Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:050/20.0BCLSB
Data do Acordão:09/09/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CRISTINA SANTOS
Descritores:ILÍCITO DISCIPLINAR
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO AO BOM NOME
Sumário:I - O complexo normativo dos regulamentos disciplinares das federações desportivas dotadas de utilidade pública desportiva tem por escopo (i) garantir o cumprimento das regras de conduta especificamente dirigidas ao universo de agentes desportivos definido no artº 3º nº 1 Lei 112/99, 03.08 (RDFD), (ii) em ordem a preservar a observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes, conforme disposto no artº 3º nº 1 Lei 5/2007, 16.01 (LBAFD) na qualidade de bens jurídicos protegidos, (iii) mediante o sancionamento de manifestações de perversão do fenómeno desportivo, conforme disposto no artº 1º nºs. 1 e 2 Lei 112/99, 03.08 (RDFD) e artº 52º nºs 1 e 2 DL 248-B/2008, 31.12 (RJFD).
II - O artº 112º nº 1 RDCLPFP ao fazer referência expressa a “escritos injuriosos ou difamatórios para com árbitros” significa que tem como âmbito de protecção o bom nome e reputação de exercício profissional dos árbitros no quadro funcional dos princípios da actividade desportiva, a saber, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes, enunciados no artº 3º nº 1 da Lei de Bases (Lei 5/2007).
III - O litígio envolvendo a aplicação do artº 112º nº 1 RDCLPFP convoca a figura do conflito entre normas que consagram direitos de igual dignidade constitucional, inscritos no catálogo dos direitos liberdades e garantias do Título II, Capítulo I da Constituição da República, a saber, (i) a norma do catálogo constitucional que protege o direito ao bom nome e reputação (artº 26º nº 1 CRP), direito fundamental que, por sua vez, é protegido pela norma regulamentar restritiva inscrita no artº 112º nº 1 e 4 RDCLPFP e (ii) a norma constitucional que protege e garante o direito à liberdade de expressão e informação (artº 37º nº 1 CRP), objecto de restrição pela norma proibitiva de ofensa à honra de agentes desportivos (artº 112º nºs 1 e 4 RDCLPFP).
IV - No quadro objectivo, restrito à circunstância concreta ocorrida, os erros técnicos assinalados ou omitidos constituem incompetência na aplicação da lex artis, constituem um minus no padrão profissional da equipa de arbitragem e, nesta vertente objectiva, constituem também o desvirtuamento da lex artis, das regras próprias de um campeonato de futebol oficial.
V - Questão diferente é o clube perdedor extravasar do plano objectivo dos erros técnicos implicados no resultado desfavorável e passar para o plano subjectivo, afirmando que os erros técnicos nas faltas assinaladas e omitidas foram levados à prática pela equipa de arbitragem por esta prever e querer o resultado desfavorável que veio a verificar-se, ou seja, imputando aos árbitros um agir claramente pré-ordenado e ilícito à luz do princípio da verdade desportiva, dirigido ao cometimento dos erros técnicos assinalados tendo por finalidade o resultado verificado.
VI - A divulgação por escrito de erros de apreciação técnica por parte da equipa de arbitragem traduz a expressão de um juízo de apreciação técnica diverso do expresso na decisão dos árbitros, juízo que, à luz do ordenamento jurídico, não tem nem subjectiva nem objectivamente, aptidão ofensiva da honra e consideração devida aos árbitros nem viola os princípios da actividade desportiva (artº 3º nº 1, Lei 5/2007 de 16.01).
Nº Convencional:JSTA00071244
Nº do Documento:SA120210909050/20
Data de Entrada:12/16/2020
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORTING CLUBE DE BRAGA – FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:Acórdão Do Tribunal Central Administrativo Sul
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:Ilícito Disciplinar em Matéria Desportiva
Legislação Nacional:Artº 112º nº 1 DO RDCLPFP
Aditamento:
Texto Integral: A Federação Portuguesa de Futebol (FPF), com os sinais nos autos, inconformada com o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul que negou provimento ao recurso por si interposto e manteve a decisão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) anulatória da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da ora Recorrente FPF que aplicou a pena de multa de €9.560,00 à sociedade Sporting Clube de Braga – Futebol SAD, dele vem recorrer, concluindo como segue.

1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 1 de Outubro de 2020, que confirmou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitrai do Desporto e negou provimento ao recurso apresentado pela Federação Portuguesa de Futebol. Esta instância, por seu turno, havia decidido revogar a decisão de aplicação à ora Recorrida de multa por força do artigo 112º do RD da LPFP.
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelas declarações consideradas ofensivas da honra e reputação de agentes desportivos e de órgãos da estrutura desportiva e que podem com isso afectar a própria competição, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, tais declarações têm eco nos episódios de violência em recintos desportivos que têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno.
3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA - responsabilização dos clubes pelas declarações que difundem ou fazem difundir nas suas redes sociais e nos meios de comunicação social - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito.
4. Assume especial relevância social é a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol - seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios clubes e/ ou dirigentes dos clubes, através dos seus meios de comunicação oficiais ou outros.
5. O bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto. Ao contrário daquilo que entende o TCA, não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspectiva do direito penal.
6. A questão em apreço é susceptível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório.
7. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112º do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspectiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.
8. A Recorrida sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma actuação do árbitro a que não presidiram critérios de isenção, objectividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
9. As expressões sub judice não se limitam a propalar críticas objectivas à actuação dos elementos das equipas de arbitragem, antes incutem a ideia de que estes actuaram ao arrepio de critérios de objectividade e isenção, imbuídos da intenção de favorecimento de interesses que não os de um funcionamento imparcial, lançando sobre os mesmos a suspeição de que estariam a proteger (beneficiando) outra sociedade desportiva que disputa competições profissionais.
10. Lançar suspeitas de que a actuação dos agentes de arbitragem não é pautada ao abrigo dos valores da imparcialidade e da isenção, não podem deixar de ser atentatórias da honra e bom nome do árbitro da partida e, por inferência, da sua equipa de arbitragem consubstanciando um comportamento que não pode ser tolerado e que não está justificado pelo exercício lícito da sua liberdade de expressão.
11. Não se diga, como fez o tribunal a quo, que basta um árbitro ter uma má prestação das suas funções enquanto tal cometendo, nomeadamente, erros de apreciação de lances durante o desenrolar de um jogo, que acabem por favorecer uma das equipas, que se pode utilizar as expressões que a Recorrida utilizou e que o tribunal considerou serem consequência lógica de tais erros e sua implicação no resultado final do jogo. A apreciação errónea de um lance ou acontecimento é resultado da falibilidade do ser humano enquanto tal, que, ajuizando determinados lances julgando estar a fazer a apreciação correta dos mesmos, erra.
12. Por outro lado, muito diferente, é imputar ao árbitro um comportamento doloso de favorecimento da equipa adversária, a partir do erro propositado na apreciação de lances que, a final, resultaram na concessão de uma vantagem desportiva àquela, em violação dos valores e princípios que devem reger a competição e o desporto.
13. Através da expressão sub judice a Recorrida pretendeu, de forma expressa, lançar suspeitas quanto à actuação dos agentes de arbitragem, caracterizando tal actuação como violadora das suas competências, dos deveres funcionais a que se encontram adstritos, lançando ainda suspeitas de as suas actuações terem a intenção de favorecer de determinados interesses que não os da verdade desportiva «em prol do "status quo" vigente».
14. A verdade de uma opinião, por definição, não é susceptível de prova. No entanto, pode, particularmente na ausência de uma qualquer base factual, ser excessiva.
15. E é de uma opinião, sem qualquer base factual, que aqui está em causa, uma vez que a Recorrida, ao dizer «Mais uma jornada, mais uma demonstração da falência da arbitragem em Portugal, da incoerência dos seus critérios e da sua clara interferência na classificação «em prol do "status quo" vigente», pretende claramente prejudicar a honra e reputação da equipa de arbitragem encarregue da direcção do jogo e pôr em causa a própria integridade da competição, insinuando a existência de uma conduta concertada, pelos referidos agentes desportivos, em benefício de uma específica equipa, «em prol do "status quo" vigente», sem base factual que o sustentasse.
16. A Recorrida, não demonstrou estarem as opiniões, por si difundidas, assentes em um qualquer facto, por mais insignificante que fosse. Simplesmente, não havia base factual de que a mesma se pudesse valer para publicar as declarações que publicou. Motivo pela qual, a Recorrida, ultrapassou os limites da liberdade de expressão, o que se traduz numa clara e incontestável ofensa à honra e ao bom nome dos visados, colocando, igualmente, em causa a verdade e a integridade da competição, em consequência das suas insinuações no que respeita à imparcialidade e isenção dos desempenhos das equipas de arbitragem.
17. A verdade é que aqueles dizeres, para além de imputarem a tal equipa de arbitragem a prática de actos ilegais, encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva.
18. Temos ainda quatro Acórdãos recentes do Supremo Tribunal Administrativo referentes aos processos 107/18.8BCLSB, 154/19.2BCLSB, 139/19.9BCLSB, e 156/19.9BCLSB que partilham do mesmo entendimento.
19. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.
20. Ao decidir da forma que fez, o Tribunal a quo violou o artigo 112º do Regulamento Disciplinar da LPFP, pelo que deve ser a revista admitida e o Acórdão recorrido revogado, tendo em vista uma melhor aplicação do direito.
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A sociedade anónima desportiva Sporting Clube de Braga – Futebol SAD contra-alegou, concluindo como segue:

