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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01561/19.6BEPRT
Data do Acordão:07/15/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULO ANTUNES
Descritores:INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
Sumário:Se o recorrente do recurso principal põe em causa matéria de facto, extrai ilações de facto da que foi fixada e põe em causa o decidido quanto à caducidade do direito de acção - extemporaneidade da reclamação, resulta a incompetência em razão da hierarquia do S.T.A. para apreciar os recursos interpostos - artigos 280.º n.º 1 do C.P.P.T., na redacção dada pela Lei n.º 118/2019, de 17/9, e 26.º b) do E.T.A.F..
Nº Convencional:JSTA000P26228
Nº do Documento:SA22020071501561/19
Data de Entrada:05/20/2020
Recorrente:PETRÓLEOS DE PORTUGAL – PETROGAL, SA. E OUTROS
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO



I. Relatório.

1. O Município de Matosinhos veio interpor recurso, a 12-2-2020, da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto proferida a 29-1-2020 que julgou tempestiva a reclamação apresentada por Petrogal-Petróleos de Portugal, S.A. e a final a mesma parcialmente procedente, com alegações, em que concluiu do seguinte modo:
DA CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
DA EXTEMPORANEIDADE DA RECLAMAÇÃO:
1ª) A Reclamante, foi notificada, por ofício de 27/06/2017, Ofício de saída n.º 15098, para que procedesse ao pagamento de juros de mora em falta desde Março de 2015, como resulta dos factos provados 9 e 11, bem como do processo administrativo;
2ª) Foi incorrectamente que o tribunal a quo entendeu que apenas com a notificação do Ofício com registo de saída n.º 12520, datado de 27 de Maio de 2019, a Reclamante foi notificada para o pagamento dos juros, devida e formalmente, devendo a reclamação ser feita contra esse acto expresso;
3ª) Primeiro, porque não foi, como se verteu na sentença em análise, apenas com o recebimento do acto reclamado que tomou conhecimento do fundamento da cobrança dos juros pois já com o primeiro esclarecimento da primeira notificação a recorrida tinha sido informada de qual o fundamento para a cobrança dos juros, como resulta do facto provado n.º 11;
4ª) Pois do esclarecimento prestado em 31/07/2017, esclarecimento do acto que lhe foi notificado em 27/06/2017, retira-se que o pagamento deveria ser feito “nos termos do n.º 3 da Cláusula 1.ª do acordo celebrado com o Município”, e dessa cláusula consta “Sobre os montantes referidos nas alíneas d), e) e f) do número anterior incidem juros nos termos legais.”.(facto provado n.º 11)
5ª) Não é certo que com o ato consubstanciado na notificação de 27/05/2019 tenham sido aditados à decisão novos pressupostos que até então não tinham sido aventados, porque a reclamante sempre foi notificada para pagar os mesmos juros de mora, devidos nos termos legais, no mesmo valor, desde a mesma data, relativos ao mesmo processo, tendo subjacente o mesmo acordo de dação em cumprimento;
6ª) Só com grande esforço se poderia chegar à tese, mencionada na sentença em análise, de que estariam em causa notificações sem identidade de pressupostos e de circunstâncias – não tendo sequer tal sido afirmado pela Reclamante, que sempre soube estar em causa a mesma liquidação.
7ª) Foi a reclamante – e não qualquer outra pessoa ou entidade – quem celebrou o acordo com o reclamado, tendo por isso negociado, discutido e previamente tomado perfeito conhecimento dos termos do acordo, sabendo, desde então, que era ao abrigo do regime das leis tributárias que os juros lhe seriam cobrados, em caso de aplicação da sobredita cláusula, não podendo valer-se de qualquer pretexto de desconhecimento da lei ou do teor do acordo que negociou e outorgou;
8ª) Carece totalmente de credibilidade o argumento aventado pela sentença de desconhecimento do fundamento para o pagamento de juros quando, ainda para mais, eles foram sendo pagos relativamente a todas as anteriores prestações estabelecidas no acordo;
9ª) Segundo, o acto reclamado não constitui qualquer suprimento de notificação deficiente resultante de pedido feito ao abrigo dos artigos 36º e 37º do C.P.P.T. antes, como resulta do mesmo, tratou-se de mera resposta a um requerimento da recorrida de 06/05/2019 para efectuar a dação em cumprimento, em que, complementarmente e voluntariamente, o Município descreve o processo e, por excesso e em acréscimo, relembra a obrigação de pagamento que já fora notificada à reclamante, porque integrante do processo.
