Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01704/16.1BEBRG 0663/18
Data do Acordão:10/06/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:USUCAPIÃO
IMPOSTO DE SELO
Sumário:Tendo sido adquirido por usucapião o prédio rústico, onde posteriormente foi erguida uma construção, só o valor daquele deve ser considerado para efeitos de incidência de Imposto de Selo.
Nº Convencional:JSTA000P28237
Nº do Documento:SA22021100601704/16
Data de Entrada:07/04/2018
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A....... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Recorrente), inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga - que julgou procedente a Impugnação Judicial deduzida por A………… e mulher B…………, contra a liquidação de Imposto de Selo, no valor de € 9.420,00, que incidiu sobre a aquisição, por usucapião, operada por escritura de justificação outorgada em 01.04.2015, relativa ao artigo matricial urbano nº ……….., da matriz da freguesia de Vilar da Veiga, concelho de Terras de Bouro – interpôs para este Supremo Tribunal Administrativo o presente recurso jurisdicional.

1.2. Admitido o recurso, veio a Recorrente apresentar a sua motivação, que conclui nos seguintes termos:

«1.ª) – A Fazenda Pública alega que a jurisprudência recente do STA veiculada, v.g., pelos Acórdãos de 29/03/2017 e de 12/10/2016, respetivamente, nos Processos n.ºs 01372/16 e 0718/15, inverteu sentido jurisprudencial anterior, fixando-se, atualmente, a doutrina seguinte: ficcionando o legislador a usucapião como transmissão gratuita de bens imóveis para efeitos de incidência de IS, a escritura de Justificação Notarial de aquisição por usucapião é que constitui o facto tributário na medida em que a obrigação do pagamento do IS neste caso se constitui na data da sua celebração (alínea r), art. 5.º do CIS);

2.ª) – Entende a Fazenda Pública que a usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade sujeito a IS e que a obrigação tributária deste imposto se constitui na data em que for celebrada a escritura de Justificação Notarial, nos termos do art. 5.º, alínea r) do CIS, atento o facto de terem sido os Impugnantes quem invocaram tal título e o participaram ao serviço de finanças competente;

3.ª) – Nos termos do art. 1.º do CIS, o imposto incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens;

4.ª) – A alínea a) do n.º 3 do art. 1.º do CIS considera que, para efeitos da verba 1.2 da Tabela

Geral, a aquisição do direito de propriedade por usucapião é considerada transmissão gratuita sujeita à taxa de 10% sobre o valor do bem adquirido;

5.ª) – A usucapião, como decorre do disposto no art. 1316.º do CC, é um dos modos de aquisição do direito de propriedade e, nos termos do art. 1317.º do CC, o momento de aquisição do direito de propriedade é, nos casos de usucapião, o do início da posse;

6.ª) – A usucapião, nos termos do disposto no art. 1287.º do CC, é a aquisição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo que deriva da posse desses direitos por certo lapso de tempo;

7.ª) – No caso dos autos, a escritura de Justificação Notarial constitui o título que confere a titularidade do imóvel aos Recorridos, sendo tal facto que releva para efeitos da incidência do IS;

8.ª) – Decorre dos factos provados, especialmente do facto provado 5-, que são os próprios Recorridos que invocam, em nome próprio, uma posse que conduziu à aquisição por usucapião do direito de propriedade de um prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar e logradouro;

9.ª) – Para efeitos de incidência do IS não releva a data do início da posse que originou a usucapião, mas a data da outorga da escritura de Justificação Notarial, sendo este o facto tributário que determina o nascimento da obrigação tributária;

10.ª) – Embora a usucapião constitua uma forma de aquisição originária do direito de propriedade e os seus efeitos como se deixou anteriormente dito retroajam à data do início da posse, para efeitos de incidência do IS a lei ficciona tal facto como transmissão gratuita e a data da celebração da escritura como o momento do nascimento da obrigação tributária;