A. Ao contrário do que advoga a Recorrente, a decisão ora recorrida não merece qualquer reparo ou censura, desde logo porquanto - como bem sintetizou o Tribunal a quo - não se mostra preenchido o tipo de ilícito p. e p. pelo art. 112°-1 e 4 do RD, em virtude de estar em causa um juízo crítico sobre o desempenho desportivo que é reconduzível ao exercício legítimo da liberdade de expressão da Recorrida.
B. Prende-se o presente processo com as afirmações vertidas no texto intitulado “Um campeonato desvirtuado”, publicado a 28.04.2019 no seu site oficial e na conta de Twitter SCBragaOficial, através do qual a Recorrida anunciou a sua insatisfação com as decisões tomadas pela equipa de arbitragem designada para o jogo disputado nesse mesmo dia contra a Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD.
C. Pois que - na sua opinião - as mesmas revelaram-se lamentáveis e atentatórias da verdade desportiva, padecendo de demasiados erros que prejudicavam a competição.
D. A Recorrida limitou-se, portanto, a emitir aquela que é a sua (fundada!) convicção sobre a conduta da arbitragem na competição nacional, em especial da equipa de arbitragem nomeada para o jogo em apreço, a qual, do seu ponto de vista, resulta reiteradamente em benefício do Sport Lisboa e Benfica e, consequentemente, em detrimento dos demais clubes em competição.
E. Como bem reconheceu o acórdão recorrido, as afirmações vertidas no artigo “Um campeonato desvirtuado”, ancoram- se num determinado desempenho (ou juízo valorativo sobre esse desempenho), não contendendo com o “núcleo essencial das qualidades morais” dos visados; e têm, além do mais, uma base factual, concreta e real, que legitima a formulação de tais afirmações, ainda que abstractamente lesivas da honra e da reputação de terceiro.
F. Na verdade, uma avaliação isenta e imparcial das afirmações reduzidas a escrito, conduzirá a uma única conclusão: as declarações formuladas pela recorrida não colidem com a honra e bom nome de quem quer que seja, nem se manifestam como um comportamento incorrecto ou indecoroso de tal modo inapropriado que manifesta e objectivamente viole a verdade e integridade da competição!
G. Resumindo-se o presente caso à emissão de um juízo crítico opinativo que, desde logo pela ausência de gravidade que evidencia (não se revestindo de carga valorativa ultrajante, insultuosa e ofensiva da honra e dignidade dos visados), não deverá merecer qualquer censura disciplinar.
H. De todo o modo, que ainda que os juízos de valor tecidos pudessem qualificar-se como típicos, sempre seria necessário, para que se considerassem ilícitos, que não detivessem uma qualquer base factual concreta e suficiente que os suportasse. O que, assumidamente, também não se verifica no presente caso!
I. De facto, não pode descurar-se que para a formação dos concretos juízos de valor vertidos no artigo em apreço concorreram diversas realidades, nomeadamente: a participação no encontro, a posterior visualização das imagens do jogo, as opiniões dos diversos intervenientes no jogo e as inúmeras notícias divulgadas na comunicação social acerca daquela arbitragem em concreto.
J. Tudo factos que se revelam como objectivos e públicos e que fundaram e reforçaram a convicção manifestada nas afirmações formuladas, confirmando aquilo que a Recorrida já "suspeitava”: a existência de erros grosseiros de arbitragem, e um desempenho profissional que fica muito aquém daquele que seria o esperado de árbitros desta categoria.
K. Sendo flagrante, em vários dos lances apontados, a diferença de critério do árbitro A…………….. e do VAR B…………….. face à avaliação de outros lances similares noutros jogos disputados pela SL Benfica. Dualidade de critérios de decisão que a recorrida tem por inaceitável, e que é, per se, suficiente para suscitar dúvidas acerca da competência e imparcialidade destes profissionais de arbitragem.
L. A data dos factos, o campeonato de futebol encontrava-se numa fase decisiva, sendo cada jogo e cada resultado especialmente importante para a competição, exigindo-se rigor e um acrescido profissionalismo às equipas de arbitragem.
M. Principalmente, em face de um panorama futebolístico marcado por sucessivas revelações de suspeitas de corrupção na arbitragem, as quais deram, inclusive, origem a vários processos de natureza criminal, sendo incontáveis as denúncias públicas de suspeitas de favorecimento e de falseamento de resultados (precisamente) a favor e por parte do Sport Lisboa e Benfica.
N. Sendo certo que, no jogo em apreço, as falhas publicamente apontadas em que incorreu a equipa de arbitragem acabaram mesmo por determinar a vitória do SL Benfica, lançando-o para o topo da tabela do campeonato. Pelo que, como é evidente, a opinião emitida não deixa, face a estes factos, de ter uma base factual mínima (dir-se-á, inclusive, mais do que suficiente).
O. Sendo este o circunstancialismo contextual que envolveu a publicação em apreço nos autos, não poderia o Tribunal a quo deixar de - como se impunha - o valorar positivamente a favor da Recorrida, assim fazendo prevalecer o direito à liberdade de expressão que à mesma assiste.
P. Como vem sublinhando o TEDH, o único limite, fundado na protecção da honra, que há-de reconhecer-se à manifestação de juízos de valor desprimorosos da personalidade do visado pela crítica é o da crítica caluniosa sob a forma de um ‘‘ataque pessoal gratuito”. O que está longe de suceder in casu,
Q. Seguindo de perto o entendimento jurisprudencial e doutrinal dominante, os juízos de valor cairão fora da tipicidade das normas sancionatórias que tutelam a protecção do direito à honra e ao bom nome sempre que a liberdade de expressão não ultrapasse o âmbito da crítica objectiva - cf., entre outros, acórdão do STJ de 07-03-2007, proc. n.º 07P440, disponível em www.dgsi.pt.
R. Devendo, pois, considerar-se como atípicos mesmo aqueles juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.
S. Para além do mais, como vem entendendo o STJ, na esteira aberta pelo TEDH, tratando-se de juízos de valor exclui-se a prova da sua exactidão, pelo que, tudo está em saber se a emissão de juízos de valor tipicamente desmerecedores da honra de um terceiro se encontra ou não totalmente desprovida de base factual.
T. Sob a perspectiva desta corrente jurisprudencial e doutrinal, os juízos de valor que possam qualificar-se como típicos sob o ponto de vista do crime de difamação só serão, portanto, penalmente ilícitos se não detiverem uma qualquer base factual que os suporte.
U. Mobilizando este parâmetro de aferição de ilicitude típica da infracção p. e p. pelo art. 112.º do RD para as afirmações em apreço nos autos, terá de convir-se que as falhas de arbitragem grosseiras em que a equipa de arbitragem incorreu no jogo em apreço são por si só suficientes para que sobre esses profissionais pudesse ser lançado um juízo de suspeição nos termos em que o foi.
V. De modo que, a conduta da Recorrida não consubstanciou a prática de qualquer crime, seja porque nem sequer assumiu relevo típico, seja porque (embora típica) não chegou a ser ilícita, uma vez que realizada no exercício legítimo do direito fundamental à liberdade de expressão.
W. Assim se impondo por isso a improcedência do presente recurso, mantendo-se in totum a decisão absolutória proferida - o que se requer com as devidas e legais consequências.
X. Decidir em sentido contrário equivalerá, aliás, a fazer tábua rasa dos critérios relevantes para a realização de um balanceamento adequado entre o prevalente direito à liberdade de crítica da Recorrida (enquanto vertente do princípio constitucionalmente consagrado de liberdade de expressão) e o direito à honra do visado,
Y. descurando, de forma gritante, a jurisprudência nacional maioritária nesta matéria, e bem assim toda a jurisprudência (repetidamente) assente pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Z. Compulsadas as alegações apresentadas aos autos, parece ser entendimento da Recorrente, na esteira da mais recente jurisprudência exarada pelo STA, que toda a crítica que afecte directamente as qualidades pessoais do visado, mesmo que sustentada em base factual mínima, não pode ser expressada porque atenta contra o bom nome e reputação do visado, além de afectar ainda a credibilidade e prestígio da própria competição desportiva.
AA. Sucede que, uma tal proibição, representa uma compressão do conteúdo essencial de direito fundamental, constitucionalmente consagrado, não permitida pela Constituição da República Portuguesa (art. 18.º, n.º 3 da Lei Fundamental).
BB. O conteúdo/ núcleo essencial de cada direito fundamental representa um mínimo intocável, isto é, uma barreira intransponível que constitui a razão de ser da previsão da norma e, por isso, não pode ser sacrificado perante outros valores comunitários. Quer isto significar que, as restrições aos direitos fundamentais não podem ofender aquele mínimo para além do qual o direito fundamental deixa de o ser, ficando esvaziado enquanto tal.
CC. Por ser assim, a interpretação da norma prevista no art. 130.º-l do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol no sentido de que constituí uma lesão intolerável do direito à honra do visado a propalação de afirmações (escritas ou verbais) que contendam com as suas qualidades morais e pessoais, mesmo quando haja base factual suficiente que sustente tais imputações, é manifestamente inconstitucional por violação do conteúdo essencial do direito fundamental à liberdade de expressão dos arguidos (art. 37.° e 18.° da CRP).
DD. É inconstitucional, por representar uma diminuição da extensão e alcance do conteúdo essencial (cf. art. 18.º, n.º 3 da Constituição) do direito fundamental à liberdade de expressão previsto no artigo 37.°, n.° 1, da Constituição, a interpretação do art. 130.°, n.° 1, do RDFPF no sentido de que constitui infracção disciplinar o uso de expressões difamatórias para com árbitros e outros agentes desportivos independentemente da existência de base factual que dê suporte ao uso de tais expressões.
EE. Com efeito, o entendimento / interpretação do art. 130.°, n.° 1, do RDFPF no sentido de que na verificação da comissão da infracção de "Ameaças e ofensas à honra, consideração ou dignidade”, prevista naquele preceito, não interessará saber se existe ou não uma base factual que possa suportar ou justificar o uso de expressões difamatórias para com árbitros e outros agentes desportivos, devendo a eventual existência dessa base factual ser desconsiderada, configura uma compressão do núcleo essencial do direito à liberdade de expressão, proibida pelo art. 18.°, n.° 3, da Constituição, e representa assim uma restrição inconstitucional desse direito fundamental, violadora do artigo 37.°, n.° 1, da CRP.
FF. Norma que por isso deve ser desaplicada por este Tribunal ad quem.
GG. Termos em que se requer a V. Exas. se dignem julgar improcedente o recurso de revista, confirmando-se integralmente o douto acórdão recorrido.
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Mediante acórdão da Formação de Apreciação Preliminar deste STA foi decidido admitir a revista.

