Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03431/19.9BEPRT
Data do Acordão:01/19/2023
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:PLENO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30488
Nº do Documento:SAP2023011903431/19
Data de Entrada:09/09/2022
Recorrente:MUNICÍPIO DE VILA NOVA DE GAIA
Recorrido 1:N..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO PLENO DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

1. RELATÓRIO
Município de Vila Nova de Gaia, notificado do Acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal Central Administrativo Norte, em 01.07.2022 que negou provimento ao recurso que interpusera da decisão do TAF do Porto de 12-03-2022, [Acórdão recorrido], interpôs o presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência ao abrigo do disposto no artº 152º, nº 1, alínea a), do CPTA, indicando como Acórdão Fundamento, o Acórdão proferido por este Supremo Tribunal Administrativo em 10.09.2020, no âmbito do Processo nº 0910/19.1BEPRT.
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Apresenta para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1 - No caso em concreto não há dúvidas que se está perante uma garantia autónoma, à primeira solicitação, nem o tribunal de 1ª instância nem o de recurso puseram tal facto em causa, porquanto essa característica resulta de forma notória da apólice junta aos autos.
2 - O entendimento do Acórdão deste Venerando Supremo Tribunal, que nomeadamente no Acórdão fundamento, e que entendemos deve ser o adotado, é de que a garantia autónoma e à primeira solicitação é uma garantia cuja execução pode ser solicitada independentemente da exigibilidade da obrigação principal garantida e cuja satisfação não depende de prévia decisão judicial, operando-se de forma automática.
3 - E, como bem refere, este Aresto, daí resulta, como regra geral, que o garantido não tem que provar o bem fundado da sua pretensão para que o garante seja obrigado a pagar, pelo que não poderá ser inibido de executar a caução prestada com fundamento em vícios da relação jurídica de onde emerge aquela obrigação principal.
4 - Também entendimento idêntico, além de muitos outros, entre eles, os Acórdãos do TCA n° 10152/13 de 11/07/2013 e n° 927/19.6BELRA de 30/01/2022, é perfilhado no Acórdão n° 2720/14.3BEPRT do TCA Norte de 26/05/2017 que prescreve que “A função da garantia autónoma não é a de assegurar o cumprimento de um determinado contrato mas antes a de assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas nos termos da garantia, uma determinada quantia em dinheiro”.
5 - E, efetivamente, é com esse intuito que o RJUE impõe a prestação da caução para assegurar a realização das obras de urbanização e foi com esse intuito que a caução junto aos autos foi prestada.
6 - Por isso na apólice consta que “A Companhia de Seguros A..., S.A. obriga-se a pagar aquela quantia nos cinco dias úteis seguintes à primeira solicitação da CÂMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE GAIA, sem que esta tenha que justificar o pedido e sem que o primeiro possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato atrás identificado ou com o cumprimento das obrigações que a empresa G..., SOC CONS SA assume com a celebração do respectivo contrato.
7 - Também, por isso, consta de forma expressa que “A Companhia de Seguros A... SA não pode opor à CÂMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE GAIA, quaisquer exceções relativas ao contrato de seguro Caução celebrado entre esta e o tomador de seguro.
8 - Nas palavras de Menezes Cordeiro a “garantia autónoma é, no essencial, um contrato celebrado entre o interessado - o mandante - e o garante, a favor de um terceiro - o garantido ou beneficiário. (...) A interpretação do texto da garantia é essencial para determinar o seu alcance. No entanto, toda a garantia comporta alguns traços essenciais comuns que surgem, de modo pacífico, na doutrina e na jurisprudência. Na garantia autónoma, o garante obriga-se a pagar ao beneficiário uma determinada importância. Tal pagamento operará à primeira solicitação (...) isto é,: o garante pagará ao beneficiário determinada importância, assim que este lha peça.”
9 - E, como refere, Francisco Cortez, “O beneficiário exige o cumprimento da obrigação do garante sem ter o ónus de provar o fundamento da sua pretensão, nem de recorrer em caso de litígio com o garante a um processo judicial ou arbitral moroso, dispendioso e até incerto.”
10 - Deste modo, impor, como o acórdão recorrido faz, a possibilidade de a execução da caução à primeira solicitação estar dependente da vontade da Companhia de Seguros e do seu contraditório, é violar não só os termos do próprio contrato de seguro como dos artigos 217°, 236°, 238° e 405° do Código Civil, bem como, o disposto no artigo 85° e 54° do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação.
