Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 0704/10.0BELLE 0730/16 |
Data do Acordão: | 03/13/2019 |
Tribunal: | 2 SECÇÃO |
Relator: | FRANCISCO ROTHES |
Descritores: | IVA PAGAMENTO PARCIAL REGULARIZAÇÃO |
Sumário: | I - Tendo sido celebrado um contrato entre duas sociedades e paga apenas uma parte do montante acordado, não pode considerar-se que o pagamento efectuado se refira exclusivamente ao preço e que a parte em falta seja o IVA, antes devendo os montantes pagos e por pagar referir-se, ambos, ao preço e ao IVA, na devida proporção (cfr. art. 16.º do CIVA). II - Assim, sendo caso de regularização do IVA liquidado e deduzido a que alude o artigo 78.º, n.º 7, alínea b), do CIVA, por a parte não paga ter sido reconhecida como crédito incobrável no processo de insolvência da devedora, onde foi reclamado, o montante de imposto susceptível de ser regularizado relativamente a essa operação é apenas o respeitante a essa parte não paga, nos termos acima referidos. III - Nesse conspecto, não podem proceder os vícios de duplicação de colecta e de violação do princípio da justiça invocados com fundamento no entendimento que não se aceitou em I. IV - A questão de saber se o sujeito passivo está em situação de crédito ou de débito de IVA em nada contende com a legalidade da liquidação por o sujeito passivo, que adoptou o entendimento exautorado em I, ter procedido a indevida regularização de imposto. |
Nº Convencional: | JSTA000P24316 |
Nº do Documento: | SA2201903130704/10 |
Data de Entrada: | 06/07/2016 |
Recorrente: | A....., S.A. |
Recorrido 1: | AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Recurso jurisdicional de sentença proferida em processo de impugnação judicial
1. RELATÓRIO 1.1 A sociedade acima identificada recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) do mês de Outubro do ano de 2009. 1.2 O recurso foi admitido, com subida imediata e nos próprios autos e a Recorrente apresentou a motivação do recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor: «A. A Recorrente impugnou o acto de liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios com fundamento, entre outros, nos vícios de errónea qualificação dos factos tributários e errónea quantificação dos tributos e de violação de lei. B. A Recorrente foi confrontada com uma inspecção interna aberta para analisar os motivos que a tinham levado a proceder a um pedido de reembolso de IVA referente ao período 200910, no montante de € 220.000,00. C. A AT notificou de um projecto de relatório proferido que apontava no sentido de deferir parcialmente a pretensão de reembolso no valor de € 113.608,87 (ao invés dos € 220.000,00 inicialmente pedidos), tendo sido prestados todos esclarecimentos que haviam motivado o pedido de reembolso de IVA no valor de € 220.000,00. D. Não obstante, a Recorrida liquidou adicionalmente as importâncias de IVA e de juros compensatórios, por entender que a Recorrente teria procedido a deduções e a regularizações indevidas em sede de IVA, não cumprindo assim com os requisitos legais necessários a tanto. E. Nos autos demonstrou-se ainda que a sociedade ……….., SGPS, S.A. alienou a ……………. as acções que a primeira detinha no capital social da Recorrente e que esta cedeu à primeira duas quotas correspondentes à integralidade do capital social da sociedade B……… (entretanto declarada insolvente), tendo aquela ficado credora do montante acordado para a alienação das acções, tendo ficado ainda acordado que o preço a pagar seria feito através de compensação recíproca de créditos nos termos do contrato oportunamente junto aos autos. F. Nos termos do mesmo, a única quantia a pagar em dinheiro era relativa ao IVA que a B……… nunca entregou à Impugnante e ora Recorrente, não obstante esta última ter entregue as importâncias em crise nos cofres do Estado. G. Por nunca ter recebido o seu crédito de IVA, a Recorrente intentou contra a B………… acção judicial que condenou a última no pagamento da quantia de € 128.733,27 a título de IVA, crédito que foi posteriormente reclamado em sede de processo de insolvência da devedora B…….. H. Por sentença de 14 de Janeiro de 2014 o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé anulou o acto de liquidação e respectivos compensatórios, entendendo que se verificavam integralmente todos os requisitos necessários à dedução do IVA que deveria ser suportado pela B………..e que nunca foi por esta entregue à Impugnante. I. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé entendeu que a Recorrente tinha direito a deduzir o imposto que lhe havia sido liquidado e entregue nos cofres do Estado e posteriormente regularizado nos termos do artigo 78.º do Código do IVA. J. A Recorrente liquidou IVA que não foi pago pelo devedor do mesmo – a B………; o imposto não recebido foi entregue nos cofres do Estado para cumprir as suas obrigações tributárias; intentou uma acção contra a B……… que foi julgada procedente e esta condenada no pagamento; seguidamente esta sociedade é declarada insolvente, o crédito de IVA reclamado e reconhecido e consequentemente preenchidos os pressupostos de regularização nos termos do artigo 78.º do Código do IVA. K. Decidindo em primeiras instâncias o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé assegurou a neutralidade fiscal subjacente ao IVA, admitindo a sua dedução e regularização nos termos legais e por integral preenchimento dos requisitos legais ao efeito. L. Já em segundas instâncias o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé entendeu que não se verificava o vício da duplicação de colecta, mas sem qualquer razão, visto que o vício de duplicação de colecta está integralmente demonstrado. M. Aliás, nem entende a Recorrente como é possível defender o contrário, sobretudo quando o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, em primeiras instâncias, entendeu que pelo facto de o imposto ter sido pago em 2005 e 2006 então era permitida a sua dedução integral. N. É, pois, claro que com semelhante decisão se procurou anular o fenómeno da duplicação de colecta! O. Se a Recorrente entregou nos cofres do Estado, em 2005 e 2006, a importância de € 128.733,27 a título de IVA – e que aliás devia ter sido paga pela B………. – e se já se considerou que estavam reunidos os pressupostos do direito à dedução, P. É ponto assente que se procurou eliminar a duplicação de colecta que está em crise nos presentes autos. Q. O acto de liquidação adicional tem que ver-se como reportando aos anos de 2005 e 2006, não obstante ter só ocorrido em 2009 e na sequência de uma acção inspectiva ocorrida em virtude de um pedido de reembolso de IVA de que a Recorrente lançou mão! R. Não aceitar que se verificam os elementos aptos a despoletar a aplicação da figura da proibição da duplicação da colecta é dar cobertura a uma verdadeira e efectiva dupla tributação económica na esfera da impugnante. S. A Administração está a liquidar segunda vez o mesmo imposto, existindo, portanto, uma manifesta duplicação de colecta, que deverá ser anulada por esse douto Tribunal. T. A decisão aqui em crise põe em causa o princípio geral da duplicação da colecta e ataca directamente o princípio fundamental do IVA da neutralidade do imposto entre sujeitos passivos, porque de outro modo a Recorrente é tratada do ponto de vista fiscal como consumidora final e sem direito à dedução de imposto. U. A sentença recorrida incorre também no vício da violação do princípio da justiça material. V. Não obstante a manifestação da sua capacidade contributiva consubstanciada no facto de ter emitido facturas cujo IVA não foi pago pela B………., tem que ter-se sempre em linha de conta que a Recorrente tinha direito ao reembolso do IVA cuja incobrabilidade ficou demonstrada, através da aplicação do artigo 78.º do Código do IVA. W. A Recorrente liquidou o IVA, mas nunca o recebeu, visto que a B……… foi declarada insolvente e como tal nasceu em tal momento o direito à regularização nos termos do artigo 78.º do Código do IVA. X. Nascendo o direito à regularização a Impugnante não tem que suportar o custo do imposto. Y. Entender de outro modo é esvaziar de conteúdo o princípio da justiça material porque se obriga um contribuinte a suportar o custo económico de um imposto quando tinha direito a deduzi-lo. Z. Por outras palavras: não entender deste modo pode ver-se na Recorrente uma verdadeira consumidora final, a quem não é conferido o direito à dedução de um imposto que entre sujeitos passivos é neutro. AA. A decisão sub judice destrói totalmente o princípio da neutralidade do imposto, porquanto admite que um sujeito passivo de IVA suporte o custo económico do IVA. BB. Aliás, se assim não fosse, para que serviria o direito à regularização do imposto quando este tenha por base créditos incobráveis? CC. Por outra banda, ao longo de todo o procedimento