Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0202/17.0BELLE
Data do Acordão:02/03/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULA CADILHE RIBEIRO
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
MELHOR APLICAÇÃO DO DIREITO
DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
Sumário:I - Apresenta-se manifestamente necessário à promoção de uniformização da jurisprudência o recurso interposto ao abrigo do artigo 73.º, n.º 2, do RGCO, se a sentença recorrida afronta o entendimento da jurisprudencial sobre a questão de direito, havendo perigo de repetição dor erro.
II - O requisito de "descrição sumária dos factos" imposta pelo artº.79, nº.1, al. b), do RGIT deve ser interpretado à luz das garantias constitucionais do direito de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 10 da CRP e julgar-se observado sempre que a descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima é suficiente para que o arguido compreenda os factos que lhe são imputados e, com base nessa perceção, seja capaz de adequadamente se defender.
III – Tal requisito tem que ser interpretado em correlação necessária com o tipo legal que prevê e pune a infracção imputada ao arguido, pelo que deve julgar-se o mesmo observado se da descrição sumária constam os factos essenciais que integram o tipo de ilícito em causa.
Nº Convencional:JSTA000P27093
Nº do Documento:SA2202102030202/17
Data de Entrada:11/13/2019
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. Relatório
1.1. A ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT) recorre da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A………….., LDA, contra a decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Loulé 2, que lhe aplicou uma coima única no valor de €937,71, por infração ao disposto no artigo 5.º, n.º 2, da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, e declarou nula a decisão por considerar não estar preenchido o requisito previsto na primeira parte da alínea b) do n.º 1 do artigo 79.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), concluindo da seguinte forma as suas alegações:

«1- O Tribunal a quo fez errada aplicação e interpretação dos preceitos dos artigos 79 nº 1 al. b) do RGIT, e, artigos 5 nº 2 e 10 da Lei nº 25/2006 de 30 de Junho.
2- Na medida em que, a figura delituosa recortada in abstracto no artigo 5 nº 2 da Lei nº 25/2006 é o facto da falta de pagamento da taxa de portagem devida pela circulação de veículos automóveis em infra estruturas rodoviárias, e, não se tratando de um delito que exija a intervenção de um certo círculo de pessoas, a qualidade do sujeito activo da infracção não é um elemento essencial do tipo.
3- Logo, perante o conteúdo da decisão administrativa sub judice, o arguido tem perante si todo o material necessário para se aperceber do ilícito contraordenacional que lhe é imputado e exercer os seus direitos de defesa; e, note-se, foi efectivamente apercebido como decorre da sua p.i de recurso.
4- Ao decidir anular tal decisão, a pretexto de não terem sido cumpridos os requisitos enumerados no art. 79 nº 1 al. b) do RGIT, é evidente o erro de julgamento.
5- Impondo-se para melhoria da aplicação do direito assentar que à decisão judicial não desinteressa que é a factualidade integrante da contra ordenação imputada que tem de sumariamente ser descrita por forma a assegurar os direitos de defesa do arguido, não constituindo elemento essencial a qualidade do agente.
6- Sendo certo que, em abono deste ponto de vista se pronunciou o STA no acórdão de 1/23/2019 no processo 02017/17.1 BEVIS 0189/18, e, o Tribunal Central Administrativo Sul no acórdão de 04/11/2019 no processo 180/18.9 BELLE.
Assim, de harmonia com exposto, e max. ex. supl., deve ser concedido provimento ao presente recurso e revogada a, aliás, douta sentença recorrida, para se fazer JUSTIÇA.».