11 - Refira-se, por último, que em processo semelhante, sobre idêntica situação de facto e de direito, tramitado pelo Tribunal Comum, tribunal competente à data, a Relação do Porto no Acórdão proferido em 12/05/2015, no processo n° 2186/13.5TBVNG.P1, conclui que: “1 - No âmbito do regime jurídico da urbanização e da edificação, aprovado pelo Decreto-lei n° 555/99, de 16 de Dezembro, o processo judicial aí previsto no artigo 85°, destina-se tão só, a autorizar, ou não, o requerente, ou seja, o adquirente dos lotes, de edifícios construídos nos lote ou de frações autónomas dos mesmos a realizar as obras de urbanização omitidas ou inacabadas, por parte do promotor da operação urbanística.
2- Porque assim é, não há lugar a qualquer contraditório prévio em relação ao garante da obrigação caucionada.”
12 - Deste modo, o Acórdão recorrido por perfilhar solução ilegal e contraditória com o Acórdão fundamento e o entendimento unânime da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunais Centrais Administrativos deve ser revogado e substituído por outro que perfilhe o entendimento de que é possível perante uma caução à primeira solicitação ordenar ao garante que proceda ao depósito da quantia garantida sem que aquele possa opor quaisquer exceções, concretamente, quando na referida apólice consta que a Companhia de Seguros não pode opor ao beneficiário - Câmara de Vila Nova de Gaia - quaisquer exceções relativas ao contrato de seguro Caução celebrado entre esta e o tomador de Seguro.
13 - E, em consequência deste entendimento deve ser revogado o Acórdão recorrido e a decisão de 1ª instância de 12 de março de 2022 e ordenada à Companhia de Seguros para proceder ao depósito da quantia caucionada pelo contrato n° ...01, cuja Apólice se encontra junta aos autos.»
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A Recorrida “N…, Ldª”, notificada para o efeito, não contra-alegou.
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da não admissão do recurso para uniformização de jurisprudência, por entender que inexiste a alegada contradição quanto à mesma questão fundamental de direito, parecer este que notificado às partes, mereceu resposta por parte do recorrente no sentido já propendido nos autos.
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Cumpre apreciar e decidir em Conferência.
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FUNDAMENTAÇÃO
2.1. MATÉRIA DE FACTO
Nos termos do disposto no artº 663º, nº 6 do CPC, aplicável ex vi dos artºs 1º e 140º, nº 3 do CPTA, dão-se aqui por reproduzidos os factos dados como provados nos Acórdãos recorrido e fundamento.
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2.2. O DIREITO
De acordo com o preceituado no art. 152º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência são os seguintes:
a) que exista contradição entre um acórdão do TCA e outro acórdão anteriormente proferido pelo mesmo ou outro TCA ou pelo STA, ou entre dois acórdãos do STA;
b) que essa contradição recaia sobre a mesma questão fundamental de direito;
c) que se tenha verificado o trânsito em julgado do acórdão impugnado e do acórdão fundamento;
d) que não exista, no sentido da orientação perfilhada no acórdão impugnado, jurisprudência mais recentemente consolidada no STA.
Mantêm-se ainda os princípios que vinham da jurisprudência anterior segundo os quais (i) para cada questão relativamente à qual se pretenda ocorrer oposição deve o recorrente eleger um e só um acórdão fundamento; (ii) só é figurável a oposição em relação a decisões expressas e não a julgamentos implícitos; (iii) é pressuposto da oposição de julgados que as soluções jurídicas perfilhadas em ambos os acórdãos - recorrido e fundamento - respeitem à mesma questão fundamental de direito, devendo igualmente pressupor a mesma situação fáctica; (iv) só releva a oposição entre decisões e não entre a decisão de um e os fundamentos ou argumentos de outro.
Significa isto que, para apurar da existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento, é exigível que se trate do mesmo fundamento de direito, que não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica e que se tenha perfilhado solução oposta nos dois arestos: o que, naturalmente pressupõe a identidade de situações de facto, já que sem ela não tem sentido a discussão dos referidos pressupostos. E a oposição também deverá decorrer de decisões expressas, que não apenas implícitas.