10ª) O que o acto indevidamente reclamado contém é uma descrição exaustiva do processo, em 15 pontos, que não são, como se pretende na sentença em crise e transcrito em 10º supra, um “aditar à decisão de novos pressupostos que até então não tinham sido aventados” !!!!
11ª) Não há, como pretenderia o Tribunal a quo, qualquer acto novo sobre outro assunto, mas mera referência ou repetição do conteúdo do acto já notificado: é a mesma cobrança de juros, com o mesmo valor, que diz respeito ao mesmo acordo, reiterando-se que a obrigação de pagamento decorre da lei (como consta do contrato) e não de qualquer cláusula contratual;
12ª) E, portanto, ao invés do que pretenderia o tribunal a quo, uma mera repetição, um verdadeiro acto confirmativo do acto que foi notificado em 27/06/2017, e que não é impugnável, nos termos do artigo 53º, n.º 1 do C.P.T.A.;
13ª) A lei não permite ao reclamante que peça, ad eternum, esclarecimentos sobre notificações deficientes, ao abrigo dos artigos 36º e 37º do CPPT;
14ª) Caso contrário, estaria encontrado o mecanismo para que o reclamante garantisse que um acto nunca mais estivesse fixado na sua esfera jurídica, solicitando esclarecimentos, sempre que bem entendesse, e arquitectando permanentes dúvidas sobre o teor do acto notificado.
15ª) No procedimento em questão, como visto acima, foi-lhe notificado o Ofício de 27/06/2017 (cfr. factos provados 9 e 11) no seguimento do que a reclamante apresentou um pedido de esclarecimento nos termos dos artigos 24.º, 36.º e 37.º do C.P.P.T. (cfr. facto provado 10), e como resulta do texto da sentença a fls. 33.
16ª) Manda a lei, de forma expressa e clara, no n.º 2, do artigo 37º, do C.P.P.T., que “Se o interessado usar da faculdade concedida no número anterior, o prazo para a reclamação, recurso, impugnação ou outro meio judicial conta-se a partir da notificação ou da entrega da certidão que tenha sido requerida.”, o que a reclamante devia ter feito após recebimento do primeiro esclarecimento do acto notificado em 27/06/2017.
17ª) Em vez disto, a reclamante decidiu voltar a considerar-se e declarar-se insatisfeita com a resposta recebida e, como a própria sentença em análise bem confirma, a fls. 33 e se extrai do processo administrativo, “Em 14/08/2017, a Reclamante volta a insistir na emissão de tal certidão (…)” nos termos dos artigos 36.º e 37.º do CPPT e voltou, ainda, a questionar a legalidade dos juros em outra carta datada de 08/04/2019, como resulta do processo administrativo, da sentença a fls. 33 e do facto provado n.º 16.
18ª) Ainda que o primeiro esclarecimento de 31/07/2017, do acto que lhe fora notificado em 27/06/2017, fosse insuficiente – e tal apenas o tribunal podia declarar, e não a recorrida - e esse acto continuasse sem fundamentação (o que se equaciona por dever de patrocínio e sem conceder) a solução processual era reclamar do mesmo, e não apresentar sucessivos pedidos esclarecimentos, o que o artigo 37º do C.P.P.T não permite;
19ª) O tribunal é que, recebida a reclamação, apreciaria se existia ou não algum vício no acto de 27/06/2017, que não tivesse sido suprido com o esclarecimento prestado ao abrigo do art. 37º do CPPT, e que devesse ser declarado;
20ª) O envio constante de pedidos de esclarecimentos não constitui fundamento para que lhe seja concedido diferente prazo para reclamar do acto de 27/06/2017 que originalmente a notificou para pagamento, que não foi o acto constante do Ofício n.º 12520, de 27/5/2019;
21ª) O Ofício 12520 é uma resposta a um requerimento de 06/05/2019 para efectuar a dação em pagamento em que, na sua resposta, o Município elencou vários factos relacionados com a dação em pagamento, incluindo a obrigação de pagamento de juros, limitando-se a repetir o historial do processo, não constituindo, de forma alguma, a resposta a partir da qual o artigo 37º, n.º 2 do CPPT impõe a contagem do prazo para reclamação.