1.2. A Arguida não contra-alegou.

1.3. A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta que concluiu do seguinte modo:
I. A questão a decidir é a de saber se a sentença de 13/07/2019 enferma de erro de julgamento por considerar que a decisão de fixação de coima proferida no processo de Contra-Ordenação nº 38592016060000061184 não contém a descrição sumária dos factos exigida pelo art. 79º nº 1 al. b) RGIT porque não imputou à arguida o preenchimento do tipo legal ou seja, não refere a que título ou em que qualidade (art. 10º nº 3 da Lei 25/2006, 30/06) a arguida praticou a contra-ordenação prevista no nº 5 nº 2 Lei 25/06 já que a norma daquele preceito não contém todos os elementos do tipo contra-ordenacional, faltando-lhe a identificação do agente, isto é, da pessoa que adopta a conduta aí descrita, devendo este elemento objectivo do tipo ser encontrado no referido artigo 10º.
II. “Em qualquer tipo de ilícito objectivo é possível identificar os seguintes conjuntos de elementos: os que dizem respeito ao autor; os relativos à conduta; e os relativos ao bem jurídico” (Prof. Jorge Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág. 278 e 287, Coimbra Editora 2004);
III. No ilícito contra-ordenacional em causa os elementos típicos do autor estão previstos no art. 10º da Lei 25/2006, 30/06; os elementos respeitantes à conduta susceptível de consubstanciar o ilícito contraordenacional encontram-se no art. 5º da mesma Lei; e a punição ou coima aplicável é determinada de acordo com as regras constantes do art. 7º do mesmo diploma legal;
IV. Autor da conduta qualificada como contra-ordenação no art. 5º da Lei 25/2006, 30/06, tanto poderá ser o condutor do veículo, como o seu proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o usufrutuário, o locatário em regime de locação financeira ou o detentor do veículo;
V. Tudo depende do prévio e correcto cumprimento, por parte das concessionárias, as subconcessionárias, as entidades de cobrança das taxas de portagem ou as entidades gestoras de sistemas electrónicos de cobrança de portagens, consoante os casos, da notificação prevista no nº 1 do art. 10º da Lei 25/2006, 30/06;
VI. Nos casos em que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática da contra-ordenação (art. 10º nº 1 da Lei 25/2006, 30/06), nomeadamente porque a deteção da prática da contra-ordenação foi feita através de equipamentos adequados que registem a imagem ou detetem o dispositivo electrónico do veículo (art. 8º nº 1 da Lei 25/2006, 30/06);
VII. Todavia aquela notificação não integra a decisão que aplica a coima, constituindo uma fonte externa ao acto de decisão (cfr. ac. TCA Sul 14/02/2019, P. 368/17.0 BELLE).
VIII. A qualidade do agente é pois, quanto a nós, um elemento essencial do tipo.
IX. A decisão que aplicou a coima é totalmente omissa quanto à identificação do agente da infracção, isto é, não contém uma referência ainda que sumária relativa aos elementos típicos do autor da prática da contra-ordenação tal como vem estabelecido no art. 10º nº 3 da Lei 25/2006, 30/06 e que constitui pressuposto da punição (cfr. ac. TCA Sul 11/04/2019, P.180/18.9BELLE).
X. A decisão baseia-se na presunção de que a arguida é a responsável pela prática das contra-ordenações mas omite os factos que fundamentam tal presunção.
XI. Perante a inexistência de elementos factuais relativos à conduta humana que integrem o elemento objectivo das infracções cuja prática lhe é atribuída a arguida desconhece a que título lhe foi aplicada a coima e vê-se impedida de exercer cabalmente o seu direito de defesa, consagrado no art. 32º nº 10 CRP, já que não defender-se simultaneamente e de forma adequada na qualidade de condutor, de proprietário do veículo, de adquirente com reserva de propriedade, de usufrutuário, de locatário em regime de locação financeira ou de detentor do veículo.
XII. Em consequência, a decisão que aplicou a coima está ferida de nulidade insuprível, conforme decorre do regime dos arts. 79º nº 1 al. b) e 63º nº 1 al. d) RGIT.
XIII. O acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no processo nº 0217/17.1BEVIS0189/18 salvo melhor opinião não se reporta a situação idêntica respeitando, outrossim, ao modo como o não pagamento se concretiza,
XIV. Pelo que não se mostra verificado o fundamento de recurso previsto no art. 73º nº 2 RGCO. Pelos motivos expostos entende-se que a sentença recorrida deve ser confirmada.

