Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0466/19.5BEPNF
Data do Acordão:02/29/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:PEDRO MACHETE
Descritores:RECURSO DE APELAÇÃO
EFEITO SUSPENSIVO
FACTO SUPERVENIENTE
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
INTERESSE EM AGIR
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
PLANO DIRECTOR MUNICIPAL
PROJECTO DE ARQUITECTURA
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
REVOGAÇÃO POR SUBSTITUIÇÃO
REVOGAÇÃO MODIFICATÓRIA
REVOGAÇÃO DE ACTO INVÁLIDO
REVOGAÇÃO DE ACTO NULO
EFEITOS ULTRACONSTITUTIVOS
EFEITO CONFORMATIVO
TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
INUTILIDADE DO RECURSO JURISDICIONAL
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:I - No caso de uma parte invocar, em sede de recurso de apelação, já depois de apresentadas as alegações e contra-alegações e os autos terem subido ao tribunal ad quem, factos objetivamente supervenientes justificativos da extinção da instância por inutilidade superveniente, nomeadamente devido à perda do interesse em agir ou ao desaparecimento superveniente de outro pressuposto processual, e juntar documentos comprovativos de tais factos, deve o tribunal central administrativo admitir os documentos em causa e decidir sobre os efeitos dos factos invocados.
II - Na fase de aprovação do projeto de arquitetura são apreciados de forma definitiva os aspetos urbanísticos, nomeadamente a conformidade do projeto nas suas várias vertentes com os planos urbanísticos aplicáveis, incluindo o aspeto exterior e a inserção urbana e paisagística da construção a licenciar, assim como o uso proposto, ficando para a fase de aprovação do licenciamento a apreciação dos aspetos referentes aos chamados projetos de especialidades, relativamente aos quais as normas de cariz urbanístico constantes dos instrumentos de planeamento nada regulam.
III - A incompatibilidade do uso proposto da construção com o PDM aplicável verificada na fase de aprovação do projeto de arquitetura determina não só a nulidade deste, como a nulidade da licença de obras de construção.
IV - Embora a alteração à licença de obras de construção obedeça, por força de disposição especial, ao procedimento estabelecido para a aprovação da própria licença de construção, com nova apreciação do projeto de arquitetura e eventual apresentação de novos projetos de especialidades (cfr. os artigos 20.º e 27.º, n.º 4, ambos do RJUE), a mesma não deixa de revestir a natureza de ato secundário – a alteração ou revogação modificatória de um ato administrativo –, sendo, por isso, aplicável aos aspetos não especialmente regulados o regime geral da alteração (e substituição) de atos administrativos previsto no artigo 173.º, n.º 1, do CPA, o qual remete para as normas reguladoras da revogação.
V - Um desses aspetos é o da insusceptibilidade de revogação dos atos nulos (artigo 166.º, n.º 1, alínea a), do CPA), pois a alteração (ou revogação modificatória) incide sobre uma parte dos efeitos de um ato administrativo anterior, eliminando-os e substituindo-os por outros, pressupondo, nessa medida, a existência de efeitos do ato anterior sobre os quais projeta a sua eficácia específica.
VI - Inexistindo efeitos produzidos pelo ato alterado, o objeto da alteração é juridicamente impossível – pois não se pode substituir o que não existe –, tornando nula a própria alteração (cfr. o artigo 161.º, n.º 2, alínea c), do CPA).
VII - Daí que a eventual nulidade do ato primário seja uma questão prévia relativamente à validade da alteração ou revogação modificatória de tal ato.
VIII - Tendo sido interposto recurso de apelação de sentença declarativa da nulidade de uma licença de construção – ato primário –, a recusa pelo tribunal central administrativo de apreciar tal nulidade com fundamento na superveniência de uma alteração ou revogação modificatória daquela licença – ato secundário – e consequente inutilidade do recurso, além de incorreta por não ter ocorrido uma revogação substitutiva, desrespeita o direito a uma tutela jurisdicional efetiva da parte que obteve vencimento na primeira instância.
IX - Ademais o interesse processual de tal parte mantém-se quanto à decisão do recurso de apelação, prevenindo quer a necessidade de iniciar novo processo de impugnação do ato secundário, quer a necessidade de nesse processo ter de repetir, novamente perante um tribunal de primeira instância, a alegação e prova das ilegalidades já identificadas e reconhecidas na sentença que declarou a nulidade do ato primário.
X - Acresce que a continuação do mesmo recurso até à decisão final assegurará, no caso de a mesma confirmar a decisão de primeira instância, por via do efeito conformativo desta última, que o órgão autor dos atos em causa fica vinculado à definição, com autoridade de caso julgado, da relação jurídico-administrativa entre tal órgão e a parte que obteve ganho de causa na primeira instância.
XI - O efeito conformativo também permite prevenir que, em situações como a dos autos, o órgão que aprovou a licença de construção e a alteração da mesma possa, perante futuros decaimentos em impugnações de atos relativos ao mesmo projeto, obstar à definição do quadro legal aplicável, por via de sucessivas apelações com efeito suspensivo, seguidas de aprovações de alterações às licenças anuladas ou declaradas nulas por sentenças de primeira instância.
XII - Uma perspetiva sistémica, afigura-se disfuncional que, em alternativa à decisão definitiva de uma ação administrativa de impugnação em que foi proferida uma sentença anulatória ou de declaração de nulidade, se opte, em sede de recurso e perante a notícia de que o ato impugnado foi objeto de alteração, pela extinção da instância com fundamento em inutilidade superveniente da lide, diferindo aquela decisão definitiva para eventuais futuras impugnações em que a mesma situação poderá voltar a ocorrer.
XIII - Com efeito, trata-se de uma solução não só objetivamente injustificada – porque o ato impugnado subsiste – e subjetivamente desvantajosa para o autor – que é remetido para iniciar um novo processo de impugnação contra o novo ato –, como, sobretudo, desfavorável para a efetividade da garantia da tutela jurisdicional, pois adia a clarificação do litígio e inutiliza a atividade processual já desenvolvida.
Nº Convencional:JSTA00071827
Nº do Documento:SA1202402290466/19
Recorrente:UNIÃO DE MORADORES DO LUGAR DE ...
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE VALONGO
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:CPC ART260 ART611 N1
CPTA ART86
RJUE ART68 AL.A)
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. Relatório

1. Nos presentes autos de recurso de revista vindos do Tribunal Central Administrativo Norte (“TCAN”), vem a UNIÃO DE MORADORES DO LUGAR DE ... recorrer do acórdão daquele tribunal, datado de 22.10.2021, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide no recurso principal interposto pelo MUNICÍPIO DE VALONGO e negou provimento ao recurso subordinado interposto pela aqui recorrente, respeitando ambos os recursos à sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel (“TAF de Penafiel”), de 31.12.2019, que julgara parcialmente procedente a ação intentada pela ora recorrente, tendo declarado a nulidade dos despachos impugnados e julgado improcedente o pedido indemnizatório formulado.

2. A recorrente – uma associação sem fins lucrativos de pessoas singulares residentes no Lugar de ..., em Valongo – intentou contra o ora recorrido no TAF de Penafiel uma ação administrativa de impugnação pedindo a declaração de nulidade ou, subsidiariamente, a anulação do despacho de 19.06.2017 do Vice-Presidente da Câmara Municipal que aprovou o projeto de arquitetura do Licenciamento n.º .../17 em que é requerente a aqui contrainteressada e também recorrida A..., Lda., assim como do despacho de 12.11.2018 do Vereador da Câmara Municipal que deferiu o pedido de licença de obras relativo à construção de um armazém e de um edifício de habitação coletiva, bem como de obras de urbanização dos arruamentos que confinam com os ditos edifícios. A autora pediu igualmente a condenação da entidade demandada e da contrainteressada na reconstituição da situação que existiria caso os atos impugnados não tivessem sido praticados e, ainda, a condenação de ambas, a título de responsabilidade civil extracontratual, no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor dos honorários do mandatário da autora, a liquidar em execução de sentença, assim como dos juros de mora à taxa legal, desde a condenação até integral pagamento.
A contrainteressada, comercialmente conhecida como Transportes A... é uma empresa que atua no setor económico do armazenamento (e gestão de stock) e distribuição de mercadorias dos seus clientes, nomeadamente de papel de artes gráficas, que oferece aos seus clientes soluções logísticas integradas (armazenagem e gestão de stock) e transporte das mercadorias por todo o território nacional, prestando tais serviços diariamente, vinte e quatro horas por dia. O projeto de construção em Valongo traduz-se essencialmente num edifício destinado a armazenamento de produto acabado e embalado – matéria do tipo documental em papel e livros – para posterior distribuição para todo o país, nomeadamente para a zona Sul, onde a empresa também tem outros espaços com as mesmas caraterísticas. A atividade envolve diversos veículos pesados com dimensões diferenciadas – 18m, 12m e 6m – que circulam entre as 7:00 horas e as 24:00 horas, com menor incidência a partir das 21:00 horas, e o número de funcionário e administração totaliza 50 pessoas (cfr. o n.º 11 da Informação n.º ...18, transcrita no n.º 18) dos factos provados na primeira instância).
Como mencionado, a citada ação foi julgada parcialmente procedente por sentença de 31.12.2019, que declarou a nulidade dos despachos impugnados e indeferiu o pedido de indemnização. Com efeito, aquela sentença considerou quatro ilegalidades:
– A violação pelo despacho de 19.06.2017 do prazo de execução regulamentarmente definido (cfr. o ponto IV.2.4 da sentença do TAF de Penafiel, sem prejuízo de a contrainteressada ter apresentado em 20.08.2018 um pedido de alteração ao projeto de arquitetura nos termos do qual já não havia lugar à construção do edifício habitacional e se previa a execução num prazo inferior – cfr. o n.º 17) dos factos provados na primeira instância);
– A violação do disposto nos artigos 51.º, n.º 2, e 15.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento do PDM de Valongo (versão correspondente ao Aviso n.º ...18, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 25, de 5.02.2018), uma vez que «o projeto em causa ao permitir essencialmente a laboração em horário noturno poderá originar ruído, o que poderá tornar tal uso incompatível» com as citadas disposições daquele regulamento, determinando, por força do artigo 68.º, alínea a), do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (“RJUE”), a nulidade dos atos em causa (cfr. o ponto IV.2.5 da sentença do TAF de Penafiel);
– A violação do direito de audiência prévia da autora (cfr. o ponto IV.2.8 da sentença do TAF de Penafiel);
– A violação do dever de fundamentação, devido a contradição entre a decisão e os respetivos fundamentos (cfr. o ponto IV.2.9 da sentença do TAF de Penafiel).

3. Inconformado, o aqui recorrido interpôs recurso de apelação para o TCA Norte e a ora recorrente interpôs recurso subordinado relativamente à parte em que tinha decaído na decisão da primeira instância.
Sucede que, já depois de apresentadas as alegações e contra-alegações pelas partes no recurso de apelação, o então recorrente no recurso principal e ora recorrido veio requerer a extinção da instância com fundamento em inutilidade superveniente da lide, nos seguintes termos:
«“1º
Por despacho de 03-03-2021, do Senhor Vereador Engenheiro AA, foi deferido o pedido de alteração à licença apresentado pela Sociedade A..., Lda, ora Contrainteressada, no processo de licenciamento nº ...17 (cfr. certidão do despacho, doc. nº 1 que se junta e se dá aqui por integralmente reproduzido).

O identificado despacho substitui os despachos de 19-06-2017 e de 12-11-2018, objeto de impugnação nos presentes autos (cfr. artº 173º CPA).

Com efeito, o licenciamento da construção requerido pela Contrainteressada, está agora titulado pelo novo despacho identificado no artº 1º deste requerimento.

Despacho de licenciamento que, aliás, já foi objeto de nova ação administrativa de impugnação de ato administrativo, interposta em 18-06-2021 pela ora Recorrida, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, onde corre termos (cfr. doc. n° 2 que se junta e se dá aqui por integralmente reproduzido).

Quer isto dizer que a presente lide é supervenientemente inútil, visto que os atos impugnados foram substituídos pelo novo ato administrativo que licenciou, determinando novas condições, a construção da Contrainteressada.”» (v. p. 15 do acórdão recorrido).

A ora recorrente opôs-se a tal pretensão, manifestando-se no sentido de que «nada obsta ao prosseguimento da […] lide, não existindo qualquer superveniência capaz de determinar a extinção da mesma por inutilidade». Para tanto, alegou, em síntese, que:
«(i) “as alterações introduzidas na licença não são aptas a sanar os vícios apontados ao longo do processo e reconhecidos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel na douta Sentença”; (ii) “o presente ato mais não tenta se não corrigir os vícios existentes no ato primitivo – contudo, sem sucesso, uma vez que mantém as ilegalidades constantes no ato primitivo”, (iii) “tais vícios apenas podem ser assacados na presente lide, pelo que, também por esta via, facilmente se constata que não existe qualquer inutilidade”, (iv) “o alegado ‘novo’ ato corresponde, tão só, a uma mera alteração do ato primitivo que deferiu o licenciamento e que, com recurso à presente ação, se impugnou” e prossegue concluindo que "Significa isto que, caso se comprove, como já foi atestado pelo Tribunal de 1.ª instância (e bem reconheceu o Município de Valongo), que o ato de licenciamento é ilegal, então qualquer putativa alteração a este ato será, também ela, inválida".
Conclui[u], designadamente, que "Este novo ato, por se tratar de uma mera alteração ao ato primitivo (o que significa que, caso este seja declarado nulo ou anulado, implica a invalidade dos atos seguintes), não implica, como o Município de Valongo parece defender, que o ato impugnado tenha sido removido da ordem jurídica” e que, “nessa medida, a Recorrida/Recorrente União de Moradores do Lugar de ... mantém o interesse em obter a pronúncia deste douto Tribunal sobre a legalidade do ato - sendo certo, que a decisão que vier a ser proferida, se favorável, poderá conduzir (essa sim) a uma inutilidade superveniente no processo 415/21.0BEPNF.”.» (pp. 15-16 do acórdão recorrido).

O TCAN, depois de elencar os factos provados pelos documentos juntos com o requerimento do então recorrente, concluiu, no acórdão ora recorrido, não se justificar o conhecimento do mérito do recurso principal e julgar, nessa parte, extinta a instância por inutilidade superveniente. Quanto ao recurso subordinado, negou provimento ao mesmo.

4. Notificado o acórdão às partes, a autora, não se conformando com o que foi decidido, apresentou um requerimento de reforma, nos termos do artigo 616.º, n.º 2, alínea a), do CPC (v. fls. 1619-1633), a que a entidade demandada e a contrainteressada responderam, defendendo quer a inadmissibilidade da reforma pedida, quer a sua improcedência (v., respetivamente, fls. 1640-1644 e fls. 1649-1664).
Ainda no prazo de recurso, a autora veio interpor o presente recurso de revista, apresentando as alegações correspondentes.
O Município de Valongo e a contrainteressada contra-alegaram, sustentando que o mesmo não devia ser admitido e, sendo-o, que ao mesmo não devia ser concedido provimento.
Por despacho de 4.02.2022, o relator no tribunal a quo considerou que que, à luz do referido artigo 616.º, n.º 2, alínea a), se couber recurso da decisão, deixa de ser lícito às partes requerer a reforma da sentença «’tout court’, ou seja, autonomamente ou não», pelo que, na medida em que da decisão cabe recurso de revista, a situação não se subsume à previsão da norma do citado preceito, impondo-se a rejeição «do ilícito requerimento de reforma do acórdão, o que se decide.» (fls. 1766). Quanto ao recurso de revista, o relator ordenou a remessa dos autos para este Supremo Tribunal Administrativo.

5. O presente recurso foi admitido por acórdão de 26.05.2022, proferido nos termos do artigo 150.º, n.º 6, do CPTA, tendo a formação de apreciação preliminar fundamentado a sua decisão com base nas seguintes ordens de razão:
«Na presente revista, a A./Recorrente defende, em síntese, que o acórdão recorrido ao admitir um requerimento ad hoc do Município, e em face da factualidade nele ínsita, extinguindo a instância sem uma decisão de mérito, julgando a inutilidade superveniente da lide, viola o princípio da estabilidade da instância, concretamente o art. 260º do CPC, aplicável ex vi art. 1º do CPTA e os arts. 63º e 86º deste mesmo diploma. Preceitos que permitem concluir que a apresentação de articulados supervenientes antecede o momento do saneamento e do julgamento do processo, sendo que todas as questões que possam conflituar com a estabilidade da instância devem ser invocadas até ao encerramento da discussão em primeira instância.
Mais alega que o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, ao declarar extinta a instância por, alegadamente, a alteração superveniente da licença conduzir à sua inutilidade, trata-se de um claro erro de interpretação, violando o direito à tutela jurisdicional efetiva da Recorrente.
A questão suscitada na presente revista da (im)possibilidade de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, em fase de recurso, num caso e nas circunstâncias como os presentes, reveste manifesta relevância jurídica, sendo suscetível de pôr em causa os princípios processuais dos arts. 260º e 611º, nº 1 do CPC e 63º e 86º do CPTA, não sendo isenta de dúvidas, o que aconselha que este Supremo Tribunal sobre ela se debruce, reanalisando-a com a admissão da revista, para ser devidamente dilucidada a questão nela suscitada.».

6. No que se refere ao mérito do recurso, importa considerar a posição das partes enunciadas nas conclusões das respetivas alegações e contra-alegações.

6.1. A autora e aqui recorrente sintetizou as suas alegações de recurso nas seguintes conclusões:
« XXI. Sem prejuízo de tudo quanto se expôs — e para onde, por razões de economia, expressamente se remete —, cumpre, nesta sede, reiterar que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento de Direito ao admitir a junção do requerimento ad hoc do Município e ao determinar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, em razão do deferimento do pedido de alteração à licença formulado pela Contrainteressada.

XXII. Em primeiro lugar, de salientar que, à luz do já citado princípio da estabilidade da instância e dos poderes de cognição do Tribunal Central Administrativo Norte, encontrava-se o Tribunal a quo impedido de admitir e apreciar o requerimento ad hoc apresentado pelo Município nos termos em que o fez, na medida em que, como se afirmou, o princípio da estabilidade da instância apenas permite que as partes conduzam ao processo factos supervenientes constitutivos, modificativos ou extintivos do direito até ao encerramento da discussão em primeira instância (cfr. o artigo 260.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, o n.º 1 do artigo 86.º do CPTA e o artigo 63.º do CPTA).