11.ª) – No caso dos autos, como ficou provado, não tendo a Justificação Notarial tido como escopo o reatamento do trato sucessivo ou o estabelecimento de novo trato sucessivo com vista a suprir a falta de título, já que os Impugnantes na escritura de Justificação Notarial invocam uma posse própria e a usucapião como causa de aquisição por si do direito de propriedade, a escritura de Justificação Notarial releva como facto tributário autónomo pelo que a liquidação do IS correspondente não enferma de qualquer ilegalidade;

12.ª) – No sentido do que temos vindo a concluir, vide a recente jurisprudência do STA, que inverteu sentido anterior, especialmente os Acórdãos do STA de 29/03/2017, proferido no

Processo n.º 01372/16, e o de 12/10/2016, proferido no Processo n.º 0718/15;

13.ª) – E, ainda, os seguintes Acórdãos do STA: de 14/07/2010, proferido no Processo n.º 01073/09; de 02/05/2012, proferido no Processo n.º 0746/11; de 13/10/2010, proferido no Processo n.º 0431/10;

14.ª) – Da jurisprudência enumerada resulta, em síntese, que a usucapião, que constitui uma forma de aquisição originária (cfr. artigos 1287.º e ss. do CC), é, para efeitos fiscais, considerada como uma transmissão gratuita de bens imóveis, que ocorre no momento do trânsito em julgado da ação de justificação judicial ou em que é celebrada a escritura de justificação notarial [cfr. a citada alínea r) do art. 5.º do CIS];

15.ª) – Assim, para efeitos do nascimento da obrigação tributária, não releva o momento da aquisição do direito de propriedade, pois que a obrigação tributária se constitui com a escritura de Justificação Notarial, incidindo o IS sobre o ato de aquisição por usucapião;

16.ª) – A usucapião constitui uma forma de aquisição originária do direito correspondente à posse exercida – e não uma forma de transmissão –, uma forma de aquisição de direitos que se funda na posse, quando esta reveste certas caraterísticas e desde que se mostrem verificados alguns requisitos, relativos, nomeadamente, ao seu tempo de duração (cfr. art. 1287.º do CC), sendo certo que a usucapião tem sempre na sua base uma situação possessória e essa posse pode ter sido constituída ex novo pelo sujeito a quem a usucapião aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor desse sujeito, de posse anterior;

17.ª) – A invocação desta posse apta à usucapião, tanto pode ser feita judicial como extrajudicialmente (como no presente caso aconteceu) e, uma vez invocada, a usucapião atua retroativamente, tendo-se a aquisição como operada desde o início da posse (artigos 1288.º e 1317.º, alínea c), do CC);

18.ª) – Tratando-se de Justificação, só no caso de ser invocada a usucapião como causa de alguma das aquisições é que pode haver lugar ao pagamento de IS; tal não acontecerá, por exemplo, no caso do processo de justificação se destinar ao reatamento do trato sucessivo tendo em vista suprir a falta de um título relativo a uma transmissão derivada intermédia;

19.ª) – No caso dos autos, a escritura de Justificação Notarial refere expressamente que, à data da escritura, o prédio a justificar não estava descrito na Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro e que o prédio, quando adveio à posse dos justificantes em data que não podem precisar, mas por volta do ano de 1980, também estava omisso na matriz rústica;

20.ª) – O legislador criou uma providência de natureza excecional, a Justificação, destinada a possibilitar o estabelecimento do princípio do trato sucessivo (inscrição prévia e continuidade das inscrições), sempre que os interessados não disponham de títulos que comprovem os seus direitos;

21.ª) – Partindo sempre da circunstância de que o interessado não disponha de documento bastante para comprovar o seu direito, os casos em que a Justificação Notarial é legalmente admitida para fins de registo predial são os seguintes: para obter a primeira inscrição; para reatamento do trato sucessivo; e para estabelecimento de novo trato sucessivo;

22.ª) – O caso dos autos não é um caso de justificação para reatamento do trato sucessivo, nem para estabelecimento de novo trato sucessivo: o caso dos autos é um caso de justificação para estabelecimento do trato sucessivo, relativamente a um prédio que ainda não estava descrito, nem nunca tinha estado descrito na Conservatória do Registo Predial;