22ª) A Reclamante devia ter reagido, em tempo e no prazo de 30 dias após recebimento do primeiro esclarecimento (cfr. facto provado n.º 11) pedido ao abrigo do artigo 37º do CPPT pelo que, não o tendo feito, a presente reclamação é extemporânea, o que deve ser declarado.
Termos em que, decidindo-se em conformidade com as conclusões, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e a Reclamação ser julgada improcedente, por não provada, confirmando-se a legalidade do acto impugnado, com as consequências de lei.
2. Admitido o recurso, a “Petrogal” veio a apresentar contra-alegações que rematou com as seguintes conclusões:
a. Tendo sido notificada pelo Município de Matosinhos, através do Ofício com registo de saída n.º 15098, datado de 27 de junho de 2017, para proceder ao pagamento de juros - sem mais detalhes - a ora Recorrida apresentou, nos termos da lei, um pedido de emissão de certidão que contivesse a fundamentação, quer de facto, quer de Direito, subjacente ao citado Ofício, ao qual o Município de Matosinhos respondeu (em 31 de julho de 2017), referindo apenas que tais juros seriam devidos nos termos do n.º 3 da Cláusula 1.ª do acordo celebrado com o Município no ano de 2013 - abstendo-se de concretizar, porém, qualquer fundamentação de facto ou de direito;
b. A Recorrida apresentou, novamente, um pedido de emissão de certidão, tendo sido igualmente informada pelo Município de Matosinhos, através do Ofício com registo de saída n.º 17888, datado de 31 de julho de 2017, de que tais juros seriam devidos nos termos do n.º 3 da Cláusula 1.ª do acordo celebrado com o Município;
c. Posteriormente, através do Ofício com registo de saída n.º 2517, datado de 23 de Janeiro de 2019, foi a Recorrida notificada para materializar a transferência do imóvel sito no ………, com a advertência de que “à dívida existente, acrescem juros até à data efetiva do pagamento” (cfr. alínea 13) da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida);
d. Os termos do acordo celebrado entre o Município de Matosinhos e a ora Recorrida foram exaustivamente discutidos antes da sua redução a escrito, pelo que, não estando expressamente previsto o pagamento de juros de mora nos termos do regime geral das leis tributárias, é legítimo que a Recorrida tenha considerado que o n.º 3 da Cláusula 1.ª do referido acordo compreendesse apenas o pagamento de juros civis – razão pela qual, insista-se, apresentou sucessivos pedidos de esclarecimento;
e. A alegação aduzida pelo Município de Matosinhos está em clara contradição com a atuação do próprio Município, porquanto, por e-mail datado de 4 de maio de 2019, aquele Município informou a Recorrida de que a mesma poderia apresentar uma Reclamação do Ato do Órgão de Execução Fiscal, na parte relativa aos juros de mora, explicitando as consequências do indeferimento dessa Reclamação (cfr. alínea 20) da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida);
f. No seguimento do referido e-mail, através do Ofício com registo de saída n.º 12520, datado de 27 de maio de 2019, o Município de Matosinhos notificou a Recorrida da natureza dos juros de mora - in casu devidos por força das “leis tributárias”, pelo que, apenas a partir dessa data estaria a Recorrida em condições de contestar judicialmente a sua aplicação e exigibilidade – entendimento esse expressamente perfilhado pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público – razão pela qual a presente Reclamação é tempestiva.