XXIII. Em segundo lugar, tendo em conta a manifestação do Município de que terá promovido “a substituição” dos primitivos atos de licenciamento e de que não teria interesse na lide, deveria o Tribunal a quo ter acolhido o mecanismo da desistência de recurso, plasmado no já mencionado n.º 5 do artigo 632.º do CPC e não, como fez, declarar extinta uma instância já sentenciada.

XXIV. Como tal, o Tribunal a quo errou no julgamento que empreendeu à situação sub judice, devendo o mesmo ter extinto a lide recursiva, considerando a perda de interesse manifestada pelo Município, mantendo na ordem jurídica a decisão de mérito que recaiu sobre a pretensão da Recorrente, deste modo acolhendo o interesse do primeiro e respeitando o direito à tutela jurisdicional efetiva da segunda.

XXV. Considerando que as alterações promovidas aos atos originalmente impugnados não esgotam os vícios apontados pela Recorrente nos presentes autos, e afigurando-se absolutamente pacífico (a não ser para o douto Tribunal a quo) que a impugnação de atos modificativos apenas pode versar sobre os aspetos que sejam por estes regulados de forma inovadora, não poderá a Recorrente ver estas questões tratadas no processo judicial do qual teve que lançar mão para impugnar as sobreditas alterações.

XXVI. De salientar que mal andou o Tribunal a quo ao considerar que a presente lide se tornou inútil por ter ocorrido uma revogação substitutiva dos atos primários (aprovação do projeto de arquitetura e licença) por via da alteração à licença entretanto deferida, uma vez que as únicas alterações introduzidas ao projeto pela Contrainteressada prenderam-se com a criação de um novo acesso mecânico ao edifício a construir e, bem assim, com o reajuste dos lugares de estacionamento previstos, sendo somente este o conteúdo inovador na alegada “nova disciplina de licenciamento" e apenas estes os aspetos que a Recorrente pode sindicar contenciosamente.

XXVII. Rememore-se que, entre outros aspetos, o Tribunal de primeira instância expressamente reconheceu que os atos primitivos nesta sede sindicados conduzirão a “(...) criação de uma situação, sobretudo nas horas noturnas, em que se coloque em causa a saúde e bem estar das pessoas que vivem naquele local”, concluindo, deste modo, serem os mesmos incompatíveis com as disposições do PDM e, bem assim, com os direitos ao descanso e ao repouso dos moradores do lugar de ... – sendo que tal discussão apenas se pode realizar na presente demanda, uma vez que, como se afirmou, não está em causa qualquer trecho “inovatório” patenteado na alteração à licença.

XXVIII. Significa isto que, na circunstância de os atos primitivos serem declarados inválidos, por via da manutenção na ordem jurídica da sentença proferida em primeira instância, naturalmente que essa invalidade se estenderá à alteração da licença, a qual não poderá subsistir per se.

XXIX. O mesmo é dizer que a presente lide, ao invés do que afirma o Tribunal a quo, se continua a manter pertinente, sendo imperiosa uma pronúncia judicial para esclarecer os termos em que o edifício e a atividade que a Contrainteressada pretende levar no local é compatível com o mesmo.

XXX. Por outro lado, com a inexistência de uma decisão judicial transitada em julgado sobre a licença originária – onde a referida discussão se encontra a ser travada – assistirá [a] Recorrente à consolidação dos efeitos de uma licença que já foi considerada ilegal e que, a todo o momento, a pedido da Contrainteressada, pode o Município repristinar.

XXXI. Como tal, e como se expendeu supra, o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, ao declarar extinta a instância por, alegadamente, a alteração superveniente da licença conduzir à sua inutilidade, mais não se trata do que de um claro erro na aplicação do Direito, violando de forma gritante o direito à tutela jurisdicional efetiva da Recorrente.

XXXII. Face a tudo quanto se expôs, dúvidas não restam de que mal andou o julgador a quo a julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, pelo que deverá o acórdão recorrido ser revogada e substituída por outra que, mantendo a Sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, confira à Recorrente uma decisão de mérito sobre a sua pretensão.».

6.2. A entidade demandada, aqui recorrida, concluiu as suas contra-alegações nos seguintes termos:
«3º Nos termos previstos no nº 1 do artº 611º CPC aplicável ex vi por força do disposto no artº 663º nº 2 CPC, os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição do recurso devem ser tomados em consideração na decisão, para que esta corresponda à situação existente no momento da sua produção;

4º No caso “sub judice”, o facto superveniente que conduz à inutilidade superveniente da lide consiste no novo despacho de licenciamento, de 03-06-2021, que substitui os anteriores atos de licenciamento impugnados nos autos, e que define as novas condições jurídicas do licenciamento da construção;

5º O novo despacho de licenciamento substitui os atos impugnados nos autos que assim deixam de produzir efeitos jurídicos, eliminando o objeto dos presentes autos;

6º Os atos impugnados dos autos foram eliminados da ordem jurídica pelo novo despacho de licenciamento, tornando supervenientemente inútil a presente lide;

7º A Recorrente mantém intocáveis todos os seus direitos de acesso à justiça e tutela jurisdicional, na medida em que pode impugnar o novo ato de licenciamento, imputando-lhe os vícios invalidantes que, na sua tese, fundamentam a impugnação da legalidade da construção licenciada;

8º O douto acórdão “a quo” não merece qualquer censura, devendo ser confirmado.».

6.3. Finalmente, a contrainteressada formulou as seguintes conclusões no final das suas contra-alegações:
«M. A Recorrente, em sede de alegações de recurso de revista, vem, somente, reeditar tanto quanto alegou no requerimento autónomo de pedido de reforma do acórdão dirigido ao TCA Norte, por si apresentado em 10.11.2021, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC, não tendo este recurso verdadeiramente um qualquer fundamento diverso daquele versado naquele pedido.
[…]

P. Se do acórdão houver recurso, o pedido de reforma deverá ser formulado no recurso dele interposto, competindo ao Tribunal a quo decidir a questão pela conferência, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 6[1]6.º do CPC, não havendo recurso dessa decisão, conforme estabelecem os n.ºs 1 e 2 do artigo 617.º, também do CPC.
[…]

U. Motivo pelo qual se entenderá que mal andou a União de Moradores do Lugar de ..., em termos que – para além da causa invocada pela mesma fundamentadora do pedido de reforma e deste recurso de revista ter naturalmente que soçobrar conforme adiante se verá –, não poderia ter interposto o presente recurso de revista (estando obrigada à sua renúncia) uma vez que dirigiu previamente um pedido autónomo de reforma ao Tribunal a quo, com os mesmíssimos fundamentos jurídicos...

V. Portanto, das duas uma: ou a aqui Recorrente considerava não ser admissível o recurso do acórdão do Tribunal Central Administrativo, e podia, nesse caso, suscitar a sua reforma; ou achava que era admissível recurso e, neste outro caso, teria que pedir a reforma nas alegações da revista.
[…]

CC. Isto é, mesmo no caso em que, sendo abstratamente admissível recurso ordinário, a parte tenha optado por suscitar a reforma da decisão perante o Tribunal que proferiu a decisão, não é aceitável que, pela circunstância da parte ter utlizado um procedimento errado - deduzindo autonomamente o pedido de reforma da decisão diretamente perante o Tribunal que a proferiu, quando deveria tê-lo feito em sede de recurso jurisdicional - possa ter a virtualidade de exercer um direito que, no caso, não existe, ou seja, o direito ao recurso, porquanto o mesmo deveria encontrar-se, expressa ou implicitamente, renunciado.
[…]

JJ. [E]xiste falta de interesse quando a parte não tem interesse em recorrer por nenhum efeito prático poder vir a obter, para si, com a decisão obtida no recurso, ou seja, quando se constata a inutilidade prática em que se traduz o conhecimento pelo Tribunal Superior de determinada matéria.
[…]

MM. Ora, no caso concreto é claramente essa a situação dos autos, porquanto, como já referimos, na altura de interposição do recurso de revista, a Recorrente já tinha lançado mão de um requerimento autónomo dirigido ao TCA-Norte com pedido de reforma do acórdão a quo, com os exatos fundamentos jurídicos que se apresenta o presente recurso no sentido de inverter a decisão de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

NN. Pelo que, os objetivos que a Recorrente persegue com este recurso de revista e que lhe confeririam interesse em agir – repita-se: inversão do aresto que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide – foram totalmente alcançados mercê daquele pedido prévio e autónomo de reforma (com a inerente necessidade de expressa ou implicitamente, ter que haver lugar à renúncia do direito ao recurso que a União de Moradores teima em conceber).

OO. Deste modo, a Recorrente já não viria a ter um qualquer ganho com o recurso, pelo que deixou de evidenciar qualquer especial interesse na tutela judicial pretendida, visto que o seu desiderato foi, entretanto, alcançado através de outra via (pedido autónomo de reforma do acórdão aqui recorrido), mostrando-se atingido o objetivo e o efeito útil do recurso.

PP. Daí que tenha havido uma perda superveniente do interesse em agir (pela via do pedido de reforma), com a consequência de o recurso de revista ser legalmente inadmissível, o que conduz à sua rejeição, não devendo este ser apreciado.

QQ. Além disso, a Recorrente vem naquilo que apelida no capítulo designado por “Do Mérito do Recurso” o móbil (único, diga-se) do presente recurso de revista, refletindo a alegada “violação dos mais elementares princípios e regras processuais, designadamente, o princípio da estabilidade da instância” por o Tribunal a quo ter considerado os factos supervenientes motivadores da assunção da inutilidade da lide.

RR. Para o efeito, no essencial, alega que os factos constitutivos, modificativos ou extintivos apenas poderão ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância, em alusão ao aludido princípio da estabilidade da instância contido no artigo 260.º do CPC e no n.º 1 do artigo 86.º do CPTA.

SS. Ademais, não obstante ter bem presente o facto de atualmente correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel uma nova ação administrativa sob o processo n.° 415/21.0BEPNF, arroga que a decisão do Tribunal recorrido, por julgar extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide e consequentemente não conhecer do objeto do recurso interposto pelo Município de Valongo, afronta o princípio da tutela jurisdicional efetiva,

TT. Porquanto alegadamente priva a União de Moradores de uma decisão judicial de mérito sobre a pretensão que pretendia fazer valer em juízo, sendo-lhe vedada pela Lei a discussão da sua pretensão em posterior ação judicial – situação que, como é bom de ver, viola de forma flagrante o seu direito à tutela jurisdicional efetiva.

UU. Ora, sem prejuízo da presuntiva bondade e convicção das declarações da União de Moradores, não pode a Contrainteressada, também nesta sede, corroborar com as mesmas, uma vez que – entende – não refletem a verdadeira conformidade jurídica, conforme melhor se exporá.

VV. Assim, contrariando o que pugna a União de Moradores, atentemos ao disposto no n.º 1 do artigo 611.º do CPC, aplicável ex vi pelo artigo 1.º do CPTA […].

WW. Por conseguinte, e sem qualquer margem de dúvida a Lei processual civil faz aplicar esse normativo tanto à primeira como à segunda instância judicial, de acordo com o disposto na parte final do n.º 2 do artigo 663.º do CPC […].

XX. Naturalmente, por força do princípio da subsidiariedade prevista no n.º 1 do artigo 1.º do CPTA, tal regime processual aplicar-se-á ao processo administrativo...

YY. Com efeito, o Tribunal Central Administrativo, enquanto Tribunal maioritariamente de segunda instância (excetuando os casos excecionalmente previstos no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), deverá levar em conta os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que ocorrerem até ao encerramento da discussão perante ele, desde que posteriores ao encerramento em primeira instância.

ZZ. Nessa medida, a disciplina jurídica estabelecida no n.º 1 do artigo 611. do CPC determina que a superveniência evidenciada em factos efetivamente relevantes (como é o caso dos presentes autos) não poderá ser excluída da fase recursiva, sob pena de violação do princípio da utilidade processual.

AAA. Por conseguinte, contrariamente ao que alega a União de Moradores, pode efetivamente a parte, em âmbito de recurso ordinário, alegar facto superveniente, desde que o facto alegado não se situe fora da causa de pedir.
[…]

CCC. Neste pressuposto, a análise destes dispositivos, cremos que, tal como acontece na primeira instância, se o facto for alegado perante a segunda instância e tiver ocorrido depois da decisão proferida naquela, desde que até ao encerramento da discussão nesta instância, o mesmo deve ser tomado em conta no acórdão, caso não se situe fora da causa de pedir do pedido inicialmente formulado.

DDD. Por conseguinte, a situação será tanto mais evidente quando a invocação de factos supervenientes se conexiona com uma circunstância segundo a qual, durante o recurso, o interesse processual desaparece por uma circunstância que implica a inutilidade superveniente da lide,

EEE. Ou seja, sempre que ocorra qualquer facto superveniente com relevância para a apreciação dos pressupostos processuais, ele não pode deixar de ser considerado na instância de recurso.

FFF. A questão da inutilidade da lide não foi colocada perante o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, tendo sido introduzida pelo Município de Valongo nos autos já iniciada a instância de recurso em razão da prolação do despacho do Senhor Vereador, Eng. AA, nos termos do qual deferiu o pedido de alteração à licença apresentado pela aqui Contrainteressada.

GGG. Nessa medida, pese embora a aqui Recorrente não tivesse oportunidade de lançar mão de um incidente de ampliação da instância em virtude do disposto no n.º 1 do artigo 63.º do CPTA, tal circunstância não impediu a União de Moradores de sindicar os novos atos de aprovação alteração do pedido de licenciamento objeto de impugnação nos presentes autos pela apresentação de uma nova ação administrativa instaurada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel,

HHH. Atos estes que, conforme bem decidiu este douto Tribunal, consubstanciam “uma nova disciplina de licenciamento sobre a pretensão de licenciamento inicialmente regulada pelos atos primários, agora, à luz das alterações aos projecto (...) o que opera uma extinção dos efeitos dos anteriores atos, pois já não servem à primária pretensão de licenciamento nem de emissão do correspondente alvará”.

III. Ou seja, a realidade fática e jurídica que enformava os atos primitivos alterou-se (rectius: frustrou-se) com a emanação dos novos atos de aprovação e licenciamento, o que motiva inelutavelmente a inutilidade superveniente da presente lide,

JJJ. Que é a consequência jurídico-processual dessa mesma perda de interesse (objetiva), já que atuar em sentido oposto – pela insistência pela União de Moradores na continuação da lide, manifestando o seu interesse em obter uma decisão de mérito por parte do Tribunal recorrido – conduz à prática de atos inúteis, estes sim, realisticamente proibidos pela lei processual, nos termos do artigo 130.° do CPC, aplicável ex vi pelo artigo 1.° do CPTA.

KKK. Ao contrário da desesperada construção jurídica que a União de Moradores pretende laborar, chegando mesmo ao ponto de insinuar que este douto Tribunal deveria “ter acolhido o mecanismo da desistência de recurso, plasmado no já mencionado n.º 5 do artigo 632.º do CPC enão, como fez, declarar extinta uma instância já sentenciada”.

LLL. Pelo contrário, realística e objetivamente o que sucedeu do ponto de vista jurídico foi uma inutilidade superveniente da lide provocada pela aprovação dos aludidos atos de alteração à licença, que, conforme se viu – e o Tribunal a quo bem determinou – esvaziou por completo o conteúdo dos primitivos atos impugnados nos presentes autos.

MMM. A lide fica inútil se ocorreu um facto ou uma situação posterior à sua inauguração que implique a impertinência, ou seja a desnecessidade, de sobre ela recair pronúncia judicial, por ausência de efeito útil, que foi tão-somente quanto sucedeu no caso sub iudice.

NNN. Bem andando o Tribunal a quo ao decidir julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, em cumprimento do disposto na alínea e) do artigo 277.º do CPC, aplicável ex vi por força do artigo 1.º do CPTA.

OOO. E, em face de tudo quanto se explanou, outra não pode ser a conclusão senão a de que o Tribunal recorrido não errou na qualificação jurídica da factualidade que o Município de Valongo apresentou supervenientemente nos presentes autos, pelo que deverá o presente recurso de revista ser julgado totalmente improcedente por ausência de todo e qualquer fundamento.».

7. O Ministério Público junto deste Supremo Tribunal Administrativo, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso. Para fundamentar esta conclusão, ponderou o seguinte:
«II.1. A questão a enfrentar no presente recurso desdobra-se em dois segmentos: i) saber se o Tribunal de apelação pode enfrentar matéria de exceção perentória suscitada na pendência do recurso e podendo, ii) se o fez com acerto na situação em presença.
[…]

1.1. Da articulação sintónica das normas dos artigos 149º, do CPTA, 611º, nº 1, do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 663º, nº 2, do mesmo Código, sendo este último convocado por força do artigo 140º, nº 3, do CPTA, o recurso de apelação consente ao Tribunal, não só a modificabilidade da decisão de facto perante, designadamente, a apresentação de documento superveniente, à luz do artigo 662º, nº 1 do CPC, mas também o reexame das questões que constituíam o objeto do litígio (recurso substitutivo) e não apenas a revisão da decisão recorrida (recurso rescindente ou cassatório), funcionando, enquanto Tribunal de apelação, como um “segundo grau de jurisdição, julgando de novo o mérito da causa.” – […] anotação ao artigo 149, Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª Edição, 2017, página 1131 e seguintes.
O conteúdo da norma do artigo 260º, do CPC cuja violação a Entidade Recorrente atribui ao Acórdão recorrido, admite, ela própria, a ocorrência de circunstâncias suscetíveis de operar a modificação da instância. Quer o artigo 264º, que prevê a alteração ou ampliação do pedido e da causa de pedir em segunda Instância, quer o artigo 425º que permite a junção de documentos supervenientes, na fase de recurso, quer o artigo 662º, nº 1 que admite a alteração da matéria da causa, quer o artigo 663º, nº 2, que, por remissão para o artigo 611º, todos do CPC, autoriza o Tribunal de apelação a enfrentar “...os factos constitutivos , modificativos ou extintivos que se produzam posteriormente à interposição do recurso, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento de encerramento da discussão do recurso.” – sic. Autores e Obra acima citados […], apontam no sentido da possibilidade de o Tribunal de apelação poder emitir juízo sobre factos supervenientes, que consubstanciem matéria de exceção perentória, extintiva da instância e que impliquem absolvição do pedido. Desde que tais factos supervenientes, por isso não apreciados na decisão recorrida, se enquadrem no objeto dos pedidos – neste sentido, cfr. Acórdão do TCA SUL de 13 de Outubro de 2021, proferido no recurso n° 2622/07. Nada parece obstar, pois, à emissão do juízo sobre o mérito do recurso nos termos em que o fez o Tribunal recorrido, conhecendo de matéria superveniente que, consubstanciando exceção perentória, de direito substantivo, respeitante ao mérito da causa, no caso, de conhecimento oficioso, determinante da absolvição do Réu dos pedidos.