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O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.

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Com dispensa legal de vistos substituídos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Conselheiros Adjuntos, vem para decisão em conferência.

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O acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul deu por reproduzida a matéria de facto dada como assente pelo TAD, nos termos que seguem:

1. No dia 28.04.2019, a contar para a 31° jornada da Liga Nós, disputou-se no Estádio Municipal de Braga entre a aqui demandante e a Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD, (prova documental, não impugnada pelas partes);
2. O jogo teve como árbitro principal A…………… e B……………… como VAR; (prova documental, não impugnada pelas partes);
3. O jogo terminou com o resultado 1-4, favorável ao adversário da Demandante, (prova documental);
4. Foram elaborados os relatórios técnicos de observação sobre o desempenho dos árbitros e dos árbitros assistentes, incluindo o VAR, de fls., no jogo n.° 13101 em apreço, cujos teores integrais por razões de economia processual aqui se dão por inteiramente reproduzidos; (prova documental não impugnada pelas partes)
5. Após o final do jogo, foi publicado um Comunicado na página oficial da Demandante e no Twitter SC Braga Oficial da autoria desta, com os seguintes dizeres:

"Campeonato Desvirtuado - Mais uma jornada, mais uma demonstração da falência da arbitragem em Portugal, da incoerência dos seus critérios e da sua clara interferência na classificação em prol do "status quo" vigente.
Este domingo, contra o SL Benfica, assistimos a mais um rol de decisões inacreditáveis em prejuízo do SC Braga.
Desde logo, um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre ………. (17’).
Aos 57’, porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do SL Benfica, apesar de não existir falta de ……………
Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar, com ……….. (61') e ………….. (78' e 79') a escaparem a claras infrações merecedoras de segundo cartão amarelo..." (prova documental de fls., não impugnada pelas partes).

