Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03042/15.8BESNT 0229/18
Data do Acordão:12/04/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:ACÇÃO PARA RECONHECIMENTO DE DIREITO
INTERESSE LEGALMENTE PROTEGIDO
ILEGALIDADE
ACTO DE LIQUIDAÇÃO
ANULAÇÃO
FIXAÇÃO DO VALOR PATRIMONIAL
VALOR PATRIMONIAL TRIBUTÁRIO
Sumário:I - A acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária é o meio processual adequado para obter tutela judicial perante o não cumprimento pela Administração Tributária do dever de anular os actos de liquidação que se revelem consequentemente ilegais por ter sido anulado judicialmente o acto de fixação do VPT.
II - Perante a não anulação do acto de liquidação e a não substituição do mesmo por outro acto de liquidação em conformidade com o novo VPT fixado em repetição da segunda avaliação (execução do julgado), e tendo já decorrido o prazo para a impugnação judicial do primeiro acto de liquidação, é só através deste meio processual que o sujeito passivo que já tenha pago a liquidação do imposto pode obter a tutela judicial devida, designadamente, o reconhecimento do direito à devolução dos montantes pagos em cumprimento da obrigação fundada num acto tributário cuja base tributária é anulada.
III - A admissão deste meio processual para apreciação da questão de fundo não contende com o mérito da acção e a decisão que, nessa sede, venha a ser proferida.
Nº Convencional:JSTA000P25274
Nº do Documento:SA22019120403042/15
Data de Entrada:03/07/2018
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1- A…………, S.A., interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em 21 de Novembro de 2017, que julgou procedente a excepção de impropriedade do meio processual utilizado, no âmbito da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária “à caducidade do direito à liquidação de IMI dos anos de 2006 e 2007”, intentada contra a Autoridade Tributária e Aduaneira, Serviço de Finanças da Amadora - 2, apresentando, para tanto, alegações que conclui do seguinte modo:
1) O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença proferida pelo tribunal de primeira instância que julgou procedente a excepção de impropriedade do meio processual utilizado — a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse em matéria tributária regulada no artigo 145.º do CPPT — a qual foi invocada pela Ré, AT na sua contestação, e, em consequência, a absolveu da instância.
2) Uma vez que o objecto do presente recurso se cinge à apreciação da procedência da referida excepção dilatória, e como tem sido reiterado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, para o efeito deverá atender-se ao pedido formulado pela Autora, aqui Recorrente, na petição inicial, o que não foi feito pelo Tribunal a quo.
3) Como alegado na petição inicial, a Recorrente instaurou a presente acção para o reconhecimento de um direito ou interesse em matéria tributária peticionando que seja reconhecida a caducidade do direito à liquidação do IMI relativo aos anos de 2006 e 2007 e, consequentemente, reconhecido o seu direito ao reembolso do imposto pago indevidamente, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios, como consequência da extinção dos efeitos das liquidações de IMI dos anos de 2006 e 2007 as quais se basearam em VPT's considerados ilegais e anulados por acórdão transitado em julgado.
4) Com efeito, a Recorrente, notificada das liquidações de IMI dos anos de 2006 e 2007, efectuou o respectivo pagamento. No entanto, aquelas liquidações de IMI assentaram em VPT's de prédios cujo acto de segunda avaliação, sindicado judicialmente no competente processo de impugnação judicial, foi anulado integralmente, por acórdão transitado em julgado.
5) Uma vez transitado em julgado o acórdão que considerou ilegais os VPT's calculados pela AT na segunda avaliação, foi realizada uma nova avaliação da qual resultaram novos VPT's para efeitos de IMI. Porém, não obstante (i) o acórdão que anulou a segunda avaliação e (ii) a própria realização de nova segunda avaliação em cumprimento daquele acórdão, a verdade é que a AT não anulou as liquidações de IMI dos anos de 2006 e 2007 baseadas nos VPT's resultantes da segunda avaliação anulada judicialmente, nem emitiu, dentro do prazo de caducidade do imposto, as novas liquidações de IMI, desta feita, suportadas nos resultados da nova segunda avaliação.
6) O Tribunal a quo, para julgar verificada a excepção da impropriedade do meio processual, assentou o seu juízo em dois fundamentos, que cumpre refutar:
7) Primeiro: a pretensão da aqui Recorrente não poderá ser acolhida uma vez que o efeito jurídico que pretende obter nesta acção é o mesmo que constituiu o objecto da reclamação graciosa apresentada, sendo a presente acção inidónea para sindicar os actos de liquidação de IMI dos anos de 2006 e 2007 já praticados, sob pena de desrespeito por prazos peremptórios e de caducidade e pelos princípios da certeza e segurança jurídicas.
