Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0365/10
Data do Acordão:06/23/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário:O n.º 1 do artigo 240.º do CPPT deve ser interpretado em sentido amplo, de modo a terem-se por abrangidos na letra da lei todos os créditos a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente privilégios creditórios.
Nº Convencional:JSTA000P11959
Nº do Documento:SA2201006230365
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO E FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, SA E A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO e a FAZENDA PÚBLICA recorrem para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, na parte em que nela se decidiu não admitir à graduação os créditos reclamados pela Fazenda Pública provenientes de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS).
As alegações dos recursos mostram-se rematadas com o seguinte quadro conclusivo:
1.1. Recurso da Fazenda Pública
A Os créditos relativos ao IRS relativo aos três últimos anos, gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora, nos termos do estatuído no artigo 111.º do CIRS;
B Para aquele normativo relevam os anos a que respeitam os rendimentos que justificaram a liquidação do imposto e não o momento em que foram postos à cobrança;
C Privilegio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do credito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (art. 733.° do Código Civil);
D A circunstância do privilégio creditório geral ser uma mera preferência de pagamento não implica o afastamento do credito da reclamação e graduação no lugar que lhe competir;
E Pois que, ainda que os privilégios creditórios gerais não constituam garantias reais, mas meras preferências de pagamento, “(...) o seu regime é o das garantias reais, para o efeito de justificar a intervenção no concurso de credores.” (cf. Salvador da Costa, "O Concurso de Credores", 3.ª Edição, Almedina, 2005, pag. 388);
F Motivo porque de harmonia com o entendimento jurisprudencial largamente maioritário do STA “ O artigo 240.° n° 1 do CPPT deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legitimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios." (cf. A titulo de exemplo o Acórdão do STA de 18-05-2005, recurso n.º 0612/04);
G Ao não admitir os créditos de IRS relativos aos exercícios de 2004 e 2006, reclamados pela Fazenda Pública, a douta sentença ora recorrida incorreu em erro de direito na interpretação e aplicação das normas constantes nos art.º 240.°, n.º 1 e 246.° ambos do CPPT e no art.° 111.° do CIRS.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, com o douto suprimento judicial, requer-se a V. Exas. que o presente recurso seja julgado procedente por provado, revogando a douta sentença recorrida, substituindo-a por sentença que admita e gradue os créditos reclamados no lugar que lhe competir, assim se fazendo a costumada JUSTICA.
1.2. Recurso do Ministério Público
1. Nos autos foi reclamado pela F.P. créditos relativo a IRS dos anos de 2004 e 2006 que gozam de privilégio imobiliário geral sobre o bem objecto de penhora nos autos de execução fiscal pertença do executado;
2. Pese embora a natureza jurídica do privilégio creditório geral, sempre a jurisprudência dos Tribunais Superiores admitiu, expressa ou implicitamente, a possibilidade da reclamação dos créditos que gozam desse privilégio;
3. Mesmo que se entenda que os privilégios creditórios gerais não constituem garantias reais, mas meras preferências de pagamento, o seu regime é o das garantias reais, para efeito de justificar a intervenção no concurso de credores, como defende, maioritariamente, a jurisprudência;
4. Daí que o n° 1 do artigo 240° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ao afirmar que «podem reclamar os seus créditos (...) os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados», deve ser interpretado amplamente, de modo a terem-se por abrangidos na sua estatuição, não apenas os credores que gozem de garantia geral, "stricto senso", mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios;
5. A Mmª Juiz "a quo", ao não admitir a graduação dos créditos reclamados relativos ao IRS de 2004 e 2006, violou, assim, as disposições conjugadas dos arts. 604°, n° 2, do Código Civil, 111° do C.I.R.S., e 240°, n° 1 do CPPT, motivo pelo qual deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que admita e gradue tais créditos no lugar que lhes pertence.
1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir.