23.ª) – Foi pela verificação de todos os requisitos da usucapião na esfera dos Impugnantes que se deu por justificada extrajudicialmente a aquisição originária do direito de propriedade, por isso, deve concluir-se que não estamos perante caso de justificação de transmissão de direitos anteriores (independentemente de também ter sido referido na escritura de Justificação que o prédio adveio à posse dos justificantes, Impugnantes, aqui Recorridos, “por doação meramente verbal de C……….. e mulher …………….”);

24.ª) – Ficou expresso no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 02/05/2012, proferido no Processo n.º 0746/11, que, quando o legislador veio, no art. 1.º, n.º 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza, visando apenas alargar a base de incidência, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais;

25.ª) – O mui douto Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação, conjugada, das normas de incidência do IS, previstas nos artigos 1.º, n.º 1 (incidência objetiva), 2.º, n.º 2, b) (incidência subjetiva), e 5.º, r), todos do CIS;

26.ª) – O mui douto Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação das normas previstas nos artigos 1287.º e ss., 1316.º e 1317.º, todos do CC;

27.ª) – Da leitura dos preceitos legais elencados, resulta que, embora sendo uma forma de aquisição originária (cfr. artigos 1287.º e ss. do CC), a usucapião é, para efeitos de incidência do IS, considerada (ficcionada) como uma transmissão gratuita de bens imóveis [cfr. artigos 1.º, n.ºs 1 e 3.º, alínea a), e 2.º, n.º 2, alínea b), do CIS], que ocorre, no caso de escritura de Justificação Notarial, no momento em que for celebrada a escritura [cfr. a alínea r) do art. 5.º do CIS];

28.ª) – O ato de aquisição por usucapião, mediante escritura de Justificação Notarial, encontra-se sujeito a tributação em sede de IS e o valor a considerar, para efeitos de tributação, deve ser o valor do prédio urbano existente à data da Justificação».

1.3. A…………… e mulher B……………, ora Recorridos, requereram a junção aos autos de contra-alegações, não admitida pelo Tribunal a quo que julgou extemporânea a sua apresentação.

1.4. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente, por não existir fundamento algum para que seja afastado o entendimento que este Supremo Tribunal Administrativo vem reiteradamente em múltiplos acórdãos, que identificou, vem acolhendo, sublinhando, ainda, que discorda da alegação da Recorrente quanto à alegada inversão de jurisprudência por ser manifesto que os acórdãos invocados e que suportam tal alegação se reportam a situações de recorte fáctico distinto do presente neste recurso jurisdicional.

1.5. Inexistindo qualquer circunstância que obste à apreciação do mérito do recurso, proceder-se-á ao seu julgamento, submetendo-se para esse efeito os autos à conferência desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é o teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), desta forma impedindo que voltem a ser reapreciadas por este Tribunal de recurso. Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, tendo por referência as conclusões formuladas e a delimitação da nossa competência, a questão que no cumpre decidir é a de saber se o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga errou ao julgar que, para efeitos de tributação em sede de Imposto de Selo, o valor a considerar é apenas o do prédio rústico por ter sido o único bem efectivamente usucapido, ou seja, se errou ao julgar que ao valor do prédio urbano construído não deve ser atribuído relevo fiscal.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

1- Os impugnantes adquiriram verbalmente, por via de doação efectuada por C………….. e mulher …………, ocorrida por volta do ano de 1980, um prédio rústico, à época omisso na matrizdocumento n.º 4 junto com a petição inicial.

2- Nunca foi celebrada a escritura de doação relativa à aquisição de tal prédio – cfr. documento n.º 4 junto com a petição inicial.

3- Nesse prédio rústico os impugnantes construíram um prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, ao qual veio a ser atribuído o artigo matricial urbano nº ………., da matriz da freguesia de Vilar da Veiga, concelho de Terras de Bouro – cfr. documentos n.ºs. 4 e 5 juntos com a petição inicial.