Estes pressupostos são de verificação cumulativa, pelo que a não verificação de um deles conduz à não admissão do recurso.
Feito este enquadramento, vejamos se no caso dos autos se mostram reunidos os pressupostos supra referidos.
No Acórdão recorrido, estava em causa o recurso interposto pelo ora recorrente Município da decisão do TAF do Porto de 12.03.2022, pela qual, além do mais, foi o recorrente condenado a pagar os trabalhos realizados pela Autora, Nível Transversal, Ldª, e mencionados na sentença de 30.06.2020 do mesmo Tribunal.
E face à delimitação do objecto do recurso, decidiu-se no Acórdão recorrido duas questões prévias ao mérito da causa, a saber: (i) A redução do valor da caução, e (ii) o caso julgado formado pela sentença de 30.06.2020 e pelo despacho de 18.11.2021.
E para tanto, consignou-se o seguinte discurso fundamentador:
«(…)
1. A redução da caução
Foi proferido pelo Relator deste recurso este despacho, com data de 07.06.2022:
“Ao elaborar projecto de acórdão, dei-me conta do seguinte:
Nas suas alegações, o Município de Vila Nova de Gaia, ora Recorrente, refere que o valor da caução é 279.099€30 (cf. conclusão 24ª).
No entanto em 10.02.2022 apresentou requerimento a que anexou um despacho de 21.12.2021 da Senhora Vice-Presidente do Município, por subdelegação, a determinar a redução da caução para o valor de 27.909€93.
Existe assim, aparentemente, uma discrepância no valor apresentado agora e o valor referido nas alegações de recurso, em cerca de dez vezes menos.
Notifique, pois, o Recorrente para que esclareça qual o valor actual da caução.
(…)”
Em resposta a este despacho veio o Município Recorrente dizer.
“(…)
O Município de Vila Nova de Gaia, Réu nos autos supra referidos em que é Autor Nível Transversal, Ldª, notificado do despacho proferido pelo Exmº Sr. Juiz Desembargador Relator para esclarecer o valor atual da caução vem dizer o seguinte:
- O valor da caução é de €279.328,19 (duzentos e setenta e nove mil trezentos e vinte oito euros e dezanove cêntimos), conforme consta do original remetido ao Tribunal, através do requerimento 740573, de 09/11/2021, pelo que, desde já, se requer correção do lapso quando nas alegações se refere € 279.099,30.
- Esclareça-se ainda que a caução não foi reduzida, mantendo o seu valor, porquanto a mesma está a ser acionada na presente ação para suportar as despesas que a executora das obras e aqui A. teve com a realização das infraestruturas do loteamento que não foram efetuadas pelo promotor inicial da obra e segurada - G... Sociedade de Construção, Ldª como determinou a sentença de 30 de junho de 2020.
- Com efeito, a caução está na posse do Tribunal e os requerimentos apresentados tinham em vista informar o Tribunal que as obras pelas quais a presente caução responde já foram efetuadas pela A. e recebidas provisoriamente.
- A referência à redução da caução constante da informação técnica e consequentemente do despacho do Sr. Vice-Presidente, efetivamente não está correta porquanto os serviços assumiram a receção das obras e as suas consequências legais à N..., nos termos dos artigos 54º e 87º do D.L. 555/99, de 16 de dezembro, como numa situação normal se tratasse, não tendo a técnica em atenção a especificidade e especialidade do procedimento na presente situação.
(…)”
Vejamos.
É irrelevante o que os serviços tenham assumido relativamente à caução e ao seu valor assim como a existência de qualquer incorrecção ou erro nos pressupostos de facto ou de direito da redução da caução.
Isto porque tal redução foi feita através de acto administrativo o despacho de 21.12.2021 da Senhora Vice-Presidente do Município, por subdelegação.
Acto este que, tanto quanto resulta dos autos e da própria informação do Município, não foi revogado ou anulado, pelo que se mantém na ordem jurídica.
E que foi proferido depois da sentença de 30.06.2020 e do despacho de 18.11.2021, ambos do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
O caso julgado, melhor a autoridade do caso julgado, a impor-se, apenas abrangeria a situação dos autos se esta se tivesse mantido inalterada do ponto de vista dos factos, o que não sucedeu.