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2. A sentença recorrida deu como assente a seguinte factualidade:
1. A Fazenda Pública instaurou em 22/11/2006, contra o executado A… o processo de execução fiscal n.º 2224200601081799 do Serviço de Finanças de Seixal 1ª, tendo por objecto dívidas de IRS do exercício de 2005, no montante de € 18.652,66 e de que os presentes autos de verificação e graduação de créditos constituem apenso (cfr. cópia certificada do processo de execução fiscal junto aos autos);
2. Em 13/11/1998, foi celebrado entre o executado e a mulher e a Caixa Geral de Depósitos, S.A. um contrato Mútuo no montante de Esc. 13.500.000$00, com hipoteca incidindo esta sobre a fracção autónoma designada pela letra "H", correspondente, ao terceiro andar direito destinada exclusivamente à habitação, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua do …, n° …, …, freguesia de …, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o número 00723/910806 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 750, com valor patrimonial de € 38.847,83 (cfr. doc. juntos a fls. 19 a 32 dos autos);
3. Em 16/1011998, foi registada hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A., incidente sobre o imóvel melhor identificado em 2), penhorado no processo de execução de que os autos constituem apenso, com vista à garantia da quantia de Esc. 13.500.000$00, referente a capital, à taxa de juro anual de 9,544%, acrescido em 4% em caso de mora, despesas no montante de Esc.: 540.000$00 e com montante máximo de Esc. 19.525.320$00 (cfr. fls. 9 do processo instrutor junto aos autos, cujo teor aqui que se dá por integralmente reproduzido);
4. Em 12/09/2007, no âmbito do citado processo de execução fiscal, e para pagamento das dívidas nele referidas, foi efectuada a penhora da fracção autónoma designada pela letra "H", correspondente ao terceiro andar direito, destinada exclusivamente à habitação, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua do …, n° …, …, freguesia de …, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o número 00723/910806 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 750, com valor patrimonial de € 38.847,83, a qual foi registada a favor da Fazenda Nacional em 27/09/2007, para garantia da quantia de € 20.621,02 (cfr. fls. 9 e 10 do processo instrutor junto aos autos, cujo teor se da por integralmente reproduzido);
5. Em 2007 foi inscrita para cobrança o IRS referente ao exercício de 2006 (cfr. doc. junto a fls. 5 dos autos);
6. Em 2008 foi inscrito para cobrança o IRS de 2004 (cfr. doc. junto a fls. 5 dos autos);
7. O executado é devedor à Fazenda Pública dos créditos exequendos e reclamados;
8. O executado é devedor à Caixa Geral de Depósitos, S.A. da quantia reclamada.
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3. O inconformismo dos Recorrentes, integrante do objecto do presente recurso jurisdicional, reconduz-se à única questão de saber a decisão recorrida enferma de erro de aplicação e de interpretação do direito ao ter julgado que os créditos reclamados provenientes de IRS (relativos aos anos de 2004 e 2006), que gozam de privilégio imobiliário geral mas não têm a seu favor qualquer garantia real, não podem ser reclamados em execução fiscal ao abrigo da norma contida no artigo 240.º, n.º 1, do CPPT, que estabelece que «podem reclamar os seus créditos no prazo de 15 dias após a citação nos termos do artigo anterior os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados».
Na verdade, na sentença impugnada, a Mmª Juiz do tribunal “a quo” decidiu não admitir à graduação os créditos reclamados pela Fazenda Pública respeitantes a IRS, graduando os restantes pela forma seguinte:
1.º - Créditos reclamados pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., garantido por hipoteca registada em 16/10/1998 e juros até ao limite de três anos;
2.º - Créditos exequendos (IRS do ano de 2005, garantido pela penhora).
Na base da decisão está o entendimento de que os créditos que gozem apenas de privilégio imobiliário e que não tenham, para além dele, uma garantia real, não podem ser reclamados nos termos do artigo 240.º do CPPT, porquanto não gozam de garantia real sobre os bens penhorados.
Todavia, não é esse o entendimento perfilhado pela jurisprudência dominante neste STA e que aqui se deixa, mais uma vez, sufragada e reafirmada.
Com efeito, embora constitua uma querela antiga a de saber se o n.º 1 do artigo 240.º do CPPT deve ser interpretado em sentido amplo, de modo a terem-se por abrangidos na letra da lei não apenas os credores que gozam de garantia real, mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente privilégios creditórios, ou se deve, antes, ser interpretado em sentido restrito, abrangendo apenas os credores que gozam de uma verdadeira garantia real que atribua ao seu titular o direito de sequela, o certo é que a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal, maxime a nível do Pleno da Secção de Contencioso Tributário, já deu resposta no primeiro sentido, afirmando, repetidamente, que o preceito em questão deve ser interpretado no sentido de abranger todos os créditos a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.