6. No dia 30.04.2019, o Conselho de Arbitragem da Demandada, remeteu email para o Conselho de Disciplina da Demandada, com os seguintes dizeres " Exmos. Srs., Por solicitação do CA da FPF, vimos remeter link com declarações do clube SCBraga, relativos ao jogo da Liga NOS "Braga x Benfica", realizado no dia 28.04.2018, para o qual solicitamos a v/análise para eventual procedimento disciplinar.
httpsd/www.record.ptfuteboUfutebol-nacional/Uaa-nos/spbraga/detalhe/sp-braga-fala-em-dedsoes-inacreditaveis-diante-do-benfica-e-em-falencia-da-arbitragem. Melhores cumprimentos." (prova documental de fls.)
7. Por Despacho do Presidente do CD da Demandada, datado de 30.04.2019; deliberou a instauração de processo disciplinar n°. ………………….., o qual culminou em 04.06.2019 com a prolação de Acórdão condenando a Demandante com aplicação da sanção de multa de €9.560.00 (nove mil quinhentos e sessenta euros), pela prática da infracção disciplinar p.p, pelo artº 112ºn°.s 1 e 4 do RDLPFP; (prova documental de fls.)
8. A decisão de condenação da Sporting Clube de Braga - Futebol SAD prende-se com as afirmações vertidas no artigo intitulado "Um campeonato desvirtuado", factualidade julgada como provada no ponto [5.°] dos factos provados, (prova documental de fls., e facto alegado e não impugnado pela contraparte)
9. À data dos factos, o campeonato de futebol encontrava-se numa fase decisiva, sendo cada jogo e cada resultado especialmente importante para a competição, exigindo-se rigor e um acrescido profissionalismo às equipas de arbitragem (prova documental de fls., e facto alegado e não impugnado pela contraparte);
10. Ao longo dos vários meses de competição, foram incontáveis as denúncias públicas de comportamentos susceptíveis de afectar sobremaneira a verdade desportiva e a integridade no desporto, como foram mais que muitas as investigações jornalísticas e policiais acerca de suspeitas de favorecimento e falsear de resultados por parte do SL Benfica. (facto público, para além de alegado e não impugnado pela contraparte);
11. As condutas por parte da equipa de arbitragem no jogo em apreço foram discutidas e divulgadas em diversos meios de comunicação, (facto público, para além de alegado e não impugnado pela contraparte);
12. A fls.139 do PD n°………………., Edição do Jornal "O Jogo" de 29.04.2020, constam os dizeres: Em jogos desta natureza estar A…………… com a ajuda de um VAR como B…………………. é meio caminho para muitas análises. Sem estaleca nem andamento!; (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes]
13. A fls.139 do PD n°…………………, Edição do Jornal "O Jogo" de 29.04.2020, constam os dizeres: "A……………… errou demasiado no aspeto técnico e disciplinar e mostrou uma condição física deficiente. O VAR optou por não ajudar"; "Atuação muito medíocre do árbitro e do VAR, pois cometeram lapsos graves, influenciando o resultado final em prejuízo do Braga"; (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)
14. A fls. 142 do PD n°……………….. Edição do "Jornal de Notícias” de 29.04.2020, o artigo publicado intitula "DUAS CARAS E UM PASSO GIGANTE RUMO AO TÍTULO. A perder ao intervalo, o Benfica goleia e isola-se na frente da Liga. Um penálti inexistente e outro duvidoso ajudaram a concretizar uma reviravolta que pode ter decidido o campeonato", (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)
15. A fls. 142 do PD n°…………., Edição do “Jornal de Notícias” de 29.04.2020, constam os dizeres: "O primeiro penalti do Benfica não existiu - …………. não toca em ………. - e o segundo das águias é duvidosos. Poupou a expulsão a …………., já amarelado, após carga sobre …………..”. (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)
16. A fls. 144 do PD n°……………, Edição do jornal “Correio da Manhã” de 28.04.2020, constam os dizeres: "……………. contesta primeiro penalti a favor do Benfica: ''Ridículo". Treinador criticou a decisão de A…………… em assinalar penalti sobre ……………., no lance que deu empate ao Benfica. …………… criticou a decisão de A………….. em assinalar penálti sobre ………………, no lance que deu empate diante do Sp.Braga. "Ridículo!", disparou o treinador no instagram, colocando uma imagem do lance entre o avançado encarnado e ……………….., em que o árbitro apitou castigo máximo", (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)
17. Tendo sido, ainda, afirmado pelo comentador televisivo ……………., no programa "Jornal da noite" do canal SIC, que “o SL Benfica jogou com 11 jogadores e meio", contando com a ajuda do árbitro; mais admitindo, no programa televisivo "Play- Off', a existência de uma ''arbitragem a favor da SL Benfica". (facto alegado e não impugnado pela contraparte)
18. No jogo da 10.a jornada da Liga Nós, disputado entre o CD Tondela e o SL Benfica, em que foi árbitro B………………. (VAR no jogo aqui em apreço) o jogador …………. pisa dentro da área um adversário do Tondela - cf. ficheiro vídeo do jogo disponível para visualização em https://wwiv.vsports.Pt/vod/46914/m/449639/vsports/66jfble61l65f3f60110c43 1716e3dad. (facto alegado e não impugnado pela contraparte)
19. O árbitro B…………………. vê-se envolvido em trocas de e-mails que indiciam a prática pela Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD de actos de corrupção desportiva e tráfico de influências envolvendo agentes desportivos, como delegados da Liga e árbitros; (facto público, para além de alegado e não impugnado pela contraparte)
20. A decisão recorrida reconhece que "Importando, contudo, ter presente que no relacionamento social existe sempre aquela margem de actuação que se deve ter como jurídico-disciplinarmente aceitável, por não revestir objectivamente, no concreto circunstancialismo a valorar [donde não pode arredar-se a constatação de que o chamado mundo do futebol e especificamente as questiúnculas entre os grandes clubes são alimentadas, exploradas e maximizadas pelos diversos meios de comunicação], carácter ofensivo da honra ou consideração dos visados" (fls. 21); (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)
21. Assentou o Colégio Arbitral a sua convicção tendo em conta o acervo documental constante do processo disciplinar, factos públicos que dispensam prova, bem como conjugando regras de experiência comum e o respectivo princípio da livre apreciação da prova. (...)».





DO DIREITO


Vem assacado o acórdão de incorrer em violação primária de direito substantivo por erro de julgamento na interpretação do artº 112º nº 1 do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDCLPFP) pelas seguintes razões:

1. o bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar “é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal” ……………………... itens 5 a 8 das conclusões;
2. os dizeres do escrito publicado no Twitter “para além de imputarem a tal equipa de arbitragem a prática de actos ilegais, encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva” ………………. itens 9 a 17 das conclusões.



1. ilícito disciplinar em matéria desportiva - bens jurídicos protegidos - fins das penas disciplinares;


As federações desportivas são “pessoas colectivas constituídas sob a forma de associações sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, … ligas profissionais, praticantes, técnicos, juízes e árbitros e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, …” – cfr. artº 14º nº 1 da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto definida pela Lei 5/2007, 16.01 (LBAFD).
Enformam a actividade desportiva os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes cfr. artº 3º nº 1 da citada Lei de Bases.
O artº 19º da citada Lei de Bases dispõe que o estatuto de utilidade pública “confere a uma federação a competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e poderes especialmente previstos na lei.”
No mesmo sentido dispõe o artº 10º do Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD), DL 248-B/2008.
Mediante o estatuto de utilidade pública as federações desportivas são investidas no exercício de poderes públicos dentre os quais, no exercício de competências disciplinares “no âmbito da regulamentação e disciplina da respectiva modalidade”, conforme dispõe o artº 11º do Regime Jurídico das Federações Desportivas(RJFD), DL 248-B/2008.

Trata-se, assim, de poderes delegados que pertencem ao Estado.

Do ponto de vista conceptual, em sede administrativa o ilícito disciplinar reporta-se “(..) à infracção de regras de conduta estabelecidas para um grupo definido de pessoas que têm uma relação mais ou menos duradoura com uma instituição pública … e, nesta condição, ficam obrigadas a cumprir regras de conduta especificamente definidas para esse grupo ou categoria; trata-se de regras de disciplina que impõem, por ex. deveres de correcção ou de conduta ética responsável e que visam assegurar interesses como a ordem e o correcto funcionamento da instituição ou do grupo em causa, a organização e a imagem de um serviço, o prestígio de uma actividade ou profissão, etc. (..)
(..) a finalidade do ilícito disciplinar e da aplicação de sanções disciplinares já não consiste primacialmente na punição dos infractores. As sanções disciplinares visam outros objectivos e, em especial, procuram a efectiva reintegração do interesse público violado; o que conta não é a simples transgressão, que se vai punir, mas antes, ou também, a realização de finalidades específicas de interesse público, como a recuperação da boa ordem do serviço, o correcto funcionamento da organização, a imagem da instituição ou a reputação da profissão, valores atingidos ou perturbados pela infracção. (..)” ( Pedro Costa Gonçalves, Manual de Direito Administrativo, V-1, Almedina/2019, págs.1074-1075.)

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Vejamos em maior detalhe a concretização do exercício do poder disciplinar desportivo, à luz dos fins específicos do interesse público posto a cargo das federações desportivas.