Quando foram proferidos quer a sentença quer o despacho acabados de referir a caução era de é e 279.328€19 (duzentos e setenta e nove mil trezentos e vinte oito euros e dezanove cêntimos), mesmo admitindo a rectificação do alegado lapso invocado pelo Município Recorrente.
Mas quando foi proferida a decisão recorrida, em 12.03.2022, já tinha sido reduzida a caução, por acto de 21.12.2021, do próprio Município, beneficiário da caução, para 27.909€93 (vinte e sente mil novecentos e nove euros e noventa e três cêntimos). Acto este que tanto quanto resulta dos autos estava em vigor na ordem jurídica quando foi proferida a decisão recorrida.
Não existia, portanto, à data, decisão a impor-se com autoridade de caso julgado por referência ao valor original da caução, ao contrário do que pretende o Município Recorrente.
Para além de já não existir caso julgado a impor-se à decisão recorrida, por alteração posterior dos respectivos pressupostos de facto, esta mostra-se acertada, embora por diverso enquadramento jurídico, pelo menos na parte em que a caução que se pretende impor à Companhia de Seguros A..., S.A. excede o valor de 27.909€93 (vinte e sente mil novecentos e nove euros e noventa e três cêntimos). Nessa parte excedente verifica-se, como decidido, a “inexistência de contrato de seguro-caução”, desde logo porque o objecto do contrato foi unilateralmente reduzido próprio Município, beneficiário da caução.
O que, logo por aqui, ditaria a improcedência, ao menos parcial, do recurso.
Em todo o caso, impõe-se a improcedência total do recurso pelo fundamento que se passa a analisar.
2. O caso julgado formado pela sentença de 30.06.2020 e pelo despacho de 18.11.2021.
O Município Recorrente pretende impor a execução da caução, pelo seu valor inicial, à Companhia de Seguros A..., invocando o caso julgado (a autoridade do caso julgado) formado com a sentença de 30.06.2020 e pelo despacho de 18.11.2021.
Sucede que nenhuma das decisões se pode impor a esta Companhia de Seguros pela simples e evidente razão de que até serem proferidas tais decisões a Companhia de Seguros não interveio como parte no processo.
E devia ter intervindo dado que a parte das decisões que lhe diz respeito impõe-lhe uma obrigação de fazer:
A obrigação de colocar à ordem do Tribunal a caução (alínea C) do dispositivo da sentença) e, em execução desta decisão, converter o valor da caução Documento Único de Cobrança.
Pelo que, claramente, era sujeito passivo na relação jurídica controvertida, e, portanto, parte legítima do lado passivo – n.º 1, do artigo 10º do Código de Processo Civil.
Veja-se a caução como título executivo ou não, certo é que à Companhia de Seguros deveria ter sido assegurado o princípio básico do contraditório, permitindo-lhe invocar o que tivesse por conveniente para se opor à execução da caução – n.ºs 1 e 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Por iniciativa do próprio Município, nos termos do disposto no n.º 10º do artigo 10º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:
“Sem prejuízo da aplicação subsidiária, quando tal se justifique, do disposto na lei processual civil em matéria de intervenção de terceiros, quando a satisfação de uma ou mais pretensões deduzidas contra uma entidade pública exija a colaboração de outra ou outras entidades, cabe à entidade demandada promover a respectiva intervenção no processo”.
E não se diga que não são oponíveis à execução da caução, no caso uma caução à primeira solicitação, nomeadamente, a resolução do contrato de seguro ou o não pagamento do prémio pelo tomador de seguro.
Essas são questões que se prendem com o mérito da acção na parte em que é dirigida contra a seguradora, e da oposição por parte desta, ou, se quisermos, de legitimidade substantiva, e não de legitimidade processual, sendo que a resolução da questão substantiva pressupõe já estar resolvida a questão adjectiva.
Inequivocamente, tendo sido deduzida uma pretensão contra a Companhia de Seguros A... esta é parte interessada na relação material controvertida e não “terceiro indiferente”. .
Como se diz na decisão recorrida, não está em causa um incidente ou um meio de defesa do Réu, o Município, nos termos e para os efeitos do artigo 91º do Código de Processo Civil.
Mas, ao contrário do decidido, não é uma questão alheia ao objecto do processo (aqui é pedida uma prestação por parte da Seguradora) nem é uma questão alheia ao próprio Município.