1.2. Assegurado que se mostra o exercício do contraditório face à revelação, na pendência do recurso, da prática de novos atos revogatórios, por substituição, dos atos cuja remoção da ordem jurídica se pedia na presente Ação, entendo que, pelas razões que expus, nada há a censurar à decisão vertida no Acórdão recorrido, que, conhecendo de facto superveniente extintivo do direito a que se arroga a Autora, produzido na pendência do recurso de apelação, assumido como exceção perentória, de direito substantivo, determinante da absolvição do Réu dos pedidos, declarou a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide.».

Tendo sido dado conhecimento desta pronúncia às partes, ao abrigo do n.º 2 do artigo 146.º do CPTA, apenas a recorrente respondeu, salientando o seguinte:
«5. De acordo com o Douto Parecer emitido, o disposto nos artigos 611.º, 662.º e 663.º do CPC aplicáveis por remissão do n.º 3 do artigo 140.º do CPTA, admitem a apresentação de “documento superveniente” e habilitam o Tribunal de recurso ao reexame das questões que constituíam o objeto do litígio, conhecendo de exceções perentórias extintivas da instância.
[…]
7. Porém, sem prejuízo de as normas convocadas pela Digna Magistrada do Ministério Público habilitarem, em abstrato, a apresentação de factualidade superveniente em sede de recurso, deverão as mesmas ser interpretadas com as devidas adaptações ao contencioso administrativo e, bem assim, ao caso sub judice.
8. Em termos simples, de referir que, na situação vertente, não podemos olvidar que: (i) estamos perante um caso em que o Tribunal de primeira instância julgou nula uma licença administrativa, (ii) que esta decisão foi objeto de recurso pelo Município que a praticou e (iii) que, já na pendência do recurso que interpôs, o próprio Município autorizou alterações à licença (nula) que previamente emitiu.
9. Note-se: alterações – não atos novos substitutivos daqueles que originalmente foram impugnados, como afirma a Digna Magistrada do Ministério Público!
10. Sem prejuízo da possibilidade de impugnação autónoma dessas alterações (e somente dessas alterações), a verdade é que a mesma assenta no primitivo ato que nesta sede se sindica.
11. O mesmo é dizer que o facto de alguns dos pressupostos da licença terem sido modificados não significa que a licença primitiva, com todos os pressupostos com que foi emitida, tenha deixado de existir.
12. E seja, por esta via, sindicável.
13. Pelo contrário: se a licença primitiva tivesse deixado de existir, os atos modificativos aprovados seriam nulos, por falta ou impossibilidade de objeto!
14. Como tal, forçosa é a conclusão de que tal circunstância supervenientemente carreada para os autos não consubstancia uma exceção perentória que habilite o Tribunal a quo a declarar a extinção da instância por inutilidade, deixando a Autora/Recorrente sem a tutela jurisdicional que requereu.»

Assim sendo, considera a recorrente manterem-se válidas as conclusões das suas alegações de recurso, designadamente no que se refere à violação da garantia da tutela jurisdicional efetiva e à violação do princípio da estabilidade da instância, razão por que, em seu entender, não merece acolhimento a posição defendida pelo Ministério Público no seu parecer.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentação

A) De facto

8. Sem prejuízo da consideração da factualidade diretamente relacionada com o juízo de inutilidade superveniente da lide proferido pelo tribunal a quo (cfr. infra o número seguinte), interessa, para a boa compreensão do alcance do presente recurso, ter presentes os factos dados como assentes na decisão da primeira instância:
«1) A autora é uma associação, sem fins lucrativos, constituída, em 03 de janeiro de 2018, por um conjunto de pessoas singulares residentes no Lugar de ..., em Valongo;
Doc. 3 junto com a p.i.
2) E tem por objeto representar os associados na colaboração com as autarquias locais em tudo o que for de utilidade para a zona residencial do lugar de ..., nomeadamente na Rua ..., Rua ..., Rua ..., Rua ... e Avenida ..., promover junto das autoridades competentes as providências adequadas à segurança de pessoas e bens, das condições ambientais e de qualidade de vida dos associados, apoiar iniciativas no âmbito recreativo, desportivo e cultural, colaborar com Associações similares que se constituam noutros bairros do concelho de Valongo, e promover quaisquer objetivos que venham a ser definidos pelos órgãos da Associação, dentro das suas atribuições;
Doc. 3 junto com a p.i.
[…]
4) A contrainteressada, comercialmente conhecida como Transportes A... é uma empresa que atua no setor económico do armazenamento (e gestão de stock) e distribuição de mercadorias dos seus clientes, nomeadamente de papel de artes gráficas;
Doc. 10 junto com a p.i.
5) Oferece aos seus clientes soluções logísticas integradas (armazenagem e gestão de stock) e transporte das mercadorias por todo o território nacional, prestando tais serviços diariamente, vinte e quatro horas por dia;
Doc. 10 junto com a p.i.
6) Possui 90 funcionários e uma frota de 64 camiões;
Doc. 10 junto com a p.i.
7) A 03.05.2017, através de requerimento de registo ...11, a contrainteressada apresentou nos serviços do Município de Valongo um pedido de licenciamento de obras de construção e de urbanização, tendo em vista a construção de um armazém e de um edifício de habitação coletiva, com 24 fogos e sete pisos (um dos quais abaixo do solo), bem como a realização de obras de urbanização, nomeadamente dos arruamentos que confinam com o prédio em referência;
Doc. 11 junto com a p.i.
8) Operação essa que seria realizada em duas parcelas da sua propriedade, […] sitas na freguesia e município de Valongo, na proximidade com o canal rodoviário da Auto Estrada A4 (Porto-Vila Real), entre os quilómetros 14 e 15, com as seguintes confrontações: Nascente - com Rua ...; Sul - Auto Estrada; Norte - caminho (de terra) e zona florestal; Poente - caminho (de terra);
Doc. 11 junto com a p.i.
9) Previa-se uma execução faseada, executada em 3 fases, nos seguintes termos: 1.ª fase: construção de sete módulos de armazenagem, incluindo a totalidade do corpo de escritórios e anexo destinado à recolha de quatro viaturas pesadas, com prazo de execução de 2 anos; 2.ª fase: construção de três módulos de armazenagem, com prazo de execução de 1 ano após a conclusão da primeira fase acima referida; 3.ª fase: construção de edifício habitacional, com prazo de execução de 5 anos após a conclusão da segunda fase;
Doc. 11 junto com a p.i.
10) As operações urbanísticas em referência destinam-se a ser realizadas numa zona classificada como Espaços Residenciais do tipo I em solo urbanizável, identificados com o R.I. (3), integrado na área da UOPG07 - ... e zona envolvente;
Docs. 11 e 12 juntos com a p.i.
11) O procedimento administrativo instaurado corre termos sob o n.º ...9.../2017;
P.A., que integra pen junta aos autos
12) Em 13.06.2017 os Serviços do Município de Valongo emitiram informação com o n.º ...17, tendo concluído pelo deferimento do projeto de arquitetura apresentado «condicionado à apresentação do muro de vedação frontal retificado par aa altura máxima de 2 m e à apresentação do estudo de Tráfego»», bem como «à apresentação do comprovativo da Autorização emitida pela Infraestruturas de Portugal»;
Doc. 12 junto com a p.i.
13) Por despacho do Vice-Presidente da Câmara Municipal de Valongo de 19.06.2017 o projeto de arquitetura apresentado foi deferido, sujeito às condicionantes mencionadas supra;
Doc. 1 junto com a p.i.
14) A 26.06.2017 foi apresentado abaixo-assinado contra o projeto da contrainteressada solicitando a revisão da posição tomada pela Câmara Municipal;
Doc. 15 junto com a p.i.
[…]
16) A autora, através de requerimento datado de 16.01.2018, e sob invocação do artigo 68.º, n.º 1 do CPA, solicitou a sua constituição como contrainteressada no procedimento referido supra, tendo o respetivo a/r de receção do requerimento sido assinado a 01.02.2018;
Doc. 4 junto com a p.i.
17) No decurso do procedimento administrativo de licenciamento, e já após a aprovação do projeto de arquitetura, o projeto de arquitetura foi objeto de pedido de alteração, por requerimento registado com o n.º ...00, de 20.08.2018, essencialmente nos seguintes termos:
Doc. 17 junto com a p.i.
- Modificação da delimitação da área de intervenção e redução da respetiva dimensão;
- Eliminação do edifício habitacional, diminuindo em 5145,00m2 a área total de construção inicialmente prevista;
- Alteração da calendarização da obra, sendo agora prevista a execução numa única fase, por 2 anos;
- Alteração das cedências ao domínio público destinadas a espaços verdes e de utilização coletiva;
- Retificação do traçado da Rua ... e da via Circular externa de Valongo, no seguimento dos pareceres internos da DPOM.
18) A 30.10.2018 foi elaborada informação n. ...59... da qual consta, entre o mais, o seguinte:
Doc. 17 junto com a p.i.
“9. A obra de construção pretendida situa-se em R.I (3), categoria de espaços cuja ocupação é, segundo o art. 52º do Regulamento do PDMV (RPDMV), precedida de programação prévia, nos termos previstos no Capítulo VIII, aplicando-se os parâmetros de edificabilidade definidos no citado art. 52º. Contudo, de acordo com o nº 3 do art. 101º do RPDMV, constituem exceção à programação prévia as operações urbanísticas isoladas situadas em solo urbanizável, quando as parcelas de terreno abrangidas sejam contíguas a solo urbanizado, ou a áreas que tenham adquirido características semelhantes àquele através de ações de urbanização ou de edificação.
Ora, o caso em apreço preenche esses dois requisitos. Por um lado, a área de intervenção confina a nascente com solo urbanizado e, por outro, o terreno é servido por arruamento infraestruturado e construído, a Rua .... Neste pressuposto, e salvo melhor opinião, entende-se que o pedido se enquadra na citada exceção.

10. De acordo com o PDMV - na sua nova redação, em vigor desde 6/2/2018 - os Espaços R.I destinam-se predominantemente à construção de edifícios de habitação, preferencialmente, do tipo multifamiliar, admitindo-se outros usos desde que compatíveis. Conforme estabelece o nº 2 do art. 51º do RPDMV, a afetação a usos não habitacionais depende da verificação da compatibilidade com a envolvente, nos termos do art. 15º, ou seja, não provoquem os seguintes constrangimentos:
a) Originem ruído, fumos, cheiros ou resíduos que afetem as condições de salubridade;
b) Perturbem gravemente as condições de trânsito e de estacionamento ou provoquem movimentos de cargas e descargas que prejudiquem as condições de utilização da via pública;
c) Acarretem ou agravem os riscos de incêndio ou de explosão;
d) Prejudiquem a salvaguarda e a valorização do património classificado ou de reconhecido valor cultural, arquitetónico, paisagístico ou ambiental.

11. O edifício é destinado a armazenamento de produto acabado e embalado - matéria do tipo documental em papel e livros - para posterior distribuição para todo o país, nomeadamente para a zona Sul, onde a empresa também tem espaço com as mesmas caraterísticas. De acordo com o estudo de tráfego agora apresentado, a atividade envolve 6 pesados de 18m, 18 pesados de 12m e 6 pesados de 6m, que circulam entre as 7:00 horas e as 24:00 horas, com menor incidência a partir das 21:00 horas, o número de funcionário e administração totaliza 50 pessoas.
Assim, das situações de incompatibilidades elencadas, a atividade em apreço poderá perturbar as condições de trânsito e de estacionamento ou provocar movimentos de cargas e descargas que prejudicam as condições de utilização da via pública, bem como originar ruído, nomeadamente em horário noturno.
De acordo com os elementos apresentados as cargas e descargas são efetuadas no interior das instalações, não afetando diretamente a utilização da via pública. Irá ainda ser criado, no interior da parcela, estacionamento para pesados e ligeiros, dimensionado de acordo com as exigências do PDMV. Acresce que, no âmbito do presente licenciamento, está previsto o prolongamento da Rua ..., assim como a execução do troço 2 da Circular externa de Valongo, que fará ligação ao troço 1 existente e se estende até à EN15, que permitirá a distribuição dos fluxos de tráfego para o exterior da cidade. O Estudo de tráfego, circulação, transportes e estacionamento apresentado conclui que os arruamentos existentes e previstos são eficazes e que não irá verificar-se uma sobrecarrega na fluidez do tráfego, nem interferência na circulação regular dos moradores.
Não obstante as medidas de redução do impacto descritas possam resultar numa menor sobrecarga para o trânsito e estacionamento no local, de acordo com as informações agora fornecidas, considera-se, não estarem totalmente acauteladas ou fundamentada a compatibilização do uso pretendido com o uso residencial, no que se refere ao ruído, atendendo ao tipo e número de viaturas utilizadas e aos horários de funcionamento descritos. [itálico acrescentado]
Neste contexto, remete-se à consideração superior a decisão sobre a aceitação do armazém proposto, face ao estabelecido na atual redação do RPDMV, designadamente no nº 2 do art. 51º.

12. A concretização do Acordo de urbanização entre o Município e os proprietários dos prédios envolventes para execução da Circular externa de Valongo prevista no PDMV (DP.02) afigura- se fundamental para mitigar o impacto do tráfego gerado pela operação urbanística pretendida, assim como a execução do prolongamento da Rua ... (DL.61). Desta forma, o deferimento final do presente pedido depende da elaboração, aprovação e assinatura pelas partes envolvidas do Acordo de Urbanização em causa e demais procedimentos aplicáveis, tais como prestação de caução para garantia da boa execução das obras de urbanização.”

19) Por despacho de 12.11.2018 do Vereador da Câmara Municipal de Valongo o pedido de licenciamento foi deferido com base nas condicionantes impostas na informação técnica n.° ...59..., de 30.10.2018;
Doc. 2 junto com a p.i.
[…]
22) Na zona residencial de ..., existem diversas vivendas (habitações unifamiliares) e num prédio de habitação multifamiliar;
Doc. 19 junto com a p.i
23) O Município e a contrainteressada celebraram contrato de urbanização relativo à construção por esta última de via de acesso relativa à fase 2 do projeto do sublanço 2 e 3 da variante à EN15.
Doc. 6 junto com a contestação da contrainteressada.»

9. Na sequência do requerimento apresentado pelo ora recorrido referente à extinção da instância com fundamento em inutilidade superveniente da lide (cfr. supra o n.º 3), o tribunal a quo considerou provados, com base nos documentos juntos ao dito requerimento, os seguintes factos:
«1. Na ação administrativa que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, registada sob o n° 415/21.0BEPNF, da qual é autor a União de Moradores do Lugar de ..., réu o Município de Valongo e contrainteressado A..., Lda, foi impugnado o ato administrativo “praticado pelo Senhor Vereador Engenheiro AA, em 03.03.2021, que deferiu o pedido de alteração à licença apresentado pela A..., Lda. no âmbito do processo n.° ...17, o qual foi notificado à Autora em 08.03.2021 - cfr. documento n.º 1 adiante junto e que aqui se dá, para todos os efeitos legais, por integralmente reproduzido". — Dá-se por integralmente reproduzido o teor da certidão junta ao requerimento pelo Município de Valongo, que engloba a petição inicial da identificada ação administrativa;