O Regime Jurídico das Federações Desportivas aprovado pelo DL 248-B/2008, 31.12 [RJFD], dispõe no artº 52º nº 1 que
“as federações desportivas devem dispor de regulamentos disciplinares com visa a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva”.
e no nº 2 do citado artº 52º, que
“são consideradas normas de defesa da ética desportiva as que visam sancionar a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo e a xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo”.
No mesmo sentido artº 1º nºs. 1 e 2 do Regime Disciplinar das Federações Desportivas, Lei 112/99, 03.08 diploma que, quanto ao âmbito do poder disciplinar das federações desportivas, dispõe no artº 3º nº 1 como segue
“No âmbito desportivo, o poder disciplinar das federações dotadas de utilidade pública desportiva exerce-se sobre os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam a actividade desportiva compreendida no seu objecto estatutário, nos termos do respectivo regime disciplinar.”
e no artº 5 da citada Lei 112/99 dispõe-se
“Os agentes desportivos que forem condenados criminalmente por actos que, simultaneamente, constituam violações das normas de defesa da ética desportiva ficarão inibidos, quando a decisão judicial condenatória o determinar, de exercer quaisquer cargos ou funções desportivas por um período a fixar entre 2 a 10 anos.”
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Em sintonia com a doutrina acima citada no tocante aos fins jurídicos prosseguidos pelo regime disciplinar em ambiente desportivo, afirma-se claramente que “(..) A tutela disciplinar do direito ao bom nome e à reputação que se faz por via dos regulamentos disciplinares emanados pelas federações desportivas é cumulativa com a tutela civil e penal e não se confunde com as mesmas – cf. atº 4º do RDFD [DL 112/99] Protegem-se os mesmos bens jurídicos, mas com base em diversos fundamentos e visando-se diferentes fins (..) os poderes que são concedidos às federações , mormente em matéria disciplinar, têm como fins específicos os indicados no artº 52º [nºs. 1 e 2] do RJFD [DL 248-B/2008] e nºs. 1 e 2 do artº 1º do RDFD [Lei 112/99, Regime Disciplinar das Federações Desportivas]. (..)
(..) é a garantia dos fins e atribuições das próprias federações que justifica a outorga do poder disciplinar sobre os correspondentes agentes desportivos [artº 3º nº 1 Lei 112/99] e que serve de fundamento para a previsão das indicadas sanções pela via regulamentar. Consequentemente, o correspondente poder disciplinar está também limitado por aqueles fins, que lhe servem de fundamento.
Identicamente, as sanções disciplinares relativas à prática de factos ofensivos do bom nome e à reputação de terceiros só podem ter por campo de acção a salvaguarda dos indicados bens jurídicos quando os mesmos se relacionam ou possam pôr em causa a satisfação dos fins e atribuições das federações. (..)
(..) resta-nos concluir que os fundamentos de tal punição [pela prática de factos ofensivos do bom nome e reputação de terceiros] se relacionam com as incumbências das federações desportivas relativas à promoção da ética desportiva, do espírito desportivo, da verdade desportiva e que visam o objectar de práticas que impliquem a “perversão do fenómeno desportivo”. (..) as sanções disciplinares pela prática de actos ofensivos do bom nome e da reputação de terceiros, que vêm previstas nos vários regulamentos emanados pelas federações desportivas, têm por desiderato, em primeira linha, a protecção dos referidos bens e, como desiderato último, a defesa da ética, do espírito da verdade desportiva e o combate a actos violentos, racistas, xenófobos e intolerantes.
Portanto, só na medida em que tais sanções se mostrem como indispensáveis e as mais adequadas a tais fins e não se apresentem excessivas face ao fim que se pretende atingir, é que deverão ser aplicadas. (..)” (Sofia David, Da liberdade de expressão dos agentes desportivos à falta dela, e-Pública/Revista electrónica de Direito Público, Vol. 8 nº 1 Abril/2021, págs. 185-186, 190-191.)

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Na medida em que se acompanha o entendimento sustentado, cumpre saber se a factualidade levada ao probatório é subsumível na hipótese descrita no artº 112º nºs 1 a 4 do citado RDCLPFP, que dispõe com segue:
1. O clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga Portugal ou da FPF e respectivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de actos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante afixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC.
2. Se dos factos previstos na segunda parte do número anterior resultarem graves perturbações da ordem pública ou se provocarem manifestações de desrespeito pelos órgãos da hierarquia desportiva, seus dirigentes ou outros agentes desportivos, os limites mínimo e máximo das sanções previstas no número anterior são elevados para o dobro.
3. Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo das multas previstas nos números anteriores serão elevados para o dobro.
4. O clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, directamente ou por interposta pessoa."

A fonte dos critérios legais que presidem à interpretação normativa reside no artº 9º do C. Civil.
Tomando o disposto no artº 9º nº 1 C. Civil, na busca do sentido normativo do comando cumpre partir da letra da lei, ou seja, do texto do preceito que cumpre interpretar, texto que funciona como elemento irremovível de toda a interpretação não podendo ser considerado um sentido que não encontre na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (artº 9º nº 2 CC), e que “(..) deve-se presumir, não só que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, como ainda que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. (..)” conforme dispõe o artº 9º nº 3 C. Civil). ( José de Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria geral, 2ªedição, Fundação Calouste Gulbenkian/1980, págs. 354-355. )
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Dentre as ocorrências não queridas pelo ordenamento legal e regulamentar da actividade desportiva e assacadas a título de responsabilidade a uma pessoa colectiva, o clube desportivo, isto é, ocorrências descritas na hipótese normativa cujo efeito jurídico se salda na punição do ente a quem é imputada a responsabilidade pela sua verificação, temos o caso do artº 112º nºs 1 a 4 RDCLPFP, a saber, o escrito que use de expressões injuriosas, difamatórias ou grosseiras para com árbitros, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, que seja divulgado pela imprensa privada e/ou sítios na Internet explorados pelo clube desportivo.

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O que significa que a citada norma regulamentar do artº 112º nºs 1 a 4 RDCLPFP ao sancionar o uso de expressões qualificadas de “injuriosas” e “difamatórias” no escrito divulgado pela imprensa privada e sítios na Internet do clube, convoca para o domínio disciplinar desportivo o sentido jurídico-penal próprio dos conceitos de injúrias e difamação, por remissão expressa nos exactos termos do teor literal da hipótese normativa regulamentar.
Exactamente porque é a própria norma que recorre a conceitos normativos próprios do domínio penal, é no sentido jurídico-penal que tais conceitos têm de ser interpretados e aplicados à factualidade provada no caso concreto, pelas entidades com poderes competenciais no âmbito do ilícito disciplinar desportivo e pelos tribunais em via dos poderes de sindicabilidade jurisdicional
Na circunstância, importa o conceito jurídico-penal de difamação (artº 180º nº 1 C. Penal) em que o ataque à pessoa do ofendido é feito de forma enviesada, indirecta, ou seja, por intermediação de meios ou de terceiras pessoas, tendo a incriminação por bem jurídico protegido a honra e consideração do visado com o comportamento ilícito.

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De um modo geral, a doutrina criminalista distingue entre uma concepção subjectiva ou interna da honra (o sentimento de estima por si próprio ou, ao menos, de não desestima, o sentimento de dignidade própria, o conceito que cada um faz das suas próprias qualidades morais) e uma concepção objectiva ou externa, traduzida no apreço e respeito ou, pelo menos, na não desconsideração de que somos objecto; a reputação e boa fama, isto é, a consideração que merecemos, graças ao património moral que, com esforço próprio, fomos construindo, impondo-se à consideração dos outros.
Tanto no caso da honra em sentido subjectivo, como objectivo, a lei não protege, de uma banda, os sentimentos exagerados de amor-próprio e, da outra, o exclusivo valor que a opinião pública consagra a uma determinada pessoa e que pode não corresponder à sua real valia. (Nelson Hungria, Comentário ao Código Penal, Rio de Janeiro, 1956, vol. 6.º, 3.ª ed., págs. 36 e ss.; Beleza dos Santos, Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria, RLJ, ano 92, n.º 3152, págs. 152 e ss.; Alberto Borciani, As ofensas à honra, Coimbra, Arménio Amado Editor, 1950, págs. 13 e ss.; Vincenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale, Turim, 4.ª ed., tomo 8.º, págs. 475 e ss..)
Numa concepção simultaneamente mais moderna e mais elaborada, não devem prevalecer neste domínio concepções puramente fácticas da honra (sejam elas subjectivas ou objectivas), mas uma concepção predominantemente normativa, temperada por uma concepção fáctica, em que se atenda ao valor da personalidade moral radicado na dignidade inerente a toda a pessoa humana, mas também à reputação de que goza determinada pessoa. (José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, págs. 602 e ss.)