4- O processo de construção do prédio foi aprovado pela Câmara Municipal de Terras de Bouro em 1991 cfr. documento de fls. 24 e 25 do Processo Administrativo.

5- Em 01 de Abril de 2015, perante a Notária …………, e no Cartório Notarial de ……….., foi outorgada escritura de justificação, com o teor de fls. 14 a 17 dos autos cujo teor se considera integralmente reproduzido, aí declarando os Impugnantes, e no que aqui mais releva:

“(…) Que são donos e legítimos possuídos, com exclusão de outrem do seguinte imóvel:

- Prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar e logradouro, sito no lugar …….., freguesia de Vilar da Veiga, concelho de Terras do Bouro, com a área coberta de cento e vinte e cinco metros quadrados e cinquenta centímetros e área descoberta de dois mil e quarenta e nove metros quadrados e oitenta e seis centímetros, a confrontar a norte com .………., de sul com estrada e .…………, de nascente com ………. e de poente com …………. e estrada, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ………, com o valor atribuído de cinco mil euros, não descrito na conservatória de Registo Predial de Terras do Bouro.

- Que ao prédio ora justificado adveio à posse dos justificantes em data que não podem precisar por volta de mil novecentos e oitenta por doação meramente verbal de C…………. e mulher …………., casados, residentes em ………. ainda como rústico, à data omisso na matriz rústica, tendo construído, exclusivamente a expensas suas, o prédio urbano que ali se encontra implantado.

Que, desde essa data têm possuído o dito prédio em nome próprio e sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, à vista e com conhecimento de toda a gente e traduzida no amanho da terra, cortando lenhas de árvores, enquanto o prédio se encontrava como rústico e posteriormente fazendo todas as obras de construção e reconstrução, requerendo em seu nome as respectivas licenças de construção e suportando todos os custos, bem como em todos os demais actos materiais de fruição, pagando os respectivos impostos, sendo, por isso, uma posse pacífica, porque exercida sem violência, contínua e pública.

- Como esta posse assim exercida o foi sempre de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, acabaram por adquirir o prédio por usucapião, o que invocam para justificar o direito de propriedade para fins de registo predial, dado que este modo de aquisição não pode ser comprovado extrajudicialmente de outra forma. ”

6- Em resultado da escritura de justificação, foi emitida a liquidação do imposto do selo n.º 2122119, datada de 2015-06-09, no valor de € 9.182,00, a qual apresentava data limite de pagamento 2015-08-31 – cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial.

7- Não se conformando com a mesma, apresentaram os Impugnantes Reclamação graciosa, a qual deu entrada, em 19.11.2015, no Serviço de Finanças de Terras do Bouro – cfr. fls. 6 e seguintes do Processo Administrativo.

8- A Reclamação veio a ser indeferida mediante despacho de 02.06.2016, com a fundamentação constante de 26 do PA que aqui se têm por integralmente transcritas.

9- Os Impugnantes foram notificados do indeferimento, por via de ofício remetido em 2016.06.03 – fls. 27 a 29 do Processo Administrativo.

10- A petição inicial foi remetida ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, por correio sob registo, no dia 5-9-2016 – cfr. fls. 27 do suporte físico dos autos.

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida do ato de liquidação de Imposto de Selo, de 2015, tendo o Meritíssimo Juiz a quo decidido que só o valor prédio rústico deve ser considerado para efeitos de tributação em sede de Imposto de Selo.

3.2.2. Para o Tribunal a quo, distintamente do que foi (como fundamento da liquidação) e continua a ser o entendimento da Administração Tributária (em recurso), só aquele prédio (rústico) deve ser objecto de tributação em sede de Imposto de Selo, por constituir o objecto da aquisição por usucapião, independentemente de, na data de celebração da escritura de justificação, já aí os recorridos terem construído um prédio urbano.

3.2.3. A questão que nos cumpre decidir é, pois, como ficou dito, a de saber qual o objecto da tributação em Imposto de Selo, no caso de usucapião de um prédio rústico no qual foi construída uma casa pelos respectivos usucapientes.

