Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:06/21.6BALSB-A
Data do Acordão:11/04/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
PROCESSO DE INQUÉRITO
GARANTIAS DE DEFESA
Sumário:Do artigo 214.º do antigo-EMP (270.º do novo EMP) resulta expressamente que quando o Magistrado do MP é ouvido no processo de inquérito, o mesmo pode vir a constituir “a parte instrutória do processo disciplinar”.
Nº Convencional:JSTA00071287
Nº do Documento:SA12021110406/21
Data de Entrada:10/14/2021
Recorrente:A………………
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:SUSPEFIC
Objecto:AC PLENÁRIO CSMP
Decisão:IMPROCEDENTE
Área Temática 1:DIR ADM GER
Área Temática 2:DISCIPLINAR
Legislação Nacional:EMP98 ART 214.º
CPTA ART 120.º
Jurisprudência Nacional:AC STA 04/07/2019 PROC 2012/18.9BALSB
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. A………..., com os sinais dos autos, requereu a este Supremo Tribunal Administrativo, em sede cautelar, contra o Conselho Superior do Ministério Público, “a adopção da providência cautelar de suspensão da eficácia da Deliberação do Plenário do Requerido de 06.10.2020, com a colocação da Requerente, a título provisório, na situação em que esta se encontraria caso não tivessem sido emitidos os actos suspendendos” e ainda “o decretamento provisório da providência cautelar”.

2. Por Despacho da Relatora, de 3 de Setembro de 2021, foi rejeitado o pedido de decretamento provisório da providência por se considerar que inexistia perigo de facto consumado.


3. Notificado para deduzir oposição, o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), defendeu-se por excepção, alegando falta de interesse em agir e inimpugnabilidade de um dos actos suspendendos (o Despacho de 19 de Janeiro de 2021), e por impugnação, refutando a existência dos vícios assacados à decisão impugnada.

4. Notificada a Requerente Cautelar para se pronunciar sobre a excepção deduzida na oposição, veio a mesma pugnar pelo seu interesse em agir, bem como pela impugnabilidade do Despacho de 19 de Janeiro de 2021.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:

Podemos considerar para já como provados, e com interesse para a decisão da presente providência cautelar, os seguintes factos:

A) A Requerente é Magistrada do Ministério Público, desde 1976, com a categoria de Procuradora da República – por acordo entre as partes.

B) A Requerente tem 67 anos de idade e conta, na presente data, com mais de 42 anos ao serviço da referida Magistratura – por acordo entre as partes.

C) A Requerente encontra-se na jurisdição administrativa desde 2002, ora a exercer funções no Tribunal Administrativo de …………….. Anteriormente no Tribunal Administrativo e ……………. – por acordo entre as partes.

D) A Requerente exerceu funções de coordenação nos Tribunais Administrativos Administrativo e ….....…. e de …………….. (2004; 2013/2014) – por acordo entre as partes.

E) A Requerente tem classificação de mérito (Muito Bom) – por acordo entre as partes.

F) Em 06.11.2018, foi determinada pelo CSMP a instauração do processo de inquérito com vista à averiguação da conduta da ora Autora (processo de inquérito disciplinar n.º…………) – por acordo entre as partes.

G) O aludido inquérito tinha como objectivo “(…) a averiguação da conduta da Senhora Procuradora da República Lic.ª A……………… no Tribunal Administrativo de …………………., nomeadamente de todos os factos que se prendem com a sua intervenção processual, o relacionamento com os demais magistrados e com os oficiais de justiça que a estes prestam apoio e com os seus superiores hierárquicos (…).” (por acordo entre as partes; cfr. fls. 441 e ss. do processo instrutor).

H) Em 12.06.2019, a Requerente foi ouvida no âmbito do inquérito mencionado em F) – por acordo entre as partes.

I) Em 28.10.2019 foi proferido Relatório Final pelo Instrutor nomeado que propôs a instauração de processo disciplinar contra a Requerente – cfr. fls. 1255 e ss do p.i. junto aos autos.