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O elemento subjectivo vem a traduzir-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas são idóneas a ofender a honra e consideração alheias e que tal acto é proibido por lei; é o chamado tipo subjectivo do ilícito.
Doutrinária e jurisprudencialmente há uniformidade de entendimento em que o elemento subjectivo se basta com o chamado dolo genérico: a simples consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural e a «sã opinião da generalidade das pessoas de bem».
Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender, na medida em que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano.
O que significa, conforme sumariado no Acórdão da Relação do Porto, 11.11.2015, procº nº 995/14.7TAMTS.PI, que “A protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém.”.
De modo que, aplicando o exposto ao caso trazido a recurso, será sancionado disciplinarmente por difamação, em aplicação do ilícito disciplinar p.e p. no artº 112º nº 1 e 4 RDCLPFP, o uso de expressões em escritos divulgados pela imprensa privada e sítios na Internet do clube, que objectivamente consideradas não têm outro sentido que não seja o de ofender o bom nome e reputação profissional da equipa de arbitragem no contexto funcional da actividade desportiva, nomeadamente por decisões tomadas ou omitidas no decurso de um desafio futebolístico.
Em face do entendimento sustentado pela doutrina citada, que se acompanha e aplica ao caso trazido a recurso, o complexo normativo dos regulamentos disciplinares das federações desportivas dotadas de utilidade pública desportiva tem por escopo normativo

i. garantir o cumprimento das regras de conduta especificamente dirigidas ao universo de agentes desportivos definido no artº 3º nº 1 Lei 112/99, 03.08 (RDFD),
ii. em ordem a preservar a observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes, conforme disposto no artº 3º nº 1 Lei 5/2007, 16.01 (LBAFD) na qualidade de bens jurídicos protegidos,
iii. mediante o sancionamento de manifestações de perversão do fenómeno desportivo, conforme disposto no artº 1º nºs. 1 e 2 Lei 112/99, 03.08 (RDFD) e artº 52º nºs 1 e 2 DL 248-B/2008, 31.12 (RJFD)
iv. v.g, o sancionamento do clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga Portugal ou da FPF e respectivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de actos violentos, conflituosos ou de indisciplina, conforme disposto no artº 112º nº 1 RDCLPFP.
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O mesmo é dizer que a hipótese normativa regulamentar ao fazer referência expressa a “escritos injuriosos ou difamatórios para com árbitros” significa que o artº 112º nº 1 RDCLPFP tem como âmbito de protecção o bom nome e reputação de exercício profissional dos árbitros no quadro funcional dos princípios da actividade desportiva, a saber, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes, enunciados no artº 3º nº 1 da Lei de Bases (Lei 5/2007).
O que significa que, resultando provada a prática de actos ofensivos do bom nome e da reputação da equipa de arbitragem no exercício das funções desportivas, nomeadamente pelo uso de escritos injuriosos ou difamatórios através da imprensa privada e sítios na Internet explorados pelo clube, têm-se concomitantemente por infringidos os princípios da actividade desportiva, sendo de sancionar o clube com pena de multa dentro da moldura prevista no artº 112º RDCLPFP.

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Contrariamente ao afirmado pela Recorrente no item 5 das conclusões, o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo não fundamenta a análise do texto escrito no Twitter pela Recorrida na perspectiva “da prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspectiva do direito penal …”.
Pelo contrário, toda a análise constante do segmento fundamentador do Acórdão sob recurso é contextualizada mediante a apreciação crítica das circunstâncias de tempo, lugar e modo envolventes do desafio desportivo e do conteúdo textual evidenciado no escrito levado ao Twitter da Recorrida, ou seja, conjugando os dois planos de bens jurídicos protegidos pela norma, nos termos acima expostos:
· o plano do direito ao bom nome e reputação profissional dos árbitros (artº 112º nºs 1e 4 RDCLPFP ) e
· o plano dos princípios que regem a actividade desportiva (artº 3º nº 1 da Lei de Bases, Lei 5/2007).
Circunstâncias de tempo, lugar e modo envolventes do desafio desportivo e do momento escrito levado ao Twitter da Recorrida, fundadas na matéria de facto julgada provada.
Como sejam:
· o escrito ter sido levado ao Twitter logo após o final do jogo que a Recorrida perdeu face ao outro clube de futebol;
· desafio disputado na fase final do campeonato estando em disputa os lugares cimeiros da ordenação dos diversos clubes participantes;
· jogo em que, no entender da Recorrida perdedora do dito desafio, a equipa de arbitragem incorreu em erros de aplicação da lex artis e das regras do futebol em matéria de penáltis e cartões amarelos, erradamente assinalados aos jogadores da Recorrida ou erradamente omitidos aos jogadores da formação adversária durante o desenrolar do jogo;
· concluindo a Recorrida que tais erros de decisão da equipa de arbitragem resultaram em seu prejuízo, posto que concorreram para o resultado que lhe foi desfavorável.
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No Acórdão sob apreço e como evidencia o segmento fundamentador, à análise dos factos provados em relação com o bloco normativo aplicável acresce a apreciação da jurisprudência em sede de conflitualidade entre a liberdade de expressão e o direito à honra, concretizada em acórdãos do TCAS (acs. de 16.01.2020, procº nº 154/19.2BCLSB, 13.02.2020, procº nº 155/19.0BCLSB, procº nº 63/20 de 01.10.2020), do STA (acs. de 04.06.2020, procº nº 154/19.2BCLSB, 02.07.2020, procº nº 139/19.9BCLSB) e do TEDH (procº nº 11182/03 e 113119/03 de 26.04.2007, nº 39324/07 de 07.12.2010, nº 33287/10 de 23.10.2013, nº 43924/02 de 23.01.2007, nº 37698/97 de 28.09.2000, nº 733/06 de 24.07.2007, nº 25968/02 de 31.10.2007, nº 49418/99, nº 26958/95, nº34447/05 de 13.01.2015.
Tudo conjugado, o Tribunal a quo concluiu pelo afastamento do conteúdo difamatório por ofensa do bom nome e reputação da equipa de arbitragem no exercício das funções desportivas durante o jogo em causa, sustentado pela ora Recorrente quanto ao escrito levado ao Twitter pela Recorrida.

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Pelo que vem dito improcede o erro de julgamento assacado nos itens 5 a 8 das conclusões de recurso.


2. conflito entre normas - direitos fundamentais do catálogo;


Nos itens 9 a 17 das conclusões a Recorrente sustenta que os dizeres do escrito publicado no Twitter pela Recorrida “para além de imputarem a tal equipa de arbitragem a prática de actos ilegais, encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva”.
A resolução do caso presente convoca a figura do conflito entre normas que consagram direitos de igual dignidade constitucional, inscritos no catálogo dos direitos liberdades e garantias do Título II, Capítulo I da Constituição da República, a saber, o direito ao bom nome e reputação – artº 26º nº 1 CRP – e o direito à liberdade de expressão e informação - artº 37º nº 1 CRP.
Concretizando, o confronto entre
· a norma do catálogo constitucional que protege o direito ao bom nome e reputação (artº 26º nº 1 CRP), direito fundamental que, por sua vez, é protegido pela norma regulamentar restritiva inscrita no artº 112º nº 1 e 4 RDCLPFP e
· a norma constitucional que protege e garante o direito à liberdade de expressão e informação (artº 37º nº 1 CRP ), objecto de restrição pela norma proibitiva de ofensa à honra de agentes desportivos (artº 112º nºs 1 e 4 RDCLPFP).
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Salvaguardado o respeito devido por entendimento distinto, não acompanhamos os pressupostos doutrinários da existência de limites imanentes à própria noção dos direitos fundamentais, limites de exercício que incluiriam, à partida, as proibições constantes de norma infraconstitucional (lei ou regulamento) no âmbito de protecção da norma constitucional, na consideração de que mediante tais proibições não se configuram restrições (subjectivas) ao direito fundamental, posto que tais faculdades prima facie proibidas são já parte integrante do conteúdo essencial do direito, isto é, emergem desse conteúdo essencial e, como tal, configuram uma delimitação própria, substantiva, constante do sentido jurídico dado pela norma ao direito fundamental em causa, ou seja, considerada em abstracto pelo próprio legislador aquando da configuração da norma, cabendo ao intérprete, em ordem à aplicação do bloco normativo que rege o caso concreto, chegar a esse limite imanente através das operações jurídicas próprias da interpretação normativa. ( Jorge Reis Novais, Restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizados pela Constituição, Coimbra Editora/2003, págs. 301-306; Pedro Moniz Lopes/Sara Azevedo, A liberdade de expressão no contexto desportivo: Considerações metodológicas, e-Pública/Revista electrónica de Direito Público, Vol. 8 nº 1 Abril/2021, págs.141-144. )
Por outro lado, a nosso ver, assume especial relevo a circunstância de o único limite directo à liberdade de expressão que a Constituição expressamente configura é a exigência de atribuição do pensamento ao sujeito que se expressa, a que se soma a garantia constitucional de proibição da censura (artº 37º nº 2 CRP) garantia operativa segundo um conceito constitucional amplo, envolvendo no seu âmbito concretizações de censura seja sob formas materiais ou jurídicas, seja assumindo formas explícitas ou subliminares de efeito censório. ( José de Melo Alexandrino, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda - Rui Medeiros, Tomo I, Coimbra Editora/2010 págs.850, 851 e 856.)
O que significa, atento o quadro constitucional exposto, que “(..) o destinatário de uma norma permissiva que consagra a liberdade fundamental X tem o direito às condições fácticas necessárias para ter a oportunidade de realizar a liberdade a X.
Em termos explicativos, dir-se-á que quem tem liberdade para realizar a conduta X terá de ter prima facie direito às - e os demais terão de ter prima facie o dever de não afectar as - condições necessárias, sem as quais a liberdade se tornaria espúria. Assim, a título de exemplo, a liberdade de imprensa pressupõe necessariamente que os órgãos de comunicação social não sejam controlados pelo Estado (..)”. ( Pedro Moniz Lopes/Sara Azevedo, A liberdade de expressão no contexto desportivo: Considerações metodológicas, e-Pública/Revista electrónica de Direito Público, Vol. 8 nº 1 Abril/2021, pág. 139.)

