo disso, não tem sido este o procedimento e o entendimento perfilhado pelos tribunais superiores, assim como pela própria doutrina, os quais defendem já a insustentabilidade da aplicação das disposições anti-abuso em situações que estão em absoluta consonância com o ordenamento jurídico, pese embora pudessem ser fiscalmente vantajosas – veja-se as decisões proferidas nos processos em que a AT defendeu idêntica posição, no caso da opção legislativa de excluir de tributação as mais-valias da venda de acções detidas por prazo superior a 12 meses, constante do artigo 10.º, n.º 2, alínea a) do Código do IRS;

LVII. Veja-se também o que a este propósito diz o Tribunal Arbitral, no processo n.º 123/2012, através de decisão de 09/05/2013: «A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta “um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou supressão do encargo fiscal”. Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar “uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema”. (…) Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem»;

LVIII. Veja-se ainda a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que persegue o rasto económico das operações para considerar legítimo o planeamento fiscal assente na escolha de caminhos fiscalmente mais vantajosos para prosseguir um determinado objectivo económico – são as denominadas razões económica válidas – cf. acórdãos proferidos no processo C-196/04, em 12/09/2006 (Acórdão Cadbury Schweppes) e no processo C- 255/02, em 21/02/2006 (Acórdão Halifax);

LIX. Mas, apesar da existência da jurisprudência acima identificada – a qual, ao contrário do TCAN, procurou averiguar das efectivas razões económicas que estiveram subjacentes às operações aqui em crise, realizadas pelo Grupo em que a Recorrente se insere, nos anos de 2008 e 2009 –, nesta situação nem sequer houve qualquer intenção ou foi elaborado um planeamento que visasse a optimização fiscal de resultados, pois as operações e os actos societários realizados inseriram-se numa intenção, mais alargada, de valorizar algumas empresas do Grupo, de reposicionamento do mesmo no mercado, ainda que também se tivesse em vista a possível venda de alguma(s) dessa(s) sociedade(s) a terceiros – o que, como se constatou, nunca se verificou;

LX. Pelo que, por maioria de razão, nunca poderia o TCAN dar por verificados os pressupostos de direito para a AT aplicar as disposições anti-abuso;

LXI. No caso vertente, em momento algum a AT, ou o próprio TCAN, demonstraram a verificação, cumulativa ou individual, de todos os requisitos exigidos para a aplicação da cláusula anti-abuso: resultado, sancionatório, meio, intelectual e normativo;

LXII. De resto, o Tribunal Arbitral do CAAD, no acórdão de 25/05/2020, proferido no processo n.º 480/2019-T, chegou mesmo a considerar que a existência de resultados fiscais positivos, ou mesmo de uma poupança fiscal, não determina sequer que uma operação de reestruturação tenha sido realizada com propósitos ilícitos ou que justifiquem a aplicação daquela cláusula;

LXIII. SALDANHA SANCHES afirma que é “necess[ário] encontrar, no ordenamento jurídico-tributário e como condição sine qua non de aplicação da cláusula antiabuso, os sinais inequívocos de uma intenção de tributar [...], primeiro, porque a evitação fiscal abusiva não pode confundir-se com a permanente tentativa do contribuinte para reduzir a sua tributação ou para ponderar cuidadosamente – planeamento fiscal não abusivo – as consequências da lei fiscal na sua actividade empresarial ou pessoal [...], segundo, porque nesse esforço permanente para reduzir a carga fiscal podemos encontrar o aproveitamento pelo contribuinte do que podemos qualificar como omissões deliberadas – justas, ou não, é uma outra coisa – do legislador fiscal e, se isso aconteceu, não pode atribuir-se ao aplicador da lei a tarefa que cabe primariamente ao legislador”;

LXIV. Deve ser possível extrair-se uma “intenção inequívoca de tributação”, o que em momento algum sucedeu no caso sub judice;

LXV. Pelo que a decisão do TCAN não se pode manter na ordem jurídica, não apenas para que se possa promover uma adequada aplicação do direito a este caso concreto, mas também para não gerar um alarme social que naturalmente resultaria caso a mesma se mantivesse – pois os contribuintes não confiariam numa justiça que permite que a AT actue com tamanho desrespeito pelas normas que regulam a aplicação das disposições anti-abuso, sobretudo se conjugadas com o regime de neutralidade fiscal;