foram também preteridas diversas formalidades legais, visto que a Recorrida só liquidou o imposto adicional após a Recorrente ter requerido o direito ao reembolso e sempre após a declaração de insolvência da B………. DD. No entanto, a Recorrida esqueceu-se de notificar da decisão de indeferimento ou deferimento parcial do pedido de reembolso e o procedimento tributário tem formalidades essenciais que passam, nomeadamente, pelo direito de participação do sujeito passivo no procedimento. EE. Tais direitos não foram conferidos à Recorrente, o que inquina definitivamente o procedimento tributário. FF. A Administração Fiscal deveria ter notificado o sujeito passivo da decisão de indeferimento ou deferimento parcial do pedido de reembolso com a consequente oportunidade do sujeito passivo poder reclamar de tal acto nos termos legais e, GG. Havendo deferimento ou deferimento parcial, sempre teria que ser entregue ao sujeito passivo o montante devido a título de reembolso e só após esse pagamento liquidar adicionalmente, caso a isso houvesse lugar! HH. A Recorrente viu-se apenas confrontada com o facto de ter liquidado IVA em 2005 e 2006 e ter de proceder ao pagamento novamente de tal tributo, sem que tenha recebido qualquer reembolso e/ou concedida a oportunidade de se pronunciar judicialmente sobre uma decisão sobre o pedido de reembolso. II. A Recorrida não cumpriu com formalidades essenciais do procedimento tributário, pondo assim em crise uma das mais elementares garantias dos contribuintes. JJ. Relativamente aos juros compensatórios, há apenas que consignar que, em virtude da liquidação não ser devida, então, concomitantemente, não podem ser cobrados e exigidos juros compensatórios. KK. Estes foram liquidados na sequência de um acto de liquidação que é inválido, tendo por isso que concluir-se no sentido da sua necessária anulação. LL. Por outro lado, não houve qualquer retardar da prestação tributária, porque os cofres do Estado não estiveram em tempo algum privados do imposto e por isso não ocorre o pressuposto do retardamento justificativo da compensação patrimonial na forma de juros. Termos em que e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, anulado o acto de liquidação adicional de IVA em crise nos presentes autos e respectivo acto de liquidação de juros compensatórios, tudo com as consequências legais que daí são emergentes». 1.3 A Fazenda Pública contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença, tendo formulado conclusões do seguinte teor: «1. O recorrente invoca nas letras L a T das suas conclusões, o vício de duplicação de colecta; 2. A questão relativa ao montante de IVA dedutível pela impugnante e, portanto, passível de reembolso foi definitivamente decidida pelo mui douto Acórdão desse digno Supremo Tribunal Administrativo datado de 27 de Janeiro de 2016; 3. No artigo 76.º da douta PI, a impugnante reconhece que o pedido de reembolso veio a ser efectuado pela totalidade apenas em 20 de Agosto de 2010. 4. Efectivamente, a impugnante recebeu o valor de € 220.000,00; 5. Tendo sido emitida a liquidação impugnada respeitante ao valor de imposto não passível de regularização na declaração periódica de 200910; 6. Declaração essa, na qual a impugnante efectuou o pedido de reembolso; 7. Se a impugnante tivesse recebido apenas o valor de reembolso concedido pela AT, então sim verificar-se-ia a invocada duplicação; 8. Pelo que não merece qualquer censura a sentença recorrida que se acompanha nos fundamentos, devendo manter-se na ordem jurídica. Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser negado provimento ao presente recurso e, em consequência, mantida a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA». 1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público, que não emitiu parecer. 1.5 Colhidos os vistos dos Conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir. * * * 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1 DE FACTO A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos: «1. Em 3 de Novembro de 2005, ……….., SGPS, SA, transmitiu a .…………… 46,35% do capital social da A………….., LDA. – cfr. fls. 85 dos autos. 2. A A…………., LDA., detinha 100% do capital social da B………….., Lda. – cfr. fls. 86 do apenso. 3. No contrato referido em 1. ficou acordado que a A…………….., LDA., iria ceder a totalidade do capital social da B……….. à ………….., SGPS, SA, por € 104.748,00 – cfr. fls. 86 e 90 dos autos. 