g. Por fim, não procede o argumento adiantado pelo Recorrente – cfr. 18ª) conclusão das Alegações de Recurso – nos termos do qual, caso o primeiro pedido de certidão (datado de 31 de julho de 2017) fosse insuficiente, apenas restaria à ora Recorrida reclamar dessa certidão, jamais sendo possível solicitar uma segunda fundamentação (ou “sucessivos pedidos [de] esclarecimentos”, como refere o Recorrente), porquanto, ao abrigo do princípio da colaboração dos intervenientes na relação jurídica-tributária – previsto no artigo 59.º da LGT, bem como no artigo 11.º do CPA – combinado com o disposto no artigo 56.º do mesmo código, contribuinte/administrado é facultada a possibilidade de dirigir todos e quaisquer requerimentos que julgue pertinentes para obter as informações sobre a sua situação tributária, em todas as dimensões, enquanto manifesta decorrência do princípio da legalidade tributária.
h. Por outro lado, não existe qualquer limitação legal referente à impossibilidade de sucessivamente recorrer ao mecanismo previsto no artigo 37.º do CPPT, nomeadamente quanto às sucessivas e insuficientes respostas obtidas, pois sendo este instituto uma faculdade que a própria lei não limita aos atos tributários, antes aplicando-a com grande amplitude a “toda a comunicação da decisão em matéria tributária” a mesma pode ser utilizada nos moldes em que o fez a Recorrida.
i. Ainda que o Município de Matosinhos entendesse que a Recorrida não deveria ter sucessivamente procurado obter a informação em falta, antes tendo reclamado do ato insuficiente (do primeiro), não se compreende então por que razão o Município continuou a responder aos pedidos, sem jamais mencionar – aliás como ordena o artigo 37.º do CPPT – os meios e prazos legais de defesa que assistiam à Recorrida, ou, no limite, por que razão não recusou conhecimento dos pedidos efetuados.
j. Em suma, é no mínimo abusivo que o Município de Matosinhos alegue como argumento para justificar uma intempestividade da presente reclamação o facto de a Recorrida ter procurado obter fora dos tribunais e ao abrigo dos princípios norteadores da sã relação administração-administrado as informações que pretendia e que lhe eram legalmente devidas.
k. A Reclamação em escrutínio foi, por tudo o exposto, tempestivamente apresentada, pois ocorreu no prazo de 10 dias após a notificação do primeiro ato que lhe deu a conhecer os fundamentos de facto e de direito que justificam a liquidação e cobrança de juros de mora, pelo que a decisão recorrida não enferma, nesta parte, de qualquer vício, razão pela qual deve ser mantida na ordem jurídica quanto ao objeto do presente recurso;
l. Verifica-se, portanto, que a sentença recorrida não merece censura - quanto à tempestividade da reclamação -, devendo ser negado provimento, por esse motivo, ao Recurso de Município de Matosinhos.
Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente Recurso ser dado como improcedente, por não provado e, em consequência, manter-se válida na ordem jurídica a sentença proferida pelo Tribunal a quo quanto à tempestividade da reclamação, tudo com as legais consequências.