LXVI. Refira-se, igualmente, que o erro de julgamento e a violação de lei em que o TCAN incorre também resulta do facto de não poder ser imputada qualquer responsabilidade à Recorrente, ou ao Grupo T..., pelo facto de as entradas de activos em causa terem sido feitas a valores contabilísticos, na medida em que era isso que previam as normas fiscais em vigor à data dos factos (2008 e 2009), para efeitos da aplicação do regime da neutralidade fiscal;

LXVII. Pelo que também a ideia que a AT pretendeu consolidar ao longo este processo, de que não foram cumpridas as regras contabilísticas e fiscais em vigor à data, tem que ser combatida através da presente revista;

LXVIII. Neste particular e por fim, ao validar a forma como a AT procedeu à aplicação do disposto no artigo 63.º do CIRC, no que tange à utilização, no caso vertente, do Método do Preço Comparável de Mercado (“MPCM”), para apuramento do valor do imposto em falta, a decisão do TCAN também merece ser revista, a bem do impacto social negativo que a sua manutenção provocaria;

LXIX. Ao contrário do que considerou o TCAN, validando as conclusões do tribunal de 1.ª instância, não existe qualquer comparabilidade, quer ao nível do objecto, quer ao nível da análise funcional das entidades intervenientes, entre a operação que a AT entendeu dever ser utilizada como comparável e a operação realizada entre a Recorrente e a sua entidade relacionada, a I…, desde logo pelo facto de a E… não possuir autorização para o exercício da actividade em causa;

LXX. Por fim, conclui-se do exposto que a decisão do TCAN terá que ser revista, também porque enferma da violar do princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento/lucro real, constitucionalmente consagrado no n.º 2 do artigo 104.º da CRP, pois, no caso das empresas, a respectiva capacidade contributiva é revelada fundamentalmente pelo seu lucro real;

LXXI. Com efeito, o rendimento tributável, para efeitos de IRC, deverá assentar no rendimento real do contribuinte, razão pela qual o entendimento agora sufragado pelo TCAN traduz a violação daquele princípio e do da capacidade contributiva, ainda que estejamos perante decisões e operações realizadas no seio de um grupo empresarial;

LXXII. Se não temos actividade nem lucros, não pode haver lugar à tributação em sede de IRC, na medida em que este imposto incide sobre o lucro tributável;

LXXIII. É precisamente essa violação de lei que o TCAN acaba por validar, a de permitir a tributação da Recorrente sem que a mesma tenha obtido um ganho, o que não pode deixar de ser corrigido à luz da norma vertida no artigo 285.º do CPPT, a qual, como se referiu abundantemente, permite a revista de decisões judiciais quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se afigure de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

LXXIV. Qualquer uma dessas situações se verifica no caso vertente, pois não pode admitir-se a replicação deste caso a outros, sob pena de uma aplicação do direito de que resulte a tributação dos contribuintes, em sede de IRC, por ganhos que nunca obtiveram, apurados com base numa mera suposição ou num negócio que, na prática, nunca ocorreu. A relevância jurídica e social desta questão é por isso evidente;

LXXV. Deste modo e tendo em consideração todos os fundamentos acima aduzidos, conclui-se que a decisão agora proferida pelo TCAN terá que ser necessariamente revista de modo a reconhecer-se a antijuridicidade da actuação da AT, decidindo-se, como é de inteira justiça, pela não aplicação das disposições anti-abuso ao caso sub judice.

Termos em que deverá o presente recurso de revista ser julgado procedente, por provado, sendo a decisão proferida pelo TCAN revista nos termos acima propugnados, com todas as consequências legais».

1.2 A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

1.3 O Desembargador relator no Tribunal Central Administrativo Norte ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.