3.2.4. Sendo indiscutível que a sentença recorrida acompanha a jurisprudência uniforme desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal, que exaustivamente citou e não existindo fundamento para divergir desse mesmo entendimento, limitar-nos-emos a invocar e transcrever, na parte relevante e para o que ora importa, um dos últimos arestos que, quanto a esta matéria, foram produzidos por esta Secção e Tribunal:

«3.2. Trata-se, aliás, de questão que, como bem refere o MP, tem sido uniforme e reiteradamente apreciada por esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo [cfr., por mais recentes e entre muitos outros, os seguintes acórdãos da Secção: de 20/1/2010, proc. nº 773/09 (Ap. ao DR, de 24/3/2011, pp. 79 a 83); de 28/4/2010, proc. nº 126/10 (Ap. ao DR, de 30/3/2011, pp. 707 a 712); de 12/5/2010, proc. nº 53/10 (Ap. ao DR, de 30/3/2011, pp. 804 a 808); de 9/6/2010, proc. nº 242/10 (Ap. ao DR, de 30/3/2011, pp. 1014 a 1017); de 22/9/2010, proc. nº 334/10 (Ap. ao DR, de 1/4/2011, pp. 1403 a 1407); de 8/2/2012, proc. nº 1120/11; de 23/2/2012, proc. nº 1082/11; de 29/2/2012, proc. nº 818/11; de 7/3/2012, proc. nº 833/11; e de 17/10/12, proc. 619/12; de 30/10/2013, proc. n.º 0827/13; de 27/11/2013, proc. n.º 0974/13; de 21/5/2014, proc. n.º 01676/13; de 17/12/2014, proc. nº 01198/14; de 12/2/2015, proc. nº 0716/14; de 17/6/2015, proc. nº 0353/15; e de 23/9/2015, proc. nº 0667/15].

Por isso, porque nem a recorrente aporta novos argumentos relevantes, nem vislumbramos motivo para divergir desta jurisprudência uniforme, limitar-nos-emos (atendendo, também, ao disposto no n.º 3 do art. 8º do CCivil), a seguir a fundamentação expendida no primeiro daqueles referidos arestos e no acórdão de 27/11/2013, no proc. n.º 974/13 (ambos relatados pelo presente relator), bem como no acórdão de 17/10/2012, rec. nº 0619/12.

Assim:

Revogado que foi, a partir de 1/1/2004 (cfr. arts. 31º e 32º do DL nº 287/2003, de 12/11), o Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações, as transmissões gratuitas de móveis e imóveis passaram a ser reguladas pelo CIS, cujo art. 1º, que tem como epígrafe «Incidência objectiva», na versão aplicável, dispõe, no que aqui interessa, o seguinte:

«1 - O imposto do selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.

2 - (…)

3 - Para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objecto:

a)Direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião; [Redacção introduzida pela Lei n.º 39-A/2005, de 29 de Julho]. (…)».

Por sua vez, o art. 2º, sob a epígrafe «Incidência subjectiva», dispõe:

«1 - (…)

2 - Nas transmissões gratuitas, são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares para quem se transmitam os bens, sem prejuízo das seguintes regras:

a) (…)

b) Nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos respectivos beneficiários. [Redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro)».

E o art. 3º, «Encargo do imposto», dispõe:

«1 - O imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico nas situações referidas no artigo 1º. [Redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro).

2 - (…)

3 - Para efeitos do nº 1, considera-se titular do interesse económico:

a) Nas transmissões por morte, a herança e os legatários e, nas restantes transmissões gratuitas, bem como no caso de aquisições onerosas, os adquirentes dos bens;

(…)».

Já a alínea r) do art. 5º («Nascimento da obrigação tributária»), na redacção da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, dispõe que a obrigação tributária se considera constituída, «Nas aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a acção de justificação judicial, for celebrada a escritura de justificação notarial ou no momento em que se tornar definitiva a decisão proferida em processo de justificação nos termos do Código do Registo Predial».

Finalmente, o nº 1 do art. 13º dispõe que o valor dos imóveis é o valor patrimonial tributário constante da matriz nos termos do CIMI à data da transmissão ou o determinado por avaliação nos casos de prédios omissos ou inscritos sem valor patrimonial.