Por outro lado, a circunstância de ser matéria alheia à competência dos Tribunais Administrativos não impedia a intervenção no processo da Seguradora, por a competência e a legitimidade serem questões distintas e, no caso, separáveis, sendo que o conhecimento do objecto do presente processo poderia ser sobrestado até que o tribunal competente se pronunciasse sobre a matéria alheia à competência dos tribunais administrativos, a existência e validade da caução, ou ser conhecida dessa matéria para efeitos restritos ao presente processo – nºs 1 e 3, do artigo 15º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Pelo que não é oponível à Seguradora nem a sentença nem o despacho em que o Município Recorrente funda o presente recurso, por não se lhe imporem com a força de caso julgado.
Não deixa de ser curioso, de resto, que o Município Recorrente pretenda fazer-se valer de uma sentença que julgou totalmente procedente a acção que foi dirigida contra si e do despacho que deu execução a essa sentença.
Naturalmente por serem desfavoráveis a terceiro, neste caso a Companhia de Seguros A..., a quem não foi dada a oportunidade de assegurar a defesa dos seus interesses e o contraditório no processo.
Defesa que obrigatoriamente deveria ter sido assegurada por advogado – nº 1 do artigo 11º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
3. Restantes questões suscitadas.
Improcedendo o recurso logo no seu fundamento essencial, o da existência de caso julgado pretensamente violado pela decisão recorrida – que não se verifica -, e não se encontrando no processo a parte a quem caberia exercer o contraditório relativamente às demais questões suscitadas, a existência, validade e suficiência da caução, fica prejudicado o respectivo conhecimento.
Isto porque independentemente da existência, validade e suficiência da caução, sempre seria ineficaz qualquer decisão que impusesse a respectiva execução à Seguradora por esta não figurar como parte nem na acção nem no recurso.
Pelo que sempre se imporia julgar improcedente o recurso, se não pela inexistência da caução, como foi decidido, pela ineficácia de qualquer decisão no processo sobre a execução da mesma, em relação à Seguradora, como acima se expôs»
Resulta do exposto que o acórdão recorrido não se pronunciou sobre o mérito da acção administrativa, mas apenas sobre a questão da existência de caso julgado alegadamente violado pela decisão de 1ª instância e sobre a questão referente ao valor da caução prestada.
Daí que, precisamente por entender que não se encontrava no processo a parte a quem caberia exercer o contraditório [seguradora] relativamente às demais questões suscitadas [existência, validade e suficiência da caução], tenha julgado prejudicado o conhecimento das mesmas.
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Já no acórdão fundamento – Ac. deste STA proferido em 10.09.2020 – a questão decidida foi outra bem diferente, decidida em sede de um processo cautelar, no que respeita ao requisito do fumus boni iuris, em que se peticiona a abstenção de execução de uma garantia bancária prestada no âmbito de um contrato de prestação de serviços de operação e manutenção das estações de tratamento de águas residuais do Município do Porto.
Com efeito, ali se consignou:
«7. A questão que se discute neste recurso (...) Mais concretamente, a questão de direito em discussão é a de saber se é provável que a Recorrente venha a ser inibida, na ação principal, de acionar a garantia bancária - autónoma e à primeira solicitação - que a Recorrida prestou no âmbito da execução do contrato de prestação de serviços de operação e manutenção das estações de tratamento de águas residuais domésticas do Município do Porto (Etar ... e Etar ...).
(…)
«A questão que se coloca está em saber se os autos revelam que o hipotético acionamento, por banda da recorrida, da garantia em apreço é suscetível de revelar a violação do princípio da boa-fé ou abuso de direito, em grau de intensidade tal que justifique o deferimento da pretensão cautelar formulada nos autos, tendo presente que a garantia cujo acionamento a recorrente pretende obstar se reveste da característica supra referida – à primeira solicitação – pelo que importa dissecar os factos, alegados pela Recorrente que esta entende relevantes para clarificar – nas palavras da Recorrente – os demais factos ponderados na decisão».
8. Com efeito, não é controvertido nos autos que a garantia prestada no âmbito da execução do referido contrato é uma garantia autónoma e à primeira solicitação [on first demand], ou seja, uma garantia cuja execução pode ser solicitada independentemente da exigibilidade da obrigação principal garantida, e cuja satisfação não depende também de prévia decisão judicial, operando-se de forma automática.