2. O documento 1 mencionado no facto 1, que se dá por integralmente reproduzido, engloba o ato administrativo ali identificado, integrando o despacho, datado de 03-03-2021, da autoria do Vereador do Ordenamento do território, de teor «Concordo e dou por integralmente reproduzidos os fundamentos de facto e de direito que constam da Informação n.º ...21, de 2-3-2021, que suporta a presente decisão», e a identificada Informação n.º ...21, do seguinte teor, designadamente:
“Pelo requerimento registado com o n° ...52 de 8/1/2021 a União de moradores do Lugar de ... veio pronunciar-se, através dos seus advogados, sobre o teor da informação n° ...20 com despacho de 9/11/2020, nos termos previstos nos art.121º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
O referido requerimento contém argumentos de natureza jurídica, assim como de natureza técnica, pelo que, no âmbito das funções da DOT.EU, cumpre analisar as questões técnicas.
No âmbito do processo n° ...17 foi aprovada a construção de um edifício destinado a armazenagem, com 8.888,30m2 num terreno com 26.817,20m2. Assim sendo, o índice de utilização do solo resultante da operação urbanística licenciada é de 0,33, numa zona em que o índice de utilização máximo permitido é 1,20, nos termos do art. 52º do Regulamento do PDMV. Daqui resulta que a capacidade construtiva licenciada é substancialmente inferior à máxima permitida.
O licenciamento prevê, ainda, a criação de 74 lugares de estacionamento para ligeiros e 21 lugares para pesados, valores superiores à oferta total exigida nos quadros 4 e 5 do Anexo IV do Regulamento do PDMV. Também prevê a reformulação de 33 lugares de estacionamento públicos existentes.
As cargas e descargas serão efetuadas no interior das instalações, verificando-se que os respetivos cais se situam na fachada posterior do edifício, oposta à zona das moradias existentes.
Acresce que, no âmbito do licenciamento, está previsto o prolongamento da Rua ... (atualmente sem pavimento), assim como a execução do troço 2 da Circular externa de Valongo, que fará ligação ao troço 1, já existente, e se estende até à EN15. Ambas as intervenções estavam previstas na carta do Sistema de Mobilidade e Transportes do PDMV e permitirão a distribuição dos fluxos de tráfego, nomeadamente os gerados pelo armazém em causa, para o exterior da cidade.
O pedido de alteração à licença contemplou a modificação do acesso viário ao edifício, passando a estar situado a tardoz do mesmo, próximo dos cais de cargas e descargas e com ligação à Circular Externa de Valongo.
Na exposição apresentada a exponente refere que a atividade desenrolada pela empresa requerente do licenciamento colide com o direito ao repouso e sossego dos moradores dos .... No entanto, o referido pedido afastou a circulação dos veículos pesados da Rua ... e eliminou o eventual impacto que a atividade teria nas habitações existentes na envolvente, no que se refere ao trânsito local e ruído resultante das entradas e saídas dos veículos pesados inicialmente previstas nesse arruamento. Salienta-se, ainda, que a zona de circulação de camiões no interior do prédio dista das habitações mais próximas cerca de 100m, sendo o armazém proposto uma barreira por se implantar entre as habitações e a referida zona de circulação.
O novo estudo de tráfego, circulação, transportes e estacionamento, adequado à proposta submetida no âmbito do pedido de alteração à licença, encontra-se acompanhado de termo de responsabilidade subscrito por técnico legalmente habilitado e atesta que o tráfego gerado não é suscetível de gerar restrições à circulação na rede viária envolvente.
Pelo exposto, atendendo aos termos e condições fixados no licenciamento e no pedido de alteração à licença objeto da intenção deferimento por despacho de 9/11/2020, considera-se que o uso de armazenagem pretendido é compatível com o uso de habitação multifamiliar estabelecido para a categoria de espaços onde a operação urbanística se situa, de acordo com o disposto no n° 2 do art. 51° do Regulamento do PDMV.
Quanto à previsão de áreas destinadas a espaços verdes e de utilização coletiva e equipamentos de utilização coletiva e das infraestruturas viárias e de estacionamento, mencionada no objetivo n° 3 da UOPG07 - ... e Zona envolvente, importa referir que segue as normas fixadas nos art.s 93º a 96º do Regulamento do PDMV.
[…]
Relativamente aos projetos das especialidades foram apresentados os projetas específicos relativos as obras de edificação e urbanização, acompanhados com os respetivos termos de responsabilidade, contemplando as alterações efetuadas ao projeto de arquitetura com as alterações introduzidas.
No processo consta, ainda, o Termo de responsabilidade de técnico autor do projeto de condicionamento acústico que atesta a conformidade da operação com o Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 9/2007, de 17 de janeiro, tal como prevê a Portaria n° 113/2015.
Independentemente do exposto, cumpre ainda informar que o procedimento administrativo, referente ao licenciamento das obras de edificação, é autónomo da utilização do edifício, a qual está sujeita ao procedimento de Autorização, nos termos do nº 5 do art. 4º do RJUE e segue as regras definidas nos arts. 62º a 65º do RJUE.
Acresce que a atribuição do horário de funcionamento constitui, igualmente, um procedimento administrativo autónomo dos anteriormente descritos, aplicando-se o disposto no Regulamento Municipal dos horários dos estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços.
O que foi requerido no âmbito do presente processo é uma alteração à licença de construção de um edifício a qual não determina, por si, nem tem de o fazer, o horário de funcionamento da atividade a instalar.
Condicionar o licenciamento da construção de um edifício, por o eventual horário de funcionamento do mesmo poder colocar em causa o direito ao descanso dos moradores, não faz sentido, por se tratarem de realidades distintas (edifício em si vs. utilização do edifício) e comportaria uma violação do direito de propriedade privada, na vertente do direito a edificar, uma vez que está de acordo com os instrumentos de gestão territorial e de planeamento. Salvo melhor opinião, impedir este licenciamento com esse fundamento, violaria as disposições do n.º 1 do art.º 4.°; al. a) do n.º 1 do art.º 6.º; art. 9.º e n.º 1 do art.º 13.º da Lei nº 31/2014, Lei de Bases Gerais da politica pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo. [itálico acrescentado]
Relativamente aos argumentos de natureza jurídica constantes na exposição apresentada foi elaborado o parecer jurídico que se transcreve, pelo Gabinete de Assessoria Jurídica da Câmara Municipal, recebido na DOT por email do dia 24/2/2021:
‘A Contrainteressada União de Moradores do Lugar de ... pronunciou-se, em sede de audiência prévia, sobre o projeto de decisão do pedido de alteração da licença titulada pelo alvará n.° ...3, de 4-6-2019, requerendo o indeferimento deste pedido de alteração à licença. Recorde-se que o projeto de decisão aponta no sentido do deferimento do pedido de alteração da licença, com condicionantes.
Apreciando criticamente a pronúncia e os argumentos da Contrainteressada, cumpre dizer o seguinte:
– Não obstante ter sido proferida sentença pelo TAF de Penafiel, que declarou nula a licença titulada pelo alvará n.° ...3, de 4-6-2019, importa ter em consideração que essa decisão foi judicialmente impugnada, através do competente recurso, com efeito suspensivo, aguardando-se a prolação de acórdão do Tribunal Central Administrativo - Norte, pelo que aquele entendimento, de que a licença concedida pelo Município de Valongo é nula, não transitou em julgado.
Portanto, o facto de aquela sentença ter sido proferida naqueles termos não inibe o Município de deferir o pedido de alteração à licença, nos termos em que foi apresentado pela Requerente, tendo em conta que a decisão judicial a que a Contrainteressada alude não é definitiva e que o ato administrativo que concedeu a licença permanece válido e eficaz no ordenamento jurídico.
– Sucede ainda que, mesmo que o ato fosse considerado nulo ou anulável, pode o mesmo ser aproveitado. desde que os eventuais vícios que inquinavam a sua validade sejam supridos, tendo em conta o princípio da boa administração, que resulta do art.º 5.º do Código de Processo Administrativo, assim como o princípio do aproveitamento do ato administrativo, previsto no n.º 5 do art.º 163.º do CPA, no que se refere aos vícios geradores de anulabilidade.
Por seu turno, o n.º 2 do art.º 164.º do mesmo diploma prevê também a possibilidade de os atos administrativos inquinados por vício mais grave e gerador de nulidade serem sujeitos a reforma ou conversão, depurando o ato administrativo dos elementos invalidantes.
Deste modo e supridos os eventuais vícios de que a licença original poderia padecer, ainda que o acórdão viesse a confirmar a decisão da primeira instância, sempre o Município poderia, como pode, alterar a licença anteriormente concedida e o ato agora produzido será válido e eficaz.
– Os direitos ao descanso e ao repouso dos moradores do lugar de ..., enquanto manifestações dos direitos fundamentais ao ambiente e à qualidade de vida, não são colocados em causa pelo licenciamento e consequente edificação do armazém da Requerente do presente processo administrativo.
Importa ter em consideração a distinção que é necessário fazer entre a edificação do armazém, que é agora licenciada, e o horário de funcionamento desse mesmo armazém, a determinar na licença de utilização ou noutro ato administrativo.
Resulta claro que a operação urbanística de construção do edifício em nada colide com aqueles direitos fundamentais dos moradores. Aliás, condicionar o licenciamento da construção de um edifício, por o eventual horário de funcionamento do mesmo poder colocar em causa o direito ao descanso dos moradores, circunstância que será determinada noutro ato administrativo, comportaria uma violação do direito de propriedade privada, direito fundamental também com previsão constitucional, na vertente do direito a edificar, uma vez que a operação urbanística está de acordo com os instrumentos de gestão territorial e de planeamento. Impedir a alteração da licença de construção com fundamento no horário de funcionamento, além de violar o art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa, violava também as disposições do n.º 1 do art.º 4.º; al. a) do n.º 1 do art.º 6.º; art.º 9.º e n.º 1 do art.º 13.º, todos da Lei de Bases Gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo.
Acresce que, do pedido de alteração à licença resulta que os cais de cargas e descargas foram, agora, previstos na frente (poente) do edifício que a Requerente pretende construir, que se situa do lado oposto à frente (nascente) que confronta com as habitações existentes no lugar de ..., gerando afastamento face a estas habitações.
Além disso, do pedido de alteração à licença resulta também que o armazém que a Requerente pretende edificar disporá de acessos dedicados e em exclusivo ao seu equipamento, previstos também no lado oposto (a poente) face às habitações. Daqui resulta que a fonte de ruído que foi considerada, ainda que numa interpretação errada, pelo Tribunal, de uma eventual sobrecarga do trânsito causado pela circulação dos veículos na Av. ..., é, agora, ainda mais mitigada do que na versão original do licenciamento do edifício da Requerente e do contrato de urbanização celebrado entre o Município e a Requerente, uma vez que o trânsito dos veiculas que acederem ou partirem do edifício da Requerente ocorrerá a cerca de 100m lineares da extremidade das habitações mais próximas.
O pedido de alteração à licença está, assim, em conformidade o disposto no PDM de Valongo, designadamente a previsão do n.º 1 do art.º 51.º conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 15.º do Regulamento do PDM de Valongo, assim como estava a licença inicial.
[…]’
Pelo exposto, entende-se que o pedido de alteração à licença reúne condições para ser deferido, com as condicionantes da informação técnica prestada.”.

3. Este ato transcrito no ponto 2 foi precedido de um outro, que recaiu sobre pedido de alteração à licença administrativa para construção de um edifício na Rua ..., da freguesia e concelho ..., a que respeita o processo de obras de construção n.º .../2017, em nome de A..., Lda., precedido da informação técnica n.º ...20 de 06/11/2020, que a seguir se transcreve:
“Pelo requerimento registado com o n.° ...02 de 14/9/2020, o requerente vem dar resposta ao ofício n° ...79... de 20/8/2020.
Analisado o pedido, informa-se:
1. A pretensão enquadra-se no procedimento administrativo de alteração à licença, nos termos do art. 27º e do nº 3 do art. 83º do [RJUE].
2. O pedido tem por objetivo alterar os termos e condições da licença titulada pelo Alvará nº ...3 de 4/6/2019, destinada à construção de um armazém e execução de obras de urbanização. O prazo de execução das obras termina em 7/6/2021.
3. A pretensão consiste na alteração da cota de implantação do edifício e na criação de um novo acesso mecânico ao mesmo.
4. De acordo com as plantas de ordenamento do território do Plano Diretor Municipal de Valongo (PDMV), o prédio situa-se em Espaços Residenciais do tipo 1 em solo urbanizável, identificados como R.I (3) e integra a área da UOPG07 - ... e zona envolvente. A poente, o prédio confronta com Via distribuidora principal nível 1 (proposta), identificada como DP02 - Execução de circular externa de Valongo - "variante à EN15", na carta do Sistema de Mobilidade e Transportes, sendo abrangido pela respetiva zona de proteção. A nascente, o prédio confronta com Via distribuidora local (parte existente, parte proposta), identificada como DL61 - Execução de ligação/prolongamento da variante à EN15- Rua ..., na mesma carta. Quanto à classificação acústica, o prédio insere-se em Zonas Mistas e de Conflito.
5. De acordo com as plantas de condicionantes do PDMV, o prédio está abrangido pela zona de servidão à Autoestrada A4. Não foi promovida consulta externa à Infraestruturas de Portugal, visto que o pedido de alteração se conforma com os pressupostos do parecer que foi emitido no procedimento de licenciamento, de acordo com o estabelecido no nº 5 do art. 27º do RJUE.
6. A pretensão contempla a criação de um novo acesso mecânico ao prédio, no limite poente. O referido acesso compreende a execução de uma faixa de circulação paralela à Via DP02 - Execução de circular externa de Valongo - "variante à EN15" prevista executar, com mais de 170m de extensão, separada por zona ajardinada. O acesso, nos moldes apresentados, cumpre os requisitos fixados na alínea b) do nº 4 do art. 72º do Regulamento do PDMV, sendo viável desde que aprovado pela Câmara Municipal. No entanto de acordo com o e-mail de 06/11/2020 do chefe de divisão da DOT, e segundo o parecer do gabinete jurídico, a referência que é feita à câmara municipal não é no sentido de câmara municipal, órgão colegial executivo, mas sim câmara instituição, pelo que não carece de deliberação de câmara.
Esta alteração implica o reajuste dos lugares de estacionamento e das áreas ajardinadas no interior da parcela.
O pedido não prevê modificações dos parâmetros urbanísticos que caracterizam o edifício. No entanto, prevê o aumento da área de cedência ao domínio público destinada a infraestruturas viárias, relativamente ao licenciamento inicial, resultante da criação da referida faixa de circulação.
Face ao novo acesso, a cota de implantação do armazém é elevada em 1 m acima da cota inicialmente prevista, de forma a reduzir as inclinações do acesso à variante.
Os parâmetros urbanísticos que caracterizam o pedido são:
Área total dos terrenos - 26.817,20m2
Uso - Armazenagem
N° de unidades de ocupação - 1
N° de pisos - 2 acima do solo
Área total de implantação - 8.402,00m2
Área total de construção - 8.888,30m2
Área de construção do armazém - 8.210 99m2
Área de construção do aparcamento 677,31m2
N° total de lugares de estacionamento - 74 (ligeiros) + 21 (pesados)
N° de lugares de estacionamento de uso público - 19 (integrados no total de lugares para ligeiros)
N° de lugares de estacionamento público existentes (a reformular) - 33
Área permeável - 12.150,00 m2
Área impermeável - 14.667,20 m2
Índice de utilização do solo - 0,33
índice de impermeabilização do solo - 55%
Área de cedência para infraestruturas viárias - 2.916,00m2
8. Os elementos agora apresentados visam dar resposta à informação técnica n° ...20, cujo teor foi comunicado pelo supracitado ofício n° ...79....
9. Assim, constata-se que foi apresentado um novo estudo de tráfego, acompanhado de termo de responsabilidade subscrito por técnico legalmente habilitado, adequado à proposta submetida no âmbito do presente pedido de alteração à licença e cujas conclusões referem que o tráfego gerado não é suscetível de gerar restrições à circulação na rede viária envolvente.
10. Quantos aos projetos de especialidades verifica-se que foram apresentados projetos de obras de edificação e projetos de obras de urbanização contemplando as alterações agora propostas ao projeto de arquitetura.
De edificação - projeto de estabilidade
De urbanização - Projeto de arranjos exteriores - 117.496,90€
Projeto de águas pluviais - 12.053,18€
11. Assim, e de acordo com o artigo 53º e 54º do RJUE, deverá a caução já prestada anteriormente ser reforçada no valor de (117.496,90€+12.053,18€) + 5% = 136.027,58€.
PROPOSTA DE DECISÃO
Pelo exposto, propõe-se o deferimento do pedido de alteração á licença, com as condicionantes da informação técnica prestada, remetendo-se à consideração superior a decisão final sobre o assunto.
Previamente à tomada de decisão, deverá a contrainteressada ser notificada a expor por escrito o que se lhe oferecer sobre o assunto no prazo de 10 dias nos termos dos artº (s) 121º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo.
Após esse prazo e se nada for apresentado pela contrainteressada, deverá o requerente ser notificado a solicitar no prazo de um ano, a contar da data da receção do ofício, o pedido de emissão do Aditamento ao alvará de obras n° ...19, sob pena de caducidade nos termos do art. 71º do RJUE.
[…]”.
Sobre a mesma recaiu, com data de 09-11-2020, o seguinte parecer do Chefe da Divisão do Ordenamento do Território, Arq. BB:
“Ao Sr. Vereador para decisão. Propõe-se o deferimento do pedido de alteração à licença – alteração das condições da licença administrativa titulada pelo alvará n° ...19 destinada à obra de construção de um armazém com obras de urbanização – com as condicionantes expressas na informação técnica conjunta n.º 1120/DOTEU/2020. A decisão de deferimento do pedido deverá ser precedida de audiência prévia da contrainteressada para efeitos dos artigos 121.º e seguintes do CPA, devendo ser fixado o prazo de 10 dias para o efeito. Foi internamente obtido o pronunciamento informal da DJRI-LUJ sobre a competência para a prática do ato face ao disposto no artigo 72.º do RPDMV tendo sido prestada informação que sobre a matéria tem competência para decidir o Ex.mo Sr. Vereador Eng. AA, no uso dos poderes que foram delegados pelo Ex.mo Srº Presidente da Camara Municipal por despacho n.º ...18, nos termos n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 555/99 de 16/12, na atual redação”.
Sobre a informação e parecer antecedentes foi então, pelo Vereador com poderes delegados, Eng. AA, proferido o despacho de ‘Concordo’ em 09-11-2020.».

B) De direito

10. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (artigos 144º, n.º 2, do CPTA e 608º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC ex vi artigo 140º, n.º 3, do CPTA), pelo que, uma vez admitida a revista, importa decidir:
i. Se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento, por, na pendência do recurso de apelação, ter admitido o requerimento apresentado pelo então recorrente tendente a demonstrar a inutilidade superveniente da lide em virtude de os atos administrativos declarados nulos pela decisão da primeira instância terem sido substituídos por um novo ato administrativo (cfr. as conclusões XXI e XXII das alegações da recorrente);
ii. Se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento, por entender que a presente lide se tornou inútil em consequência de uma revogação substitutiva dos atos objeto daquela lide operada pelas alterações entretanto aprovadas – e que respeitam a aspetos diferentes dos que estão em causa na ação de impugnação decidida nos presentes autos pela sentença a apreciar pelo tribunal a quo –, desconsiderando que a impugnação de atos modificativos apenas pode versar sobre os aspetos que sejam por estes regulados de forma inovadora (cfr., ibidem, as conclusões XXIII a XXIX);
iii. Se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento, em virtude de, ao rejeitar uma apreciação definitiva sobre a legalidade da licença originária, e consequentemente uma decisão judicial suscetível de adquirir força de caso julgado, colocar a recorrente na situação de poder ter de assistir à consolidação dos efeitos de uma licença que já foi considerada ilegal a seu pedido, e que a todo o momento pode vir a ser repristinada (cfr., ibidem, as conclusões XXX e XXXI).
Nas conclusões M. a PP. das contra-alegações da contrainteressada e ora co-recorrida é suscitada a questão da perda superveniente do interesse em agir (ou da legitimidade ad recursum) da ora recorrente, por esta ter apresentado previamente à interposição do presente recurso um pedido de reforma do acórdão recorrido (cfr. também os Acs. TCAS, de 19.04.2018, P. 1279/17.4BELSB, e de 16.01.2020, P. 611/19.0BEBJA). Todavia, esta questão – que em princípio seria prévia àquelas que resultam das alegações da recorrente, na medida em que, a proceder, determinaria a rejeição do recurso de revista e a consequente impossibilidade de apreciar o respetivo mérito – ficou prejudicada pelo despacho – já transitado em julgado – de 4.02.2022 proferido a fls. 1766 pelo relator no tribunal a quo (cfr. supra o n.º 4). E, ainda que assim não fosse, a admissão do presente recurso pelo acórdão de 26.05.2022 da formação de apreciação preliminar prevista no artigo 150.º, n.º 6, do CPTA (cfr. supra o n.º 5) – também já transitado em julgado –imporia igualmente a apreciação do seu mérito.