E de acordo com a verba 1.2. da Tabela Geral o imposto do selo recai em 10% sobre o valor dos respectivos contratos de «aquisição gratuita de bens, incluindo por usucapião (…)».

«De acordo com a jurisprudência referida, entende-se que o acto de «aquisição por usucapião» do imóvel objecto dessa aquisição é incidente de tributação em imposto de selo, não o sendo já, porém, o acto de aquisição de benfeitorias entretanto realizadas no mesmo imóvel pelo sujeito beneficiário da usucapião.

É certo que embora sendo uma forma de aquisição originária (cfr. arts. 1287º e segts. do CC), a usucapião é, para efeitos fiscais, considerada como uma transmissão gratuita de bens imóveis, que ocorre no momento em que se torna definitivo o documento que titula essa aquisição ou transmissão: no caso, a data em que for celebrada a escritura de justificação notarial – cfr. a citada alínea r) do art. 5º do CIS).

Todavia, também é certo que, como se disse, só o acto de aquisição do prédio objecto da aquisição por usucapião (e não o acto de aquisição das benfeitorias neste realizadas) é que está abrangido no âmbito da incidência objectiva do imposto de selo, pois que, vigorando nesta sede (de incidência do imposto), o princípio da tipicidade fiscal, a regra constante quer da norma corporizada na verba 1.2. da Tabela Geral, quer das normas da alínea a) do nº 1 e do nº 3, ambos do art. 1º do CIS e acima transcritas, é a de que tal imposto só incide sobre o acto de «aquisição por usucapião».

E na verdade, como ficou dito no acórdão desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de Janeiro de 2010, proferido no processo com o n.º 1124/09, «o acto tributário tem que ter por base uma situação de facto ou de direito, concreta, prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Tal base é, pois, o pressuposto de facto ou o facto gerador da imposição – cf. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 1972, p. 266.

No Direito Fiscal vigora o princípio da tipicidade (…).

O facto tributável, com ser um facto típico, só existe como tal, desde que na realidade se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos, que, por esta nova óptica, se convertem em elementos do próprio facto, bastando a não verificação de um deles para que não haja, pela ausência de tipicidade, lugar à tributação. No Direito Tributário, a tipologia é dominada não só por um princípio de taxatividade como também por um princípio de exclusivismo. Opera-se o fenómeno que a lógica jurídica designa por implicação intensiva.

Verifica-se a implicação intensiva sempre que os elementos enunciados no pressuposto não são apenas suficientes, mas ainda necessários para a verificação da consequência: se esses elementos se verificarem, segue-se a consequência, mas esta só se segue se eles se verificarem – cf., sobre o princípio da tipicidade em Direito Fiscal, Alberto Pinheiro Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, p. 263 e ss. Sobre o conceito de “implicação intensiva”, cf. Castanheira Neves, Questão-de-facto - Questão-de-direito, p. 264, e ainda J. Baptista Machado, Introdução ao Estudo do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1991, 5.ª reimpressão, p. 187.

A tributação resulta, assim, da verificação concreta de todos os pressupostos tributários, como tais previstos e descritos, abstractamente, na lei de imposto».

Assim, embora para efeito de tributação em IS seja irrelevante o momento da aquisição do direito de propriedade, pois que a obrigação tributária se constitui com a transmissão gratuita operada por via da escritura de justificação notarial (cfr. alínea r) do art. 5º do CIS), já não o é para efeitos do respectivo valor tributável, pois que só sobre o acto de aquisição por usucapião incide o imposto.

E como só o prédio rústico foi objecto de tal forma de aquisição, só o valor deste deve ser considerado na aplicação da respectiva taxa.

