Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01469/14
Data do Acordão:03/12/2015
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:PROCEDIMENTO PRÉ-CONTRATUAL
CONCORRÊNCIA
EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS
Sumário:I - O princípio da concorrência implica, por um lado, a participação do maior número possível de candidatos e concorrentes nos procedimentos concursais, e, por outro, a garantia de uma efectiva e sã concorrência entre eles.
II - O melhor conhecimento de uma obra não obsta, por si só, a que a empresa que a executou participe num procedimento adjudicatório destinado à sua reabilitação, necessária em virtude das anomalias e defeitos que a obra inicial apresenta.
III - Só perante as circunstâncias concretas do caso se deverá avaliar se foi falseada a concorrência, não podendo fundar-se o juízo neste sentido em mera presunção decorrente daquele melhor conhecimento da obra cujas anomalias e defeitos se pretende corrigir.
Nº Convencional:JSTA00069117
Nº do Documento:SA12015031201469
Data de Entrada:01/09/2015
Recorrente:MUNICÍPIO DE PAMPILHOSA DA SERRA
Recorrido 1:A..., SA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAN
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Indicações Eventuais:DIR ADM CONT - PRE-CONTRATUAL.
Legislação Nacional:CCP ART1 N4 ART55 J ART146 N2 ART70 N2 G.
Legislação Comunitária:DIR CONS CEE 2014/24/UE DE 2014/02/26.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0851/10 DE 2009/01/11.; AC TCAS PROC651/10 DE 2010/09/30.; AC TCAS PROC6545/10 DE 2011/02/03.
Referência a Doutrina:RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - REVISTA DE CONTRATOS PÚBLICOS N2 MAIO - AGOSTO 2011 PAG90 - ESTUDOS DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA I 2008 PAG68 PAG66-67 PAG98-99.
MARGARIDA OLAZABAL - REVISTA DOS CONTRATOS PÚBLICOS N1 2011 PAG128 PAG133.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. Município de Pampilhosa da Serra, devidamente identificado nos autos, recorreu para este Supremo Tribunal do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 18.12.14, invocando para o efeito o n.º 1 do artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

1.1. O recorrente apresentou alegações, concluindo, no que concerne especificamente ao mérito da causa, do seguinte modo (fls 616 e ss):

“ (…)

8.ª No que se refere à questão de direito submetida a revista, é forçoso considerar que, no âmbito de um procedimento destinado à correção dos vícios ocorridos na execução de uma obra anterior, a participação do autor da obra viciada ofende claramente o princípio da concorrência (na sua dimensão de exigência de igualdade entre os concorrentes), sendo juridicamente correta uma decisão de exclusão nos termos referidos na conclusão 1.ª.

9.ª É certo que o CCP não estabelece, em termos diretos e explícitos, um impedimento no caso dos presentes autos. Porém, esta circunstância não exclui que a situação de impedimento (ou de exclusão) possa e até deva ser determinada em ordem a garantir o respeito pelos princípios da concorrência e da igualdade de tratamento de todos os concorrentes (como resulta aliás também da jurisprudência do TJUE).

10.ª Num caso como o dos presentes autos, existem razões bastantes para determinar um impedimento e a exclusão de um concorrente que pretenda participar no procedimento de adjudicação de empreitada unicamente destinada à reparação de defeitos em obra por si construída em execução de contrato anterior.

11.ª Enquanto concorrente neste procedimento, o autor da obra viciada surge colocado numa clara situação de privilégio decorrente do facto de possuir conhecimentos e informações que nenhum outro operador detém sobre os contornos específicos da obra a realizar.

12.ª É evidente que esse concorrente possui informação privilegiada sobre a extensão e o alcance das obras de reparação e que essa circunstância lhe proporciona uma posição de vantagem concorrencial face os demais operadores no mercado (e no procedimento), vantagem que viola nitidamente o princípio da igualdade entre os concorrentes e o princípio da concorrência (artigo 1.º, n.º 4, do CCP).

13.ª Trata-se de um conhecimento específico e completo dos contornos do objeto do contrário a celebrar e que não se resume ao conhecimento acessível a qualquer concorrente. O autor da obra viciada não conhece apenas a parte visível da obra construída. Conhece os defeitos e erros da construção, mas também conhece as respetivas causas. Este conhecimento completo, profundo e histórico coloca-o numa situação ímpar.

14.ª A relação contratual anterior não é apenas uma relação que antecede logicamente a que agora se pretende estabelecer. A relação anterior, e os termos da execução da mesma pela empresa, é a causa direta e exclusiva da relação contratual a estabelecer. Existe, entre eles, uma relação específica de causa-efeito: o contrato de reabilitação é uma consequência direta do contrato de execução e do modo como este foi executado.

15.ª Assim, foi inteiramente correta a conclusão contida na sentença do TAF de Coimbra no sentido de que «a [ora Recorrida], como empreiteira que executou a empreitada anterior, está em posse de informações que necessariamente colocam em causa o princípio da igualdade e da concorrência. Mais ninguém tem essas informações, pelo que ao entrar no concurso, em pé de igualdade com os outros concorrentes, está a falsear a concorrência».

16.ª Perante estas considerações, facilmente se detetam os flagrantes erros contidos na decisão ora recorrida. O primeiro consistiu em considerar que, ao contrário das situações pressupostas na alínea j) do artigo 55.º do CCP, a anterior intervenção do interessado em causa (execução defeituosa da obra inicial) não afeiçoa ou molda o novo procedimento.

17.ª Ora, numa situação como a dos presentes autos, a anterior intervenção é evidentemente a causa direta da nova empreitada. Mais: o modo como é executada a empreitada inicial define (afeiçoa e molda) diretamente o âmbito da empreitada destinada à correção dos vícios da obra inicial.

18.ª Em segundo lugar, o Tribunal recorrido admite que o autor da obra inicial possa até deter “um melhor conhecimento do estado de coisas”, considerando porém que essa circunstância não falseia a concorrência.