4. No mesmo documento ficou ainda estabelecido que a B…………. passaria a actuar por conta da ………….., assumindo esta a dívida resultante do preço de aquisição de alguns activos que seriam alienados pela A…………, LDA., à B………. – cfr. fls. 86 dos autos. 5. Entre os activos alienados constavam viaturas, peças e material de escritório e oficina titulados pelas facturas 37.654, 37.655, 37.663 a 37.668, 37.675 e 40.345 a 40.349 – facto admitido por acordo. 6. Estes activos foram facturados pelo preço global de € 613.015,53, ao qual acresceu IVA no montante de € 128.733,27 – facto admitido por acordo. 7. Foram pagos por compensação recíproca de créditos € 613.015,53 – facto admitido por acordo. 8. Em 2005 e 2006, A…………., LDA. entregou nos cofres do Estado, a título de IVA, os preditos € 128.733,27 – facto admitido por acordo. 9. A B…………não pagou a A…………, LDA. € 128.733,27 – facto admitido por acordo. 10. A………….., LDA. requereu o reembolso do IVA após a declaração de insolvência da B………. – facto admitido por acordo. 11. A…………, LDA. foi sujeita a uma inspecção tributária, de âmbito parcial, no âmbito do procedimento de reembolso de IVA – facto admitido por acordo. 12. Em 14 de Abril de 2010, foi elaborado o Relatório de Inspecção Tributária de fls. 44-51, que aqui dá por integralmente reproduzido e que, no que ora interessa, tem o seguinte teor: 13. Consequentemente, foram emitidas as liquidações adicionais – actos impugnados – de IVA n.º 10071799, relativa ao período 09.10, no valor de € 106.391,13, e de juros n.º 10071800, atinente ao mesmo período, no valor de € 1.457,41 – cfr. fls. 22-23 dos autos». * 2.2 DE DIREITO 2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR A AT liquidou adicionalmente à sociedade acima identificada IVA, com referência ao mês de Outubro de 2009, no montante de € 106.391,13 e respectivos juros compensatórios, no montante de € 1.457,41. «- A impugnante celebrou com a sociedade “B…” um contrato de compra e venda de diversos bens móveis pelo preço global de 613.015,53 €, tendo sido emitidas as respectivas facturas e nas mesmas inscrito o valor respeitante ao IVA que globalmente ascendia a 128.733,27 €, perfazendo tudo a quantia de 741.748,80 €; Em suma, a AT considerou que a ora Recorrente, a título de regularização, apenas podia deduzir o IVA correspondente à diferença entre o preço acordado e o preço efectivamente recebido (ou seja, sendo o preço acordado € 741.748,80 e o preço recebido € 613.015,53, o imposto dedutível era o que incidia sobre a diferença, no valor de € 128.733,27, num total de € 22.342,14). Assim, e porque a ora Recorrente deduziu todo o IVA respeitante ao preço acordado, que ascendia a € 128.733,27, a AT liquidou-lhe a diferença, respeitante ao imposto que considerou indevidamente deduzido (ou seja, € 106.391,13, resultado da diferença entre € 128.733,27 e € 22.342,14) e respectivos juros compensatórios. 2.2.2 DA DUPLICAÇÃO DE COLECTA E DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA JUSTIÇA Sustentou a ora Recorrente na petição inicial que a liquidação impugnada enferma de duplicação de colecta, uma vez que «estando pago por inteiro o tributo, vem a Administração Tributária exigir da mesma entidade um novo pagamento de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de imposto». Isto porque a AT «abalançou-se na liquidação adicional do tributo, sem que tivesse sido entregue à Impugnação qualquer montante pedido a título de reembolso». 2.2.3 DA PRETERIÇÃO DE FORMALIDADES ESSENCIAIS A ora Recorrente sustentou que a AT incorreu em “preterição de formalidades essenciais” e que a sentença incorreu em erro de julgamento ao não anular a liquidação impugnada com esse fundamento. 2.2.3 DOS JUROS COMPENSATÓRIOS A Recorrente alega também que a sentença fez errado julgamento quando considerou que os juros compensatórios são devidos. Isto por duas ordens de razões: primeiro, porque não havendo lugar à liquidação do imposto, também não o há à liquidação dos juros compensatórios; segundo (e a título subsidiário), porque não houve retardamento algum na liquidação do imposto. 2.2.4 CONCLUSÕES Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões: * * * 3. DECISÃO Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em negar provimento ao recurso. Custas pela Recorrente. * Lisboa, 13 de Março de 2019. - Francisco Rothes (relator) - Aragão Seia - Ana Paula Lobo |