8) Segundo: para o Tribunal a quo não existe in casu uma situação de incerteza ou de ameaça de prática de novo acto administrativo que deva fundamentar a acção, inerente ao pressuposto processual do interesse em agir, porquanto a AT, na decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada considerou que o imposto estava correctamente liquidado e era devido, e na contestação que apresentou afirmou que as liquidações se mantêm-se vigentes porque o Serviço de Finanças entende que são legais, não as devendo, por isso, anular. Acrescenta que, mesmo que a AT viesse a emitir novas liquidações, sempre poderia a Recorrente reagir às mesmas através da impugnação judicial e aí obter a tutela jurisdicional efectiva do seu direito.
9) Compulsando-se, em primeiro lugar, o que a doutrina e a jurisprudência têm dito quanto à admissibilidade da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse em matéria tributária e ao seu carácter complementar face aos demais meios processuais, conclui-se que inexiste qualquer outro meio processual adequado a tutelar jurisdicionalmente o direito invocado pela Recorrente.
10) Ora, por um lado, o acórdão que anulou os actos de avaliação dos imóveis e reputou ilegais os VPT's então arbitrados foi integralmente cumprido pela AT aquando da realização da nova segunda avaliação em Março de 2014. Pelo que, não impendia sobre a Recorrente qualquer obrigação de instaurar uma acção de execução de julgados, ao abrigo do n.º 1 artigo 146.º do CPPT, para obter o efeito jurídico imediato daquele acórdão, a saber, a realização da nova segunda avaliação.
11) Por outro, também não seria através da instauração de uma acção de execução de julgados do acórdão que anulou a segunda avaliação que a Recorrente poderia obter a tutela jurisdicional efectiva do direito que aqui invoca. Na verdade, a pretensão da Recorrente é uma decorrência dos efeitos daquele acórdão quando anula a segunda avaliação e se realiza, em consequência, uma nova segunda avaliação. Mas a sua pretensão não é um efeito imediato daquele acórdão susceptível de fundar uma acção de execução de julgados pois a execução daquele acórdão esgotou-se na realização da nova segunda avaliação.
12) Acresce que, não existindo uma fase declarativa no procedimento de intimação para um comportamento, previsto no artigo 146.º do CPPT, também este não se afigura como o meio processual adequado a fazer valer em juízo o direito que a Recorrente invoca.
13) Por fim, indagando-se se seria a impugnação judicial o meio processual adequado a tutelar o direito que a Recorrente invoca, como não existe qualquer acto de liquidação que coubesse à Recorrente impugnar, conclui-se que não o seria. Na verdade, a AT, tal como confessa na sua contestação, não emitiu novas liquidações de IMI, em resultado da nova segunda avaliação dos prédios realizada em Março de 2014, pelo que não existe qualquer nova liquidação que a Recorrente pudesse impugnar e nessa sede invocar a caducidade do direito à liquidação do imposto.
14) Com efeito, se a AT tivesse emitido novas liquidações de IMI dos anos de 2006 e de 2007, após a realização da nova segunda avaliação em Março de 2014, anulando previa ou concomitantemente as liquidações de DE já emitidas e pagas pela Recorrente, não existiria qualquer direito em matéria tributária violado. Neste cenário, caso a Recorrente entendesse que a AT não podia ter emitido as novas liquidações de IMI, poderia efectivamente reagir às mesmas através da impugnação judicial invocando a respectiva caducidade da liquidação.
15) Mais se diga que o pedido efectivamente formulado pela Recorrente não teria sequer cabimento no âmbito de uma impugnação judicial de actos de liquidação, porquanto a Recorrente pretende ver reconhecido que a AT não pode emitir novas liquidações de IMI por referência àqueles anos por força da caducidade do respectivo direito à liquidação. Isto é: o pedido formulado, em primeira linha, nem sequer se reporta a qualquer acto de liquidação existente e que pudesse ser objecto de impugnação judicial autónoma.
16) Mais: mesmo que dúvidas houvessem sobre a pertinência do meio processual em apreço, perante o princípio da verdade material tributária e o princípio pro actione devia o órgão recorrido ter sancionado a sua utilização e julgado o mérito da questão, não se refugiando numa tese formalista e cómoda que, salvo o devido respeito, esconde um verdadeiro non liquet.
17) Rebatendo-se, agora, os argumentos tecidos pelo Tribunal a quo, e relativamente ao primeiro, diga-se que o efeito jurídico que a Recorrente pretende obter nesta acção não é — contrariamente ao que afirma o Tribunal a quo — o mesmo que constituiu o objecto da daquela reclamação graciosa apresentada: como referido, a AT transmitiu sempre à Recorrente a informação de que, na sequência da realização da nova segunda avaliação, anularia as liquidações anteriores e emitiria novas liquidações de IMI, com base nos novos VPT's arbitrados, pelo que carecia de fundamento aquela reclamação graciosa.