19.ª Ora, é manifesto que um concorrente nas citadas condições possui um conhecimento direto relativamente às anomalias e defeitos verificados numa obra por si construída e tem um conhecimento específico e completo dos contornos do objeto do contrato a celebrar, que não se resume ao conhecimento acessível a qualquer concorrente. Este conhecimento profundo e histórico coloca o empreiteiro numa situação ímpar e confere-lhe uma vantagem sobre os demais concorrentes que falseia, necessariamente, as condições normais da concorrência.

20.ª Em terceiro lugar, o Tribunal recorrido sustenta a sua oposição à aplicação analógica da alínea j) do artigo 55.º do CCP na circunstância de todos os concorrentes (incluindo o autor da obra a reabilitar) serem confrontados com a mesma descrição nas peças do procedimento do que “é para fazer”. Para o TCA Norte, a informação adicional detida pela Recorrida seria equiparável à informação que os demais concorrentes poderiam alcançar formulando pedidos de esclarecimento, apresentando listas de erros e omissões ou visitando a obra in loco.

21.ª Contudo, o facto de todos os concorrentes serem confrontados com a mesma descrição do objeto do contrato a celebrar não altera o facto de o autor da obra a reabilitar possuir informação privilegiada e não anula a vantagem concorrencial face aos demais concorrentes. Esta vantagem assenta num conhecimento sobre os contornos da obra a realizar inalcançável pelos demais interessados.

22.ª Em quinto lugar, o TCA Norte considera erradamente que «as proibições que têm em conta anteriores relações» se resumem ao disposto no artigo 113.º do CCP. Sendo certo que a citada norma se refere a um impedimento fundado em anteriores relações de “intimidade” com a entidade adjudicante, a verdade é que a alínea j) do artigo 55.º consubstancia também, justamente, um impedimento dessa natureza.

23.ª Por fim, o Tribunal a quo compara a situação dos autos à do lançamento de um procedimento destinado à realização de trabalhos a mais ou de suprimento de erros e omissões, defendendo aparentemente que a simples determinação legal de uma “abertura à concorrência” afastaria a existência de um impedimento relativamente ao empreiteiro inicial.

24.ª Ora, é desde logo manifesto que as situações não são comparáveis. No caso dos trabalhos a mais, está em causa a realização de trabalhos novos, necessários em virtude de circunstâncias imprevistas. Pelo contrário, numa situação como a dos presentes autos, a segunda empreitada (de reabilitação) é resultado direto e exclusivo dos termos em que foi executada a empreitada inicial. É esta circunstância (que não se verifica no caso dos trabalhos a mais) que confere ao empreiteiro da obra inicial um conhecimento específico e completo dos contornos do objeto do contrato a celebrar e justifica a aplicação analógica do disposto no artigo 55.º, alínea j), do CCP.

25.ª Tão-pouco no caso do suprimento de erros e omissões estamos perante trabalhos suplementares devidos a vicissitudes da execução da empreitada inicial. Além disso, não se vislumbra por que motivo a simples abertura à concorrência neste caso afastaria a aplicabilidade de um impedimento ao empreiteiro inicial. Na verdade, nestas situações, o CCP obriga à adopção de um dos procedimentos previstos no CCP (de acordo com o Título I da sua Parte II) e não prevê qualquer inaplicabilidade específica relativamente ao disposto no artigo 55.º do citado diploma.

26.ª A título subsidiário, o TCA Norte invoca ainda uma crítica formulada na doutrina à estatuição automática do impedimento com base na simples constatação de uma relação anterior de intimidade entre o interessado e a entidade adjudicante.

27.ª Ora, desde já, afigura-se que, à luz da atual redação da norma legal em causa, já não se coloca esta questão. Em todo o caso, a verdade é que a conclusão do júri pela exclusão da ora Recorrida assentou na verificação de uma efetiva posição de vantagem que falseia as condições normais de concorrência.

28.ª Decorre de uma indicação elementar de experiência comum, de forma evidente, que a empresa que, a partir do zero, construiu uma obra que apresenta defeitos (defeitos que ela conheceu e que lhe foram notificados) possui um conhecimento privilegiado dessa mesma obra e, para o que aqui interessa, possui claramente um conhecimento privilegiado dos defeitos da obra. Ao admitir a presença de um concorrente investido nesta posição, verifica-se uma assimetria informativa que necessariamente falseia as condições normais de concorrência.

29.ª Perante tudo o que ficou exposto, é forçoso concluir que o Tribunal a quo incorreu num manifesto erro de julgamento e violou as normas jurídicas contidas nos artigos 146.º, n.º 2, alínea c), 55.º, alínea j) e 1.º, n.º 4, todos do CCP, impondo-se a revogação do Acórdão recorrido e a prolação, em sua substituição, de uma decisão no sentido da improcedência dos pedidos formulados pela ora Recorrida no presente processo”.

Termina o autor solicitando que seja dado provimento ao recurso “com as devidas consequências legais”.

1.2. A recorrida contra-alegou, procurando rebater ponto por ponto os argumentos do recorrente relativos ao mérito da causa, concluindo, no essencial, da seguinte maneira (fls 753 e ss):

(i) “No que toca à matéria em apreciação na presente revista, e caso a mesma venha a ser admitida, não procede nenhuma das razões invocadas pela Recorrente para sustentar a revisão da decisão recorrida” (fl. 753).