1.4. A Magistrada do Ministério Público junto do Supremo Tribunal Administrativo não emitiu parecer, assim fundamentando:
«Analisando os autos, não se emite parecer uma vez que o Mº Pº já tomou posição em sede de contra-alegações a fls. , sendo que, entretanto, não foram invocadas quaisquer outras questões de que se cumpra, nesta sede, conhecer.».

2. Fundamentação de facto
Na decisão recorrida estão provados os seguintes factos:
«A) Em 27-10-2016, foi autuado no Serviço de Finanças de Loulé, contra A……………, LDA o processo de Contra-ordenação n.º 38592016060000061184 (cfr. fls. 2 dos autos no SITAF, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
B) Em 08-12-2016, foi proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Loulé 2, no âmbito do processo de Contra-ordenação referido na alínea A), decisão de aplicação de coima única ao arguido, ora Recorrente, no montante de €937,71, acrescida de €76,50 de custas processuais (cfr. fls. 8 a 9 dos autos no SITAF, idem);
C) Consta da decisão mencionada na alínea antecedente, a seguinte descrição sumária dos factos: “(…)
IMAGEM
(…)”(cfr. fls. 11 a 13 dos autos no SITAF, ibidem);»

3. Fundamentação de direito
3.1. Impõe-se antes de mais decidir da admissibilidade do recurso jurisdicional, interposto de decisão proferida em processo de recurso (judicial) de decisão de aplicação de coima com o valor de €937,71, sem injunção de sanção acessória.
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 83.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), o arguido, o representante da Fazenda Pública e o Ministério Público, podem recorrer da decisão do tribunal tributário de 1.ª instância para o Tribunal Central Administrativo ou para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, neste caso quando o fundamento é exclusivamente em matéria de direito, exceto se o valor da coima aplicada não ultrapassar um quarto da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância e não for aplicada sanção acessória.

O valor da coima a aplicada no presente recurso, de €937,71, sem injunção de sanção acessória, porque inferior um quarto da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância (€1.250,00 = €5.000,00 x 1/4) estabelecida para os tribunais judiciais de 1.ª instância – artigo 44.º n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto), determina a não admissibilidade do recurso ao abrigo das referidas normas.

Contudo, em casos justificados, a lei prevê excecionalmente a possibilidade de recurso (da sentença ou despacho judicial decisório), ainda que o valor da coima esteja abaixo do previsto no artigo 83.º, n.º 1, “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”, de acordo com o disposto no artigo 73.º, n.º 2 do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social (RGIMOS) ex vi da alínea b) do artigo 3.º, do RGIT.

De acordo com a jurisprudência deste Tribunal, a parte interessada em interpor recurso jurisdicional ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 73.º do RGIMOS, tem que expressamente o requerer, com a indicação dos circunstancialismos de facto e/ou de direito (só este, no caso do Supremo Tribunal Administrativo), justificativos da admissão excecional do recurso.

Muito embora das conclusões de recurso (nem das correspondentes alegações) haja qualquer referência ao citado normativo legal (apenas uma expressão para ele nos remete na conclusão 5:Impondo-se para melhoria da aplicação do direito”, ela surge no requerimento inicial de interposição do recurso onde consta: A Representante da Fazenda Pública, não podendo conformar-se com a sentença proferida, pretende dela interpor recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 83 do RGIT, e, atento o valor da coima ao abrigo do nº 2 do artigo 73 do RGCO, «para melhoria da aplicação do direito e promoção da uniformidade da jurisprudência», aplicável por força da al. b) do artigo 3 do RGIT, com o fundamento de ter havido erro claro na decisão judicial que, aliás, não segue na esteira do entendimento acolhido no Acórdão do STA de 1/23/2019 proferido no processo 0207/17.1BEVIS 0189/18, e, no Acórdão do TCA Sul de 4/11/2019 proferido no processo 180/18.9BELLE, em situações idênticas, urgindo promover a uniformização da jurisprudência face ao perigo de repetição e desigualdade na aplicação entre os diversos tribunais de 1ª instância.”