18) Este entendimento nem carecia de ser exteriorizado pela AT, porquanto ele próprio decorre do princípio da reconstituição do statu quo ante ínsito no artigo 100.º da LGT.
19) Ademais, o que a Recorrente pretende ver tutelado jurisdicionalmente é o direito a que lhe seja reconhecida a caducidade do direito de a AT liquidar o IMI dos anos de 2006 e de 2007, porquanto não foram emitidas novas liquidações no prazo de caducidade; não o tendo feito, não pode o contribuinte ver-se amarrado ad aeternum a liquidações já emitidas e pagas indevidamente porque fundadas em VPT's reputados de ilegais e judicialmente anulados.
20) Repare-se que, à data da apresentação da reclamação graciosa (em 2010), obviamente ainda não havia sido realizada a nova segunda avaliação, nem tampouco estava ultrapassado o prazo de caducidade de liquidação do IMI dos anos de 2006 e de 2007 para que pudesse ser peticionado tal direito nessa reclamação.
21) Quanto ao segundo fundamento, o Tribunal a quo serve-se, com o devido respeito, de uma asserção falaciosa, a saber, a de que não se vislumbra uma qualquer situação de incerteza ou de ameaça de prática de novo acto administrativo, porque a AT afirmou que o imposto estava correctamente liquidado e era devido.
22) Sucede que saber se o IMI dos anos de 2006 e de 2007 foi correctamente liquidado e, por conseguinte, se essa liquidação se deve manter na ordem jurídica e, não sendo esse o caso, quais as consequências de ter expirado o prazo para a AT o fazer, é matéria que respeita à viabilidade ou procedência do pedido e não à aferição da propriedade do meio processual mobilizado.
23) Com efeito, o Tribunal a quo convocou matéria que, in limine, apenas conduziria à improcedência do pedido — o que admitimos somente para benefício de discussão académica — se efectivamente se comprovasse que aquelas liquidações de IMI se devem manter à luz do Direito. E nem isso logrou fazer.
24) Finalmente, o Tribunal a quo entende que se a AT viesse a emitir novas liquidações, sempre poderia a Recorrente reagir às mesmas através da impugnação judicial, sendo aí assegurada a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos.
25) Salvo o devido respeito, esta inferência põe a nu aquele que é o pecado capital da sentença recorrida, qual seja o de que o órgão recorrido simplesmente não alcança nem o objecto da acção instaurada pela aqui Recorrente nem, nos seus detalhes essenciais, a tela factual de onde emerge. É o comportamento omissivo da AT — a falta de reconstituição da legalidade porque não lhe convém — que não foi captado pelo Tribunal a quo e que funda o pedido formulado pela ora Recorrente na sua p.i..
26) Sem prescindir, a negação do direito de a Recorrente se socorrer da acção para o reconhecimento de um direito em matéria tributária in casu viola frontalmente o n.º 1 do artigo 20.º e o n.º 4 do artigo 268.º, ambos da CRP, os quais garantem constitucionalmente aos contribuintes que lhes sejam proporcionados os meios processuais para, em todas as situações, terem acesso aos tribunais.
27) Como se demonstrou, o direito da Recorrente não podia ser objecto de uma tutela jurisdicional efectiva (ou seja, plena, eficaz e efectiva) através de outro meio processual que não através da instauração da presente acção para reconhecimento de um direito em matéria tributária, pelo que a negação do direito de se reconhecer por esta via o direito da Recorrente viola frontalmente as referidas normas constitucionais, devendo a sentença recorrida ser revista e anulada.
28) De tudo o exposto, resulta que a acção para o reconhecimento de um direito em matéria tributária instaurada pela aqui Recorrente é o meio processual adequado para assegurar a tutela jurisdicional efectiva do direito em matéria tributária invocado pela Recorrente.
29) A sentença proferida é, concluindo, ilegal por errada apreciação e interpretação das normas legais aplicáveis, sendo forçosa a alteração do sentido da mesma, devendo ser revista e anulada, concluindo-se por não verificada a excepção dilatória de impropriedade do meio processual, com todas as consequências legais.
Nestes termos nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, anulando-se a sentença proferida pelo tribunal a quo, com todas as consequências legais, assim se julgando como não verificada a excepção de impropriedade do meio processual, e ordenando-se em seguida a baixa do processo ao tribunal a quo a fim de ser apreciado o mérito do pedido formulado, só assim se fará inteira justiça, pede e espera de V. Ex.ªs deferimento.»