J) Em 28.10.2019, o Vice-Procurador Geral da República proferiu no referido inquérito despacho de conversão deste em processo disciplinar, determinando que contra a Requerente corresse o processo disciplinar n.º ……………– cfr. fls. 1255 e ss. do p.i. junto aos autos.

K) Em 04.11.2019, o Instrutor do processo deduziu a respectiva acusação, imputando à Requerente violação dos deveres de correcção, de zelo, de lealdade e de prossecução do interesse público e propondo a aplicação de uma pena disciplinar de suspensão do exercício de funções – cfr. Doc. 2 junto com o r.i

L) A Requerente apresentou a sua defesa escrita em 09.12.2019.

M) Em 15.04.2020, a Instrutora do processo disciplinar elaborou o Relatório Final, tendo mantido, no essencial, os termos da acusação, designadamente a proposta de aplicação de uma pena única disciplinar de suspensão de exercício à Requerente, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, por se mostrarem reunidos os pressupostos do artigo 224.º, n.ºs 1 e 2, do EMP – cfr. Doc. n.º 4 junto ao r.i.

N) O Acórdão da Secção Disciplinar do mesmo Conselho, de 02.06.2020, que aderiu aos argumentos expendidos no Relatório Final aludido em M), acolheu parcialmente a proposta da nova inspectora, determinando a aplicação à aqui Requerente da pena disciplinar efectiva de 120 (cento e vinte) dias de suspensão – cfr. Doc. n.º 5 junto com o r.i.

O) A Requerente apresentou reclamação do Acórdão da Secção Disciplinar de 02.06.2020 - cfr. Doc. n.º 6 junto com o r.i.

P) No Acórdão do Plenário Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), de 06.10.2020 foi declarado nulo o acórdão da Secção Disciplinar do mesmo Conselho, de 02.06.2020, e determinada a remessa dos autos à fase de instrução do processo cautelar para suprir os vícios assinalados e ser completada a base instrutória – cfr. Doc. n.º 1 junto com o r.i.

Q) Em 02.12.2020 e 05.01.2021 foi efectuado novo interrogatório à Requerente – cfr. doc. 1 apresentado com a oposição + fls. 2082 a 2086 do processo disciplinar.

R) Estão em curso diligências instrutórias requeridas pela Requerente – cfr. doc. 1 apresentado com a oposição + fls. 2082 a 2086 do processo disciplinar.

S) Em 19.01.2021, o Vice-Procurador Geral da República proferiu despacho a converter o inquérito em processo disciplinar e a designar a Dr.ª B………… como Instrutora – cfr. doc. 2 junto com o r.i.

T) Em 21.07.2021, o Plenário do Conselho Superior do Ministério Público analisou a situação da Requerente e deliberou manter a suspensão da promoção da Requerente nos termos do disposto no 243.º do EMP, mantendo a respectiva vaga até à decisão final do processo disciplinar – certidão da acta n.º 39/2021 junto com o r.i.

U) Em 07.07.2021 a Secção Disciplinar do Conselho Superior do Ministério Público proferiu um acórdão no sentido de considerar que inexiste nulidade do procedimento disciplinar em curso – Doc. 15 junto com o p.i.

V) A presente providência cautelar deu entrada neste STA em 27.08.2021

W) No dia 30.08.2021 foi publicado no DR II.ª Série o extracto Deliberação n.º 902/2021 que aprova o Movimento ordinário de Magistrados do Ministério Público – 2021

X) A tomada de posse dos Magistrados do MP teve lugar no dia 03.09.2021.

Y) A Requerente não tomou posse na vaga para a qual ficou graduada.


2. De direito:

2.1. Enquadramento e enunciação das questões a decidir no âmbito da presente providência cautelar

O Requerimento Cautelar dá entrada neste Tribunal (em 27.08.2021), como a Requerente bem salienta no início desta peça processual, num momento em que já está pendente a acção principal (proposta em 14.01.2021), no âmbito da qual se impugna o acórdão do Plenário do CSMP de 06.10.2020.