Nesse sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos: de 4.02.2004, no recurso n.º 2078/03; de 13.10.2004, no recurso n.º 382/04; de 20.10.2004, no recurso n.º 614/04; de 27.10.2004, no recurso n.º 822/04; de 7.12.2004, no recurso n.º 472/04; de 18.05.2005, no recurso n.º 612/04 (Pleno); de 13.04.2005, no recurso n.º 442/04 (Pleno); de 2.07.2003 no recurso n.º 882/03; de 4.02.2004, no recurso n.º 2078/03; de 19.04.2006, no recurso n.º 1110/05; de 9.05.2007, no recurso n.º 239/07; de 17.06.2009, no recurso n.º 432/09; de 13.05.2009, no recurso n.º 169/09; de 2.12.2009, no recurso n.º 724/09.
A jurisprudência contrária, constante dos acórdãos proferidos em 16.06.2004 e 7.07.2004, nos recursos n.º 612/04 e n.° 442/04, apesar da douta argumentação em que se apoia, foi, pois, contrariada pelos citados acórdãos do Pleno e mostra-se superada pela doutrina que actualmente é perfilhada por esta Secção de Contencioso Tributário.
Neste cenário, e face à proficiente fundamentação aduzida no acórdão que recentemente foi proferido no recurso n.º 169/09, limitar-nos-emos a transcrever o que aí se deixou explicado sobre a problemática em questão.
«O legislador fiscal determinou a execução de bens individualizados do património do executado para satisfação do crédito do exequente, permitindo todavia aos credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados que reclamassem os seus créditos na execução. É o que resulta do disposto no artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em consonância com o artigo 865.º do Código de Processo Civil no respeitante à execução comum. Mas, para alguma doutrina, direitos reais de garantia em sentido próprio serão apenas a penhora, o penhor, a hipoteca, o direito de retenção e a consignação de rendimentos. Já quanto aos privilégios creditórios, que o artigo 733.º do Código Civil define como “a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”, não há unanimidade, entendendo alguns que não serão verdadeiros direitos reais de garantia, mas qualidades do crédito, atribuídas por lei em atenção à sua origem. Praticamente unânime é o entendimento quanto aos privilégios gerais: estes não são qualificáveis como direitos reais de garantia. Em todo o caso, há, na doutrina, como na jurisprudência, concordância quanto a que os privilégios creditórios conferem preferência sobre os credores comuns.
Nos termos do artigo 111.º (antes artigo 104.º) do Código do IRS, para pagamento de IRS relativo aos três últimos anos a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou de acto equivalente.
Gozando o crédito reclamado de privilégio imobiliário, não preferindo embora aos credores com garantia real, não deixa, por isso, de poder ser reclamado e graduado no lugar que lhe competir.
Neste sentido se têm pronunciado que o Supremo Tribunal Administrativo quer o Supremo Tribunal de Justiça em inúmeros acórdãos.
Aliás, assim o impõe a unidade do sistema jurídico, pois não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor de acorrer ao concurso.
Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o privilégio, pois nesse caso o crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio legal.
Assim, afigura-se dever o artigo 240.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário ser interpretado no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios – cf. neste sentido, quase textualmente, o acórdão do Pleno desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-05-2005, no recurso n.º 612/04, o qual, por sua vez, seguiu o acórdão do Pleno desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-04-2005, no recurso n.º 442/04, a confirmar os acórdãos fundamento desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 2-7-2003, e de 4-2-2004, proferidos respectivamente nos recursos n.º 882/03 e n.º 2078/03.».
Nesta conformidade, visto que é inquestionável que os créditos de IRS reclamados (2004 e 2006) gozam do privilégio imobiliário previsto no artº 111.º do CIRS (porque relativos aos três últimos anos) e não foram impugnados, deviam os mesmos ter sido verificados e graduados no lugar próprio, isto é, em segundo lugar e a par do crédito exequendo (IRS/2005), dado que este goza de igual privilégio imobiliário além da garantia da penhora.
Termos em que merecem provimento ambos os recursos.
* * *
4. Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em, concedendo provimento a ambos os recursos, revogar a sentença recorrida no segmento impugnado e, julgando reconhecidos os créditos reclamados pela Fazenda Pública, proceder à respectiva graduação pela seguinte forma:
1.º - Créditos reclamados pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., garantido por hipoteca registada em 16/10/1998 e juros até ao limite de três anos;
2.º - Créditos reclamados pela Fazenda Pública (IRS/2004 e 2006), garantidos por privilégio imobiliário, a par do crédito exequendo (IRS/2005), garantido por igual privilégio para além da garantia da penhora.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Junho de 2010. – Dulce Manuel Neto (relatora) – Alfredo Madureira – Valente Torrão.