2- A Fazenda Pública contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
A. A Recorrente, solicitou enquanto Autora no Processo n.º 3042/15.8 BESNT que correu termos no TAF de Sintra – U.O – 2, no âmbito de uma ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, nos termos do artigo 145.º do CPPT, que lhe fosse reconhecida a caducidade do direito à liquidação do IMI relativo aos anos de 2006 e 2007.
B. Bem como, reconhecido o direito ao reembolso do imposto pago indevidamente, como consequência da extinção dos efeitos da liquidação de 2006 e 2007 baseada em VPT's considerados ilegais por acórdão transitado em julgado.
C. E, ainda, reconhecido o direito ao pagamento juros indemnizatórios contados desde o pagamento das liquidações ilegais até ao integral reembolso do imposto indevidamente liquidado.
D. Tendo em conta que dispõe o n.º 3 do artigo 145.º do CPPT que as ações (para reconhecimento de direito ou interesse legítimo em matéria tributária) apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efetiva do direito ou interesse legalmente protegido, e
E. por falta de prova de terem sido impugnadas as liquidações em causa, temos de admitir que a ação para reconhecimento de direito ou interesse legitimo em matéria tributária aqui em apreço, não é o meio processual adequado, porque não se mostra como meio complementar por forma a assegurar uma tutela plena, eficaz e efetiva do direito, que é, conforme vem peticionado o reconhecimento da caducidade do direito à liquidação do IMI dos anos de 2006 e 2007.
F. Assim, como defendido na Contestação e aceite pelo Tribunal a quo, o meio processual utilizado pela então Autora, aqui Recorrente, não é o meio próprio para defender o direito em causa na ação.
G. A tutela jurisdicional efetiva é, no caso vertente, plenamente assegurada através da impugnação judicial.
H. A Douta sentença recorrida, ao julgar procedente a exceção de impropriedade do meio utilizada pela Autora/Recorrente e invocada pela Ré na sua contestação e, em consequência, absolvendo-a da instância, fez uma correta interpretação e aplicação da lei aos factos, motivo pelo qual deve ser mantida.
I. Nestes termos, deverá ser rejeitado o presente recurso, em tudo se confirmando a Douta sentença recorrida.
Nestes termos, e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado improcedente em toda a sua extensão, mantendo-se na ordem jurídica a Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra

3- O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso com fundamento em erro de julgamento, uma vez que a pretensão da Autora assenta na ilegalidade derivada dos actos de liquidação (decorrente da anulação dos VPT dos prédios), cuja anulação não foi promovida pela AT, e na invocada caducidade do direito de liquidação, tendo como objectivo a restituição do montante pago a título de imposto.

4- Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

II – Fundamentação

1. De facto
A sentença recorrida não apresenta um segmento individualizado com a indicação da factualidade assente, mas da sua leitura é possível inferir com meridiana clareza que a decisão repousa no apuramento da factualidade mencionada no trecho que aqui reproduzimos:
“(…) Invoca, para o efeito e em síntese, que foi notificada das seguintes liquidações adicionais de IMI (cf. artigo 12.º da p. i. e documentos 5 a 7 para os quais remete, juntos com a p. i. a fls. 28 e 29, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):
I – Liquidação de IMI n.º 2008 434493203, referente aos Artigos U-03545 e U-03546 da freguesia da ………, Município da Amadora, ano 2006, onde se evidencia um montante global de € 152.493,95 a pagar e cujo prazo limite de pagamento ocorreu em Dezembro de 2009; Liquidação de IMI n.º 2008 434493203, referente aos Artigos U-03545 e U-03546 da freguesia da ………, Município da Amadora, ano 2006, onde se evidencia um montante global de € 72.409,40 a pagar e cujo prazo limite de pagamento ocorreu em Junho de 2010 (vide documento n.º 5 que se junta e cujo conteúdo se dá por reproduzido)
II - Liquidação de IMI n.º 2008 434493303, referente aos Artigos U-03545 e U-03546 da freguesia da ………, Município da Amadora, ano 2007, onde se evidencia um montante global de € 152.493,95 a pagar e cujo prazo limite de pagamento ocorreu em Dezembro de 2009; e Liquidação de IMI n.º 2008 434493303, referente aos Artigos U-03545 e U-03546 da freguesia da ………, Município da Amadora, ano 2007, onde se evidencia um montante global de € 70.793,64 a pagar e cujo prazo limite de pagamento ocorreu em Dezembro de 2009 (vide documento n.º 6 que se junta e cujo conteúdo se dá por reproduzido)
E que, “tendo sido julgados ilegais por acórdão transitado em julgado, os VPT fixados no primeiro acto de segunda avaliação”, “todos os actos promovidos pela AT em função daquelas ditas avaliações ilegais padecem, por essa via, do mesmo vício de violação de lei”, em especial as mencionadas “liquidações de IMI que deviam ter sido anuladas ex officio pela AT e substituídas, se ainda em tempo, por novas liquidações de IMI” (cf. artigos 25.º e 26.º da p. i. e documento 10, junto com a p. i. a fls. 63 verso e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
Invoca, a final, que, “deve a caducidade do direito à liquidação do IMI para os anos de 2006 e 2007 ser reconhecida, anulando-se as liquidações ilegais daqueles anos e procedendo-se ao reembolso do imposto pago indevidamente, ao abrigo do dever que impende sobre a AT e que vem consagrado no artigo 100° da LGT” (cf. artigo 58.º da p. i.).
Junta onze documentos.
Em contestação apresentada a fls. 99 e segs., veio a R. excepcionar “a ilegitimidade passiva – a errónea identificação contra quem deve ser dirigido o pedido” e o “meio processual impróprio”, pugnando, a final, que “deverão ser julgadas procedentes as excepções invocadas e, assim: Ser declarado nulo todo o processado por verificação da ilegitimidade passiva; Mas, caso assim não se entenda: Não deve ser admitida a presente acção, porque a autora não demonstrou que é o meio próprio e adequado para satisfazer os pedidos que formula”.
Foi junto, a fls. 110 e segs., o processo administrativo instrutor.
Em resposta apresentada a fls. 122 e segs., veio a A. pugnar pela improcedência das excepções suscitadas na contestação pela R., considerando, em síntese, que, “se a liquidação de IMI referente ao ano de 2004 tem lugar em Novembro de 2008 e o VPT sobre o qual ela incidiu vem a ser anulado (in casu, tratava-se da primeira inscrição na matriz dos lotes em causa), cai por terra aquela liquidação em homenagem ao princípio da reconstituição do statu quo ante, e a AT terá um mês para efectuar nova liquidação com base no novo VPT, sob pena de esse seu direito caducar” (cf. artigo 22.º da resposta).
Junta dois documentos.
Em parecer emitido a fls. 153 e segs., o Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de dever a presente acção ser julgada improcedente, uma vez que, em síntese, “nem sequer se mostram preenchidos os requisitos e os pressupostos legais para a utilização deste meio processual, por não se encontrar consolidado, na ordem jurídica do requerente, quer o direito ao reembolso, quer o seu valor”.
Em pronúncia subsequente a fls. 163 e segs., veio a A. reiterar “ser a acção para reconhecimento de um direito em matéria processual o meio processual próprio para que seja reconhecido que a AT não mais poderá liquidar o IMI referente aos anos de 2006 e 2007, por força do decurso do tempo e, por conseguinte, que sejam anulados os actos de liquidação suportados em VPT ilegais anulados na sequência da decisão judicial proferida em 2013” (cf. artigo 22.º da pronúncia subsequente) (…)».