(ii) “Ainda que se admita que a Recorrida possua um conhecimento mais profundo da obra anterior que os outros concorrentes, ainda assim não adviria desse conhecimento uma vantagem ilícita ou desvirtuadora da concorrência, sendo notório que a Recorrente manifestamente confunde duas realidades muito distintas: as eventuais situações de falseamento da concorrência com a aquisição de vantagens concorrenciais, lícitas e desejáveis, que dados operadores económicos possam deter por efeito, designadamente, da optimização do seu processo de produção, da proximidade dos seus estaleiros face à obra a construir, da melhor negociação obtida com fornecedores e/ou subempreiteiros ou, como sucede no caso dos autos, simplesmente decorrentes do facto de ter sido o empreiteiro de uma obra anterior respeitante à mesma edificação e de ter dela um dado grau de conhecimento.
A Recorrida limitou-se a ser adjudicatária de uma empreitada executada em momento anterior à empreitada que é objecto do procedimento dos autos e, consequentemente, a conhecer os trabalhos que a integraram – o que é manifestamente diverso de conhecer os trabalhos que compõem a empreitada que é objecto do procedimento dos autos, permanecendo esta afirmação rigorosamente válida ainda que se pretenda, como o faz a Recorrente, que a obra que é o objecto do procedimento dos autos se destina (ao menos parcialmente) a corrigir vícios detectados na edificação construída na empreitada anterior” (fl. 755).

(iii)“Se se sufragasse o entendimento preconizado pela Recorrente, sempre que uma empresa tivesse intervindo numa empreitada adjudicada no âmbito de um procedimento público era ficaria ad eternum impedida de participar num procedimento lançado em momento posterior que diga respeito à mesma edificação, porque alegadamente essa empresa teria, como afirma a Recorrente, “um conhecimento privilegiado dessa obra”, e daí resultando a grave e manifesta instituição de fortes e ilícitas restrições à concorrência, que constitui um dos valores ético-jurídicos basilares, senão o valor supremo, do edifício normativo da contratação pública nacional e europeia”.

(iv) “A Recorrente parte da ideia – falsa – de que “a relação contratual anterior, e os termos da sua execução da mesma pela empresa, é causa directa exclusiva da relação contratual a estabelecer” (…), pretendendo assim falaciosamente exprimir a ideia de que o contrato de empreitada da obra anterior foi executado defeituosamente e que é essa execução defeituosa (pela Recorrida) que dá origem ao contrato de empreitada que é objecto do procedimento dos autos. Como se extrai da matéria assente nestes autos, tal asserção revela-se manifestamente abusiva” (fls 755-6).

(v) “A Recorrente parte igualmente da abusiva e indemonstrável presunção de que a Recorrida “detém informação ou conhecimentos sobre aspectos objecto do contrato que os demais concorrentes não detêm” (fl. 756).

(vi) “Contrariamente ao que pretende a Recorrente, o caso dos autos não apresenta qualquer analogia ou semelhança com a previsão do artigo 55.º, alínea j) do CCP, já que, sendo certo e irrecusável que a Recorrida não prestou, quer directa, quer indirectamente, qualquer assessoria ou apoio técnico na preparação e/ou elaboração das peças do procedimento, também não é menos certo que a Recorrida não detém qualquer conhecimento privilegiado das peças do procedimento dos autos” (fl. 756).

(vii) “A previsão contida na alínea j) do art. 55.º do CCP consubstancia uma norma excepcional, na medida em que este preceito claramente estabelece uma restrição à participação dos operadores económicos nos procedimentos de contratuação pública, configurando dessa forma uma excepção ao princípio da concorrência, estando vedado o recurso à analogia sempre que a norma cuja aplicação analógica seja suscitada tenha essa natureza excepcional (cfr. art. 11.º do Código Civil).
Também que não se identifica, na situação sub judice, qualquer lacuna da lei que seja susceptível de integração, sendo a matéria em apreciação nestes autos enquadrável nas situações protegidas e reguladas pelo princípio da concorrência” (fls 756-7).

(viii) “Como vem apontando a jurisprudência e a doutrina a Recorrente tinha o dever de averiguar, em concreto e no caso em questão, a efectiva ocorrência de uma situação desvirtuadora da concorrência – o que, como é sabido, não sucedeu.
A nova redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de Julho à alínea j) do artigo 55.º do CCP só veio dar expressão legal e reforçar a crítica doutrinal, acompanhada pelo TCA Norte, ao “automatismo” na sua aplicação” (fl. 757).

(ix) “Da abertura à concorrência imposta pelas disposições constantes dos artigos 370.º e 376.º do CCP decorre que qualquer interessado poderá participar no procedimento, incluindo o próprio contraente privado no contrato de empreitada de onde decorre a necessidade de execução de trabalhos a mais ou de execução de trabalhos de suprimento de erros e omissões.
Daquelas disposições legais não se extrai, nem directa nem indirectamente, qualquer longínqua restrição à participação, pelo contraente privado, no procedimento que venha a ser lançado, como de resto nada se prevê nesse sentido em qualquer outra norma do Título I da Parte II do CCP (a menos, bem entendido, que se trate de uma situação subsumível ao art. 113.º), e isso apesar de o contraente privado poder, com muita probabilidade – para não dizer com toda a certeza –, estar em condições de propor um preço optimizado: por um lado, possui já uma estrutura de produção da empreitada instalada no local da execução dos futuros trabalhos; por outro, e mais relevante para o que aqui nos ocupa, detém abundante informação técnica da empreitada e dos trabalhos que venham a ser adjudicados na sequência do procedimento” (fl. 757).

(x)Evidencia-se aqui a falácia em que assenta a argumentação da Recorrente, quando afirma que “a empreitada de reabilitação é (…) causa directa e exclusiva da relação contratual anterior e dos termos em que esta foi executada”, asserção essa em que assenta toda a sua argumentação mas que é categoricamente falsa e indemonstrável face à matéria assente, dando-se aqui por reproduzido tudo quanto acima se afirmou a este respeito” (fls 757-8).

(xi) “Como muito acertadamente decidiu o TCA Norte na decisão aqui em recurso, não existe qualquer impedimento à participação da aqui Recorrida ao procedimento dos autos, sendo absolutamente insustentável qualquer pretensa aplicação analógica da previsão da alínea j) do artigo 55.º do CCP à situação sub judice” (fl. 758).