O objecto daquela impugnação é a decisão de aproveitamento de parte do processo disciplinar n.º……………, que está subjacente ao acórdão da Secção Disciplinar do CSMP, de 02.06.2020, em especial, o acto de conversão da instrução do inquérito em instrução da acusação por despacho do Vice-Procurador Geral da República, de 28.10.2019, ao qual a ali Impugnante e aqui Requerente assaca diversas nulidades processuais que considera não se poderem ter por supridas com o decidido no acórdão do Plenário do CSMP, de 06.10.2020, ou seja, com o “regresso do processo disciplinar à fase de instrução, com a realização das diligências probatórias por si requeridas e com a sua audição nesse processo na qualidade de arguida”.

Com efeito, segundo a sua tese, a circunstância de neste acórdão do CSMP se “determinar a remessa dos autos à instrução para suprir os vícios assinalados, completando a base instrutória e retomando os termos processuais” não é suficiente para suprir a nulidade processual que ela havia invocado na reclamação que apresentara do acórdão da Secção Disciplinar do CSMP, de 02.06.2020, na medida em que, na sua opinião, todos os actos de instrução teriam de ser praticados após a sua constituição como “arguida”.

Para a tese que a ali Impugnante e aqui Requerente apresenta, consubstancia nulidade processual o aproveitamento dos actos instrução, incluindo a sua audição no âmbito do processo de inquérito, enquanto actos e declarações tomadas no processo disciplinar. E alega ainda que essa nulidade não pode considerar-se suprida, como parece resultar do acórdão do CSMP de 06.10.2020, pelo facto de se anular parte do processo disciplinar e fazer recuar o mesmo à respectiva fase de instrução, na qual são realizadas as diligências de prova por ela requeridas e que haviam sido dadas como prejudicadas, bem como com a realização de uma nova audição da Impugnante/Requerente no âmbito desta fase do processual.

Para a ali Impugnante e aqui Requerente é essencial e juridicamente imperativo que a decisão seja a de nulidade total da instrução do processo disciplinar e a determinação da prática de um novo acto de acusação a partir do qual se iniciará nova fase de instrução, já com a sua “devida constituição como arguida”. É por essa razão, de resto, que no processo principal veio requerer a ampliação do objecto da acção para incluir também o acto de conversão do inquérito em processo disciplinar, praticado pelo Senhor Vice-Procurador-Geral da República em 19.01.2021.

Estes são, no fundo e grosso modo, o objecto, pedido e causa de pedir da acção principal, que está pendente neste Tribunal e que aqui tramita sob o n.º de processo 6/21.6BALSB.

Na pendência daquele processo judicial em que se discute, basicamente, se o aproveitamento do processo de inquérito é ou não ilegal nos termos em que o mesmo vem a ser mantido no âmbito da execução pelo CSMP do acórdão do Plenário de 06.10.2020, sobrevem a questão da tomada de posse pela Requerente na vaga do TCA Sul em que foi colocada pelo Movimento Ordinário de Magistrados do Ministério Público de Julho de 2021. A publicação do Movimento ordinário de magistrados do Ministério Público – 2021 teve lugar em 30.08.2021 e a tomada de posse teve lugar no dia 03.09.2021.

A Requerente, por força do disposto no n.º 1 do artigo 243.º do EMP aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, não pôde tomar posse na vaga para a qual ficara graduada, tendo essa vaga ficado reservada, à espera da decisão final do processo disciplinar. Até porque, na reunião de 21.07.2021, o Plenário do Conselho Superior do Ministério Público analisou a situação da Requerente e deliberou manter a suspensão da sua promoção, ou seja, optou por não levantar a referida suspensão ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 243.º do EMP.