A Recorrente invoca, pois, os dois fundamentos previstos na lei com vista à admissibilidade do recurso ao abrigo do artigo 73.º, n.º 2 do RGIMOS: a melhoria da aplicação do direito e a necessidade de uniformização de jurisprudência. O legislador não define o que entende por “melhoria da aplicação do direito”, nem quando há “necessidade de uniformização de jurisprudência”, pelo que será o julgador que caso a caso vai delineando os contornos dos conceitos da lei.

O certo é que não se abrange a mera discordância do sujeito processual relativamente à sentença ainda que esta não faça a interpretação do direito mais desejável, situação reservada ao recurso ordinário se a lei o permitir.

Trata-se de um recurso de natureza extraordinária, que apenas tem lugar quando não for admissível a interposição de recurso ordinário, e visa essencialmente preservar a correção do direito e a uniformidade da sua aplicação.

No que respeita à primeira das hipóteses «quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito», ela abrange todas as situações em que há erros claros, evidentes, grosseiros, clamorosos, na decisão judicial recorrida, em que repugne mantê-la na ordem jurídica, por constituir uma afronta ao direito - cf. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 07/11/2012, processo 704/12; de 29/10/16, processo 298/16; de 03/11/2016, processo 1017/16; e de 06/05/2020, processo 0101/14.8BESNT.

Ora, a Recorrente não usa qualquer argumento para justificar a aceitação deste recurso extraordinário com este fundamento, de ser manifestamente necessário à melhor aplicação do direito. Não basta, para tanto, limitar-se a invocar a letra da lei, nem a indicar a norma, ou a falar em “erro claro”, sem dizer em que o mesmo se traduz. Antes se lhe impõe que alegue as razões concretas e precisas que evidenciem a existência desse fundamento, dado que a apreciação e decisão dessa pretensão constituem questão prévia relativamente à apreciação do recurso.

A Recorrente invoca ainda a divergência do decidido com dois acórdãos, um do Supremo Tribunal Administrativo e outro do Tribunal Central Administrativo Sul. O que pode ser atendido para justificar a admissibilidade do recurso por tal se afigurar manifestamente necessário à promoção da uniformidade da jurisprudência.

No que respeita a esta segunda das hipóteses em que o recurso é admitido, quando se afigure manifestamente necessário «à promoção da uniformidade da jurisprudência», tem sido entendido que abrange aquelas situações em que a decisão recorrida consagra uma solução jurídica que introduz, mantém ou agrava diferenças dificilmente suportáveis na jurisprudência, exigindo-se que o erro tenha inerente um perigo de repetição – cf. acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 08/01/2020, processo 287/16.7BEMDL; acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 25/09/2019, processo 1188/18.0BELRS.

Pressupõe uma inequívoca divisão na jurisprudência sobre uma questão essencial e visa a coerência e segurança do sistema jurídico.