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Do ponto de vista da teoria e jurisprudências constitucionalistas a questão não é, nem simples, nem pacífica.
Complexidade claramente evidenciada na jurisprudência dos nossos Tribunais comuns e administrativos bem como do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, (i) ora assumindo uma argumentação fundamentadora em prol da aplicação das normas infraconstitucionais, de fonte legal ou regulamentar, sancionatórias da violação do direito ao bom nome e reputação de terceiros garantido no catálogo constitucional (artº 26º CRP) e corolário do direito fundamental à integridade pessoal e moral (artº 25º nº 1 CRP), (ii) ora avançando mediante argumentação em prol da prevalência de posições jurídicas de vantagem ancoradas no direito fundamental à liberdade de expressão (artº 37º nº 1 CRP) a que se soma a garantia constitucional de proibição da censura (artº 37º nº 2 CRP).
Destes dois blocos de análise nos dá conta o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) procº nº 2453/18.1T9LSB.LI-5 de 08.06.2021 no segmento que, a nosso ver, sintetiza a jurisprudência dominante na matéria:
“(..)
“Entre a publicitação de uma opinião – direito que integra a liberdade de expressão do Recorrente – e a protecção dos bens pessoais ao bom nome e reputação de terceiros, há que fazer uma ponderação quando estes direitos entrem em conflito, devendo-se aferir em que moldes aquela opinião, pelas expressões que usa e pelas imputações que faz, ataca desproporcionadamente a honra e consideração desses terceiros” – Ac. do TCAS n.º18/19.0BCLSB, de 04/04/2019, dgsi.pt.

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos vem defendendo que quando estejam em causa assuntos relativos ao debate político, ou de interesse geral, que se relacionem com políticos ou figuras públicas, os limites da crítica admissível são mais largos que aqueles que se admitem para um simples particular, para alguém relativamente anónimo.

Para o TEDH os políticos ou as figuras públicas “expõem-se inevitavelmente e conscientemente a um controlo atento dos seus actos e gestos, quer pelos jornalistas, quer pela massa de cidadãos” (in Ac. do TEDH, Ac. Sampaio e Paiva de Melo c. Portugal, n.º 33287/10, de 23-10-2013, tradução nossa, a partir do original em francês; vide, no mesmo sentido, os Acs. ali citados e, em especial, os Acs. do TEDH Lopes Gomes da Silva c. Portugal, P. nº 37698/97, de 28-09-2000 e Laranjeira Marques da Silva c. Portugal, P. n.º 16983/06, de 19-01-2010) – citações no Ac. do TCAS de 01.10.2020, processo n.º 62/20.2BCLSB, dgsi.pt.

Ac. do TRL n.º 0315188, de 26.11.2003, dgsi.pt: “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que, por exemplo, se sente prejudicada por outra pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função.”

Ac. do TRE de 07.1.2016, processo n.º 756/13.0TATVR.E1: “no domínio da «luta» desportiva há uma redução da dignidade penal e da carência da tutela penal da honra, havendo que assegurar uma verdadeira dimensão da liberdade de expressão e da crítica, pois só assim se pode afastar uma atmosfera de intimidação, benéfica neste domínio. Daí que os juízos e imputações feitas, embora exageradas, não excedem o que, em geral, se considera tolerável no contexto da luta e disputa desportiva.”(…) No âmbito de um viver social desportivo, em contexto social específico de relações entre dirigentes desportivos, existe alguma tolerância social (que não aceitação social) em relação a uma certa margem de aspereza de linguagem e de confrontação de palavras e de ideias. Excessos de linguagem e de atitude que convivem com um correspondente “poder de encaixe” por parte de quem frequenta e se move nesses mesmos espaços e nesses mesmos meios, de “luta desportiva”.

Ac. do STJ de 13.07.2017, processo n.º 3017/11.6TBSTR.E1.S1, de 13-07-2017: “o TEDH vem entendendo que – particularmente no âmbito dos artigos que visam essencialmente a expressão da opinião e a crítica a aspectos ligados à vida pública e a temas de manifesto interesse público - está coberta pela liberdade de expressão, não apenas a discordância respeitosa, a crítica puramente objectiva emoldada pela elevação do debate – mas também a crítica contundente, sarcástica, mordaz, com uma carga exageradamente depreciativa ou caricatural da acção e capacidades do visado – justificando a necessidade de uma particular tolerância deste às opiniões adversas que criticam acerbamente, chocam, ofendem ou exageram, envolvendo porventura o uso de expressões agressivas ou virulentas”.

Ac. do TRL de 11.12.2019, processo n.º 4695/15.2T9PRT.L1, dgsi.pt: “Nas ofensas à honra estão sempre em causa dois valores constitucionais de igual valor – a honra e a liberdade de expressão (art.ºs 26º e 37º da CRP), sendo que a prevalência de um deles em cada caso tem sempre que resultar de uma ponderação das circunstâncias do caso concreto, encontrando um equilíbrio que preserve sempre a liberdade de expressão, indispensável à subsistência de uma sociedade democrática, limitada pela proibição do aniquilamento da honra. A honra é um bem jurídico complexo, que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua manifestação exterior - reputação ou consideração -, traduzida na estima e respeito que a personalidade moral de alguém infunde aos outros e que vai sendo adquirida ao longo dos anos, probidade e lealdade de carácter, protegendo-se a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade", a qual encontra o seu "fundamento essencial" na "irrenunciável dignidade pessoal".
Nesta perspectiva, como reiteradamente vêm decidindo os nossos tribunais e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, aqueles que exercem cargos com relevância/expressão pública têm um qualificado dever de suportar as críticas inerentes à sua actividade, por muito duras - ou mesmo infundadas - que sejam.
Salvo nos casos em que sejam notoriamente gratuitas ou infundadas, a eles cabe, na primeira linha, convencer do infundado das críticas, não podendo nunca subtrair-se ao debate público por via da ameaça - contra quem divulgue irregularidades no funcionamento das instituições - com o jus puniendi do Estado”. (..)”.