Assim, o que a Requerente pretende com este processo cautelar é que o Tribunal determine a suspensão do acórdão do Plenário de 06.10.2020, na parte em que, no fundo, “salvaguardou o acto que manteve a sua constituição como arguida no processo disciplinar”. Por efeito dessa suspensão, na tese que aqui professa, operar-se-ia a “remoção do obstáculo jurídico decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 243.º do EMP”, e a Requerente poderia então, na pendência da acção principal, ocupar a vaga de Procuradora-Geral Adjunta junto do TCA Sul, para a qual ficara graduada.

Importa, portanto, verificar se estão, in casu, verificados os pressupostos do artigo 120.º do CPTA para determinar a suspensão do referido acto impugnado.

Previamente, porém, há que conhecer das excepções suscitadas pelo Requerido CSMP na sua oposição. A saber: i) da falta de interesse em agir e ii) inimpugnabilidade do Despacho de 19.01.2021

2.2. Do conhecimento das excepções alegadas pela Entidade Requerida

2.2.1. O CSMP começa por alegar a falta de interesse em agir da Requerente, uma vez que o acto impugnado – o acórdão do CSMP de 06.10.2020 – lhe foi favorável, ou seja, acolheu a sua pretensão quanto à violação dos seus direitos de defesa no âmbito do processo disciplinar e, consequentemente, determinou a nulidade de parte daquele processo e impôs o retrocesso do mesmo à fase de instrução, impondo a repetição de diversas diligências, incluindo a da audição da Requerente. Assim, no entender do CSMP, inexistem, no caso, interesses ou direitos dignos de tutela jurídica que a Requerente pretenda ver satisfeitos no âmbito deste processo.

Mas sem razão.

Com efeito, como vimos anteriormente, a Requerente alega que a decisão do acórdão do Plenário do CSMP de 06.10.2020 é ilegal por: i) não ter conhecido integralmente do peticionado na reclamação e ter invertido a ordem lógica do conhecimento das ilegalidades imputadas ao acórdão da Secção Disciplinar do CSMP, de 02.06.2020; ii) por violar os princípios e as regras das garantias do arguido em processo disciplinar ao não declarar a nulidade total do processo disciplinar e não fazer recuar o mesmo à fase de inquérito, impondo ainda a prática de um novo acto de constituição da Requerente como “arguida” em processo disciplinar; e iii) por não ter conhecido da alegada ilegalidade por incompetência do autor do acto que determinou a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar.

A Requerente alega que o acórdão do Plenário do CSMP de 06.10.2020 não só é ilegal, como ainda que é lesivo dos seus direitos e interesses, pois ao não ter declarado a nulidade total do acórdão da Secção Disciplinar do CSMP de 02.06.2020 e, com isso, ter permitido a subsistência (ilegal segundo a sua tese) dos efeitos do acto que a constituiu como arguida, determina que, ex vi do disposto no n.º 1 do artigo 243.º do EMP, a mesma esteja impossibilitada de tomar posse como Procuradora-Geral Adjunta junto do TCA Sul.

A Requerente apresenta fundamentos para a ilegalidade da decisão na parte em que mostra que a mesma não lhe foi favorável e que está a produzir efeitos lesivos actuais.

Por estas razões, cuja procedência ou improcedência apenas pode ser analisada e decidida a respeito da análise do fundo da causa, improcede a alegada excepção de falta de interesse em agir da Requerente.

2.2.2. O CSMP alega em segundo lugar que o acto de conversão de inquérito em processo disciplinar, praticado em 19.01.2021, não tem conteúdo inovador, que é um acto meramente confirmativo e, como tal, inimpugnável ex vi do disposto no n.º 1 do artigo 53.º do CPTA.

Não é inteiramente perceptível a configuração que a Entidade Requerida pretende dar a esta excepção, sobretudo se a pretende configurar como autónoma em relação ao interesse em agir. Aliás, a própria Entidade Requerida parece acabar por concluir que este é apenas um argumento para a procedência daquela excepção de falta de interesse em agir que analisámos anteriormente (v. ponto 24 da oposição).