(xii) “Mas, ainda que se pudesse afirmar poder hipoteticamente existir, em tese, qualquer impedimento a essa participação, o certo é que a Recorrente não permitiu à Recorrida demonstrar a inexistência, em concreto, de qualquer falseamento da concorrência e muito menos fez prova da sua ocorrência, limitando-se a basear a exclusão da Recorrida em asserções insustentáveis e em presunções inadmissíveis” (fl. 758).

(xiii) “A presente revista ser julgada totalmente improcedente, sendo manifesto que o Tribunal a quo decidiu muito acertadamente, em conformidade com a matéria assente e com o quadro legal aplicável, não padecendo a decisão recorrida de qualquer erro – e muito menos de qualquer erro grave ou manifesto – como pretende injustificadamente a Recorrente” (fls. 758-9).

Termina a recorrida sustentando que “deverá ser recusada a presente revista, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 150.º do CPTA; Ou, quando assim não se entenda, Deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a douta decisão recorrida” (fl. 759).

3. O presente recurso de revista excepcional foi admitido por acórdão da formação prevista no artigo 150.º do CPTA, de 06.03.2014, com vista a proporcionar uma melhor aplicação do direito relativamente a uma questão jurídica complexa e “com probabilidade de recorrência, afectando e condicionando a vida empresarial das empresas e a gestão dos órgãos públicos, merecendo o mesmo “ser objecto de apreciação (…) de modo a que ela possa servir de referente para situações futuras” (fls 772-3).

4. Devidamente notificado para se pronunciar, querendo, sobre o mérito do recurso (art. 146.º, n.º 1, do CPTA), o Digno Magistrado do MP não emitiu qualquer parecer ou pronúncia (fl. 779).

5. Sem vistos, dado o disposto no artigo 36.º, n.os 1, al. b), e 2 do CPTA, vêm os autos à conferência para decidir.


II – Fundamentação

1.De facto:

A matéria de facto com interesse para a decisão é a que consta da decisão recorrida, para a qual se remete, ao abrigo do n.º 6 do artigo 663.º do CPC.

2. De direito:

Como decorre das conclusões das alegações do recorrente, é objecto do presente recurso de revista excepcional a seguinte questão por si suscitada:

“Saber se, no âmbito de um procedimento pré-contratual conducente à celebração de um contrato unicamente destinado à correcção de defeitos e anomalias resultantes da execução de uma obra anterior, pode ou não ser excluída a proposta apresentada pelo empreiteiro que executou a obra inicial, com fundamento no disposto no artigo 146.º, n.º 2, alínea c), e por força do artigo 55.º, alínea j), aplicado por analogia quanto à sua primeira parte e em articulação com o princípio da concorrência consagrado no artigo 1.º, n.º 4, todos do CCP” (fls 770-1).

Para justificar o recurso de revista excepcional, o recorrente invocou “a elevada frequência com que ocorrem factos semelhantes aos dos presentes autos” (relevância jurídica e social) e a errada aplicação do direito por parte do TCAN (melhor aplicação do direito), ambos os argumentos rejeitados pela recorrida. Distinta convicção foi a assumida no acórdão que admitiu o presente recurso, em que se fala de uma “questão jurídica complexa” e “com probabilidade de recorrência” a necessitar de uma solução jurídica que “possa servir de referência para situações futuras”.

Não obstante, é fundamental referir que a Directiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.02.14, ainda não transposta para a ordem jurídica interna, se preocupou e foi sensível a este tipo de situações em que um determinado operador económico se revelou menos fiável aos olhos da entidade adjudicante, chamando a atenção para a necessidade de a entidade ajudicante, enquanto “responsável pelas consequências da sua decisão eventualmente errada”, e tendo dúvidas quanto à fiabilidade de um determinado operador económico, gozar de uma certa margem de liberdade de apreciação, designadamente quando se trata de excluir proponentes(101.). De forma mais concreta, o artigo 57.º (Motivos de exclusão), n.º 4, alínea g) dispõe do seguinte modo: “As autoridades adjudicantes podem excluir ou podem ser solicitadas pelos Estados-Membros a excluir um operador económico da participação num procedimento de contratação, numa das seguintes situações: (…) g) Se o operador económico tiver acusado deficiências significativas ou persistentes na execução de um requisito essencial no âmbito de um contrato público anterior, um anterior contrato com uma autoridade adjudicante ou um anterior contrato de concessão, tendo tal facto conduzido à rescisão antecipada desse anterior contrato, à condenação por danos ou a outras sanções comparáveis”.

Como se disse, esta Directiva ainda não foi transposta, não sendo aplicável na ordem interna. Seja como for, o recorrente abordou a questão dos autos sob uma perspectiva algo distinta, focando-se no problema do alegado falseamento da concorrência. Porventura devido ao facto de a taxatividade das causas de exclusão dos procedimentos pré-contratuais, decorrente do direito europeu, valer para todas as alíneas do artigo 55.º, excepto para a alínea j), conclusão que encontra suporte na jurisprudência do TJUE tal como delineada no caso Assitur, citado nos autos. Ou seja, valer para todas alíneas do artigo 55.º que se referem a razões ligadas à honestidade profissional, à solvabilidade ou à fiabilidade dos operadores económicos – às suas qualidades profissionais, portanto.

Na tentativa de encontrar uma solução para a questão em apreço, o recorrente chega a aventar a hipótese da aplicação directa do princípio da concorrência, considerando o “valor normativo autónomo deste princípio geral da contratação pública” (conclusão 6.ª das alegações de recurso) – o que, aliás, segundo o mesmo, seria uma razão acrescida para justificar a admissão do recurso de revista excepcional –, acabando, porém, por se concentrar em três preceitos do Código de Contratos Públicos (CCP), os artigos 1.º, n.º 4, 55.º, al. j) e 146.º n.º 2, cujo conteúdo passamos a reproduzir:

Artigo 1.º (Âmbito)
“(…)

4. À contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência”.