2. Questão a decidir
A questão que nos cumpre apreciar no âmbito do presente recurso foi correctamente enunciada na sentença recorrida do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra: “saber se pode ser utilizada a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária para obter a vinculação da Administração Tributária (…) não só relativamente a actos de liquidação de IMI já praticados, cuja anulação se requer, por invalidade derivada, decorrente da invalidade dos actos de segunda avaliação, com a consequente condenação da Administração Tributária na restituição das quantias pagas e no pagamento de juros indemnizatórios, mas também no futuro, por invalidade própria, decorrente da caducidade do direito à liquidação, com a consequente condenação da Administração Tributária a abster-se de emitir novas liquidações”.

3. De direito

3.1. As acções para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária encontram consagração no artigo 145.º do CPPT e a legitimidade activa para a sua interposição é legalmente conferida a quem “invoque a titularidade do direito ou interesse a reconhecer” (cf. artigo 145.º, n.º 1 do CPPT), sempre que o autor demonstre em juízo que este é “o meio processual mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido” (cf. artigo 145.º, n.º 3 do CPPT).
Como a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo tem afirmado de modo reiterado, a acção para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária deve ser interpretada como meio processual com “carácter de complementaridade em relação aos outros meios contenciosos”, não sendo, por exemplo, “o meio processual mais adequado para assegurar tal tutela se o contribuinte deixou precludir o direito de acesso a outra(s) garantia(s) prevista(s) no contencioso tributário” (v. neste sentido acórdão de 13 de Fevereiro de 2019, proc. 02694/15.3BESNT 01281/16), mas sendo já adequado para, por exemplo, obter o “reconhecido o direito a receber juros indemnizatórios relativos ao período em que (…) sem fundamento, a Administração Tributária reteve indevidamente o montante em causa”, uma vez que inexiste “qualquer sentença cuja execução possa ser solicitada” (v. acórdão de 22 de Novembro de 2017, proc. 0638/17 e, no mesmo sentido, acórdão de 21 de Maio de 2014, proc. 737/13).

3.2. No caso em apreço, a recorrente “instaurou a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse em matéria tributária peticionando que lhe fosse reconhecida a caducidade do direito à liquidação do IMI relativo aos anos de 2006 e 2007 e, consequentemente, reconhecido o seu direito ao reembolso do imposto pago indevidamente, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios, como consequência da extinção dos efeitos das liquidações de IMI dos anos de 2006 e 2007 as quais se basearam em VPT's considerados ilegais e anulados por acórdão transitado em julgado”.

3.2.1. No fundo, alegou a recorrente que havia pago em 2009 e 2010 as liquidações adicionais de IMI respeitantes aos anos de 2006 e 2007, referentes aos prédios identificados nos autos, mas que essas liquidações se tornaram supervenientemente ilegais em consequência da anulação dos actos de fixação dos VPT’s em que as mesmas se fundavam. Apesar do pagamento dos valores fixados nos referidos actos de liquidação de IMI, a recorrente impugnou judicialmente, nos termos do disposto no artigo 77.º do CIMI, os actos de segunda avaliação dos prédios; actos que haviam fixado os VPT’s que estiveram na base do cálculo das referidas liquidações de IMI. E, na mesma data (em 2010), apresentou também reclamação graciosa dos actos de liquidação. Por acórdão de 2013, entretanto transitado em julgado, foi declarada a invalidade do procedimento de segunda avaliação dos prédios em questão e foi ordenada uma nova segunda avaliação, a qual teve lugar em 2014, tendo então sido fixado um montante substancialmente inferior de VPT dos referidos prédios. Contudo, a AT nunca anulou as liquidações efectuadas com base nos actos de fixação dos VPT’s que vieram a ser anulados (anulação com fundamento na existência de um vicio procedimental), nem praticou novos actos de liquidação correspondentes aos novos VPT’s resultantes da segunda avaliação realizada em execução do mencionado julgado. Foi nesse seguimento que a agora recorrente peticionou, na acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária, que instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra: i) o reconhecimento da caducidade do direito à liquidação de IMI dos anos de 2006 e 2007; ii) o reconhecimento do direito ao reembolso do imposto pago indevidamente, como consequência da extinção dos efeitos das liquidações de 2006 e 2007 baseadas em VPT’s considerados ilegais por acórdão transitado em julgado; e iii) o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios contados desde o pagamento das liquidações ilegais até ao integral reembolso do imposto indevidamente liquidado.