§ 1.º A admissão aos autos do requerimento ad hoc e documentos anexos
apresentados pelo Município de Valongo no tribunal a quo

11. A primeira questão colocada pela recorrente – a admissão pelo tribunal recorrido de documentos comprovativos de factos posteriores à apresentação de alegações e contra-alegações num recurso de apelação alegadamente determinante da inutilidade superveniente da lide – distingue-se do acerto da decisão relativamente ao efeito de tais factos, ou seja, quanto ao juízo positivo emitido pelo mesmo tribunal sobre a perda superveniente do interesse processual da recorrente com a consequente extinção da instância, matéria que é objeto da segunda e terceira questões.
Com efeito, no entender da recorrente, por via de um requerimento ad hoc com dois documentos anexos, «o Município de Valongo carreou para o processo factos que, na fase processual em que aquele se encontrava, não eram já passíveis de ser apreciados pelo Tribunal a quo, sob pena de violação [do] princípio da estabilidade da instância» (cfr. o n.º 27 das alegações de recurso), porquanto este princípio «apenas permite que as partes conduzam ao processo factos supervenientes constitutivos, modificativos ou extintivos do direito até ao encerramento da discussão em primeira instância (cfr. o artigo 260.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, o n.º 1 do artigo 86.º do CPTA e o artigo 63.º do CPTA)» (v. a conclusão XXII das alegações de recurso; itálico acrescentado).
Estão em causa os despachos de 9.11.2020 e de 3.03.2021 e suas fundamentações, os quais aprovaram, respetivamente, alterações ao projeto de arquitetura e à licença de construção requeridas pela contrainteressada no processo de licenciamento n.º ...17 e a petição inicial da ação administrativa de impugnação do citado despacho de 3.03.2021 intentada no TAF de Penafiel e aí pendente sob o n.º 415/21.0BEPNF (cfr. supra no n.º 9, os factos provados 1. e 3.).
Para o recorrido Município de Valongo, o «novo despacho de licenciamento veio definir “ex novo" as novas [sic] condições da licença de construção, fixando uma nova disciplina de licenciamento sobre a anterior pretensão do requerente, operando a extinção dos anteriores atos que passam a ser imprestáveis para a pretensão de licenciamento, deixando de produzir quaisquer efeitos jurídicos. E porque assim sucedeu, a ora Recorrente interpôs em 18-06-2021 nova ação administrativa de impugnação do novo despacho de licenciamento, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, onde corre termos no processo n° 415/21.0BEPNF» (cfr. as respetivas contra-alegações, p. 7). Quanto à legitimidade de invocar estes factos supervenientes, e sem prejuízo das conclusões 3.ª e 4.ª das suas contra-alegações – em que, a propósito do artigo 611.º, n.º 1, do CPC, se reporta a factos supervenientes constitutivos, modificativos ou extintivos do direito do recorrente –, refere no corpo destas últimas a doutrina sufragada pelo Ac. TRL de 2.07.2019, P. 566/19.1YRLSB.L1-7:
«Uma circunstância posterior à interposição do recurso pode retirar o interesse processual do recorrente e determinar a inutilidade superveniente da lide (ou melhor, da impugnação) e a consequente extinção da instância (cfr. douto Acórdão citado).
Assim, na instância de recurso, podem ser alegados os factos que determinem aquela inutilidade superveniente, o que não contraria a proibição do “ius novorum", pois o que esta impede é a alegação de factos novos como fundamento do recurso e não a faculdade de invocar factos supervenientes que relevam para a aferição dos pressupostos processuais (cfr. douto Acórdão citado).» (v. ibidem, p. 7; itálicos acrescentados).

A contrainteressada e co-recorrida segue a mesma linha argumentativa da aplicabilidade do artigo 611.º, n.º 1, do CPC à segunda instância por via da remissão do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código e invoca igualmente a perda superveniente da legitimidade ad recursum (citando Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, p. 458 e o já mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – cfr. os n.ºs 79-81 do corpo das suas contra-alegações e as conclusões VV. a EEE.).

12. Cumpre começar por recordar que o princípio da estabilidade da instância respeita, na sua vertente objetiva, ao pedido e à causa de pedir, sendo a atendibilidade dos factos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes limitada, em princípio, ao momento do encerramento da discussão (artigos 260.º e 611.º, n.º, 1, do CPC e artigo 86.º, n.º 1, do CPTA). Por isso mesmo, e sem necessidade de discutir o alcance da remissão contida na parte final do artigo 663.º, n.º 2, do CPC – aplicabilidade na apelação do disposto no referido artigo 611.º, n.º 1 –, é seguro que no caso sub iudicio não está em causa aquele princípio nem são aplicáveis as regras que o concretizam, nomeadamente o artigo 86.º do CPTA. Na verdade, como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha, «[v]isto que está em causa a alegação de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito invocado, e, portanto, factos que relevam quanto à procedência ou improcedência da ação, o regime do […] artigo 86.º não tem aplicação relativamente aos factos que têm apenas reflexo na relação processual. Por conseguinte, a eventual revogação do ato ou a cessação de vigência da norma impugnados, assim como, v.g., qualquer circunstância que possa determinar a inutilidade ou a impossibilidade superveniente da lide podem ser suscitados em qualquer momento durante a pendência do processo.» (v. Autores cits., Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, nota 1 ao artigo 86.º, p. 687; itálico acrescentado).
De todo o modo, é de assinalar que, mesmo perspetivando o recurso de apelação para os tribunais centrais administrativos como um recurso de ponderação, o TCA Sul já admitiu, no acórdão de 17.06.2021, P. 101/18.9BECTB, apreciar factos objetivamente supervenientes relativos ao objeto do recurso – e, por conseguinte, suscitando questões novas – e os documentos comprovativos dos mesmos apresentados num momento em que o processo já se encontrava inscrito para julgamento, com a seguinte justificação:
«IV- [S]erá admissível […] a junção de documentos para prova de factos jurídicos supervenientes, em homenagem aos princípios da verdade e da atualidade decisória, em situações muitíssimo restritas, a serem ponderadas pelo Tribunal superior, face à necessidade da alegação e prova de factos supervenientes e à insusceptibilidade de se prever essa superveniência aquando da apresentação das alegações;
V- Ou seja, a parte a quem aproveita um facto superveniente – à apresentação das alegações e das contra-alegações de recurso – poderá sempre trazê-lo a recurso e fazer prova do mesmo quando esse facto seja absolutamente necessário para confirmar ou para infirmar a decisão impugnada, por tal facto mostrar que a realidade em que a decisão recorrida se baseou se alterou e já não corresponde à realidade da vida. Esta faculdade da parte visa obstaculizar a existência de decisões judiciais inúteis, por já não terem suporte na realidade sobre a qual incidiram e o litígio que se quis dirimir.» [no texto do acórdão, consta ainda o seguinte, que completa o n.º IV do sumário: «a existência de ónus processuais e de momentos para a alegação de factos pelas partes não pode precludir o direito das mesmas à tutela jurisdicional efetiva enquanto uma tutela verdadeira, real ou atual»).

13. A invocação de factos supervenientes em geral não deixa, todavia, de colocar questões quanto ao momento da junção aos autos dos documentos destinados a comprová-los. No caso vertente, importa considerar o contexto do recurso de apelação.
Embora controvertida, a doutrina e jurisprudência maioritárias no domínio do processo civil consideram que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excecional, e em anexo às alegações (ou contra-alegações) de recurso.
Na síntese formulada no Ac. STJ, de 11.05.2023, P. 10421/15.9T8VNG.P2.S1 (muito próxima da que se pode ler noutros arestos como, por exemplo, no Ac. STJ, de 30.04.2019, P. 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2):
«No artigo 423.º do CPC estabelecem-se os princípios ou regras gerais relativamente ao momento de apresentação de documentos dirigidos à prova dos fundamentos da ação. Diz-se aí:
“1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”.
Em desvio a esta norma, o artigo 651.º, n.º 1, do CPC estabelece que:
“As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
Por sua vez, dispõe-se na norma remetida – o artigo 425.º do CPC – que:
“Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Da leitura articulada destas normas decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excecional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.
Explicita-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. de 8.11.2011 (Proc. 39/10.8TBMDA.C1) a primeira hipótese, advertindo-se que há que distinguir entre os casos de superveniência objetiva e de superveniência subjetiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou – acrescentar-se-ia – ao seu acesso posterior pelo sujeito [– sendo o momento de referência para a produção, o conhecimento ou o acesso ao documento o do encerramento da discussão].
O desconhecimento ou a falta de acesso anterior ao documento deve assentar em razões atendíveis, não podendo ser imputável à falta de diligência dos sujeitos, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a exceção ditada, nesta matéria, pelo legislador.
Constituem exemplos de superveniência subjetiva o caso em que o documento se encontra em poder da parte ou de terceiro e este, apesar de lhe ser feita a notificação, nos termos do artigo 429.º ou 432.º do CPC, só posteriormente o disponibiliza, o caso em que a certidão de documento arquivado em notário ou em outra repartição pública, não obstante atempadamente requerida, só posteriormente é emitida e, por fim, o caso em que a parte só posteriormente tem conhecimento da existência do documento.»

Ou seja: a junção de documentos em sede de recurso de apelação, de acordo com este entendimento, pode ser feita, a título excecional, em anexo às alegações ou contra-alegações de recurso e depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações (cfr. também o já mencionado Ac. TRL, de 2.07.2019):
Indisponibilidade do documento: a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remissão do artigo 651º, n.º 1, para o artigo 425º, ambos do CPC;
Necessidade do documento em função da decisão proferida na primeira instância: o ter o julgamento da primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objeto da ação ou inútil relativamente a este (como explicam Antunes Varela et alii, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pp. 533-534: «a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.»).
Deste modo, e não obstante a controvérsia doutrinal, os factos objetivamente supervenientes – aqueles que ocorreram depois do encerramento da discussão na primeira instância e, que, por isso, são comprovados por documentos objetivamente supervenientes –, de acordo com o entendimento em análise, não podem ser levados ao recurso. Como refere Rui Pinto, a supressão do n.º 2 do artigo 524.º do CPC de 1961 (o n.º 1 corresponde ao atual artigo 425.º e o n.º 2 dispunha: «[o]s documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo») significa que para o legislador está excluída claramente qualquer possibilidade de alegação e prova documental de factos posteriores ao momento em que se podem apresentar articulados supervenientes (cfr. Autor cit., Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, Coimbra, 2018, nota II ao art. 651.º, p. 313, e nota II ao art. 662.º, pp. 329-331). A título conclusivo o mesmo Autor refere:
«[O] recurso de apelação [em] matéria de facto é, ainda, um recurso de reponderação. Aproveitando as palavras de FRANCO CIPRIANI 8…], o sistema não é de “novum iudicium” mas de “revisio prioris instantiae”.
[…]
Como bem enuncia o ac. RC 8-11-2011/Proc. 39/10.8TBMDA.C1 (HENRIQUE ANTUNES), “Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas. Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objetivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objeto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância”.
Quisera o legislador que assim não fosse e tê-lo-ia previsto expressamente. Não o fez, porém. Pelo contrário, em matéria de factos e questões supervenientes nota-se uma aproximação ao sistema do artigo 345.º do atual Codice de procedura civile italiano. Nele se dita que “Na instância de apelação não se podem deduzir novas questões e, se deduzidas, devem oficiosamente ser declaradas inadmissíveis”.» (v. Autor cit., ob. cit., nota III ao art. 662.º, pp. 331-332).

Em todo o caso, e como também se refere no citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 8.11.2011, «[n]ão obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado. A primeira e significativa exceção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objeto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efetiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3º, nº 3 do CPC)».
No mesmo sentido, o próprio Rui Pinto defende que o réu que foi condenado no pedido poderá nas alegações de recurso invocar factos que conduzam à inutilidade superveniente da lide (v. Autor cit., ob. cit., nota IV ao art. 662.º, p. 332). Assim como Miguel Teixeira de Sousa:
«Sempre que ocorra qualquer facto superveniente com relevância para a apreciação dos pressupostos processuais, ele não pode deixar de ser considerado na instância de recurso. Dado que os pressupostos processuais deverão estar preenchidos no momento do julgamento do recurso e que este pode ter por objeto específico um desses pressupostos, o tribunal ad quem deve considerar qualquer facto superveniente que seja relevante para a sua apreciação e para o julgamento do recurso a ele respeitante.
Tal sucede mesmo nos recursos de revista e de agravo em 2.ª instância – isto é, nos recursos pendentes no Supremo –, apesar de, em regra, este tribunal não conhecer de matéria de facto […].
[… E concretamente no que se refere à legitimidade ad recursum:]
Dado que a legitimidade para recorrer é aferida pelo interesse processual do recorrente, há que aceitar que uma circunstância posterior à interposição do recurso possa retirar-lhe esse interesse. Isto é, também na instância de recurso se pode verificar a inutilidade superveniente da lide (ou melhor, da impugnação) e a consequente extinção dessa instância (cfr. art.º 287º, al. e)).
Esta conclusão pressupõe que na instância de recurso possam ser alegados os factos que determinam aquela inutilidade superveniente, o que parece contrariar a proibição do ius novorum e a caracterização dos recursos ordinários previstos na legislação processual civil portuguesa como recursos de reponderação. Mas a contradição é aparente. O que está afastado é a possibilidade de alegar factos novos como fundamento do recurso e não a faculdade de invocar factos supervenientes que relevam para a aferição dos pressupostos processuais […], nomeadamente aqueles que constituem uma causa de extinção da legitimidade para recorrer.» (v. Autor cit., Estudos…, cit., p. 458 e pp. 493-494; incorporando esta doutrina, v. o Ac. TRL de 2.07.2019 citado pelos recorridos).

14. No caso dos presentes autos, verifica-se que a questão da perda do interesse processual por parte da recorrente foi suscitada, não nas contra-alegações, mas depois da apresentação destas (cfr. supra o n.º 9).
Independentemente da melhor interpretação que se faça da articulação entre os artigos 651.º, n.º 1 e 425.º, ambos do CPC (v., por exemplo, o entendimento de Miguel Teixeira de Sousa, assente numa relação de regra geral – o artigo 425.º – com regra especial – o artigo 651.º, n .º 1 –, segundo o qual «nada no regime legal impede a junção de documentos supervenientes em relação à apresentação de alegações» in https://blogippc.blogspot.com/2020/02/jurisprudencia-2019-171.html, ref.ª Jurisprudência 2019 (171), de 10.02.2020) ou da caracterização do recurso de apelação perante os tribunais centrais administrativos como substitutivo e de reexame (cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha, Comentário…, cit., nota 1 ao artigo 149.º, pp. 1186-1187), certo é que os factos supervenientes com relevância para a apreciação dos pressupostos processuais – ao menos os de conhecimento oficioso – não podem deixar de ser considerados na instância de recurso, pois estes últimos deverão estar preenchidos no momento do julgamento do recurso, já que, como referido no mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8.11.2011, «ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida». Tais questões – e é esse o caso em relação à generalidade dos pressupostos processuais gerais, devido ao interesse público que reveste a sua verificação (cfr. Antunes Varela et al., ob. cit., p. 106) – «constituem um objeto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente».
Assim, se como sucede in casu, uma parte invocar, em sede de recurso interposto para o tribunal central administrativo, factos objetivamente supervenientes que podem justificar a extinção da instância por inutilidade superveniente, nomeadamente devido à perda do interesse em agir, e juntar documentos comprovativos de tais factos (cfr. supra o n.º 3), o tribunal de recurso deve admitir os documentos em causa e decidir sobre os efeitos dos factos invocados.
Improcedem, por isso, as conclusões XXI e XXII das alegações da recorrente.