Artigo 55.º (Impedimentos)

“Não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento as entidades que:

(…)

j) Tenham a qualquer título prestado, directa ou indirectamente, assessoria ou apoio técnico na preparação e elaboração das peças de procedimento que lhe confira vantagem que falseie as condições normais de concorrência”.

Artigo 146.º (Relatório preliminar)

(…)

2. No relatório preliminar a que se refere o número anterior, o júri deve também propor, fundamentadamente, a exclusão de propostas:

(…)

c) Que sejam apresentadas por concorrentes relativamente aos quais ou, no caso de agrupamentos concorrentes, relativamente a qualquer um dos seus membros, a entidade adjudicante tenha conhecimento que se verifica alguma das situações previstas no artigo 55.º”.

O raciocínio que subjaz à pretensão do recorrente é de fácil apreensão. A entidade adjudicante excluiu a recorrida ao abrigo do n.º 2 do artigo 246.º, uma vez que entendeu que se verificava uma situação à qual, segundo a sua convicção, pode ser aplicada por analogia a alínea j) do artigo 55.º. Estando em causa uma situação de alegado falseamento do princípio da concorrência, é convocado igualmente o n.º 4 do artigo 1º, todos, como se disse, do CCP.
Recorre, como se viu, da decisão do TCAN, de 25.09.14, a qual revogou a decisão do TAF de Coimbra, “decretando a anulação da exclusão da recorrente – assim readmitida ao procedimento – , e bem assim a anulação da subsequente adjudicação” (fl. 559). Baseia o seu recurso em vários erros que assaca ao acórdão recorrido e que cumpre apreciar.

1. O artigo 55.º, al. j), do CCP, e a questão da sua aplicação analógica

Como decorre do até agora exposto, a questão de direito aqui envolvida gira em torno da possibilidade da aplicação analógica da alínea j) do artigo 55.º do CCP ao caso dos autos, sustentada pelo recorrente, contrariada pela recorrida, e negada pelo TCAN, quanto a estes últimos, por distintos motivos. Efectivamente, o TCAN afastou a aplicação do artigo 55.º, al. j) do CCP sem enfrentar directamente a questão da excepcionalidade da normação aí contida, não enveredando, pois, pela discussão acerca da adequação ou desadequação da aplicação analógica daquele preceito ao caso dos autos. Ainda assim, esta questão foi trazida pela recorrida nas suas contra-alegações de recurso, pelo que os argumentos por si esgrimidos serão oportunamente apreciados.
A alínea j) do artigo 55.º do CCP, à semelhança das restantes alíneas do mesmo preceito, consagra um impedimento à participação em procedimentos de formação de contratos públicos. Nem todas elas, porém, possuem a mesma razão justificativa, sendo certo que alguns impedimentos à apresentação de propostas obedecem a mais do que uma razão. Assim, com a alínea j), e também, em certa medida, com as alíneas d) e e), visa-se a protecção da imparcialidade e da concorrência efectiva nos procedimentos de formação de contratos. Já com as alíneas b) a i) o que se pretende é a tutela da exigência da coerência ou não-contradição no acesso aos mercados públicos. Finalmente, nas alíneas a), b) e c) é patente a preocupação com o perigo de não cumprimento do contrato.
A alínea j) do artigo 55.º do CCP tem sido de alvo de críticas pela doutrina, quer quanto à sua abrangência (largamente motivada pela vaguidade das expressões empregadas na sua formulação), quer quanto à automaticidade da sua aplicação. Tendo este último aspecto sido aflorado pela decisão recorrida e, de igual modo, tendo sido utilizado pela recorrida como argumento para sustentar a sua posição, necessária se torna a sua apreciação, o que se fará mais adiante.
De momento, cabe apenas mencionar que nem a alínea j) do artigo 55.º do CCP nem qualquer outro preceito deste código prevê especificamente este tipo de situação em que um empreiteiro que executou uma obra que apresenta anomalias e defeitos e que se recusou a obedecer à ordem do dono da obra no sentido de corrigir ditas anomalias e defeitos, se apresenta, posteriormente, a um procedimento pré-contratual lançado pela mesma entidade adjudicante e destinado à reparação, precisamente, de ditas anomalias e defeitos. Isto não significa necessariamente que estejamos perante uma lacuna de regulamentação. Esta não é, todavia, uma questão com a qual tenhamos de nos preocupar aqui e agora, haja em vista que em qualquer dos casos (trate-se ou não de uma lacuna em sentido técnico), sempre seria possível, em tese, a extensão da sua aplicação ao caso dos autos. Efectivamente, atendendo ao mesmo, à situação recortada na alínea j) do artigo 55.º, e, ainda, à teologia que lhe subjaz (assegurar a imparcialidade e uma concorrência sã e efectiva no âmbito dos procedimentos pré-contratuais), não é totalmente descabido afirmar-se que estamos perante casos análogos. Com efeito, e segundo prelecciona Baptista Machado (ob. cit., p. 202), “Dois casos dizem-se análogos quando neles se verifique um conflito de interesses paralelo, isomorfo ou semelhante – de modo a que o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro (cfr. o n.º 2 do art. 10.º)”.
Alega a recorrida – e esta é uma primeira questão a enfrentar, pois, se tiver razão, tudo o mais fica prejudicado – que não é possível a aplicação analógica da alínea j) do artigo 55.º, uma vez que, tratando-se de norma excepcional, não é admissível, nos termos do artigo 11.º do Código Civil (CC), esse tipo de aplicação (vide fls 756-7). O carácter excepcional, ainda segundo a recorrida, deve-o a, tratando-se de um impedimento à contratação, consubstanciar uma excepção ao princípio da concorrência.
Atentemos nas seguintes palavras de Rodrigo Esteves de Oliveira: “(…) a proibição ou limitação de acesso dos operadores económicos aos procedimentos de contratação pública, que é um sector dominado pelo paradigma da concorrência e que tem no mercado o seu suporte, suscita, quase por natureza, diríamos, questões juridicamente delicadas. Se mais não fosse, porque o tal princípio da concorrência não é de sentido único, apontando, a um tempo, para a maior concorrência possível (arvorando-se num princípio «favor participationis») e, a outro, para uma concorrência sã, sem condições que a falseiem. Ali, portanto, o princípio será um obstáculo à instituição de barreiras jurídicas de acesso à contratação pública, aqui, pode ser o seu fundamento” (“Empresas em relação de grupo e contratação pública”, in Revista de Contratos Públicos, n.º 2, Maio-Agosto 2011, p. 90).
Com base no exposto, e considerando especificamente a ratio da alínea j) do artigo 55.º, diríamos que o bem por ela protegido é também o da concorrência efectiva e sã, pelo que a exclusão das entidades em relação às quais se verifique uma das situações aí previstas não pode ser vista como uma excepção, antes como uma concretização do princípio da concorrência nesta particular formulação.
Assim, em relação a este aspecto não assiste razão à recorrida. Pelo que importa apreciar se, face à matéria de facto assente, a recorrida podia ter sido, como foi, excluída do concurso com recurso à aplicação analógica da alínea j) do artigo 55.º do CCP. Isto é, se a circunstância de a empreitada se destinar a corrigir defeitos de uma obra alegadamente resultantes da deficiente execução, pela recorrida, da mesma, a torna, por si só, detentora de ‘informação privilegiada’ susceptível de falsear a concorrência.