1.4 Recebido o processo nesse Supremo Tribunal, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que se conheça apenas do primeiro recurso de revista e que este seja admitido, relativamente à questão «da aplicação da cláusula geral anti-abuso por parte da AT, tendo por referência o disposto no n.º 10 do artigo 67.º do CIRC, no que se refere à transmissão dos activos entre a C... e a I… (IRC/2008)».
Relativamente a esta questão, considerou o Procurador-Geral-Adjunto, em síntese, que, «a mesma prende-se com a operação de permuta de activos entre duas empresas do mesmo grupo, realizada no âmbito de um alegado processo de reestruturação, que culminou com a venda, por parte da sociedade “holding”, das acções de uma dessas empresas a uma sociedade terceira, beneficiando do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF e que a AT considerou visar em exclusivo ou de forma predominante a elisão fiscal» e que, apesar da «complexidade da questão, derivada dos contornos específicos da operação de reestruturação, assim como a densificação de conceitos indeterminados (tais como o de “razões economicamente válidas”)», o tratamento que lhe foi dado pelo acórdão recorrido, que dela «fez uma abordagem conclusiva e evasiva», exige que este Supremo Tribunal intervenha, em ordem «a uma melhor aplicação do direito». Concretizando, o Procurador-Geral-Adjunto entende que o Tribunal Central Administrativo Norte não enunciou devidamente as questões a dirimir, pois se limitou a dizer «que «cabe aferir do recurso apresentado pela Recorrente solucionando as questões por esta suscitadas, referentes à imputada nulidade, ao erro de julgamento de facto e aos erros de julgamento de direito invocados», sem identificar de forma esclarecedora em que consiste os tais “erros de julgamento de direito”» e que «na abordagem que foi feita dos tais “erros de direito” o acórdão limitou-se a identificar a questão como “uso indevido da cláusula geral anti-abuso” e, após transcrição de uma abordagem doutrinal sobre a referida figura jurídica, a concluir que «… as vantagens e justificações económicas para a reorganização empresarial encetada no ano de 2008 e por referência ao correspectivo IRC, não ficaram aqui demonstrados. // Já no que diz respeito aos juros não cobrados dos empréstimos aqui em causa no ano de 2009 e relativamente ao correspondente IRC deste exercício, não se vislumbra qualquer facto que justifique a respectiva não cobrança e que se insira numa lícita lógica empresarial».
Conclui, em consonância, que, «quanto à questão da aplicação da cláusula geral anti-abuso por parte da AT, tendo por referência o disposto no n.º 10 do artigo 67.º do CIRC, no que se refere à transmissão dos activos entre a C... e a I… (IRC/2008), se impõe a intervenção deste tribunal com vista a uma mais esclarecedora análise e apreciação dessa questão».

1.5 Cumpre apreciar, preliminar e sumariamente, da verificação dos requisitos para o conhecimento do primeiro recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT.
Antes, contudo, há que apreciar da admissibilidade do segundo recurso de revista, interposto pela Recorrente, sendo que, como adiantámos supra e também salientou o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, o mesmo não pode ser admitido. Vejamos:
Como deixámos já dito, a ora Recorrente interpôs dois recursos de revista: o primeiro, apresentado em 2 de Setembro de 2021, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido em 9 de Junho de 2021 – que negou provimento ao recurso interposto da sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu julgou procedente a impugnação judicial por ela apresentada contra as liquidações adicionais de IRC dos anos de 2008 e 2009; o segundo, apresentado em 22 de Junho de 2022, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido em 19 de Maio de 2022, que deferiu o pedido de rectificação de erros materiais e indeferiu o pedido de reforma daquele primeiro acórdão.
Ambos os recursos foram admitidos pelo Desembargador relator no Tribunal Central Administrativo Norte, mas apenas o primeiro o pode ser, sendo que aquela admissão não vincula este Supremo Tribunal, como resulta do n.º 5 do art. 641.º do Código de Processo Civil (CPC).
Apesar de a Recorrente pretender a apreciação em sede do segundo recurso de revista que interpôs, para além do mais, as mesmas questões que foram colocadas no primeiro recurso, importa referir, desde logo e como bem salientou o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, que não se pode considerar que este recurso substitua o primeiro.
Note-se que a arguição da nulidade e o pedido de reforma não foram efectuados pela Recorrente no âmbito do recurso de revista que interpôs do primeiro acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte.
Se assim o tivesse feito, ou seja, se a Recurso tivesse arguido a nulidade e pedido a reforma no primeiro recurso que interpôs, poderia agora usar da faculdade do n.º 3 do mesmo artigo. Porque não o fez, do acórdão que decidiu aquelas questões não cabe recurso (cfr. n.º 6 do art. 617.º do CPC e n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo).
Assim, não pode ser admitido o recurso de revista apresentado em 22 de Junho de 2022, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido em 19 de Maio de 2022, atento o regime plasmado nos arts. 616.º e 617.º do CPC, nem o mesmo pode ser entendido como o uso da faculdade prevista no n.º 3 do art. 617.º do CPC, uma vez que a arguição de nulidade e o pedido de reforma não foram apresentados no âmbito do primeiro recurso apresentado.
Apenas consideraremos, pois, o recurso de revista apresentado em 2 de Setembro de 2021, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido em 9 de Junho de 2021, sendo apenas em relação a esse recurso que passaremos a apreciar, preliminar e sumariamente, da verificação dos requisitos para o seu conhecimento, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do CPC, aplicáveis ex vi do art. 281.º do CPPT, remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido.