§ 2.º O despacho de 3.03.2021 enquanto alteração da licença de construção inicial aprovada pelo despacho de 12.11.2018 e consequências daí decorrentes

15. Considera a recorrente que as alterações aos atos impugnados nos presentes autos não esgotam os vícios por si apontados e que a licença de construção aprovada pelo despacho de 3.03.2021, enquanto ato modificativo, apenas pode ser impugnada em nova ação administrativa na parte em que versa sobre aspetos por si regulados de forma inovadora (cfr. a conclusão XXV das suas alegações). Daí entender que «mal andou o Tribunal a quo ao considerar que a presente lide se tornou inútil por ter ocorrido uma revogação substitutiva dos atos primários (aprovação do projeto de arquitetura e licença) por via da alteração à licença entretanto deferida, uma vez que as únicas alterações introduzidas ao projeto pela Contrainteressada [se prenderam] com a criação de um novo acesso mecânico ao edifício a construir e, bem assim, com o reajuste dos lugares de estacionamento previstos, sendo somente este o conteúdo inovador na alegada “nova disciplina de licenciamento" e apenas estes os aspetos que a Recorrente pode sindicar contenciosamente» (cfr. ibidem, a conclusão XXVI). Ora, uma vez que o tribunal de primeira instância «expressamente reconheceu que os atos primitivos nesta sede sindicados conduzirão à “(...) criação de uma situação, sobretudo nas horas noturnas, em que se coloque em causa a saúde e bem estar das pessoas que vivem naquele local”, concluindo, deste modo, serem os mesmos incompatíveis com as disposições do PDM e, bem assim, com os direitos ao descanso e ao repouso dos moradores do lugar de ..., […] tal discussão apenas se pode realizar na presente demanda, uma vez que, como se afirmou, não está em causa qualquer trecho “inovatório” patenteado na alteração à licença.» (cfr. ibidem, a conclusão XXVII). Assim, não se verifica a decidida inutilidade da presente lide, uma vez que, se se confirmar a nulidade da licença alterada em 2021, tal «invalidade [estender-se-á] à [própria] alteração, a qual não pode subsistir per se» (cfr. ibidem, a conclusão XXVIII).
Na verdade, decidiu-se no acórdão recorrido a este respeito:
«[O]s novos atos [– as alterações ao projeto de arquitetura e à licença de construção iniciais –] fixam uma nova disciplina de licenciamento sobre a pretensão de licenciamento inicialmente regulada pelos atos primários, agora, à luz das alterações ao projeto que, entretanto, o interessado requereu no procedimento, o que opera uma extinção dos efeitos dos anteriores atos, pois já não servem à primária pretensão de licenciamento nem de emissão do correspondente alvará.
[…]
Assim, se, por um lado, os atos de licenciamento primários foram impugnados na ação de que emana o presente recurso jurisdicional, por outro, esses mesmos atos foram objeto de revogação substitutiva pelo atual ato de aprovação do novo projeto, de 09-11-2020, bem como pelo despacho de 03-03-2021, pelo qual foi deferido o pedido de alteração à licença igualmente apresentado pela Sociedade A..., Lda, ora Contrainteressada, no processo de licenciamento n° ...17, tudo já na pendência da referida ação e, até, do presente recurso, inexistindo, ainda uma decisão final transitada em julgado.
Reza o nº 2 do artigo 173º do [CPA] que “[…]”.
No caso presente, não se trata de mera substituição de um ato anulável por outro com o mesmo conteúdo despido de invalidades, como vimos, mas, antes, atos que fixam uma nova disciplina de licenciamento de projetos diferenciados dos originários em face de alterações posteriormente introduzidas no projeto, e certo é, em qualquer caso, que não se vislumbram identificados efeitos lesivos produzidos durante o período de tempo que precedeu a substituição revogatória em causa, pois certo é também que as operações urbanísticas objeto de licenciamento são tituladas por alvará, cuja emissão é condição de eficácia da licença (artigo 74º do RJUE), o que não ocorreu no caso.
Em suma, no caso concreto, nada resta de conteúdo jus-relevante, nos atos primários impugnados na ação de que emana o presente recurso, que, com validade e eficácia, permita a edificação que o originário projeto visava licenciar.
A Autora havia formulado os seguintes pedidos na ação:
[…]
Relevam aqui, para efeito da inutilidade superveniente da lide, apenas os dois primeiros pedidos [– a declaração de nulidade ou, subsidiariamente, a anulação dos despachos de aprovação do projeto de arquitetura e da licença de construção].
Tudo conjugado, em face da emissão dos novos atos de aprovação e licenciamento, que constituem factos supervenientes e operam “per si” revogação substitutiva dos primários atos de aprovação e licenciamento impugnados na ação de que emana o presente recurso, a lide tornou-se supervenientemente inútil quanto aos dois primeiros pedidos acima identificados, o que determina a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, alínea e), do CPC, relativamente aos mesmos.
Em face da perda de utilidade da lide quanto às questões atinentes aos referidos pedidos, não devem os autos prosseguir com o conhecimento do respetivo mérito, pelo que procedendo a questão prévia suscitada, queda-se prejudicado o conhecimento do mérito do recurso principal, interposto pelo Município de Valongo, quanto àquelas questões integrantes do seu objeto.» (cfr. pp. 27-30).

Cumpre fazer algumas precisões.
Em primeiro lugar, e conforme resulta do ponto 1 da Informação n.º ...20, de 6.11.2020, transcrita no n.º 3 dos factos provados em sede de recurso de apelação (cfr. supra o n.º 9), os novos despachos resultaram de um pedido de alteração à licença feito pela contrainteressada e aqui co-recorrida apresentado ao abrigo dos artigos 27.º e 83.º, n.º 3, do RJUE. Este último estatui o seguinte: «[a] s alterações em obra ao projeto inicialmente aprovado ou apresentado que envolvam a realização de obras de ampliação ou de alterações à implantação das edificações estão sujeitas ao procedimento previsto nos artigos 27.º ou 35.º, consoante os casos» (itálico acrescentado). E, na verdade, como também se afirma no ponto 11 da referida Informação, o deferimento da pretensão em causa determinou um posterior pedido de aditamento ao Alvará de Obras n.º ...19, que titula a licença de construção inicial, aprovada pelo despacho datado de 12.11.2018 cuja nulidade foi declarada nos presentes autos pela sentença do TAF de Penafiel (cfr. também o ponto 2 da mesma Informação).
Ou seja, contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido, designadamente no trecho acima transcrito, não só existe já um alvará que titula a licença de obras de construção objeto da licença inicial e a torna eficaz nos termos do artigo 74.º, n.º 1, do RJUE – precisamente o mencionado Alvará n.º ...19 –, como a requerida alteração a tal licença foi feita em obra, ou seja, encontrando-se as obras licenciadas já em execução (cfr. o referido artigo 83.º, n.º 3, do RJUE). Consequentemente, fica por explicar com base nos documentos juntos aos autos a razão de ciência da afirmação de que «não se vislumbram identificados efeitos lesivos produzidos durante o período de tempo que precedeu a substituição revogatória em causa».
Depois, em rigor, os despachos de 9.11.2020 e de 3.03.2021 não correspondem a uma revogação substitutiva, mas antes à alteração (ou revogação modificatória) de um ato administrativo. Neste caso, o órgão autor do ato primário exerce a sua competência dispositiva para disciplinar de outro modo certos aspetos da situação já regulada por aquele ato, pelo que os efeitos da alteração só em parte são distintos dos do ato alterado (cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 3.ª ed., Almedina, 2016, pp. 381-382). Por isso, também a alteração da licença aprovada pelo despacho de 12.11.2018 não dará lugar a um novo alvará, mas sim a aditamento ao alvará preexistente, ou seja, ao Alvará n.º ...19 (cfr. o artigo 27.º, n.º 7, do RJUE).
Assim sendo, compreende-se a preocupação da aqui recorrente em distinguir o conteúdo inovador da nova licença de obras (e do novo projeto de arquitetura), autonomamente sindicável numa nova ação de impugnação, e o conteúdo confirmativo da mesma, correspondente a parte dos efeitos dos atos primários sindicados nos presentes autos (v. as conclusões XXV a XXVIII das suas alegações).
Na verdade, resulta dos pontos 3 e 6 da já citada Informação n.º ...20, de 6.11.2020, que a pretensão da contrainteressada, acolhida nos despachos de 9.11.2020 e de 3.03.2021, «consiste na alteração da cota de implantação do edifício e na criação de um novo acesso mecânico ao mesmo» (itálicos acrescentados); o «referido acesso compreende a execução de uma faixa de circulação paralela à Via DP02 – Execução de circular externa de Valongo – “variante à EN15” prevista executar, com mais de 170 m de extensão, separada por zona ajardinada.». Mas o «pedido não prevê modificações dos parâmetros urbanísticos que caracterizam o edifício.» (v. ibidem, ponto 6; itálico acrescentado). No entanto, prevê-se «o aumento da área de cedência ao domínio público destinada a infraestruturas viárias, relativamente ao licenciamento inicial, resultante da criação da referida faixa de circulação.» (v ibidem). Acresce que «[f]ace ao novo acesso, a cota de implantação do armazém é elevada em 1 m acima da cota inicialmente prevista, de forma a reduzir as inclinações do acesso à variante.» (v ibidem). Além disso, «constata-se que foi apresentado um novo estudo de tráfego, acompanhado de termo de responsabilidade subscrito por técnico legalmente habilitado, adequado à proposta submetida no âmbito do presente pedido de alteração à licença e cujas conclusões referem que o tráfego gerado não é suscetível de gerar restrições à circulação na rede viária envolvente. 10. Quanto aos projetos de especialidades, verifica-se que foram apresentados projetos de obras de edificação e projetos de obras de urbanização contemplando as alterações agora propostas ao projeto de arquitetura». (v ibidem, pontos 9 e 10).
Daí colocar-se a questão, não abordada no acórdão recorrido: os aspetos do projeto que, segundo a sentença do TAF de Penafiel, colidem com os artigos 51.º, n.º 2, e 15.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento do PDM de Valongo, foram objeto de alteração? Pode entender-se, à luz da licença alterada, que a obra deixou de pôr em causa os direitos ao repouso e ao sossego dos residentes na vizinhança do armazém previsto? E, mesmo antes disso: será que a obra, tal como licenciada em 2018, punha em causa tais direitos, conforme decidiu o TAF de Penafiel?
A estas acresce uma outra questão. No acórdão recorrido, para afastar a aplicação do artigo 173.º, n.º 2, do CPA, afirma-se perentoriamente que «não se trata de mera substituição de um ato anulável por outro com o mesmo conteúdo despido de invalidades» (itálico acrescentado). É verdade. Mas a decisão do TAF de Penafiel considerou o ato substituído nulo, e não meramente anulável… Pode o TCAN abstrair deste facto e bastar-se com a afirmação de que estão em causa «atos que fixam uma nova disciplina de licenciamento de projetos diferenciados dos originários em face de alterações posteriormente introduzidas no projeto»?

16. Recorde-se o que foi decidido na primeira instância, nomeadamente no ponto IV.2.5 (Compatibilidades do uso pretendido) da respetiva sentença, a propósito dos atos alterados em 2021:
«[O] PDM de Valongo foi alterado em 2018, conforme publicado pelo Aviso n.º ...18 no Diário da República, 2.ª Série, n.º 25, de 05.02.2018.
Foi alterado, nomeadamente, o artigo 51.º, n. 2 que passou a ter a seguinte redação “a afetação dos usos não habitacionais depende da verificação da compatibilidade com a envolvente, nos termos do artigo 15.º do presente regulamento.”
Por sua vez o artigo 15.º prevê o seguinte:

Artigo 15.º
Compatibilidade de usos e atividades
1 - Consideram-se usos compatíveis os que não provoquem um agravamento das condições ambientais e urbanísticas, sendo motivo de indeferimento de operações urbanísticas, as utilizações, ocupações ou atividades que:
a) Originem ruído, fumos, cheiros ou resíduos que afetem as condições de salubridade;
b) Perturbem gravemente as condições de trânsito e de estacionamento ou provoquem movimentos de cargas e descargas que prejudiquem as condições de utilização da via pública;
[…]
2 - Os usos admitidos para cada categoria e subcategoria do solo devem compatibilizar-se com o uso dominante que caracteriza esta categoria ou subcategoria, sem prejuízo da saudável convivência entre usos complementares do dominante, devendo serem interditados usos e atividades que provoquem ou possam vir a provocar os conflitos descritos no número anterior ou que provoquem rutura morfológica dominante no local.

Os aspetos referidos no artigo supra transcrito constituem motivos de indeferimento de operações urbanísticas, as utilizações, ocupações ou atividades em função do seu impacto sobre as condições ambientais e urbanísticas.
Analisados os autos, resulta da informação técnica elaborada pelo Município a 30.10.2018 [– a Informação n.º ...18 –] que o projeto apresentado pela contrainteressada após a alteração [– isto é, o novo projeto de arquitetura referido no n.º 17 dos factos provados na primeira instância e que consta do documento n.º 17 junto à petição inicial –] apresenta dois aspetos que podem colidir com os artigos 51.º, n.º 2 e 15.º do PDM de Valongo: pode “perturbar as condições de trânsito e estacionamento ou provocar movimentos de cargas e descargas que prejudicam as condições de utilização da via pública, bem como originar ruído, nomeadamente em horário noturno.” A mesma informação refere ainda medidas que considera reduzirem o impacto da construção, designadamente que “as cargas e descargas são efetuadas no interior das instalações, não afetando diretamente a utilização da via pública», que irá «ser criado, no interior da parcela, estacionamento para pesados e ligeiros» e que «no âmbito do presente licenciamento, está previsto o prolongamento da Rua ..., assim como a execução do troço 2 da Circular externa de Valongo, que fará ligação ao troço 1 existente e se estende até à EN15, que permitirá a distribuição dos fluxos de tráfego para o exterior da cidade”. E conclui este ponto de análise mencionando que “não obstante as medidas de redução do impacto descritas possam resultar numa menor sobrecarga para o trânsito e estacionamento no local, de acordo com as informações agora fornecidas, considera-se, não estarem totalmente acauteladas ou fundamentada a compatibilização do uso pretendido com o uso residencial, no que se refere ao ruído, atendendo ao tipo e número de viaturas utilizadas e aos horários de funcionamento descritos.” [destaque acrescentado] E remetendo para consideração superior a decisão sobre a aceitação do armazém proposto, face ao estabelecido na atual redação do RPDMV, designadamente no nº 2 do art. 51º.”
Nitidamente, os serviços do Município transmitem a informação técnica de que o projeto em causa ao permitir essencialmente a laboração em horário noturno poderá originar ruído, o que poderá tornar tal uso incompatível para efeitos do artigo 51.º, n.º 2 do PDM de Valongo. [itálico acrescentado]
Repare-se que o agravamento do ruído que coloque em causa as condições de salubridade é, nos termos do disposto no artigo 15.º, n.º 1, al. a) do PDM, um dos motivos de indeferimento de operações urbanísticas, as utilizações, ocupações ou atividades.
Ora, não existe nos autos qualquer outra informação sobre este aspeto, nem se estabeleceu nenhuma condicionante ao projeto da contrainteressada, nem qualquer alteração posterior, o que significa que o despacho de deferimento de 12.11.2018 é ilegal. [itálicos acrescentados]
É importante realçar que, quanto ao ruído, a informação técnica disponível indica a existência de uma incompatibilidade de uso remetendo para análise superior, sendo que não existe qualquer outra analise efetuada quanto a este aspeto.
E diga-se que o mesmo é essencial, já que o direito ao descanso é um direito dos particulares que pode ser efetivado através dos próprios diretamente seja contra entidades públicas seja contra entidades particulares. Como refere o acórdão do STJ de 03.12.2015, proc. 1491/06.1TBLSD.P2.S1, “a vertente ambiental dos direitos de personalidade - na qual se inserem o direito à qualidade de vida, o direito ao descanso, o direito ao sono e o direito a um ambiente sadio e equilibrado - é concretizada no n.º 1 do art. 66.º da CRP (beneficiando do regime dos direitos, liberdades e garantias por ser inerente ao homem enquanto indivíduo - n.º 1 do art. 17.º e n.º 1 do art. 18.º do mesmo diploma), sendo também abrangida pela tutela geral da personalidade (art. 70.º do CC).
Uma análise leviana pela entidade demandada quanto ao aspeto relacionado com o ruído pode facilmente originar graves prejuízos para a própria contrainteressada, na medida em que pode ver-se impossibilitada de laborar o tempo pretendo por imposição do próprio Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 9/2007, de 17 de janeiro.
E importante realçar que o local está já sujeito a ruído, que facilmente se percebe, ter alguma intensidade, atendo à proximidade entre o local e a A4 e o facto de Valongo se encontrar relativamente próximo da cidade do Porto, o que facilmente permite concluir que o fluxo de trânsito seja considerável e que origine já ruído, o que significa que, aten[den]do às preocupações manifestadas na própria informação técnica, tudo aponta para a criação de uma situação, sobretudo nas horas noturnas, em que se coloque em causa a saúde e bem estar das pessoas que vivem naquele local.
Conexionado com este aspeto, está a alegação constante nos artigos 255º e ss. da p.i..
Como se referiu, ao contrário do alegado pela autora, o PDM não garante que o local onde os associados da autora têm residência seja exclusivamente destinado a habitação. Estes associados podem ter-se convencido que assim fosse pela inexistência de outras edificações que não de habitação. Mas trata-se de uma expetativa não titulada juridicamente, já que nem legalmente nem regulamentarmente existe qualquer elemento que lhes permita fundar legitimamente tais expetativas, até porque não podem olvidar a proximidade do local com a cidade de Valongo e a proximidade deste com a cidade do Porto, pelo que ao adquirirem as habitações naturalmente sabiam e não podiam desconhecer que haveria, mais cedo ou mais tarde, um crescimento ao nível urbanístico do local.
No entanto, independentemente desse aspeto, os associados da autora têm direito ao repouso. Como é referido pelo STJ no acórdão de 15.12.2015, Proc. 311/04.6TBENT.E1.S1. “O direito ao repouso, como bem indispensável à tranquilidade da vida familiar e à saúde, e, portanto, à integridade física e moral e à vida, que se integra no âmbito dos direitos de personalidade, resulta violado com a produção de ruídos que, pela sua frequência e intensidade, afetem o sono e a tranquilidade emocional dos visados, como fatores decisivos do desequilíbrio psicossomático."
Afigura-se evidente que tais transtornos ou incómodos só sejam passíveis de real quantificação após o início de laboração do armazém. No entanto, como referido, não pode descurar-se que a informação técnica dá por verificados desde já a existência desses incómodos no período noturno. [itálico acrescentado]
E repare-se que de acordo com o mesmo acórdão do STJ “Ainda que a produção do ruído seja inferior ao, legalmente, permitido, e a atividade donde o mesmo provém tenha sido autorizada pela autoridade competente, provando-se a incomodidade do ruido para o descanso e sono dos autores, impõe-se atribuir aos lesados no direito ao repouso e a um ambiente sadio, uma indemnização, por danos não patrimoniais, com vista à tutela dos seus interesses.” Portanto, a questão relativa ao ruído por se prender com o direito de descanso de particulares exige uma ponderação bastante minuciosa, que no caso em apreço nitidamente não foi efetuada, muito embora se verifique desde já a existência de um incremente de ruído que constitui motivo de indeferimento da pretensão da contrainteressada. [itálico acrescentado]
É importante notar que o direito dos particulares, associados da autora, tem cobertura constitucional, não por causa do artigo 65.º, n.º 1 (direito à habitação – que se afigura não ser ameaçado por causa do armazém e infraestruturas em causa), mas essencialmente devido ao artigo 66.º, n.º 1 da CRP que prevê o direito ao ambiente e à qualidade de vida.
E perante a forma desmazelada como foi analisada a questão do ruído afigura-se existirem indícios que apontam que no caso em apreço irá existir essa violação, dadas as preocupações manifestadas na informação técnica emitida. [itálico acrescentado]
Embora não se possa concluir desde já que a atividade viole a proteção jurídico-constitucional por não estar ainda a ser exercida, não pode deixar de se ponderar esta invocação da autora como suportando e reforçando a alegação da violação de normas do PDM de Valongo que visam exatamente prevenir esse efeito negativo. [itálico acrescentado]
Do exposto resulta, portanto, que o projeto em causa, tal como aprovado, viola o disposto nos artigos 51.º, n.º 2 e 15.º, n.º 1, al. a) do PDM de Valongo.» (pp. 23-28)

E tal violação tem como consequência a nulidade do despacho de 12.11.2018 que aprovou o licenciamento das obras de construção que concretizam o projeto em causa (cfr. o artigo 68.º, alínea a), do RJUE).