Como se disse, a Recorrente invoca a contradição do decidido com a jurisprudência do acórdão deste Tribunal de 23/01/2019, proferido no processo 207/17.1BEVIS (0189/18), e com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 04/11/2019, proferido no processo 180/18.9BELLE. Ora, apesar de o primeiro dos acórdãos indicados não tratar da questão da descrição sumária dos factos no âmbito da infração ao disposto na Lei n.º 25/2006, no exato enquadramento que é feito no presente recurso, na medida em que nele estava em causa um outro elemento do tipo legal, o pagamento da taxa de portagem, e não a qualidade do agente, como é o caso, a verdade é que nele, assim como nos demais deste Tribunal que têm julgado a questão da nulidade das decisões de aplicação da coima por infração ao artigo 5.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 25/2006, por falta de descrição sumária dos factos – cf. os acórdãos de 17/10/2018, processo 1004/17.0BEPRT; de 5/5/2020, processo 1070/18.BEALM; de 16/9/2020, processo 470/18BEALM; de 14/12/2016, processo 1270/15 -, se acaba por indicar quais os elementos que necessariamente devem constar da decisão de aplicação da coima enquanto elementos do tipo legal da concreta infração, e que conduzem a resultado diferente do da decisão recorrida.
E também o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul indicado pela Recorrente tratou de questão com os exatos contornos que são colocados no presente recurso, e decidiu de forma oposta à sentença aqui recorrida, podendo nele ler-se:
«Concluindo, no caso “sub judice” não constitui elemento objectivo do tipo a considerar a qualidade do responsável a quem é imputada a prática das contra-ordenações (condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo), consagrada no examinado artº.10, nº.3, da Lei 25/2006, de 30/6, pelo que a não indicação dessa circunstância, no auto de notícia ou na decisão de aplicação de coima, não tem por consequência a nulidade insuprível de tal decisão, nos termos dos artºs.63, nº.1, al.d), e 79, nº.1, al.b), do R.G.I.T., contrariamente ao decidido pelo Tribunal “a quo”.»

Entendemos, assim, que a decisão recorrida adota solução jurídica que introduz diferenças dificilmente suportáveis na jurisprudência, sendo que existe perigo de repetição do erro, tendo em conta o número de processos de contraordenação respeitante à mesma infração que pendem nos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo que estão verificados os pressupostos para o conhecimento do mérito do recurso.

3.2. Igual questão à que se coloca no presente recurso foi recentemente apreciada por este Tribunal, no acórdão de 14/10/2020, proferido no processo 0645/17.0BELLE, em que se discutiu e se decidiu que a “qualidade do responsável” a quem é imputada a prática das contraordenações consagrada no artigo 10.º, n.º 3 da Lei n.º 25/2006 - condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo -, não constitui elemento objetivo do tipo legal da infração em causa, tal como este está previsto no artigo 5.º do diploma citado, com o seguinte discurso fundamentador:

«Nos termos do artigo 63.º, n.º 1 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante, RGIT) constitui nulidade insuprível do processo de contra-ordenação fiscal a falta dos requisitos legais da decisão de aplicação de coima, nulidade esta que é de conhecimento oficioso. Sendo que, por força do preceituado no artigo 79.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, a decisão que aplica a coima deve conter “A descrição sumária dos factos e a indicação das normas violadas e punitivas”.

Como ressalta da sentença recorrida, foram estes imperativos legais que determinaram a Meritíssima Juíza a quo, oficiosamente, a apreciar a decisão da coima sindicada nos autos e a concluir que dessa descrição não constavam todos os elementos do tipo, mais concretamente, que da descrição sumária não constava a qualidade em que a infracção era imputada ao arguido e, consequentemente, a anular a decisão administrativa.

Já o referimos antes, sem razão.

Como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 17-10-2018, proferido no processo n.º 1004/17.0BEPRT, para o que ora nos importa relevar, a «descrição sumária dos factos» imposta pela alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT e, bem assim, os demais requisitos da decisão de aplicação da coima enumerados nesse número «devem ser entendidos como visando assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão» (JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, Áreas Editora, 2010, 4.ª edição, anotação 1 ao art. 79.º, pág. 517.). Por isso, essas exigências «deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos» (Ibidem.), assim assegurando o direito de defesa ao arguido [cfr. art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa].

Quanto à descrição sumária dos factos na decisão administrativa, disse GERMANO MARQUES DA SILVA, em intervenção no Centro de Estudos Judiciários: «em resposta à questão de «qual o limite para a descrição sumária dos factos enquanto garantia de defesa» a minha resposta é também sumária: deve descrever o facto nos seus elementos essenciais para que o destinatário possa saber o que lhe é imputado e de que é que tem de se defender sem necessidade de consultar outros elementos em posse da administração» (Cfr. Contra-ordenações Tributárias 2016 [Em linha], Centro de Estudos Judiciários, 2016, pág. 20, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_contraordenacoes_t_2016.pdf.).