Seja como for, também não assiste razão à Entidade Requerida na arguição desta excepção ou deste fundamento da excepção de falta de interesse em agir, pois, como vimos, o pedido da Requerente fundamenta-se na aparente ilegalidade e lesividade do acórdão do Plenário do CSMP de 06.10.2020, cuja procedência ou improcedência há que averiguar no âmbito do conhecimento do mérito dos pedidos. E é também nesse âmbito que há-de relevar ou não a alegada natureza de acto confirmativo do despacho de 19.01.2021. Algo que a Entidade Requerida acaba até por reconhecer no ponto 23 da sua oposição.

Não se identificam, por isso, quaisquer fundamentos para a existência e procedência da alegada excepção inominada de inimpugnabilidade do despacho de 19.01.2021.

Inexistindo razões jurídicas que obstem à apreciação do mérito do pedido cautelar, cumpre, pois, passar à análise e verificação in casu dos pressupostos do artigo 120.º do CPTA.

2.3. Do fumus boni iuris

A Requerente firma neste processo a probabilidade de a sua pretensão vir a ser deferida no âmbito da acção principal nos seguintes argumentos: i) ilegalidade aparente do acórdão do Plenário do CSMP de 06.10.2020 por ter omitido o conhecimento da nulidade processual decorrente da impossibilidade de convolação do processo de inquérito em processo disciplinar; ii) ilegalidade aparente do acórdão do Plenário do CSMP de 06.10.2020 por ter determinado a retroacção dos efeitos anulatórios do acórdão da Secção Disciplinar à fase de instrução do processo disciplinar e não à fase de inquérito, prévia à constituição da Requerente como arguida; iii) ilegalidade, por incompetência, do(s) acto(s) que determinou(aram) a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar.

No essencial, a questão suscitada pela Requerente reconduz-se a saber se foi ou não correctamente interpretado e aplicado, in casu, o disposto no regime jurídico da conversão do processo de inquérito em processo disciplinar (artigo 214.º do antigo-EMP aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, na redacção dada pela Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto; e actual artigo 270.º do EMP).

Vejamos a formulação legal do antigo EMP (que, de resto, é idêntica à do actual artigo 270.º do EMP):

Artigo 214.º
Conversão em procedimento disciplinar

1 - Se apurar a existência de infracção, o Conselho Superior do Ministério Público pode deliberar que o processo de inquérito ou de sindicância, em que o magistrado do Ministério Público tenha sido ouvido, constitua a parte instrutória do processo disciplinar.

2 - No caso previsto no número anterior, a notificação ao magistrado da deliberação do Conselho Superior do Ministério Público fixa o início do procedimento disciplinar.

Os fundamentos em que a Requerente sustenta a ilegalidade da conversão do processo de inquérito em processo disciplinar são: i) a impossibilidade legal dessa conversão atenta a diferente natureza entre o processo de inquérito e o processo disciplinar (pontos 83 a 104 do r.i.); ii) incompetência do Instrutor do processo para promover aquela conversão (pontos 104 a 109 do r.i.); e iii) a violação dos direitos de audiência da Requerente no âmbito do processo, consubstanciando essa violação uma nulidade insuprível (pontos 110 a 168 do r.i.).

O juízo que se pode fazer em sede de tutela cautelar materializa-se numa análise perfunctória da verificação ou não das ilegalidades apontadas ao acto suspendendo (neste caso o acórdão do Plenário do CSMP de 06.10.2020).

É com base nesta análise que podemos concluir que inexiste neste caso fumus boni iuris pelas seguintes razões:

Primeiro, porque existia à data em que o acto foi praticado, base legal para a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar. Tal base legal era o artigo 214.º do antigo-EMP (aplicável porque o processo de inquérito se iniciou antes da entrada em vigor do novo EMP), que, de resto, teve continuidade jurídica, com a mesma formulação textual, no artigo 270.º do novo EMP. Quer isto dizer que, contrariamente ao que defende a Requerente, não só não vale a tese da impossibilidade jurídica da conversão, como essa conversão tinha uma base legal vigente e válida.