Daí resulta, como regra geral, que o garantido não tem que provar o bem fundado da sua pretensão para que o garante seja obrigado a pagar, pelo que não poderá ser inibido de executar a caução prestada com fundamento em vícios da relação jurídica de onde emerge aquela obrigação principal. Apenas os vícios próprios da relação de garantia – que se estabelece entre cada uma das partes da relação jurídica principal, separadamente, e a entidade financeira garante - relevam para esse efeito.
Nessa perspetiva, a ora Recorrente não poderá ser inibida de acionar a garantia prestada pela Recorrida no âmbito do referido contrato de prestação de serviços, ainda que os incumprimentos legais ou contratuais que imputa a esta última, nos termos do artigo 296.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), não se tenham realmente verificado, o que não cabe neste âmbito aferir. Nessa perspetiva, portanto, a providência requerida nos autos não pode ser concedida.
9. Não obstante o seu carácter incondicional, a doutrina e a jurisprudência, tanto cível como administrativa, têm reconhecido que a segurança concedida ao credor por uma garantia à primeira solicitação não é absoluta, e que a sua execução pode ser inibida em casos de fraude manifesta ou abuso evidente de direito.
É neste sentido que o TCAN, invocando abundantemente essa doutrina e essa jurisprudência, considera que, «quer quando se utilize uma ação cautelar com o fito de paralisar os efeitos da garantia prestada, quer no âmbito da ação principal que se venha a apresentar em juízo, deve o devedor da obrigação arguir razões de direito que consubstanciem uma violação manifesta, flagrante do princípio da boa fé ou um abuso de direito por parte do beneficiário da garantia que resulte evidente. E deverá fazer ainda acompanhar as suas alegações de prova imediata, pronta, irrefutável ou inequívoca (...)».
Este entendimento, que não nos merece qualquer reparo, também não é verdadeiramente posto em crise pela Recorrente, que embora enfatize na sua argumentação o carácter automático da garantia à primeira solicitação, procura essencialmente demonstrar que, no caso dos autos, a execução da garantia não é abusiva, na medida em que a mesma se fundamenta nos incumprimentos contratuais que deram causa às sanções pecuniárias aplicadas, e não na recusa ou falta de reforço da garantia que, entretanto, havia sido solicitada à Recorrida.
Daí que questão jurídica controvertida nos autos seja, na verdade, mais simples do que parece à primeira vista, pois a verificação do fumus boni juris depende essencialmente da qualificação jurídica dos factos que as instâncias deram como assentes, em especial da questão de saber se deles se pode retirar esse carácter abusivo de uma eventual execução da garantia. Na sentença do TAF do Porto entendeu-se que «apesar das vicissitudes e negociações a que se refere a Requerente, afigura-se-nos que a Requerida pretende executar a garantia num contexto de incumprimento contratual, não sendo manifesto nem ostensivo que o mesmo não tenha ocorrido»; no Acórdão do TCAN, contrariamente, entendeu-se que «se se afigura perfeitamente legítimo, em abstracto o recurso à caução em caso de incumprimento contratual, o mesmo não pode ser usado para exigir um reforço de garantia (...) afigurando-se a mesma [exigência], na altura e pela forma como foi feita, como manifestamente abusiva por parte da Recorrida [ora Recorrente]».
10. O acórdão recorrido assenta no pressuposto de que o eventual acionamento da garantia terá como pressuposto necessário a recusa da Recorrida em proceder ao reforço da mesma, o que, contudo, está longe de estar demonstrado nos autos.
É certo que, no dia 5 de abril de 2019, a Recorrente comunicou à Recorrida que, findo o prazo para a apresentação do reforço da garantia, sem que o mesmo tenha sido prestado, «executará as garantias em causa», mas essa afirmação apenas revela o motivo que a levaria a executar a garantia naquela data – explicitando assim a motivação dessa decisão, nomeadamente quanto à sua oportunidade – mas não o seu fundamento jurídico.
Como se afirmou no Acórdão Preliminar do presente recurso, «a ideia de que o acionamento da garantia terá por causa a recusa de a reforçar – ou que, à recusa de um reforço, se seguirá um desforço – é algo que não parece fluir da factualidade assente, ou sequer da normalidade das coisas. Pois o normal seria encarar a solicitação do reforço da garantia como uma tentativa de evitar o seu acionamento – derivando esta cobrança da caução, por sua vez, do incumprimento contratual invocado pelo credor».
A verdade é que, mal ou bem, o que não se discute, nem na presente providência cautelar, nem na respetiva ação principal, a Recorrente vem invocando sucessivos incumprimentos contratuais, e aplicando as correspondentes penalidades, desde, pelo menos, o mês de agosto de 2018, o que constitui fundamento bastante para a execução da garantia, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 296.º do CCP.
11. Não se pode partir do princípio que uma eventual execução da garantia assentará necessariamente na recusa de proceder ao seu reforço, porque essa intenção ainda não foi efetivamente concretizada, e a presente providência é cautelar de uma ação de condenação à abstenção de um comportamento, e não de impugnação de um ato já praticado, ou de responsabilidade por um facto já consumado.
A Requerente, ora recorrida, explicitou bem no R.I. que pretende que a ... seja intimada « a abster-se de executar a garantia bancária a que se alude, prestada em 24 de maio de 2016 e prorrogada em 29 de março de 2019», e não que ela seja intimada a abster-se de executar aquela garantia – especificamente - com fundamento na recusa do seu reforço.
Ou seja, mesmo admitindo que aquela recusa não é fundamento válido para executar a garantia, e que a sua invocação exclusiva configuraria uma instrumentalização abusiva da mesma, o TAF do Porto não poderia ter intimado a Recorrente a abster-se de a executar com qualquer outro fundamento legal, tanto mais que no caso dos autos esses fundamentos existem, sejam ou não definitivamente procedentes as razões de facto e de direito em que se baseiam os incumprimentos verificados e sancionados através da aplicação de multas contratuais. Incumprimentos que, repita-se, não cabe, nem no âmbito desta providência, nem na respetiva ação principal, julgar.
Foi, aliás, isso mesmo que decidiu o TAF do Porto – e bem – quando concluiu que «apesar das vicissitudes e negociações a que se refere a Requerente, afigura-se-nos que a Requerida pretende executar a garantia num contexto de incumprimento contratual, não sendo manifesto nem ostensivo que o mesmo não tenha ocorrido».
Em resumo, e socorrendo-nos da doutrina que dimana do próprio acórdão recorrido, não foi feita nos autos «prova imediata, pronta, irrefutável ou inequívoca» de que uma eventual execução da garantia constituiria uma «violação manifesta, flagrante do princípio da boa fé ou um abuso de direito por parte» da Requerida, ora Recorrente, pelo que não é provável que a pretensão formulada ou a formular na ação principal venha a ser julgada procedente.
Termos em que se conclui que, não se verifica o fumus boni juris exigido para que a providência requerida possa ser concedida, devendo, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido e mantida a decisão tomada em primeira instância».
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Temos, pois, que os acórdãos recorrido e fundamento, se fundam em quadros factuais e jurídico/normativos diferentes, desde logo, o acórdão fundamento no âmbito de um processo cautelar, que apenas decide de forma cautelar a questão em causa e por referência ao requisito do fumus boni iuris, e o acórdão recorrido que decidindo de forma definitiva, apenas o fez relativamente a questão e excepção que não decidindo do mérito da acção principal, julgou inclusive prejudicado o conhecimento das questões referentes ao mesmo, não se tendo, por isso, pronunciado sobre a mesma questão de direito, pelo que os pretensos juízos em oposição ou contraditórios não têm subjacente um diverso entendimento ou interpretação do mesmo quadro normativo, resultando, assim, impossível extrair dos dois arestos em confronto e relativamente à matéria objecto de discussão duas proposições jurídicas que se articulem em recíproca oposição lógica.
E assim sendo, impõe-se concluir pela não verificação do pressuposto da alínea a), do nº 1, do artº 152º do CPTA, motivo pelo qual este recurso de uniformização de jurisprudência não deve ser admitido.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal em não admitir o recurso.
Custas pelo recorrente.
DN sem cumprimento do disposto no nº 4 «in fine», do artº 152º do CPTA.

Lisboa, 19 de Janeiro de 2023 - Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Carlos Luís Medeiros de Carvalho - José Augusto Araújo Veloso – José Francisco Fonseca da Paz - Ana Paula Soares Leite Martins Portela - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha - Cláudio Ramos Monteiro.