3. Da dita sentença foi ainda interposto recurso subordinado pela “Petrogal”, com alegações nas quais se concluiu ainda do seguinte modo:
a. As partes - Recorrente e Município de Matosinhos – acordaram, nos termos do disposto no artigo 837.º do Código Civil, em instrumento próprio celebrado de livre vontade, na realização de uma dação em cumprimento, no âmbito da qual a Recorrente viria a efetuar a prestação de coisa diversa daquela que era devida;
b. Sendo a dação em cumprimento uma das formas passíveis de satisfação do direito do credor, a mesma apenas exoneraria a Recorrente perante o consentimento por parte do Município de Matosinhos, o que manifestamente ocorreu no caso concreto, tudo conforme o artigo 837.º do Código Civil;
c. Após celebração do contrato-promessa de dação em cumprimento, a única obrigação que passou a impender sobre a Recorrente foi a de celebração da escritura respetiva (a qual não dependia em exclusivo de si), que foi celebrada em 30 de maio de 2019, razão pela qual foram, nessa data, liquidados os juros de mora pendentes;
d. Com efeito, a alegada dívida cessou aquando da celebração do contrato-promessa de dação em cumprimento, sendo que foi por esse mesmo facto que foram pagos juros sobre a totalidade do remanescente da dívida, pelo que tanto a adenda ao acordo celebrado em 14 de junho de 2013, como o contrato-promessa de dação em cumprimento, referem que o pagamento se faz pela “promessa e dação” e não apenas pela própria “dação”;
e. Atentos os termos contratualizados entre as partes, os juros de mora só seriam devidos caso a realização da escritura da dação em cumprimento não fosse possível por causa imputável à Recorrente - frustrando-se, assim, a promessa e considerando-se a dívida reconstituída - o que, com toda a certeza, não ocorreu;
f. Subsidiariamente sempre se diga que, diferentemente dos juros compensatórios, os quais integram a própria dívida do imposto, os juros de mora não são tributos, nem integram tributos, apenas assumindo o caráter de receita pública, razão pela qual o artigo 44.º da LGT – que dispõe sobre os juros de mora - não segue igual regime àquele disposto para os juros compensatórios – artigo 35.º da LGT;
g. Embora seja verdade que a arrecadação de receita é uma obrigação das autarquias locais, tal incumbência não pode privá-las da gestão do seu património da forma que pela forma que melhor lhes convier, nomeadamente, mediante a celebração de acordos que permitam regularização dos seus créditos, facto que decorre do artigo 6.º do RFAL, bem como n.º 1 do artigo 238.º da Constituição da República Portuguesa;
h. Não se encontra vedada às autarquias locais a possibilidade de recorrerem à via contratual para verem os seus créditos liquidados, mesmo que tal pressuponha o perdão de juros de mora (não incorporando, estes, o crédito tributário);
i. Os juros de mora não consubstanciam um crédito tributário nem, admitindo-se essa qualificação, o mesmo seria indisponível, porquanto o próprio legislador já previu, por diversas vezes, a possibilidade do seu perdão pela Administração Pública.
j. Nos termos do 813.º do Código Civil, o Município de Matosinhos incorreu em manifesta mora porquanto, sem justificação válida, não levou a cabo os atos necessários ao cumprimento da obrigação que lhe incumbia;
k. As partes celebraram o acordo de dação em cumprimento nos termos definidos durante o procedimento negocial, acreditando a Recorrente desde o início que, não obstante os constrangimentos normais associados ao licenciamento urbanístico, o Município de Matosinhos, na prossecução do interesse público que subjaz à sua atividade, sempre pautaria a sua conduta com a diligência e responsabilidade exigíveis a uma pessoa coletiva de direito público, com efeito, não pode ser assacada qualquer responsabilidade à ora Recorrente por ter confiado na atuação do Município, pelo que, havendo mora do credor (Município de Matosinhos), não podem ser cobrados à ora Recorrente quaisquer juros;
l. Ainda que estejam em causa diferentes competências e atribuições, tal não acarreta a sua natureza autónoma, porquanto na prática tais competências e atribuições - quer do foro tributário, quer do foro urbanístico - se reconduzem à prossecução do interesse público, que é objetivo prosseguido pelo Município, como uma realidade una;
m. Verifica-se, portanto, que deve ser revogada a decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente o pedido de anulação da totalidade dos juros de mora, sob pena de violação dos artigos 405.º, 406.º, 837.º e 813.º do Código Civil, 35.º e 44 da LGT, 6.º do RFAL e 238.º da Constituição da República Portuguesa e, em consequência, ser o presente recurso dado como procedente, por provado.
Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente recurso ser dado como procedente, por provado e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente o pedido de anulação da totalidade dos juros de mora, tudo com as legais consequências.