3.2.2. Perante a factualidade alegada na p.i., a recorrente justificou a adequação do uso do meio processual da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária, fundamentalmente nos seguintes argumentos:
i) inexigibilidade do uso da execução de julgados (artigo 146.º, n.º 1 do CPPT) em 2014 para a obtenção de um efeito consequencial (que não imediato) da sentença, que seria a anulação dos actos tributários, uma vez que o efeito imediato, que era a repetição do acto de segunda avaliação dos imóveis, foi cumprido pela AT de forma espontânea; sendo esperado, nos termos do disposto no artigo 100.º da LGT, que também anulasse os actos de liquidação, até porque dispunha de prazo para o fazer após a realização da segunda avaliação em sede de execução de julgados sem que tivesse ainda decorrido o prazo de caducidade do direito à liquidação (ou seja, à reforma ou renovação dos anteriores actos de liquidação ou à respectiva anulação seguida da prática de novos actos de liquidação);
ii) impossibilidade de uso do meio intimação para um comportamento (artigo 147.º do CPPT) por estar em causa um efeito consequente da anulação do acto de segunda avaliação dos prédios, que, como resulta da contestação apresentada pela AT, não corresponde a um dever de prestação certo e inequívoco judicialmente reconhecido, o que requer o uso prévio de um meio declarativo do direito (e, consequentemente do dever da AT), razão pela qual não é adequada a intimação para um comportamento;
iii) impossibilidade de uso do meio impugnação judicial por não terem sido emitidas novas liquidações (caso as mesmas apresentassem algum vício) e porque as impugnações administrativas das liquidações anteriores (reclamação graciosa e recurso hierárquico) haviam entretanto sido consideradas infundadas pela AT, na medida em que a ser bem sucedida a tese da impugnante no processo judicial contra o acto de fixação dos VPT’s, ao ser anulado o acto administrativo em matéria tributária (fixação dos VPT’s) em que as liquidações impugnadas se fundavam, haveria depois lugar à prática de novos actos de liquidação, o que, porém, nunca chegaria a suceder.

3.2.3. Apesar dos argumentos expendidos pela recorrente para fundamentar o uso da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária, na sentença recorrida considerou-se que o meio era impróprio, uma vez que a recorrente deveria ter impugnado judicialmente os actos de liquidação. Porém, não lhe assiste razão.

3.3. Com efeito, para saber se este meio processual é adequado devemos atentar em dois aspectos: i) saber se existe um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária que careça de protecção judicial; e ii) saber se este é o meio mais adequado por os outros não se revelarem aptos a assegurar a tutela jurisdicional efectiva dos alegados direitos ou interesses legalmente protegidos.

3.3.1. A sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra não aborda directamente a questão da existência ou não, in casu, de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária, limitando-se a afirmar que o direito invocado pela autora como carecendo de tutela judicial era o “direito a não lhe ser liquidado o IMI dos anos de 2006 e 2007”. Porém, do pedido formulado na parte final da petição inicial, depreende-se que, para além daquela pretensão, a recorrente pediu também o reconhecimento do “direito ao reembolso do imposto pago indevidamente, como consequência da extinção dos efeitos da liquidação de 2006 e 2007 baseada em VPTs considerados ilegais por acórdão transitado em julgado” e o reconhecimento do direito a “juros indemnizatórios contados desde o pagamento das liquidações ilegais até ao integral reembolso do imposto indevidamente liquidado”.
Ora, como destaca do Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto do Supremo Tribunal Administrativo no seu parecer, a conjugação destes três pedidos revela que o direito que a recorrente pretendia ver reconhecido na acção judicial proposta é o direito a que seja reconhecida a sua situação tributária perante a omissão da Administração Tributária em promover a anulação dos actos de liquidação que enfermam de ilegalidade derivada, em consequência da anulação judicial da respectiva base tributável, obstando assim a AT, com o seu comportamento, à restituição dos montantes indevidamente pagos pela recorrente em cumprimento da obrigação tributária constituídas, num momento em que é certo que não podem ser emitidos novos actos de liquidação. Trata-se, por isso, de uma pretensão legítima, mesmo que se apure que a Administração Tributária não pode praticar novos actos de liquidação por já ter caducado o direito a liquidar aqueles tributos ou mesmo que se apure que afinal a recorrente não tem razão e que a Administração Tributária não teria naquele caso a obrigação de praticar novos actos tributários (como a mesma defende na contestação).
O que fica demonstrado é que a factualidade descrita pela recorrente na acção (independente de proceder ou não quanto ao fundo da questão) consubstancia uma pretensão subjectiva em matéria tributária (definição da sua situação tributária perante a anulação dos VPT’s e a prática de novos actos de avaliação dos prédios sem a consequente anulação ou renovação dos actos de liquidação de IMI) que carece de tutela judicial.