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.2.1.1 Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do art. 285.º do CPPT, assim como do n.º 1 do art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), a excepcionalidade do recurso de revista. Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.2.1.2 Como a jurisprudência tem vindo a salientar, não basta ao recorrente invocar a existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, incumbindo-lhe também alegar e demonstrar a excepcionalidade susceptível de justificar a admissão do recurso, i.e., que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).

2.2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (Cfr., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).
2.2.1.4 Como decorre do n.º 4 do art. 285.º do CPPT e a jurisprudência tem vindo a salientar, as questões de facto, designadamente o erro na apreciação da prova e na fixação dos factos, estão arredadas do âmbito deste recurso, a menos que haja «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

2.2.1.5 Vistas as alegações de recurso, nelas detectámos que a Recorrente pretende submeter à apreciação deste Supremo Tribunal as questões por ela enunciadas nos seguintes termos:

«a) Configura a violação do disposto no artigo 63.º, n.º 4, da LGT, a realização pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) de duas acções de inspecção, por referência ao mesmo imposto e período de tributação, quando o segundo procedimento inspectivo foi desencadeado apenas para poderem ser apresentadas as conclusões da anterior inspecção (entretanto já caducada)?

b) Configura a violação do princípio da boa-fé a análise conjunta, por parte da AT, de 2 períodos de tributação distintos, de molde a ultrapassar o obstáculo criado pela existência de um prazo de caducidade de 3 anos, previsto no artigo 63.º, n.º 3, do CPPT (na redacção aplicável à data dos factos) e, dessa forma, justificar o prolongamento do procedimento de aplicação da cláusula geral anti-abuso?

c) Pode a AT exigir o pagamento de imposto sobre um rendimento inexistente ou potencial, que resultaria de uma venda a terceiros que nunca ocorreu, sem exercer o ónus da prova de que a venda teve lugar?

d) Ocorre inexistência de facto tributário numa situação em que o resultado da operação corrigida pela AT não se tenha materializado, ainda que as operações realizadas pelo contribuinte tenham sido qualificadas como “abusivas” ou “sem racional económico”, mesmo que esse enquadramento fosse aceitável?

e) Podem as etapas de reorganização, consubstanciadas na entrada de activos de 2008, ser corrigidas com base na norma anti-abuso específica na neutralidade em IRC, sem factos ou evidências que demonstrem que essa restruturação não teve subjacente racionais económicos?

f) A norma anti-abuso plasmada no artigo 73.º do Código do IRC (anterior artigo 67.º) pode ser aplicada no caso de não existir uma potencial vantagem fiscal? A inexistência dos factos invocados para desencadear a aplicação das cláusulas anti-abuso é susceptível de viciar os actos de liquidação adicional subsequentes?

g) E, no caso da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, o ónus da prova da verificação de todos os seus pressupostos, nomeadamente que houve abuso por parte do contribuinte, incumbe à AT? Pode esta cláusula ser aplicada com fundamento num facto gerador que nunca ocorreu?