Segundo, porque a alegada incompetência do autor do acto de conversão não se pode ter por verificada segundo a argumentação da Requerente. O acto de conversão, materializado pelo despacho de 28.10.2019, do Vice-Procurador Geral da República (ponto L da matéria de facto assente), foi praticado pelo Vice-Procurador Geral da República e não pelo instrutor (como alega a Requerente no ponto 105 do r.i.) e foi proferido (segundo resulta do texto do referido despacho, junto como doc. 2 do r.i.) em substituição da Senhora Procuradora-Geral da República. Lembre-se que, pese embora a competência para prática deste acto ser do CSMP (artigo 214.º, n.º 1 do antigo EMP), nada no texto da norma impede que se apliquem aqui as regras da delegação de poderes e da substituição, pelo que não é evidente que o acto tenha sido praticado em violação das regras da competência para a sua emissão. Esta falta de evidência de que o acto foi praticado por órgão/entidade incompetente seria suficiente para que, no juízo perfunctório, afastássemos este argumento como tese do fumus boni iuris da pretensão da Requerente. Mas neste caso a aparente inexistência de fumus boni iuris é ainda reforçada: i) primeiro, pelo teor da Deliberação n.º 1164/2018 de Delegação de poderes do CSMP na PGR, publicada no D.R. II.ª Série de 22.10.2018, na qual expressamente se prevê, no ponto k), a conversão em processo disciplinar dos processos de inquérito ou de sindicância e onde igualmente se prevê, no n.º 2, a possibilidade de subdelegação daqueles poderes; e ii) em segundo lugar, pelas conclusões que se firmaram no acórdão do Pleno deste Supremo Tribunal Administrativo de 04.07.2019 (proc. 02012/18.9BALSB) quanto à conformidade jurídica dos actos praticados pelo Vice-Procurador-Geral em substituição do PGR e que são replicáveis neste caso.

Terceiro, porque do próprio texto do artigo 214.º do antigo-EMP (reiterado, lembre-se, pelo actual 270.º do novo EMP) resulta expressamente que quando o Magistrado do MP é ouvido no processo de inquérito, é possível que o mesmo venha a constituir “a parte instrutória do processo disciplinar”. Daqui resulta que a conversão à qual seja atribuído este efeito não viola, em si, os direitos do arguido em processo disciplinar, cabendo depois analisar de forma mais desenvolvida, o que apenas se compadece com um juízo em sede de acção principal, se, em concreto, esses direitos ou essa posição jurídica subjectiva, especialmente tutelada no plano das garantias constitucionais que são comuns aos processos de estrutura acusatória, foram ou não violados. Mas, mesmo que essa violação tenha sucedido, como parece ter sido reconhecido pelo acórdão do Plenário do CSMP de 06.10.2020, não resulta evidente que a respectiva sanação imponha a declaração de nulidade do processo administrativo com a amplitude que alega a Requerente, designadamente, com um necessário “regresso à fase do inquérito prévia à constituição como arguida e prévia ao início da instrução do processo disciplinar”. Pelo contrário, numa análise perfunctória e indiciária, como a que cabe fazer nesta sede, somos conduzidos a concluir o contrário, ou seja, que o processo pode retroagir à fase de instrução do processo disciplinar para aí serem supridas as insuficiências e asseguradas as garantias de defesa que haviam sido desatendidas.

Cabe assim concluir que a Requerente não logrou demonstrar a existência de fumus boni iuris.

Dai decorre também que, sendo os requisitos do artigo 120.º do CPTA de natureza cumulativa e estando já demonstrado que não se preenche um deles, fica prejudicado o conhecimento dos restantes, ou seja, do periculum in mora e da ponderação de interesses.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em julgar totalmente improcedente a pretensão cautelar, recusando a providência requerida.

Custas pela Requerente.

Lisboa, 4 de Novembro de 2021. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Carlos Luís Medeiros de Carvalho - Ana Paula Soares Leite Martins Portela.