Não pode, portanto, afirmar-se que o estado do imóvel a atender para a aferição do valor terá de ser o verificado na data da escritura de justificação, independentemente das causas das modificações verificadas, sendo que tal estado é uno e não pode cindir-se em rústico e urbano e que a quantificação da obrigação tributária se faz apenas a partir do valor do prédio objecto da escritura. E também não releva (para poder concluir que o valor para cálculo do imposto é o do prédio urbano, por ser assim que o mesmo é descrito na escritura) a circunstância de terem sido os justificantes a declarar, à data da escritura, que eram donos de um prédio urbano, e não já de um prédio rústico, dado que tal declaração não pode, neste âmbito, ter efeitos constitutivos.

Aliás, a realidade imobiliária existente no terreno à data da celebração da escritura de justificação não pode ignorar que foram os recorridos que edificaram nele a construção em causa, em momento anterior à celebração dessa escritura. E tratando-se de uma benfeitoria útil – cfr. art. 216.º do CC (que poderia, porventura, vir a conferir a propriedade do terreno por via de acessão industrial imobiliária) não podia a mesma incluir-se no âmbito da aquisição por usucapião, para efeitos da liquidação aqui impugnada.» (Acórdão do Supremo tribunal administrativo de 10 de Janeiro de 2018, proferido no processo n.º 565/17, integralmente disponível em www.dgsi.pt ).

3.2.5. Retornando ao caso vertente, e visto, como bem aponta o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público, que se alcança sem dificuldade da factualidade julgada provada (e não questionada pela Recorrente), que a posse que os respectivos outorgantes invocaram na escritura de justificação como título para a usucapião foi a posse pacífica do terreno que lhes havia sido verbalmente doado há mais de 20 anos, ao passo que, quanto à edificação nele construída os outorgantes alegaram que tinha sido construída por eles próprios (não subsistindo, assim, dúvida de que o objecto da justificação notarial é o terreno adquirido verbalmente e cuja compra e venda nunca os recorridos haviam chegado a formalizar), então, como bem se decidiu na sentença recorrida, a liquidação impugnada sofre de ilegalidade decorrente da violação das apontadas normas do Código de Imposto de Selo na parte em que incluiu o valor das benfeitorias realizadas pelos justificantes.

3.2.6. Considerando o teor das alegações e, muito particularmente, a forma peremptória como a Recorrente afirma que este Supremo Tribunal Administrativo, pelos acórdãos proferidos a 29 de Março de 2017 e 12 de Outubro de 2016, respectivamente proferidos nos processos n.ºs 1372/16 e 718/15 (igualmente integralmente disponíveis para consulta em www.dgsi.p), alterou o entendimento que há quase uma década vem mantendo, impõe-se, ainda uma nota final: não corresponde à realidade que, até ao momento, tenha havido qualquer alteração do entendimento que este Supremo Tribunal Administrativo vem reiteradamente professando.

3.2.7. Como, mais uma vez muito bem, sublinhou o Excelentíssimo Procurador-Geral-Adjunto, e resulta linearmente de uma leitura atenta dos identificados arestos, o que aí determinou o julgamento de tributação dos prédios urbanos não foi o acolhimento de uma interpretação distinta do quadro jurídico mas, e exclusivamente, a circunstância de, em tais acórdãos, ter resultado provado que os referidos prédios constituíam efectivamente os bens objecto de usucapião.

3.2.8. Não sendo essa a factualidade com que nos defrontamos, o que, seguramente, apenas por mero lapso a Recorrente não se terá apercebido, carece de qualquer sentido a sua pretensão de, com base na mencionada jurisprudência, ver revogada a douta sentença recorrida.

3.2.9. Impõe-se, pois, a confirmação do julgado, com a consequente declaração de improcedência do recurso jurisdicional interposto, o que a final, se determinará, bem como a condenação da Recorrente em custas, atento a qualidade de vencida em que ficou e o preceituado no artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC.

4. Decisão:

Termos em que, acordam os Juízes que integram a secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, negando provimento ao recurso, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 6 de Outubro de 2021 - Anabela Ferreira Alves e Russo (Relatora, que consigna e atesta, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, que têm voto de conformidade com o presente acórdão os Conselheiros integrantes da formação de julgamento - Francisco Areal Rothes e Aníbal Augusto Ruivo Ferraz).