h) Pode a AT proceder a correcções de IRC e tributar rendimentos como mais-valias na ausência de factos tributários que lhes dêem origem, nomeadamente à luz do princípio da tributação das empresas de acordo com o seu rendimento real, plasmado no artigo 104.º, n.º 2, da CRP? Neste contexto e para efeitos de tributação de mais-valias em sede de IRC, o real acréscimo patrimonial produzido deve ser aferido apenas quando as mais-valias efectivamente se realizam?

i) Cabe à AT, para efeitos da invocação da existência de abuso de direito e de aplicação das cláusulas anti-abuso, a prova de que, no caso concreto, se verificam cumulativamente os elementos objectivo e subjectivo, conforme considerou por exemplo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, nomeadamente no Caso Halifax?

j) Para efeitos da aplicação do Método do Preço Comparável de Mercado (“MPCM”), poderiam ter sido, como foram, validadas como comparáveis de mercado operações que poderiam hipoteticamente ter sido realizadas, mas que, na realidade, não o foram?»

Indaguemos, pois, da admissibilidade do recurso à luz dos requisitos de admissibilidade da revista que a Recorrente invocou.

2.2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.2.1 Estamos perante recurso do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, que, confirmando a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, julgou improcedente a impugnação deduzida contra as liquidações adicionais de IRC dos anos de 2008 e 2009, consequentes às correcções da matéria tributável declarada operadas i) pela aplicação pela AT da cláusula anti-abuso prevista, à data, no art. 67.º, n.º 10, do CIRC, de afastamento do regime de neutralidade fiscal aplicável às fusões, cisões, entradas de activos e permutas de partes sociais (cfr. os arts. 67.º e segs. do CIRC, na redacção vigente à data) por considerar que as operações em causa nos autos (de transmissão dos direitos de exploração dos centros de inspecção da ora Recorrente para a “I…”), que a ora Recorrente considerou abrangidas por aquele regime de neutralidade fiscal, tiveram como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a evasão fiscal e ii) pelo accionamento da cláusula geral anti-abuso (CGAA) prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT no que se refere aos juros dos empréstimos concedidos pela ora Recorrente à “T..., SGPS”.
Na verdade, em síntese e no que ora releva, entendeu a AT que estamos perante uma operação de permuta de activos entre duas empresas pertencentes ao mesmo grupo, no âmbito de um processo de reorganização empresarial, que não teve por base razões económicas válidas e, ao invés, visou, em exclusivo ou de forma predominante, a elisão fiscal; mais entendeu, quanto à remuneração dos acima referidos empréstimos, que foi violado o princípio da plena concorrência previsto, à data, no art. 58.º do CIRC.
A sociedade impugnou essas liquidações junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que proferiu sentença a julgar improcedente a impugnação judicial.
A Impugnante recorreu dessa sentença para o Tribunal Central Administrativo Norte, que manteve a sentença.
É do acórdão por que o Tribunal Central Administrativo Norte conheceu desse recurso que a Impugnante agora vem recorrer para este Supremo Tribunal, ao abrigo do disposto no art. 285.º do CPPT, nos termos das conclusões acima transcritas.