17. Como mencionado, a alteração à licença de obras objeto do despacho de 12.11.2018 e titulada pelo Alvará n.º ...19, que foi aprovada pelos despachos de 9.11.2020 e de 3.03.2021, limitou-se aos aspetos referidos na Informação n.º ...20 (cfr. supra o n.º 15). Contudo, na Informação n.º ...21, transcrita no n.º 2 dos factos dados como provados no acórdão recorrido (cfr. supra o n.º 9), e que pretende apreciar criticamente a posição assumida pela ora recorrente em relação à Informação n.º ...20, foram ensaiadas respostas à questão de saber se o projeto de armazém colide com o disposto no Regulamento do PDM de Valongo e é referido (e transcrito) um parecer jurídico segundo o qual o pedido de alteração à licença está em conformidade com o disposto naquele Regulamento, designadamente com a previsão do n.º 2 do artigo 51.º, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 15.º, «assim como [já] estava a licença inicial» (itálico acrescentado).
Para justificar esta conclusão, também assumida na Informação n.º ...21, salienta-se, em relação ao direito ao repouso e sossego dos moradores dos ..., que a alteração à licença inicial «afastou a circulação dos veículos pesados da Rua ... e eliminou o eventual impacto que a atividade teria nas habitações existentes na envolvente, no que se refere ao trânsito local e ruído resultante das entradas e saídas dos veículos pesados inicialmente previstas nesse arruamento». Salienta-se, ainda, que a zona de circulação de camiões no interior do prédio dista das habitações mais próximas cerca de 100 m, sendo o armazém proposto uma barreira por se implantar entre as habitações e a referida zona de circulação.». Isto porque:
«As cargas e descargas serão efetuadas no interior das instalações, verificando-se que os respetivos cais se situam na fachada posterior do edifício, oposta à zona das moradias existentes.
Acresce que, no âmbito do licenciamento, está previsto o prolongamento da Rua ... (atualmente sem pavimento), assim como a execução do troço 2 da Circular externa de Valongo, que fará ligação ao troço 1, já existente, e se estende até à EN 15. Ambas as intervenções estavam previstas na carta do Sistema de Mobilidade e Transportes do PDMV e permitirão a distribuição dos fluxos de tráfego, nomeadamente os gerados pelo armazém em causa, para o exterior da cidade.
O pedido de alteração à licença contemplou a modificação do acesso viário ao edifício, passando a estar situado a tardoz do mesmo, próximo dos cais de cargas e descargas e com ligação à Circular Externa de Valongo.»

No citado parecer jurídico, este argumento é reforçado com a seguinte consideração:
«[D]o pedido de alteração à licença resulta que os cais de cargas e descargas foram, agora, previstos na frente (poente) do edifício que a Requerente pretende construir, que se situa do lado oposto à frente (nascente) que confronta com as habitações existentes no lugar de ..., gerando afastamento face a estas habitações.
Além disso, do pedido de alteração à licença resulta também que o armazém que a Requerente pretende edificar disporá de acessos dedicados e em exclusivo ao seu equipamento, previstos também no lado oposto (a poente) face às habitações. Daqui resulta que a fonte de ruído que foi considerada, ainda que numa interpretação errada, pelo Tribunal, de uma eventual sobrecarga do trânsito causado pela circulação dos veículos na Av. ..., é, agora, ainda mais mitigada do que na versão original do licenciamento do edifício da Requerente e do contrato de urbanização celebrado entre o Município e a Requerente, uma vez que o trânsito dos veiculas que acederem ou partirem do edifício da Requerente ocorrerá a cerca de 100m lineares da extremidade das habitações mais próximas» (itálico acrescentado).

Foi também apresentado um novo estudo de tráfego, circulação, transportes e estacionamento, adequado à proposta submetida no âmbito do pedido de alteração à licença, acompanhado de termo de responsabilidade subscrito por técnico legalmente habilitado, que atesta que o tráfego gerado não é suscetível de gerar restrições à circulação na rede viária envolvente.
Porém, no que se refere ao ruído, apenas é referido que do processo administrativo já consta o termo de responsabilidade de técnico autor do projeto de condicionamento acústico que atesta a conformidade da operação com o Regulamento Geral do Ruído. Ou seja, o projeto alterado não foi reapreciado nesta vertente.
Do ponto de vista da análise jurídica, para além da referida crítica à sentença do TAF de Penafiel, o citado parecer sublinha igualmente a autonomia própria do procedimento de licença de utilização face ao procedimento de licenciamento de obras de construção:
«Os direitos ao descanso e ao repouso dos moradores do lugar de ..., enquanto manifestações dos direitos fundamentais ao ambiente e à qualidade de vida, não são colocados em causa pelo licenciamento e consequente edificação do armazém da Requerente do presente processo administrativo.
Importa ter em consideração a distinção que é necessário fazer entre a edificação do armazém, que é agora licenciada, e o horário de funcionamento desse mesmo armazém, a determinar na licença de utilização ou noutro ato administrativo.
Resulta claro que a operação urbanística de construção do edifício em nada colide com aqueles direitos fundamentais dos moradores. Aliás, condicionar o licenciamento da construção de um edifício, por o eventual horário de funcionamento do mesmo poder colocar em causa o direito ao descanso dos moradores, circunstância que será determinada noutro ato administrativo, comportaria uma violação do direito de propriedade privada, direito fundamental também com previsão constitucional, na vertente do direito a edificar, uma vez que a operação urbanística está de acordo com os instrumentos de gestão territorial e de planeamento. Impedir a alteração da licença de construção com fundamento no horário de funcionamento, além de violar o art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa, violava também as disposições do n. 1 do art. 4.; al. a) do n. 1 do art. 6.; art.º 9.º e n.º 1 do art.º 13.º, todos da Lei de Bases Gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo.»

Contudo, nesta parte, os serviços jurídicos do Município de Valongo parecem ignorar a função desempenhada pela apreciação do projeto de arquitetura. Como refere Fernanda Paula Oliveira, no licenciamento de obras de construção, importa considerar «duas decisões diferentes: uma, relativa ao projeto de arquitetura, outra, relativa ao licenciamento da obra, funcionando a primeira como pressuposto necessário da segunda e esta como um ato confederador de pronúncias anteriores nas quais se inclui a de aprovação do projeto de arquitetura», pelo que o ato que aprova o projeto de arquitetura «pronuncia-se sobre os aspetos de conteúdo urbanístico da obra a que dizem respeito de forma definitiva, a ponto de, no prosseguimento do procedimento, tais aspetos não poderem voltar a ser questionados quando sejam válidos» (v. Autora cit., A Discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática Geral da Discricionariedade Administrativa, Almedina, Coimbra, 2011, p. 555 e ss.; itálico acrescentado). Nesse sentido, dispõem os n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º do RJUE:
«1 - A apreciação do projeto de arquitetura, no caso de pedido de licenciamento relativo a obras previstas nas alíneas c) a f) do n.º 2 do artigo 4.º, incide sobre a sua conformidade com planos municipais ou intermunicipais de ordenamento no território, planos especiais de ordenamento do território, medidas preventivas, área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária, servidões administrativas, restrições de utilidade pública e quaisquer outras normas legais e regulamentares relativas ao aspeto exterior e a inserção urbana e paisagística das edificações, bem como sobre o uso proposto.
2 - Para os efeitos do número anterior, a apreciação da inserção urbana das edificações é efetuada na perspetiva formal e funcional, tendo em atenção o edificado existente, bem como o espaço público envolvente e as infraestruturas existentes e previstas.»

E, na verdade, «após a aprovação do projeto de arquitetura, momento no qual é apreciada a conformidade do projeto com os planos, os aspetos que no âmbito do projeto de licenciamento ficam por resolver serão apenas os referentes aos chamados projetos de especialidades relativamente aos quais as normas de cariz urbanístico, designadamente as constantes dos instrumentos de planeamento nada regulam» (cfr. o Ac. TCAS, de 2.03.2017, P. 8426/12). Por isso, «em consequência da aprovação do projeto de arquitetura no procedimento de licenciamento, a conformidade da utilização pretendida com as normas legais e regulamentares que regem os usos e utilizações admissíveis e a que se reporta o artº 62º nº 1 RJUE é de verificação indireta» (cfr. o Ac. TCAS, de 26.09.2019, P. 1138/18.3BESNT).
Ora, a sentença do TAF de Penafiel limitou-se justamente a apreciar os aspetos urbanísticos do projeto de construção do armazém em causa à luz do disposto nos artigos 51.º, n.º 2, e 15.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento do PDM de Valongo, tendo concluído pela sua violação.
Na Informação n.º ...21 e no parecer jurídico nela transcrito, é referida uma mitigação do problema do ruído associado ao projeto de construção do armazém da contrainteressada. Porém, os dados avançados nesta Informação, assim como na Informação n.º ...20, não permitem concluir, com segurança, que o problema identificado pelo TAF de Penafiel na sua sentença de 31.12.2019, e que foi causa da declaração de nulidade que consta desta última, se encontra ultrapassado. Para este juízo de insuficiência concorrem não apenas as “acusações” feitas no referido parecer jurídico de que o TAF de Penafiel fez uma interpretação errada da Informação n.º ...18 – que fundamentou o despacho de aprovação da licença inicial, datado de 12.11.2018 –, e que errou na apreciação do mesmo despacho à luz dos artigos 15.º, n.º 1, alínea a), e 51.º, n.º 2, ambos do Regulamento do PDM de Valongo, como também a ausência de um projeto de condicionamento acústico que considerasse o impacte da criação de um novo acesso mecânico ao armazém, acompanhado do termo de responsabilidade do técnico autor desse estudo. Por outras palavras, a questão do ruído foi analisada, como exigido na sentença de 31.12.2019, mas em termos inconclusivos face aos indícios de violação das normas do Regulamento do PDM de Valongo considerados nessa decisão.
E, de qualquer modo, certo é que o acórdão aqui recorrido não tomou posição sobre nenhuma destas questões, sendo que o juízo sobre o acerto da decisão do TAF de Penafiel ou sobre o impacte das alterações introduzidas no projeto relativamente ao problema do ruído não é de todo indiferente para a questão de saber se, realmente e de modo juridicamente eficaz, os atos invocados pelo Município de Valongo no requerimento ad hoc que apresentou «fixam uma nova disciplina de licenciamento de projetos diferenciados dos originários em face de alterações posteriormente introduzidas no projeto», justificando, por isso, a inutilidade da presente lide e a consequente extinção da instância.


§ 3.º A projeção da eventual nulidade da licença inicial sobre os poderes de aprovar alterações à mesma ou de praticar novos atos relativamente ao seu objeto
18. Por outro lado, embora a alteração à licença de obras de construção obedeça, por força de disposição especial, ao procedimento estabelecido para a aprovação da própria licença de construção, com nova apreciação do projeto de arquitetura e eventual apresentação de novos projetos de especialidades (cfr. os artigos 20.º e 27.º, n.º 4, ambos do RJUE), a mesma não deixa de revestir a natureza de ato secundário. Continua, por isso, a fazer sentido aplicar aos aspetos não especialmente regulados o regime geral da alteração (e substituição) de atos administrativos previsto no artigo 173.º, n.º 1, do CPA, que remete para as normas reguladoras da revogação.
Um desses aspetos prende-se com a insusceptibilidade de revogação dos atos nulos (artigo 166.º, n.º 1, alínea a), do CPA). Com efeito, a alteração (ou revogação modificatória) incide sobre uma parte dos efeitos de um ato administrativo anterior, eliminando-os e substituindo-os por outros. Nessa medida, aquele pressupõe a existência de efeitos do ato anterior sobre os quais projeta a sua eficácia específica. Inexistindo esses efeitos anteriores, o objeto da alteração é juridicamente impossível – pois não se pode substituir o que não existe –, tornando nula a própria alteração (cfr. o artigo 161.º, n.º 2, alínea c), do CPA).
Deste modo, a eventual nulidade da licença de obras de construção de 2018 é uma questão prévia relativamente à validade da sua alteração aprovada em 2021. Tal questão constitui objeto dos presentes autos e foi respondida afirmativamente pela primeira instância. Assim, o acórdão recorrido, ao recusar-se a apreciar tal nulidade na sequência da apelação interposta pelo Município de Valongo, impondo à aqui recorrida o ónus de impugnação da mesma licença num novo processo, está a desrespeitar o direito desta a uma tutela jurisdicional efetiva. Com efeito, para a ora recorrida, é diferente ter de provar num segundo processo a nulidade dos dois atos – da licença de obras aprovada pelo despacho de 12.11.2018 e da licença de obras aprovada pelo despacho de 2021 – ou, baseando-se numa decisão de mérito favorável à sua pretensão nos presentes autos, ter de provar apenas que a alteração aprovada em 2021 tem por objeto um ato nulo.

19. Para além disso, conforme resulta das Informações n.ºs ...20 e ...21, o Município de Valongo limitou-se a alterar a licença de 2018 – não procedeu à anulação administrativa nem declarou a sua nulidade –, tendo em consideração, não só o requerimento da contrainteressada, como também a circunstância de o recurso de apelação interposto da sentença que declarara a nulidade da referida licença ter efeito suspensivo. Com efeito, afirma-se expressamente no parecer jurídico transcrito na Informação n.º ...21, que fundamenta o despacho de aprovação de alterações à licença de 2018 datado de 3.03.2021:
«Não obstante ter sido proferida sentença pelo TAF de Penafiel, que declarou nula a licença titulada pelo alvará n.º ...3, de 4-6-2019, importa ter em consideração que essa decisão foi judicialmente impugnada, através do competente recurso, com efeito suspensivo, aguardando-se a prolação de acórdão do Tribunal Central Administrativo - Norte, pelo que aquele entendimento, de que a licença concedida pelo Município de Valongo é nula, não transitou em julgado.», acrescentando-se mais adiante, com referência às alterações então em análise, «que a fonte de ruído que foi considerada, ainda que numa interpretação errada, pelo Tribunal, de uma eventual sobrecarga do trânsito causado pela circulação dos veículos na Av. ..., é, agora, ainda mais mitigada do que na versão original do licenciamento do edifício da Requerente e do contrato de urbanização celebrado entre o Município e a Requerente […]» [itálicos acrescentados]

Ou seja, discordando da apreciação jurídica feita pelo TAF de Penafiel, e opondo-se à utilidade pretendida no processo pela ora recorrente, o aqui recorrido, sem reconhecer as ilegalidades apontadas àquela licença – e, portanto, também sem demonstrar que as removeu – alterou-a. E nada impede que o volte a fazer, caso uma nova decisão de primeira instância venha a anular ou declarar nula a alteração aprovada em 2021, remetendo uma vez mais a ora recorrente para o ponto de partida inicial e impondo-lhe de novo o ónus de alegação e prova das ilegalidades da licença alterada. Na verdade, o objeto da ação de impugnação de que emerge o presente recurso de revista só poderia ser ampliado à impugnação de um ato conexo como a alteração de 2021 à licença aprovada em 2018 até ao encerramento da discussão em primeira instância (cfr. o artigo 63º, n.ºs 1 e 2, do CPTA).
Se a consequência dessa impossibilidade de ampliação do objeto do processo for, mesmo depois da obtenção de uma primeira decisão favorável, a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide – como sucedeu in casu na sequência do acórdão recorrido – o impugnante vê frustrada a sua pretensão e esvaziada a sua expetativa quanto à efetividade da tutela jurisdicional da mesma. Ademais, não tem o mesmo impugnante garantia nenhuma de que no âmbito da impugnação contenciosa do novo ato, o respetivo autor não venha a aprovar uma nova alteração ou repristinar o ato objeto da primeira impugnação, ficando desse modo aquele privado de uma pronúncia de mérito, isto é, do direito de ver esclarecida jurisdicionalmente e com força de caso julgado a legalidade ou ilegalidade do conteúdo do licenciamento inicial e das sucessivas alterações.
Como é sabido, as sentenças anulatórias ou de declaração de nulidade de atos administrativos, como qualquer outra sentença, têm um conteúdo declarativo, que se traduz no reconhecimento da existência de uma situação jurídica, o qual, a partir do trânsito em julgado, produz o efeito de caso julgado material (res iudicata pro veritate habetur): «as relações jurídicas entre aqueles que ficam vinculados pela sentença [passam a reger-se] pela definição transitada em julgado[, sendo obrigatório] aplicar essa definição no caso de a questão decidida se apresentar envolvida em distinta controvérsia que venha a surgir no futuro» (v. a síntese de Mário Aroso de Almeida, “As sentenças dos tribunais administrativos” in Justiça Administrativa – Estudos em Homenagem ao Doutor Vieira de Andrade, vol. III (coord. de Suzana Tavares da Silva), Almedina, Coimbra, 2023, p. 343 e ss., pp. 357-358). Assim, aquelas sentenças, além do seu efeito imediato sobre o ato impugnado, produzem um efeito preclusivo ou conformativo: a proibição de a Administração, no reexercício do mesmo poder administrativo, reincidir nas ilegalidades cometidas e, como tal, reconhecidas e individualizadas na sentença, sob pena de nulidade do novo ato, por ofensa do caso julgado (cfr. o artigo 161.º, n.º 2, alínea i), do CPA; e Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 19.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, p. 363; v. também Mário Aroso de Almeida, “As sentenças…” cit, pp. 363-364).
Como assinala este último Autor, justifica-se extrair «as devidas consequências da evolução a que, ao longo das últimas décadas, se tem assistido, um pouco por toda a Europa, no sentido do reconhecimento da necessidade de se assegurar que a ação de impugnação de ato administrativo proporcione uma tutela jurisdicional efetiva aos particulares perante a Administração» (v. idem, ibidem, p. 368).
Deste modo, se, para o efeito, é importante assegurar que a anulação administrativa do ato impugnado na pendência do processo de impugnação não conduza à extinção da instância determinante de uma mera absolvição da instância, privando o impugnante do efeito conformador de uma sentença favorável, garantindo-lhe, para o efeito, que «obtenha o mesmo resultado que teria podido resultar de uma pronúncia jurisdicional de procedência da impugnação”, ou seja, a «definição, com autoridade de caso julgado, de que o ato [impugnado] já não existe, porque foi anulado, assim como de que o foi com fundamento em uma ou mais causas de invalidade, nas quais a Administração não pode reincidir caso proceda à sua substituição» (cfr. idem, ibidem, pp. 368-369); afigura-se igualmente necessário, do ponto de vista da garantia da tutela jurisdicional efetiva do impugnante, prevenir que, tendo este obtido uma sentença favorável em primeira instância, entretanto objeto de recurso de apelação, a posterior revogação substitutiva ou modificatória do ato impugnado – ou seja, sem reconhecimento por parte da Administração, das ilegalidades reconhecidas e individualizadas naquela decisão – não tenha como consequência automática a recusa de uma pronúncia de mérito pela instância de recurso, colocando o impugnante face ao novo ato na “casa de partida”, e desse modo frustrando a sua expetativa quanto a uma decisão que produza o efeito de caso julgado material.
Na verdade, para que a ação de impugnação de ato administrativo possa proporcionar uma tutela jurisdicional efetiva, tanto ou mais importante do que o direito a obter uma decisão anulatória ou de declaração de nulidade dos atos ilegais, é o direito, que para o impugnante resulta de uma decisão de mérito favorável, de poder exigir, em execução de sentença, que a Administração se conforme com ela, não a pondo em causa, nem às suas consequências (cfr., de novo, Mário Aroso de Almeida, “As sentenças…” cit, p. 369). Nesta perspetiva, em situações como a dos presentes autos, não há que falar em perda superveniente do interesse em agir do impugnante. O mesmo subsiste, desde logo, para evitar que, no futuro processo de impugnação do ato substitutivo ou modificativo, o respetivo destinatário tenha de repetir, novamente perante um tribunal de primeira instância, a alegação e prova das ilegalidades já reconhecidas na sentença que anulou ou declarou a nulidade do ato substituído ou modificado.