4. Tal recurso mereceu contra-alegações por parte do Município recorrente, nas quais ainda se concluiu do seguinte modo:
1ª) A PETROGAL não recorreu de nenhum ponto da matéria de facto que, assim, se encontra definitivamente fixada;
2ª) Porque o presente recurso versa exclusivamente sobre matéria de Direito, era ónus da Recorrente indicar nas suas conclusões os elementos constantes do artigo 639º do C.P.C. (as normas violadas, o sentido em que deviam ter sido interpretadas ou a norma que devia ter sido aplicada), o que não aconteceu - nem nas conclusões, nem no articulado - pelo que deve ser indeferido;
3ª) A exoneração da obrigação de pagamento de juros não opera por força da mera celebração do contrato-promessa de dação em cumprimento, sendo necessária a efectiva dação em cumprimento, nos termos acordados entre as partes – cfr. al. f) do n.º 2 da cláusula 1ª do Acordo (documento n.º 3 da Reclamação) e redacção da al. f) resultante da cláusula 3ª, n.º 1 da Adenda ao Acordo (documento n.º 4 da Reclamação);
4ª) Para além da dação em cumprimento prevista na al. f), é devido o pagamento de juros que resulta da lei e ficou expressamente previsto no n.º 3 da Cláusula 1.ª do Acordo celebrado entre a Recorrente e o Município, de que consta: “Sobre os montantes referidos nas alíneas d), e) e f) do número anterior incidem juros nos termos legais.” (cfr. documento n.º 3 da Reclamação).
5ª) A celebração da Adenda ao Acordo, apenas alterou o teor da alínea f), do n.º 2 da cláusula 1ª, verificando-se que o n.º 3 dessa cláusula se manteve inalterado e, expressamente, revalidado pelo teor da cláusula 6ª da Adenda (cfr. documento n.º 4 da Reclamação), não tendo havido qualquer outro instrumento que tenha feito cessar a vigência do Acordo e sua cláusula 1ª, n.º 3, tendo até o contrato-promessa (cfr. documento n.º 5 da Reclamação) assimilado este facto nas declarações preambulares;
6ª) Nos termos do artigo 176º n.º 1 do C.P.P.T., o processo de execução fiscal extingue-se por pagamento da quantia exequenda e do acrescido pelo que, enquanto a dação não for cumprida, aplicam-se os juros devidos nos termos do artigo 44º, n.º 1 da L.G.T., e do n.º 2 que estabelece que os juros de mora aplicáveis às dívidas tributárias são devidos até à data do pagamento da dívida;
7ª) Os juros cobrados são um crédito tributário e indisponível, em decorrência da lei (nomeadamente, dos art.s 266º da C.R.P., 3º do C.P.A., 30º e 36º, n.º 3 da L.G.T., 85º, n.º 3 e 148º do C.P.P.T.), não tendo a Recorrente identificado nenhuma previsão legal que contenha a possibilidade do seu perdão, nem explicado por que seria aplicável à sua situação;
8ª) A Recorrente não indica quaisquer factos concretos que demonstrem falta de diligência ou de responsabilidade na actuação do Município, com reporte a datas e momentos formais do procedimento administrativo de licenciamento ou outro;
9ª) A actuação do Município foi pautada pelo absoluto cumprimento, com diligência e responsabilidade, das suas competências;
10ª) Foi a Recorrente PETROGAL quem entrou em incumprimento do Acordo celebrado, por incapacidade de resolução de vicissitudes várias – e alheias ao Município – com que se deparou na instrução do processo necessário à realização da escritura de dação em cumprimento, como resulta, nomeadamente, dos factos provados (não recorridos) 14), 16), 17),18);
11ª) Não existiu qualquer mora do Município;
12ª) A decisão recorrida não viola qualquer norma;
Termos em que, decidindo-se em conformidade com as conclusões, deve o recurso subordinado ser julgado improcedente, por não provado, e a Reclamação ser julgada improcedente, por não provada, confirmando-se a legalidade do acto impugnado, com as consequências de lei.
5. Tendo “vista” dos autos, o exm.º magistrado do Ministério Público, após suscitar a questão prévia da incompetência do Supremo Tribunal Administrativo para apreciar os recursos interpostos, concluiu do seguinte modo:
a)- Não deverá tomar-se conhecimento do recurso e, em consequência:

b)- Deverá ser declarado que o Tribunal Central Administrativo Norte é o competente em razão da hierarquia para o seu conhecimento, para o qual a Recorrente poderá requerer a remessa no prazo previsto no nº 2 do artigo 18º, do CPPT.