2.2.2.2 Antes do mais, cumpre recordar que o recurso de revista tem natureza excepcional e a sua admissibilidade exige que esteja bem delimitada a questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou a questão relativamente à qual se imponha a admissão do recurso em ordem a uma melhor aplicação do direito. No entanto, a Recorrente parece pretender que este Supremo Tribunal encete uma nova apreciação de todo o caso, alargando o âmbito do recurso até questões que (bem ou mal, ora não releva) nem sequer foram objecto de apreciação pelo Tribunal Central Administrativo Norte, designadamente as que se referem à alegada caducidade do procedimento inspectivo e eventuais artifícios da AT no sentido de a ultrapassar. Essas questões não podem agora ser apreciadas por este Supremo Tribunal. A natureza excepcional do recurso de revista não o exime às regras gerais dos recursos, nomeadamente às regras da competência em razão da hierarquia e à regra geral de que o objecto dos recursos jurisdicionais é a decisão recorrida ou impugnada, que o recurso visa modificar, e não criar soluções sobre matéria nova. Fica, assim afasta a admissibilidade da revista quanto às questões que a Recorrente enunciou sob as alíneas a) e b) supra enunciadas.
Depois, quanto às questões enunciadas sob as alíneas c) a j), desconsiderando as assunções que nelas são feitas relativamente ao caso sub judice e que carecem de demonstração, afigura-se-nos que a pretensão da Recorrente – não se podendo pôr em causa o juízo das instâncias quanto à intenção subjacente à operação em causa, juízo que, por ser de facto, escapa ao controlo judicial deste Supremo Tribunal –, é a de que este Supremo Tribunal Administrativo afira se para o afastamento do regime da neutralidade fiscal, ao abrigo do n.º 10 do art. 67.º do CIRC (na redacção aplicável), releva, ou não, a circunstância de a Impugnante (ou, em última análise, o grupo a que esta pertence) não ter procedido à alienação das acções e, por isso, não se ter concretizado (como era sua intenção) o benefício previsto, à data, no n.º 2 do art. 32.º do EBF, qual seja a exclusão da tributação das mais-valias geradas pela alienação dessas acções.
Quanto a esta questão, que se insere no âmbito dos pressupostos de aplicação da CGAA no que se refere à operação de permuta de activos entre duas empresas do mesmo grupo – realizada no âmbito de um alegado processo de reestruturação –, afigura-se-nos haver fundamento para que a revista seja admitida.
Estamos perante uma situação de elevada complexidade factual e que demanda a interpretação e conjugação de normas jurídicas internas e de direito da União Europeia, respeitantes à aplicação abusiva do regime de neutralidade fiscal, que pode determinar soluções jurídicas diversas, pois exige a realização de operações exegéticas de especial dificuldade, sob o ponto de vista intelectual e jurídico.
Afigura-se-nos, assim, que a referida questão sobre a relevância de não se ter concretizado a alienação a terceira sociedade das referidas acções para a aplicação da cláusula geral anti-abuso por parte da AT, tendo por referência o disposto no n.º 10 do art. 67.º do CIRC e a referida transmissão dos activos entre a ora Recorrente e a “I….”, impõe a intervenção deste tribunal, com vista a uma mais esclarecedora análise e apreciação dessa questão.
Relativamente a essa questão, encontram-se verificados os requisitos da admissibilidade da revista, quer por relevância jurídica fundamental, quer para melhor aplicação do direito: a relevância jurídica fundamental porque a questão tem a ver com o funcionamento da CGAA no âmbito do regime da neutralidade fiscal, regime jurídico que assume uma complexidade superior à média e suscita dificuldades hermenêuticas de que a doutrina e a jurisprudência têm dado conta; a admissão da revista para melhor aplicação do direito, uma vez que, apesar de a sentença ter procedido a um exaustivo tratamento das questões, o Tribunal Central Administrativo Norte se limitou, afinal, a uma mera confirmação da sentença.
Verificados que estão os pertinentes requisitos de admissibilidade, o recurso será admitido, devendo levar-se em conta que apenas para reapreciação da questão acima referida.

2.2.3 CONCLUSÃO

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - É de admitir a revista relativamente à questão de saber se, relativamente a uma complexa operação de reestruturação empresarial, estão, ou não, verificados os pressupostos da aplicação da cláusula geral anti-abuso por parte da AT, tendo por referência o disposto no n.º 10 do art. 67.º do CIRC (na redacção prévia à republicação de 2010), designadamente no que se refere à relevância do facto de a operação de transmissão das acções da ora Recorrente para uma terceira sociedade não se ter concretizado.

III - A referida questão jurídica, bem caracterizada, apresenta-se como relevante, suscita dificuldades de interpretação do regime jurídico e na aplicação do mesmo aos factos dados como provados, a justificar a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo em sede de revista.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em admitir o presente recurso quanto à questão acima referida e não o admitir no que se refere às demais questões enunciadas pela Recorrente.


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Custas a determinar a final.
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Lisboa, 25 de janeiro de 2023. - Francisco Rothes (relator) - Aragão Seia - Isabel Marques da Silva.