(…)

Salvo o devido respeito, bastando-se a lei com uma descrição sumária dos factos, afigura-se-nos que esta exigência se há-de considerar satisfeita quando, como no caso sub judice, o elemento essencial do tipo – a falta de pagamento da taxa de portagem pela circulação de veículo automóvel em infra-estruturas rodoviárias, designadamente auto-estradas e pontes – está descrito na decisão administrativa; e está, não apenas por referência à norma que prevê a contra-ordenação, o que não seria suficiente, mas mediante a descrição detalhada do comportamento: falta de pagamento de taxas de portagem referente ao veículo identificado pela respectiva matrícula e com referência aos trajectos expressamente indicados, com indicação dos locais, datas e horas a que se verificaram as infracções e aos montantes das respectivas taxas (…)».

Contrariamente ao que foi decidido em 1ª instância, como este Supremo Tribunal Administrativo têm deixado vincado, os campos de aplicação e, consequentemente, as imposições emergentes dos artigos 5.º, 7.º e 10.º da Lei n.º 25/2006 são distintos: no artigo 5.º identifica-se o facto típico e ilícito consubstanciador das contra-ordenações em causa; no artigo 7.º estão estabelecidos os mecanismos de determinação da coima aplicável e das custas processuais; no artigo 10.º está previsto o regime jurídico aplicável às situações de impossibilidade de identificação do condutor do veículo no momento da prática da contra-ordenação, como linearmente resulta do n.º 1 desse mesmo normativo.

Em suma, a “qualidade do responsável” a quem é imputada a prática das contra-ordenações consagrada no artigo 10.º, n.º 3 da Lei 25/2006 - condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo -, não constitui elemento objectivo do tipo legal da infracção em causa, tal como este está previsto no artigo 5.º do diploma citado.

E, nessa medida, a não indicação “directa, indirecta, expressa ou implícita” (como se afirmou na sentença recorrida) dessa qualidade nas decisões de aplicação de coima não tem como consequência a nulidade insuprível da decisão, nos termos dos artigos 63, nº.1, al. d) e 79.º nº.1, al. b) do RGIT. Aliás, se bem atentarmos no teor integral do documento cuja transcrição parcial surge na alínea C) dos factos provados, facilmente concluímos que o preceituado no artigo 10.º da Lei n.º 25/2006 aí foi considerado, já que consta expressamente da decisão de aplicação da coima que a responsabilidade do arguido “deriva do Art. 10º da lei Nº 25/2006, de 30/6”. E se também atentarmos no teor da petição do recurso apresentado pelo ora Recorrido (arguido), também verificamos, porque ele confessa, que foi na dupla qualidade de proprietário e de condutor que voluntariamente se apresentou a pagar as coimas aplicadas.

Não se vislumbra qualquer razão para se divergir do entendimento citado, o qual corresponde ao que vem sendo reiterado por este Supremo Tribunal quanto aos elementos do tipo legal de infração que devem constar da decisão administrativa e, assim sendo, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, a decisão administrativa não padece da nulidade prevista no artigo 79.º, n.º 1, alínea b), do RGIT, merecendo o recurso provimento.

Há, pois, que dar provimento ao recurso jurisdicional e ordenar a baixa dos autos à 1ª instância para serem decididas as questões colocadas pela Arguida.

4. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, a fim de aí prosseguirem com o conhecimento das questões suscitadas pela Recorrida, se a tal nada mais obstar.

Sem custas - artigos 94.º, n.º 3 e 4, do RGCO e 66.º do RGIT.

Lisboa, 03 de fevereiro de 2021. - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro (Relatora) - José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso.