Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0121/16.8BEMDL
Data do Acordão:05/20/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NEVES LEITÃO
Descritores:IMPOSTO DE SELO
USUCAPIÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ISENÇÃO
Sumário:I - Ao considerar como transmissões gratuitas, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, as que tenham por objecto a aquisição por usucapião, o legislador não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar a sua natureza, visando apenas alargar a base de incidência, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais (art.1º nº3 al.a) CISelo)
II - É irrelevante o momento da aquisição do direito de propriedade para efeito do nascimento da obrigação tributária, pois esta constitui-se com a transmissão gratuita operada por via da escritura de justificação notarial (art. 5º al.r) CISelo).
III - Ao isentar de imposto de selo o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da Tabela Geral de que são beneficiários, uma mera interpretação declarativa da norma constante do art.6º al.e) CISelo permite incluir a usucapião no âmbito das transmissões gratuitas para efeitos da isenção.
Nº Convencional:JSTA000P25900
Nº do Documento:SA2202005200121/16
Data de Entrada:03/22/2019
Recorrente:A..........................
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1.RELATÓRIO
1.1. A……….. por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de B……….. interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela em 17 maio 2018 que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra liquidações de Imposto do Selo (IS) no valor global de € 16.072,64

1.2.O recorrente apresentou alegações que sintetizou com a formulação das seguintes conclusões:
I. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, a decisão recorrida encontra-se errada, até porque ultrapassada por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, já por si em recurso por oposição de Acórdãos, datado de 02.05.2012, no Processo n.º 0746/11, em foi Relatora Fernanda Maçãs, publicado em: www.dgsi.
II. É que, reporta-se a liquidação de Imposto de Selo (IS) / Verba 1.2 TG à escritura pública de justificação notarial de aquisição por usucapião de vários prédios (urbanos e rústicos) através de escritura celebrada em 29.04.2015.
III. Sucede, contudo, que, conforme escrituralmente declarado:
a. as Verbas n.ºs a), b), c), d) e q) foram adquiridas pelos impugnantes A…….. e sua esposa B…….., por transmissão proveniente de C……….. e D………., ainda que a título de usucapião, por força da outorgada escritura de justificação e;
b. as Verbas n.ºs g), h), i), j), k) e l) foram adquiridas pelos impugnantes A……… e pela sua esposa B………, por transmissão proveniente de E……… e F………. , ainda que a título de usucapião, por força da outorgada escritura de justificação.
IV. Ora, apesar de constituir uma forma de aquisição originária - cfr. art.ºs

1287.º e ss. do CCivil -, a usucapião é, para efeitos fiscais, considerada como uma transmissão gratuita de bens imóveis, que ocorre no momento em que se
torna definitivo o documento que titula essa aquisição ou transmissão: a data em que transitar em julgado a acção de justificação judicial ou for celebrada a escritura de justificação notarial – cfr. alínea r) do art.º 5.º do CISelo.
V. Por sua vez, conforme documentalmente provado:
a. os aludidos C……… e D………. são pais do impugnante A……….. e;
b. os aludidos E………. e F………. são pais da impugnante B………...
VI. Assim, enquadrando-se a tributação de tais transmissões no âmbito da Verba 1.2 da Tabela Geral do Imposto de Selo - aquisição gratuita de bens, incluindo por usucapião, a acrescer, sendo caso disso, à da verba 1.1 sobre o valor –;
VII. Estabelece o art.º 6.º, alínea e) do CISelo que “Estão isentos de imposto do selo, quando este constitua seu encargo: (...) e) O cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários.”. Ora;
VIII. Sendo a lei clara quanto ao seu significado e inclusão – cfr. art.º 9.º n.º 2 do CCivil3 (3 Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.) – e presumindo-se que o legislador se soube expressar correctamente – cfr. art.º 9.º n.º 3 do CCivil4 (4Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados) encontram-se os impugnantes abrangidos por tal isenção.
IX. Mas ainda que assim não fosse, independentemente da discussão sobre a originariedade da transmissão por usucapião, acresce que parte substancial dos negócios decorrentes da transmissão originária ocorreram de forma gratuita, designadamente por doação.
X. Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal Administrativo, em recurso por oposição de Acórdãos, no aludido Acórdão datado de 02.05.2012, no Processo n.º 0746/11, no qual sumaria que:

I - Quando o legislador veio, no art. 1º, nº 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza, visando apenas alargar a base de incidência, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais.
II - É, portanto, irrelevante o momento da aquisição do direito de propriedade para efeitos do nascimento da obrigação tributária, pois esta se constitui com a transmissão gratuita operada por via da escritura de justificação notarial [al. r) do art. 5º do CIS], incluindo o imposto sobre o acto de aquisição por usucapião.
III - O artº 6º, alínea e), do CIS, ao isentar de imposto de selo o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, remetendo para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários, significa que por mera interpretação declarativa se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da referida isenção.
IV - Deve considerar-se contrário ao princípio da confiança e da certeza e segurança jurídica, enquanto sub-princípios do princípio do Estado de Direito, que o legislador possa utilizar, sobretudo ao nível de normas de isenção fiscal e no âmbito do mesmo imposto, os mesmos conceitos com significados opostos, para daí extrair encargos económicos sobre os contribuintes de forma pouco clara e transparente.
XI. Sendo, consequentemente, a liquidação operada ilegal, o que deverá determinar a respectiva anulação, nos termos do art.º 68.º n.º 1 do CPPT, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que declare a procedência da presente impugnação.
Assim decidindo-se, far-se-á JUSTIÇA !!!

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4.O Ministério Público emitiu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso (processo electrónico p.233)

1.5. Após os vistos dos juízes conselheiros adjuntos cumpre apreciar e decidir em conferência.

2.FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DE FACTO
A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:
1.Em 29/4/2015 o Impugnante e esposa, B…….., procederam, através de escritura pública, à justificação notarial de aquisição por usucapião de vários prédios urbanos e rústicos sitos na freguesia de ……. e ……. – Doc. 4 da PI;
2. Declararam, na justificação notarial, que os respectivos prédios foram adquiridos por contratos verbais de doação dos respectivos ascendentes que ocorreram em 1983, 1985 e 1990 – Docs 1 e 4 da PI;
3. Mais declararam que “a partir dos contratos, operou-se tradição material dos bens, e desde essas datas os primeiros outorgantes (Impugnante e esposa) vêm exercendo em nome próprio uma posse pacífica, contínua e pública, sem interrupção e ostensivamente com conhecimento de toda a gente (…)” – doc 4, que aqui se reproduz;
4. Em 22/7/2015 o Impugnante e esposa apresentaram a respectiva declaração
modelo 1 de imposto de selo – Fls. 36 a 37 e 71 a 72 do PA;
5. Em 29/10/2015 o Impugnante e esposa pagaram as liquidações de imposto de selo entretanto notificadas – Docs 2 e 3 da PI

2.2 DE DIREITO
2.2.1. Questão decidenda: interpretação da norma constante do art.6º al.e) Código do Imposto de Selo (CIS) por forma a determinar se abrange as aquisições por usucapião

2.2.2. Apreciação jurídica
2.2.2.1. O Imposto do Selo, (IS), contrariamente à antiga Sisa e ao actual IMT, não incide sobre a aquisição do direito de propriedade e de figuras parcelares desse direito, antes sobre factos tipificados que revelam a circulação de riqueza (art.1º nº1 CIS)

O IS incide sobre a transmissão gratuita do direito de propriedade de bens imóveis, resultante da aquisição por usucapião, sendo liquidado à taxa de 10% sobre o valor dos bens transmitidos (arts.2º nº2 al.b) e 3º nº3 al.a) CIS; Tabela Geral do Imposto do Selo verba1.2
A usucapião é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, derivada da posse desses direitos por certo lapso de tempo, que retroage os seus efeitos ao início da posse (arts.1287º,1316º e 1317º al.c) Código Civil)
No domínio fiscal a aquisição é equiparada por ficção legal às transmissões gratuitas, considerando-se a obrigação tributária constituída na data do trânsito em julgado da acção de justificação judicial, da celebração da escritura de justificação judicial ou no momento em que se tornar definitiva a decisão proferida em processo de justificação nos termos do Código de Registo Predial (art. 5º al.r) CIS)

2.2.2.2. A questão decidenda foi analisada pela jurisprudência do STA nos acórdãos Pleno SCT 2.05.2012 processo 746/11; e nos acórdãos SCT 13.10.2010 processo 431/10; 20.02.2013 processo 1112/12
A sólida e convincente fundamentação dos arestos citados, a especial autoridade da formação que proferiu o acórdão do Pleno SCT e o objectivo de uma interpretação e aplicação uniformes do direito (art.8º nº3 Código Civil) justificam a adesão à solução da questão neles expressa
Neste contexto procede-se à transcrição do sumário do acórdão STA Pleno SCT 2.05.2012 processo 746/11:
I - Quando o legislador veio, no art. 1º, nº 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza, visando apenas alargar a base de incidência, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais
II - É, portanto, irrelevante o momento da aquisição do direito de propriedade para efeitos do nascimento da obrigação tributária, pois esta se constitui com a transmissão gratuita operada por via da escritura de justificação notarial [al. r) do art. 5º do CIS], incluindo o imposto sobre o acto de aquisição por usucapião. III - O artº 6º, alínea e), do CIS, ao isentar de imposto de selo o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, remetendo para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários, significa que por mera interpretação declarativa se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da referida isenção.
IV - Deve considerar-se contrário ao princípio da confiança e da certeza e segurança jurídica, enquanto sub-princípios do princípio do Estado de Direito, que o legislador possa utilizar, sobretudo ao nível de normas de isenção fiscal e no âmbito do mesmo imposto, os mesmos conceitos com significados opostos, para daí extrair encargos económicos sobre os contribuintes de forma pouco clara e transparente.

Para melhor compreensão da doutrina vertida no sumário interessa a transcrição do seguinte excerto da fundamentação:
(…) repare-se que o legislador no art. 2º do CIS já regula a incidência subjectiva do imposto de selo, referindo expressamente que “nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários.” O que significa que quando se chega ao art. 6º já não há necessidade de voltar a expressão. Primeiro porque o objectivo do preceito está centrado na enumeração das pessoas que estão isentas de imposto e não nas operações, o que foi tratado anteriormente. Em segundo lugar, realce-se que o preceito diz expressamente que são isentos “o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários”. Isto é, o preceito ao remeter expressamente para as “transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral” dispensa a necessidade de repetir a expressão usucapião porque o nº 3 do art. 2º do CIS, para onde a alínea e) do art. 6º do CIS remete, já contém, precisamente, a noção de “transmissões gratuitas” para efeitos daquela tabela onde se inclui a usucapião. O que significa que, por mera interpretação declarativa, se chega ao resultado de incluir a usucapião nas transmissões gratuitas” para efeitos da isenção da alínea e) do art. 6º do CIS.
Finalmente, a prevalecer a tese do Acórdão fundamento, ficaria também por responder qual a razão de ser de dar tratamento diferente discriminando a usucapião das demais aquisições gratuitas, quando o objectivo da isenção prevista na alínea e) do art. 6º do CIS é o de favorecer precisamente o cônjuge ou equiparado e os descendentes e ascendentes. Não vemos razão para adoptar nesta sede uma noção restrita de “transmissão gratuita”, distinta do sentido amplo adoptado nos demais preceitos. Se o objectivo da lei é proteger as pessoas indicadas na alínea e) do art. 6º do CIS, então o mais natural é que valha a aqui a noção ampla de “transmissão gratuita” adoptado pelo legislador nos demais preceitos.

Neste contexto não pode manter-se a decisão constante da sentença, ancorada no único fundamento de que a escritura de justificação notarial celebrada pelo impugnante e cônjuge, destinada à fixação do trato sucessivo e a suprir a falta de título jurídico para o direito de propriedade sobre o imóvel, constitui um facto tributário autónomo, distinto da aquisição por usucapião, sujeito à incidência de IS.
Sublinha-se que nenhum dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo invocados pela sentença recorrida em abono da sua tese apreciou a questão da interpretação da norma de isenção constante do art.6º al..e) CIS, por forma a determinar se deve incluir-se a usucapião no âmbito da transmissão gratuita.


3- DECISÃO
Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida e anular a liquidação impugnada de Imposto do Selo

Custas pela Fazenda Pública, sem taxa de justiça no Supremo Tribunal Administrativo por não ter apresentado contra-alegações (art..527º nºs 1/2 CPC; art. 7º nº2 Regulamento das Custas Processuais)

Lisboa, 20 de maio de 2020. – José Manuel de Carvalho Neves Leitão (relator) - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.