3.3.2. Em relação à segunda questão, entendeu o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que o direito invocado pela autora como carecendo de tutela judicial era o “direito a não lhe ser liquidado o IMI dos anos de 2006 e 2007” e que esse direito era plenamente assegurado por via da impugnação judicial, que a recorrente deveria ter interposto da decisão do recurso hierárquico que indeferiu o pedido de anulação da reclamação graciosa interpostas dos actos de liquidação; acto nos quais a AT havia afirmado a legalidade daquelas liquidações.
Ora, dos autos, como bem refere a recorrente, resulta que no momento em que foi decidida a reclamação graciosa, a resposta da AT não poderia ter sido outra, uma vez que ainda não haviam sido anulados judicialmente os actos de fixação dos VPT’s; por essa razão, os actos de liquidação não enfermavam naquele momento das ilegalidades apontadas, por não ter sido ainda julgada ilegal a base tributável em que se fundavam e por não padecerem de outros vícios. E não ficou provado que, quando foi decidido o recurso hierárquico, já tivesse transitado em julgado a decisão de anulação dos referidos actos de fixação dos VPT’s, pelo que não resulta demonstrado que a recorrente pudesse, nesse momento, ter impugnado judicialmente os actos de liquidação. E se assim não foi, não se compreende como é que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra concluiu que a impugnação judicial era o meio próprio para reagir.
E também não pode interpretar-se como extemporâneo ou inútil o pedido de não emissão desses actos no futuro por se reconhecer que nessa situação (se esses actos viessem a ser praticados) a autora poderia sempre lançar mão da impugnação judicial, pois, neste caso, o que a recorrente pretende é que a sua situação tributária fique plenamente esclarecida (como impõe o princípio da tutela judicial plena e efectiva e o princípio pro acctione), reconhecendo-se desde já que uma tal actuação da AT seria ilegal por violação da regra da caducidade do direito à liquidação, consagrada no artigo 45.º, n.º 1 da LGT.
Em suma, o que resulta da factualidade descrita pela recorrente na acção (independente de proceder ou não quanto ao fundo da questão) é que estamos perante uma pretensão subjectiva em matéria tributária que carece de tutela judicial, a qual não pode ser alcançada pela impugnação judicial dos actos de liquidação (uma vez que o prazo para a respectiva impugnação já se esgotou antes de ficar constituído o direito em que se funda a pretensão da autora), nem pela execução de julgados, nem por outro meio processual, pelo que, como bem se conclui no já mencionado parecer do Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto do Supremo Tribunal Administrativo, a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária apresenta-se como o meio processual adequado (no contexto da sua configuração legal como meio processual complementar) para que a recorrente consiga obter tutela jurisdicional efectiva.

Conclusões
Assim, podemos concluir, relativamente à questão em apreço, que a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária é o meio processual adequado para obter tutela judicial perante o não cumprimento pela Administração Tributária do dever de anular os actos de liquidação que se revelem consequentemente ilegais por ter sido anulado judicialmente o acto de fixação do VPT.
Perante a não anulação do acto de liquidação e a não substituição do mesmo por outro acto de liquidação em conformidade com o novo VPT fixado em repetição da segunda avaliação (execução do julgado), e tendo já decorrido o prazo para a impugnação judicial do primeiro acto de liquidação, é só através deste meio processual que o sujeito passivo que já tenha pago a liquidação do imposto pode obter a tutela judicial devida, designadamente, o reconhecimento do direito à devolução dos montantes pagos em cumprimento da obrigação fundada num acto tributário cuja base tributária é anulada.
A admissão deste meio processual para apreciação da questão de fundo não contende com o mérito da acção e a decisão que, nessa sede, venha a ser proferida.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra para que prossiga com o julgamento da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária.

Custas pela recorrida [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário] com dispensa do remanescente da taxa de justiça.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2019. – Suzana Tavares da Silva (relatora) – Ascensão Lopes – Francisco Rothes.