6. Notificadas as partes da dita questão, veio o Município de Matosinhos a apresentar resposta em que concluiu ainda que, deve o recurso ser apreciado, com as consequências de lei, ordenando-se a sua remessa ao TCA Norte, se necessário.
7. Sendo o processo urgente, cumpre apreciar os recursos interpostos com dispensa de vistos dos exm.ºs Conselheiros adjuntos, os quais têm acesso aos mesmos através do SITAF, e começando pela questão da incompetência, suscitada pelo exm.º magistrado do Ministério Público, cujo conhecimento antecede o da questão da caducidade do direito de acção por extemporaneidade da reclamação apresentada, a que o Município de Matosinhos restringe o recurso que interpôs, nos termos dos artigos 635.º n.º 3 e 4 do C.P.C., e bem assim a matéria do recurso subordinado.

II. Fundamentação.
A matéria de facto julgada como provada a páginas 3 a 26 da sentença recorrida e que se dá por reproduzida, não abarca o conhecimento da cobrança dos fundamentos dos juros, relativamente ao que o Município de Matosinhos nas conclusões 2.ª a 5.ª do recurso que interpôs daquela sentença manifesta discordância quanto à apreciação efetuada em termos da reclamação apresentada ser extemporânea e improcedente.
O recorrente pretende, assim, que se extraia ainda ilação de facto da dita matéria de facto fixada e, conforme é entendimento há muito firmado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo – por todos, o acórdão de 29/9/2010, no recurso n.º 0446/10, indicado pelo exm.º magistrado do Ministério Público e na doutrina, Jorge Lopes Sousa em Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado e Comentado, vol. I, pág. 224, 6.ª ed. 2011, - é de concluir que o recurso versa ainda matéria de facto.
Sendo que, nos termos dos artigos 26.º, b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais E.T.A.F. e 280.º n.º 1 do C.P.P.T., o S.T.A. só é competente se o recurso versar exclusivamente matéria de direito, o que não é o caso, resulta procedente a questão da incompetência suscitada pelo exm.º magistrado do Ministério Público.
Por outro lado, e ainda nos termos dos artigos 31.º e 38.º a) do E.T.A.F., resulta competente para a apreciação dos recursos interpostos o Tribunal Central Administrativo Norte.
Aliás, de acordo com a redacção dada ao referido art. 280.º n.º 1 do C.P.P.T. pela Lei n.º 118/2019, de 17/9, aplicável também no presente caso, nos termos do seu artigo 13.º n.º 1 c), a competência do S.T.A. no presente caso está circunscrita às decisões de mérito, o que leva à mesma decisão.
Com efeito, tal nova previsão não abarca a questão da caducidade do direito de acção por extemporaneidade da reclamação apresentada, a que o Município de Matosinhos restringe o recurso que interpôs, nos termos dos artigos 635.º n.º3 e 4 do C.P.C., e que, aliás, obstaria a que se procedesse ao dito conhecimento.
Por outro lado, não é possível considerar autonomamente o recurso subordinado para tal efeito, pois o mesmo não é equivalente a recurso independente, dependendo o seu conhecimento de várias vicissitudes, previstas, nomeadamente, no artigo 633.º n.º 3 do C.P.C. – nesse sentido, entre outros, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-1-2017, proferido no processo 0308/13.5TTVLG P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
III. Decisão.
Nos termos expostos, os Juízes Conselheiros da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam em declarar a sua incompetência em razão da hierarquia para apreciar os recursos interpostos e a competência do Tribunal Central Administrativo Norte, a que os autos são de remeter, uma vez transitada a presente decisão em julgado.
Custas do presente incidente no mínimo, a cargo do Município de Matosinhos – art. 516.º n.º 1, 1.ª parte, do C.P.C..

Lisboa, 15 de julho de 2020. - Paulo José Rodrigues Antunes (relator) – Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.