2. O princípio da concorrência

O princípio da concorrência assume um papel fundamental no âmbito da contratação pública, nomeadamente no que se refere aos procedimentos concursais. É importante salientar esta específica ligação, uma vez que, como salienta Rodrigo Esteves de Oliveira, “A concorrência não se realiza (…) segundo um modelo ou espécie única, nem se projecta sempre da mesma maneira ou com o mesmo rigor em todos os procedimentos. É máxima nas hastas e nos concursos públicos e vai decrescendo em exigência, ao passar-se para o concurso limitado, até chegar aos procedimentos de negociação, onde já são maiores os desvios admitidos à sua observância, por força da própria natureza desses procedimentos” (vide Rodrigo Esteves de Oliveira, “Os princípios gerais da contratação pública”, in Estudos da Contratação Pública, I, Coimbra, 2008, p. 68).
É possível descortinar dois sentidos subjacentes a este princípio, quais sejam, o de assegurar a participação do maior número possível de candidatos e concorrentes nos procedimentos concursais, e o de garantir uma efectiva e sã concorrência entre eles, ambos associados à boa prossecução do interesse público embora em diferente medida.
Sendo certo que “muitas das potencialidades jurídicas que se lhe assacam poderem igualmente imputar-se ao princípio da igualdade e a outros (como os da imparcialidade, da transparência e da publicidade), com maior lastro histórico e dogmático, o princípio da concorrência é actualmente a verdadeira trave-mestra da contratação pública, uma espécie de umbrella principle, tornando aqueles corolários ou instrumentos seus ou, se se quiser, ‘contaminando-os’, exigindo ao intérprete que proceda à densificação de tais princípios numa perspectiva concorrencial ou segundo a lógica e objectivos da contratação pública” (Rodrigo Esteves de Oliveira, “Os princípios gerais”, cit., pp. 66-7).
O princípio em análise, presente nas directivas europeias de contratação pública de 2004, tem várias refracções no CCP, em especial no já mencionado artigo 1.º, n.º 4, e no artigo 70.º, n.º 2, al. g) (“São excluídas as propostas cuja análise revele: (…) A existência de fortes indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras da concorrência”). O artigo 55.º, al. j), por sua vez, está mais directamente ligado ao princípio da imparcialidade (a observar pela Administração) e à ideia do conflito de interesses (mais direccionada à posição ou situação do candidato ou concorrente), sendo certo, porém, que uma actuação parcial da Administração poderá e tenderá a redundar num falseamento da concorrência. Esta mesma ideia encontra-se reflectida no aditamento que foi introduzido, em 2012, na parte final da alínea j) do artigo 55.º do CCP (“que lhes confira vantagem que falseie as condições normais da concorrência”).
A entidade adjudicante tem um papel importante a desempenhar no controlo de eventuais condutas anti-concorrenciais, desde logo de forma preventiva, na preparação do procedimento de contratação e ainda antes do acto de adjudicação, colocando todo o rigor na definição das peças procedimentais, que, tratando-se, como no caso dos autos, de um concurso público, são o programa do procedimento e o caderno de encargos. Também ao júri do concurso está reservado um papel de destaque na detecção de condutas anti-concorrenciais aquando da avaliação das propostas. Para tanto, nos termos do artigo 72.º do CCP, poderá “pedir aos concorrentes quaisquer esclarecimentos sobre as propostas apresentadas que considere necessários para efeito da análise e da avaliação das mesmas”.

3. Erro de julgamento relativo à possibilidade de aplicação analógica do artigo 55.º, al. j), do CCP

Feita esta breve explicação, apreciemos, então, os alegados erros de julgamento em que terá incorrido o acórdão recorrido ao não considerar verificado o aludido impedimento. Segundo o recorrente, o acórdão recorrido recusou a aplicação analógica da alínea j) ao caso dos autos pelos seguintes motivos:

(i) “(…) ao contrário das situações pressupostas na alínea j) do artigo 55.º do CCP, a anterior intervenção do interessado em causa (execução defeituosa da obra inicial) não afeiçoa ou molda o novo procedimento” (conclusão 16.ª).

(ii) (…) o Tribunal recorrido admite que o autor da obra inicial possa até deter “um melhor conhecimento do estado de coisas”, considerando porém que essa circunstância não falseia a concorrência” (conclusão 18.ª).