§ 4.º A inutilidade superveniente da lide

20. Como se reconhece no acórdão recorrido, citando José Alberto dos Reis, «[o]corre impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide quando, devido a factos supervenientes, verificados na pendência do processo, deixa de existir qualquer efeito útil na decisão a proferir, quando já não é possível o pedido ter acolhimento ou quando o fim visado com a ação foi atingido por outro meio - cf. [Autor cit.], Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, Coimbra 1946, pp. 368-369» (p. 24). Na mesma linha defendem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, que aquela situação se dá «quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência requerida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio.» (v. Autores cits., Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 546).
Este Supremo Tribunal tem vindo a precisar a noção de inutilidade superveniente da lide. Assim, por exemplo, no Ac. STA de 20.10.2011, P. 941/10, procedeu-se à seguinte delimitação negativa e positiva:
«A jurisprudência deste STA entende que só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica e que, por ser assim, não se pode considerar atividade inútil o prosseguimento do processo quando ele se destine a expurgar da ordem jurídica um ato ilegal e a proporcionar a tutela efetiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge. A utilidade da lide correlaciona-se, assim, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis, pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua, “com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode beneficiar o Recorrente, não o colocando, de todo o modo, numa situação vantajosa, e que, sendo a anulação de um ato um imperativo do princípio da legalidade, continua, sempre a haver utilidade no prosseguimento da lide que visa anular ato ferido de ilegalidade, ainda que esteja em causa ato de adjudicação de obra que se diz já estar concluída.” – Acórdão de 18/1/01, (rec. n.º 46.727) (Vd. neste sentido podem ver-se, entre outros, os Acórdãos de 30/9/97 (rec. 38.858), de 23/9/99 (rec. 42.048), de 19/12/00 (rec. 46.306) e de 9/1/02 (rec. 46.557).)» (itálicos acrescentados)

Assim, a inutilidade superveniente da lide pressupõe ou a impossibilidade de realizar a pretensão do autor, nomeadamente nos casos de o respetivo objeto ter desaparecido, ou a realização de tal pretensão por outra via e fora do processo. Nos processos de impugnação – como a ação de que emerge o presente recurso –, importa considerar também a utilidade de uma pronúncia de mérito relativamente à ilegalidade do ato impugnado e «a tutela efetiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge».

21. No caso vertente, já foram analisadas várias razões que justificam a utilidade da continuação do processo, na perspetiva da autora ora recorrente e da garantia de tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos, nomeadamente do direito ao repouso dos seus associados.
Em primeiro lugar, tendo a licença de obras de 2018 sido alterada já “em obra”, isto é, depois de emitido o correspondente alvará e com as obras já iniciadas, não se mostra comprovado nos autos que a eventual confirmação da nulidade daquela licença pelo tribunal recorrido não implicasse uma qualquer atuação material tendente à reconstituição da situação hipotética atual. É certo que o tribunal a quo afirma não se vislumbrarem «identificados efeitos lesivos produzidos durante o período de tempo que precedeu a substituição revogatória em causa» (cfr. supra o n.º 15). Porém, tal afirmação assenta no pressuposto errado de que a licença de obras aprovada pelo despacho de 12.11.2018 ainda não era eficaz à data da aprovação da alteração pelo despacho de 3.03.2021 2018 (cfr. ibidem).
Em segundo lugar, se é certo que a questão do ruído foi reanalisada no procedimento administrativo que antecedeu os despachos de 9.11.2020 e de 3.03.2021, respetivamente nas Informações n.ºs ...20 e ...21, como exigido na sentença de 31.12.2019, não é menos certo que tal análise, desde logo marcada pelo viés de uma discordância com esta decisão, não carreou para o processo administrativo dados suficientes que, com segurança, permitam afastar os indícios de violação das normas do Regulamento do PDM de Valongo considerados na citada sentença (cfr. supra o n.º 17). Tanto mais que esses indícios relevam, sobretudo, das características da própria obra em questão: um armazém de distribuição de material que envolve um movimento intenso de cargas e descargas e a circulação de muitos veículos pesados, incluindo em horário noturno. Consequentemente, há todo o interesse e utilidade, do ponto de vista da ora recorrente, em clarificar jurisdicionalmente a legalidade de um projeto deste tipo face ao Regulamento do PDM de Valongo, designadamente confirmando ou revogando aquele que foi o entendimento da primeira instância, de modo a vincular a atuação futura do Município de Valongo relativamente a tal projeto.
Depois, e como referido supra no n.º 18, a eventual nulidade da licença de obras de construção de 2018 é uma questão prévia e autónoma relativamente à validade da sua alteração aprovada em 2021. Acresce que uma alteração ou revogação modificatória não tem o efeito de eliminar (ou substituir) o ato primário a que respeita. Por outro lado, obrigar a aqui recorrente a discutir novamente junto de um tribunal de primeira instância a nulidade daquela licença em vista de um resultado que já obteve no presente processo, atenta contra a garantia da tutela jurisdicional efetiva. Desse ponto de vista, o que faz sentido, seja da perspetiva da conservação de uma situação vantajosa para a ora recorrente, seja à luz do próprio princípio da legalidade, é não diferir mais a clarificação da validade da licença de 2018 e decidir o recurso oportunamente interposto pelo Município de Valongo.
No mesmo sentido, e igualmente com fundamento no princípio da tutela jurisdicional efetiva, concorrem as razões invocadas supra no n.º 19: o interesse processual da aqui recorrente mantém-se quanto à decisão do presente recurso, atento o possível efeito conformador da respetiva decisão, prevenindo, assim, a necessidade de no processo de impugnação dos despacho de 9.11.2020 e de 3.03.2021 ter de repetir, novamente perante um tribunal de primeira instância, a alegação e prova das ilegalidades já identificadas e reconhecidas na sentença que declarou a nulidade do despacho de 12.11.2018. Além disso, a continuação do mesmo recurso até à sua decisão, assegurará, no caso de a mesma confirmar a decisão do TAF de Penafiel, que o Município de Valongo fica vinculado à definição, com autoridade de caso julgado, da relação jurídico-administrativa entre este e a ora recorrente no que à licença de construção de 2018 diz respeito. Tal efeito também permite prevenir que o citado Município possa, perante futuros decaimentos em impugnações de atos relativos ao mesmo projeto, obstar à definição do quadro legal aplicável, por via de sucessivas apelações com efeito suspensivo, seguidas de aprovações de alterações às licenças anuladas ou declaradas nulas por sentenças de primeira instância.
Finalmente, numa perspetiva sistémica, afigura-se disfuncional que, em alternativa à decisão definitiva de uma ação administrativa de impugnação em que foi proferida uma sentença anulatória ou de declaração de nulidade, se opte, em sede de recurso e perante a notícia de que o ato impugnado foi objeto de alteração, pela extinção da instância com fundamento em inutilidade superveniente da lide, diferindo aquela decisão definitiva para eventuais futuras impugnações em que a mesma situação poderá voltar a ocorrer. É uma solução não só objetivamente injustificada – porque o ato impugnado subsiste – e subjetivamente desvantajosa para o autor – que é remetido para iniciar um novo processo de impugnação contra o novo ato –, como, sobretudo, desfavorável para a efetividade da garantia da tutela jurisdicional, pois adia a clarificação do litígio e inutiliza a atividade processual já desenvolvida.


§ 5.º A competência do TCAN para conhecer do mérito do recurso de apelação

22. Em consequência das conclusões a que se chegou supra nos n.ºs 15, 17, 18, 19 e 21, não pode manter-se o acórdão do TCAN ora recorrido, pelo que se imporia passar ao conhecimento do mérito das questões suscitadas na apelação, designadamente dos vícios imputados pelo Município de Valongo à sentença de 31.12.2019 do TAF de Penafiel.
Verifica-se, porém, que o ora recorrido Município de Valongo invoca na motivação do recurso de apelação que interpôs diversos erros na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, tal como realizadas na decisão da primeira instância, e que no mesmo recurso é expressamente pedida uma reapreciação dessas questões.
Com efeito, pode ler-se nas conclusões das alegações do recurso de apelação apresentadas pelo aqui recorrido Município de Valongo (v. fls. 853 e ss. e a transcrição feita nas pp. 1-2 do acórdão recorrido):
«5.º Ao não admitir os meios de prova requeridos pelo R., designadamente para prova dos artºs 41º a 55º da contestação, o despacho "a quo" [– entenda-se, a sentença do TAF de Penafiel de 31.12.2019 –] pôs em crise as condições do processo para a justa composição do litígio;
6º Ao decidir como decidiu, impedindo a produção de prova requerida pelo R., o despacho "a quo" não permitiu o exercício do direito de contraditório do R., violando o princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes (cfr. artº 3º e 4º CPC);
7º O despacho "a quo" violou o direito do R. à prova dos factos alegados, em desrespeito manifesto do princípio do processo equitativo consagrado no artº 10º da Declaração Universal do Direitos do Homem e no artº 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa».

No corpo de tais alegações afirma-se o seguinte a este respeito:
«[É] manifesto que as questões jurídicas discutidas nos autos bem como o apuramento de toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa está longe de ser simples e de poder ser julgada como adquirida nos autos.
Por outro lado, no que diz respeito à matéria de facto, constata-se uma multiplicidade extensa de factos articulados pelo R. que devem ser objeto de instrução e de decisão em ordem a decidir sobre a pretensão formulada pela A.
[…]
III
O Meritíssimo Juiz "a quo" entendeu considerar desnecessária a produção da prova testemunhal requerida pelo R., entendendo como irrelevante para a boa decisão da causa a prova dos factos articulados pelo R. e sobre os quais os meios de prova indicados recaíam.
Todavia, veio, a final, julgar improcedente a ação interposta, entendendo que o R. não logrou concretizar e provar factos objetivos suscetíveis de fundamentar a legalidade do ato impugnado
Isto é, a decisão "a quo" entende, por um lado, que a prova requerida pelo R. é desnecessária para a boa apreciação da causa, e depois, com fundamento na falta de prova dos factos alegados, julga procedente a ação interposta.
[… IV]
No caso em apreço, o Juiz "a quo" considerou desnecessária para a justa composição do litígio a prova dos factos articulados pelo R.., mas depois vem julgar procedente a ação interposta com o fundamento da ausência de prova dos factos articulados pelo R. que não foram levados à decisão sobre a matéria provada.
É assim manifesto que o Juiz "a quo" não assegurou nos autos a justa composição do litígio, na medida em sonegou ao R. o seu direito a fazer prova dos factos que alegou nos autos para fundamentar a legalidade do despacho impugnado.
V
E nem se diga que a admissibilidade dos meios de prova era irrelevante para a boa decisão da causa, porquanto o R. apenas poderia lançar mão de prova documental para fazer prova dos factos que articulou.
Com efeito, a matéria articulada na contestação contém verdadeiros factos que, feita a sua prova, levaria à improcedência da ação.
E são factos cuja prova pode ser feita quer por prova documental, como através de prova testemunhal, não havendo norma legal que imponha um especial meio de prova para que o tribunal se possa pronunciar sobre eles.
VI
Com efeito, está em causa nos autos determinar se a atividade desenvolvida pela contrainteressada, no armazém licenciado, origina ruídos que afetem o direito ao sossego e ao repouso dos associados da A..
Ora esta questão do ruído prende-se com a circulação de viaturas da contra-interessada no local, que os serviços técnicos da Recorrente, realmente, ponderaram e julgaram como resolvidos, com as novas vias rodoviárias que estão previstas construir no local, no âmbito do contrato de urbanização celebrado entre o Município e a contrainteressada.
No entender dos serviços técnicos do Município, a nova solução de mobilidade e circulação automóvel no local afasta a produção de ruído da circulação de viaturas resultante da atividade da contrainteressada.
Esta factualidade foi alegada na contestação junta aos autos pela Recorrente, concretamente nos artºs 41º a 55º da contestação, para a qual requereu a correspondente produção de prova.
Ora salvo o devido respeito, entende-se que o R. tem o direito de fazer prova dos factos que articulou para confirmar a legalidade dos atos impugnados.
Ao não facultar ao R. este direito de prova, a sentença "a quo" viola de forma irremediável o direito à prova, e por via disso, o direito de acesso à justiça do R., em manifesta violação do artº 2º CPC.» (pp. 2-5).

Acresce que o ora recorrido Município de Valongo também concluiu nas mesmas alegações, nomeadamente na conclusão 12º:
«Não há qualquer contradição entre o despacho [de 12.11.2028, que deferiu o pedido de licenciamento de obras de construção formulado pela contrainteressada,] e a fundamentação técnica que o suporta [– nomeadamente a Informação nº ...59..., de 30.10.2018]».

Esta conclusão pretende sintetizar as seguintes afirmações constantes do corpo das alegações:
«XI
A sentença "a quo" julgou como ilegal o despacho impugnado nos autos, atendendo a que o projeto em causa, tal como aprovado, viola o disposto nos artºs. 51º n 2 e 15 nº 1 a) do PDM de Valongo.
Em concreto, com base no teor da Informação nº ...59..., de 30-10-2018, que fundamenta o despacho impugnado, a sentença considerou que o despacho não cumpria os requisitos de ruído previstos no artº 15º nº 1 a) do PDM de Valongo.
XII
[… A] sentença "a quo" está a interpretar erradamente o teor da Informação que suporta a fundamentação do ato impugnado.
Em primeiro lugar, a referida Informação não aponta a laboração noturna do armazém licenciado, como a causa do ruído que podia fundamentar a incompatibilidade de usos, prevista no artº 15º nº 1 a) do PDM de Valongo.
O que os serviços municipais transmitem na identificada Informação, é que o ruído proveniente da sobrecarga de trânsito, atendendo ao tipo e número de viaturas utilizadas e aos horários de funcionamos do armazém, deve ser acautelado (cfr. ponto 11 da Informação nº ...59..., de 30-10-2018, junta como doc. nº 17 da p.i.).
XIII
Em segundo lugar, no Ponto 12.1 da mesma Informação, os técnicos transmitem que o ruído do trânsito é mitigado e resolvido através da nova solução de mobilidade viária do local, acordada entre o R. e a contra- interessada no contrato de urbanização celebrado, obrigando-se esta a executar o prolongamento da Rua ... e as novas soluções viárias descritas nos artºs. 46º a 55º da contestação.
Isto é, ao contrário do decidido na sentença "a quo", a fundamentação técnica do despacho impugnado assegura que, quanto à produção do ruído, o projeto da contrainteressada cumpre os requisitos legais e regulamentares previstos nos artºs. 15º nº 1 a) e 51º nº 2 do PDM de Valongo.
E por isso mesmo, os técnicos municipais propõem naquela sua Informação o deferimento do pedido de licenciamento apresentado pela contra- interessada (cfr. ponto 19) da Informação).
Como é evidente, se o entendimento daqueles técnicos fosse aquele que foi adotado na sentença "a quo", a sua proposta seria a do indeferimento do pedido, por violação das normas legais e regulamentares aplicáveis, e não o deferimento do pedido da contrainteressada.
Isto mesmo teria sido explicado ao Meritíssimo Juiz "a quo", em audiência de julgamento, se não tivesse sido decidido intempestivamente não ouvir os técnicos municipais arrolados pelo R. como suas testemunhas.
Assim, em face da real fundamentação do despacho impugnado, é manifesto que não viola qualquer norma ou disposição regulamentar aplicável, designadamente o disposto nos artºs. 15º nº 1 a) e 51º nº 2 do PDM de Valongo. […]» (pp. 9-11).

Sucede que o esclarecimento desta matéria não pode ser feito no âmbito do recurso de revista (cfr. o artigo 150.º, n.º 4, do CPTA). Impõe-se, por conseguinte, fazer baixar os autos ao tribunal a quo para que este conheça das questões relacionadas com a admissão e apreciação dos meios de prova e com o acerto da fixação dos factos materiais realizada pela primeira instância, e decida sobre o mérito do recurso de apelação, aplicando o direito aos factos que tiver dado como assentes.


III. Decisão

Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o acórdão recorrido e ordenar que os autos baixem ao Tribunal Central Administrativo Norte para que este conheça do mérito do recurso de apelação.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 29 de fevereiro de 2024. - Pedro Manuel Pena Chancerelle de Machete - Maria do Céu Dias Rosa das Neves - Cláudio Ramos Monteiro.