(iii) “(…) o Tribunal recorrido sustenta a sua oposição à aplicação analógica da alínea j) do artigo 55.º do CCP na circunstância de todos os concorrentes (incluindo o autor da obra a reabilitar) serem confrontados com a mesma descrição nas peças do procedimento do que “é para fazer”. Para o TCA Norte, a informação adicional detida pela Recorrida seria equiparável à informação que os demais concorrentes poderiam alcançar formulando pedidos de esclarecimento, apresentando listas de erros e omissões ou visitando a obra in loco” (conclusão 20.ª).

(iv) “(…) o TCA Norte invoca ainda uma crítica formulada na doutrina à estatuição automática do impedimento com base na simples constatação de uma relação anterior de intimidade entre o interessado e a entidade adjudicante” (conclusão 26.ª).

Antes de tudo, é importante afirmar que, como facilmente se compreenderá, pretendendo-se que a alínea j) do artigo 55.º seja aplicada ao caso dos autos pela via analógica, não há que argumentar, como a certa altura o faz a recorrida, que ela própria “não detém qualquer conhecimento privilegiado das peças do procedimento dos autos” (fl. 756). O mesmo haverá que ser dito em relação à ideia, expressa pelo TCAN, de que a anterior intervenção da recorrida não afeiçoa ou molda o novo procedimento concorrencial [“O que não se quer é que, fazendo perigar os princípios básicos, anteriores relações/intervenções possam afeiçoar ou moldar o novo procedimento concorrencial. Ora, não vemos que isso seja hipótese simplesmente por, numa situação até em litígio, a nova empreitada se destinar à eliminação de alegados ‘defeitos’ de anterior empreitada em que a autora foi adjudicatária” – fl. 557] – (i). A ideia de que uma anterior relação entre uma das concorrentes e a entidade adjudicante pode levar a primeira a moldar e afeiçoar as peças de procedimento (v.g., o caderno de encargos) de modo a favorecer a proposta que venha ulteriormente a apresentar faz todo o sentido quando ela tenha participado na preparação do procedimento nos moldes previstos na alínea j) do artigo 55.º. Já não faz sentido no caso em análise, em que cabe tão somente apreciar se a recorrida, em virtude de ter executado a obra cujos defeitos e anomalias se pretendem corrigir com a nova obra a concurso, se encontra numa situação de vantagem em relação aos outros operadores económicos, susceptível de falsear a concorrência. Designadamente, se possui um conhecimento da obra e dos seus defeitos e anomalias não garantidamente acessível aos outros concorrentes ou apenas acessível mediante o dispêndio de um esforço exagerado ou desproporcional.

Relativamente à questão da automaticidade da aplicação da alínea j) do artigo 55.º (iv), não há como refutar que era criticada, mas não negada por alguma doutrina, que nela reconhecia uma clara opção legislativa, não muito consentânea com o que lhes parecia ser a orientação do TJUE, e, de todo o modo, com a qual não concordavam inteiramente. Em particular quando aplicável à situação tipificada na alínea j) (vide Margarida Olazabal Cabral, “O artigo 55.º, alínea j), do Código dos Contratos Públicos: mais vale ser do que parecer”, in Revista dos Contratos Públicos, n.º 1, Janeiro-Abril 2011, pp. 128 e ss), e, de igual forma, a outras situações igualmente ricas e complexas, como aquela em que se verifica a participação simultânea de empresas em relação de grupo no mesmo procedimento adjudicatório (Rodrigo Esteves de Oliveira, “Os princípios gerais”, cit., pp. 98-9), riqueza e complexidade a justificar porventura um tratamento casuístico dos vários casos que se vão surgindo.
Independentemente do mérito ou demérito das críticas, o que é importante agora afirmar é que, pelo menos até 2012, o teor do artigo 55.º, alínea j), apontava claramente para a sua operatividade automática (“Também por essa desconfiança o legislador terá optado por ser ele mesmo a estabelecer uma regra ‘cega’ de proibição, sem abertura aparente às circunstâncias concretas do caso”; “Ou seja, ao contrário da solução constante do artigo 55.º, alínea j), do CCP, que, literalmente, configura um impedimento automático, para o qual é suficiente a prova da assessoria ou apoio técnico, a solução constante da jurisprudência comunitária assenta numa espécie de inversão do ónus da prova e num procedimento contraditório: à entidade adjudicante ou aos outros concorrentes cabe demonstrar o facto da assessoria ou do apoio técnico, ao concorrente a quem é imputado tal facto cabe, por sua vez, demonstrar, em incidente procedimental, que «nas circunstâncias do caso concreto, a experiência [que adquiriu] não pode ter falseado a concorrência”; respectivamente, Margarida Olazabal Cabral, ob. cit., p. 133, e Rodrigo Esteves de Oliveira, “Os princípios gerais”, cit., p. 98).
Além das críticas doutrinais, é de salientar que também a jurisprudência nacional se inclinou para uma solução de apreciação casuística, sustentada em alguns arestos (v.g., Acórdão do STA de 11.01.2009 (proc. n.º 851/10); Acórdãos do TCAS de 30.09.2010 e de 03.02.2011 (procs n.os 651/10 e 6545/10), em que foi tratada situação igualmente não contemplada na legislação nacional, nomeadamente no CCP.
O legislador nacional, porventura sensível a essas críticas doutrinais e a uma certa orientação jurisprudencial que se estava a firmar, veio, através do DL n.º 149/2012, de 12 de Julho, aditar o inciso final que actualmente consta da alínea j) do artigo 55.º: “que lhes confira vantagem que falseie as condições normais da concorrência”. Este acrescento, que aponta no sentido da quebra do automatismo da aplicação desta alínea. Só é possível considerar impedido um candidato ou concorrente se a situação suspeita permitir um juízo positivo de que, por via dela, está constituído numa situação de vantagem relativamente ao universo de concorrentes potenciais que falseie as condições normais da concorrência. Exigência que, colocando-se para a situação típica expressamente prevista, obriga a um escrutínio ainda mais severo quando no impedimento se pretender fazer caber situações de informação privilegiada lícita não expressamente contempladas. O que justifica a analogia é a necessidade de prevenir, na situação não prevista, os mesmos resultados lesivos para os princípios fundamentais do acesso aos mercados públicos que ditou a previsão legislativa. O ónus da argumentação e prova da ocorrência da lesão ou perigo de lesão para esses bens protegidos é aqui particularmente intenso.

No que concerne às críticas expressas em (ii) e (iii), o recorrente sustenta que houve uma valoração inapropriada dos factos relevantes, tendo o acórdão recorrido decidido mal ou contra os factos apurados (erro de julgamento).Essencialmente, alega que o conhecimento completo, profundo e histórico que o empreiteiro anterior tem da obra o coloca numa situação inigualável no concurso para a nova empreitada destinada a corrigir os defeitos e anomalias que a obra apresenta.

Há aqui que sublinhar que, quer a recorrida, quer, depois, o TCAN não descartam esse melhor conhecimento.
A recorrida admite um melhor conhecimento da obra e dos trabalhos a realizar, embora sustente que esses conhecimentos foram adquiridos licitamente, pelo que não se verifica uma situação de falseamento da concorrência. Além disso, a recorrida alega que a familiaridade que tem da obra não lhe confere um melhor conhecimento do novo procedimento concursal.
Já o TCAN considerou que esse melhor conhecimento, em si mesmo, não implica necessariamente um falseamento da concorrência. Concretiza esta sua afirmação sustentando que os outros concorrentes se poderiam colocar na mesma posição de “vantagem” em que se encontra a recorrida se se dispusessem a procurar obter informações e a inteirar-se do estado da obra.
Passemos à análise da argumentação do TCAN, a que mais nos interessa para efeitos de apreciação de um eventual erro de julgamento, dir-se-á, antes de mais, que não é descabido pensar que os restantes opositores poderiam colocar-se no mesmo patamar de conhecimento da obra e das sua anomalias e defeitos, e isto, sem os obrigar a esforços exagerados ou desproporcionais (pois, se tal sucedesse, a inerente vantagem de facto da recorrida que decorre da circunstância de ter sido ela a executar a obra poderia, efectivamente, redundar numa vantagem económico-financeira na elaboração da sua proposta, qual seja, a de apresentar uma proposta com menores custos, o que se afigura uma vantagem não negligenciável se o critério de adjudicação for o de preço mais baixo). Designadamente, analisando as peças do concurso, visitando a obra e confrontando a Administração com os pedidos de esclarecimento que entendessem necessários. Apenas é configurável como informação privilegiada falseadora da concorrência em situações deste género aquela que afecte de modo sensível a preparação da proposta ou a execução do contrato relativamente a elementos sujeitos à concorrência do mercado, e que não possa ser neutralizada através dos deveres de preparação e completude das peças do procedimento e de informação complementar, a cargo da entidade adjudicante, e das exigências de devida diligência dos concorrentes.
E competia ao recorrente provar o contrário, ou seja, que, de facto, havia uma situação susceptível de fomentar o falseamento da concorrência. Era imprescindível, tendo em consideração as circunstâncias concretas do caso dos autos, saber se, cumprindo a Administração todos os seus deveres no procedimento concursal, apesar disso, os outros proponentes estavam impedidos de colocar-se na mesma situação de conhecimento da recorrida. De igual modo, era imprescindível avaliar se os esforços logísticos, materiais, económicos e outros a dispender para se tentar chegar a essa igualdade de facto eram desproporcionais ou, em todo o caso, insuficientes ou de resultado incerto.

Em relação à solução jurídica a dar ao caso vertente, temos que o TCAN seguiu um dos caminhos em princípio viáveis: a recorrida encontrava-se numa situação de vantagem, mas o recorrente não logrou demonstrar que essa vantagem falseava a concorrência, nomeadamente por não ser susceptível de correcção – a qual evitaria um tal falseamento. Vale por dizer, o “melhor conhecimento” ou o “conhecimento privilegiado” de uma obra a executar ou de um serviço a prestar não são automaticamente sinónimos de falseamento ou distorção da concorrência. A valia deste argumento é indiscutível. Além da argumentação usada pelo TCAN, pense-se, por exemplo, na posição dos prestadores de serviços incumbentes (excluídos, à partida, os casos em que detenham uma posição dominante) ou dos contratantes actuais por oposição à dos prestadores de serviços concorrentes no âmbito de um procedimento destinado à adjudicação de um novo contrato público com o mesmo objecto.
Na verdade, o recorrente, além da circunstância de a recorrida ter executado a obra defeituosa e de conhecer as anomalias e defeitos, não descreveu quaisquer outros factos materiais concretos reveladores do dito falseamento, não logrando por isso mesmo fazer a prova do mesmo.
Perante isto, não se pode dar como provada a verificação de uma situação de falseamento da concorrência, em virtude da insuficiente alegação, por parte do recorrente, de factos aptos a uma tal prova. Se em tese era possível convocar o artigo 55.º, al. j), do CCP, e aplicá-lo ao caso dos autos, ainda que o mesmo não esteja nele expressamente contemplado, a verdade é que não conseguiu demonstrar-se a existência de uma situação de falseamento da concorrência, e só essa demonstração poderia justificar aquela solução.
Deste modo, o fundamento da revista não pode ser julgado procedente, pois aquilo que o recorrente alegou para demonstrar a sua discordância relativamente a este específico fundamento da decisão não é per se suficiente para justificar a revisão da decisão para uma melhor aplicação do direito, devendo improceder este fundamento do recurso.
Presente a realidade concreta que emerge dos autos, o acórdão recorrido deve, pois, manter-se. Fica deste modo prejudicado, nos termos do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, o conhecimento dos alegados erros de julgamento relativos à interpretação do artigo 113.º e à interpretação e aplicação dos artigos 370.º e 376.º, todos do CCP.

3. Decisão


Nos termos, e com os fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 12 de Março de 2015. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Alberto Augusto Andrade de Oliveira.