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Como referido, o caso presente envolve uma relação conflituante entre normas de direitos fundamentais, o direito ao bom nome e reputação – artº 26º nº 1 CRP – e o direito à liberdade de expressão e informação - artº 37º nº 1 CRP.
Isto porque, como já afirmado supra, a hipótese normativa regulamentar ao fazer referência expressa a “escritos injuriosos ou difamatórios para com árbitros” significa que o artº 112º nº 1 RDCLPFP tem como âmbito de protecção o bom nome e reputação de exercício profissional dos árbitros no quadro funcional dos princípios da actividade desportiva, a saber, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes, enunciados no artº 3º nº 1 da Lei de Bases (Lei 5/2007).
Consequentemente, provada a prática de actos ofensivos do bom nome e da reputação da equipa de arbitragem no exercício das funções desportivas, nomeadamente pelo uso de escritos injuriosos ou difamatórios através da imprensa privada e sítios na Internet explorados pelo clube, têm-se por infringidos os princípios da actividade desportiva, sendo de sancionar o clube com pena de multa dentro da moldura abstracta do artº 112º RDCLPFP.
Fixados os parâmetros que envolvem a matéria, voltemos ao caso concreto.



3. juízos de valor – ocorrências factuais;


Às referidas questões trazidas a recurso importa a matéria de facto julgada provada e levada aos itens 1, 2, 3, 5, 9, 10, 18 e 19 do probatório, a saber:

· o escrito foi publicado na página oficial do Twitter do Sporting Club de Braga Futebol SAD no dia 28.04.2019 (item 5);
· o escrito foi publicado no Twitter após o final do jogo de futebol disputado na cidade de Braga em 28.04.2019 entre o Sporting Club de Braga Futebol SAD e o Sport Lisboa e Benfica Futebol SAD (itens 1 e 5);
· o jogo de 28.04.2019 entre o Sporting Club de Braga Futebol SAD e o Sport Lisboa e Benfica Futebol SAD terminou com o apuramento de 1-4 a favor do Sport Lisboa e Benfica Futebol SAD (item 3);
· à data dos factos, o campeonato de futebol encontrava-se numa fase decisiva, sendo cada jogo e cada resultado especialmente importante para a competição, exigindo-se rigor e um acrescido profissionalismo às equipas de arbitragem (item 9);
· ao longo dos vários meses de competição, foram incontáveis as denúncias públicas de comportamentos susceptíveis de afectar sobremaneira a verdade desportiva e a integridade no desporto, como foram mais que muitas as investigações jornalísticas e policiais acerca de suspeitas de favorecimento e falsear de resultados por parte do SL Benfica (item 10);
· O jogo teve como árbitro principal A………………. e B………………… como VAR (item 2);
· No jogo da 10ª jornada da Liga Nós, disputado entre o CD Tondela e o SL Benfica, em que foi árbitro B………………… (VAR no jogo aqui em apreço) o jogador …………….. pisa dentro da área um adversário do Tondela (item 18);
· O árbitro B………………. vê-se envolvido em trocas de e-mails que indiciam a prática pela Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD de actos de corrupção desportiva e tráfico de influências envolvendo agentes desportivos, como delegados da Liga e árbitros (item 19).

Importam também as notícias saídas na imprensa desportiva levadas aos itens 12 a 19 do probatório, relativas ao jogo de futebol disputado em Braga no dia 28.04.2019, como segue:
· na Edição do Jornal "O Jogo" de 29.04.2020, constam os dizeres: “Em jogos desta natureza estar A…………… com a ajuda de um VAR como B……………… é meio caminho para muitas análises. Sem estaleca nem andamento!';
· na Edição do Jornal "O Jogo" de 29.04.2020, constam os dizeres: "A…………………. errou demasiado no aspeto técnico e disciplinar e mostrou uma condição física deficiente. O VAR optou por não ajudar"; "Atuação muito medíocre do árbitro e do VAR, pois cometeram lapsos graves, influenciando o resultado final em prejuízo do Braga";
· na Edição do "Jornal de Notícias” de 29.04.2020, o artigo publicado intitula "DUAS CARAS E UM PASSO GIGANTE RUMO AO TÍTULO. A perder ao intervalo, o Benfica goleia e isola-se na frente da Liga. Um penálti inexistente e outro duvidoso ajudaram a concretizar uma reviravolta que pode ter decidido o campeonato";
· na Edição do “Jornal de Notícias” de 29.04.2020, constam os dizeres: "O primeiro penalti do Benfica não existiu - ……………… não toca em ……… - e o segundo das águias é duvidosos. Poupou a expulsão a …………., já amarelado, após carga sobre ……………….”;
· na Edição do jornal “Correio da Manhã” de 28.04.2020, constam os dizeres: "…………….. contesta primeiro penalti a favor do Benfica: ''Ridículo". Treinador criticou a decisão de A…………… em assinalar penalti sobre ……………….., no lance que deu empate ao Benfica. ………………. criticou a decisão de A……………… em assinalar penálti sobre ……………….., no lance que deu empate diante do Sp. Braga. "Ridículo!", disparou o treinador no instagram, colocando uma imagem do lance entre o avançado encarnado e ……………., em que o árbitro apitou castigo máximo";
· foi afirmado pelo comentador televisivo ………………, no programa "Jornal da noite" do canal SIC, que “o SL Benfica jogou com 11 jogadores e meio", contando com a ajuda do árbitro; mais admitindo, no programa televisivo "Play-Off', a existência de uma ''arbitragem a favor da SL Benfica";
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O escrito levado ao Twitter da Recorrida logo após o jogo finalizado é do seguinte teor – vd. item 5 do probatório.

"Campeonato Desvirtuado - Mais uma jornada, mais uma demonstração da falência da arbitragem em Portugal, da incoerência dos seus critérios e da sua clara interferência na classificação em prol do "status quo" vigente.
Este domingo, contra o SL Benfica, assistimos a mais um rol de decisões inacreditáveis em prejuízo do SC Braga.
Desde logo, um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre ……… (17’).
Aos 57’, porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do SL Benfica, apesar de não existir falta de ……………...
Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar, com ………………. (61') e ………….. (78' e 79') a escaparem a claras infracções merecedoras de segundo cartão amarelo..." (prova documental de fls., não impugnada pelas partes).

Considerando o conteúdo do escrito no Twitter, verifica-se que os primeiros dois parágrafos do texto contêm os seguintes juízos de valor:
ü falência da arbitragem
ü incoerência dos seus critérios
ü interferência na classificação
ü rol de decisões inacreditáveis em prejuízo do SC Braga..

Por seu turno, os parágrafos terceiro e quarto do escrito no Twitter concretizam os juízos de valor antecedentes em ocorrências factuais durante o desafio, discriminadas pela Recorrida e que no seu entender configuram erros de apreciação técnica por parte da equipa de arbitragem em funções no jogo de futebol disputado em Braga no dia 28.04.2019, como segue:
ü um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre ………………… (17’).
ü Aos 57’, porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do SL Benfica, apesar de não existir falta de ……………….
ü Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar, com ………………. (61') e …... (78’ e 79’) a escaparem a claras infracções merecedoras de segundo cartão amarelo.
*
Quanto à imputação dos erros de apreciação técnica da equipa de arbitragem cometidos durante o jogo e descritos no terceiro e quarto parágrafos do Twitter da Recorrida, cabe referir os dois planos de bens jurídicos protegidos pelo artº 112º nºs. 1 e 4 RDCLPFP

· o bom nome e reputação profissional dos árbitros
· o quadro funcional dos princípios que enformam a actividade desportiva (artº 3º nº 1 Lei 5/2007, 16.01 (LBAFD)
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Considerando as exactas palavras constantes dos parágrafos terceiro e quarto do escrito no Twitter pela Recorrida é, para nós, inequívoco que o conteúdo de tal texto não tem, nem subjectiva nem objectivamente, aptidão ofensiva da honra e consideração devida à equipa de arbitragem no exercício profissional das respectivas funções durante o jogo de futebol disputado em Braga no dia 28.04.2019.
Consequentemente, os terceiro e quarto parágrafos do escrito no Twitter não violam os princípios que enformam a actividade desportiva (artº 3º nº 1 Lei 5/2007, 16.01 (LBAFD).

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Configurar e divulgar o cometimento de erros de apreciação técnica por parte da equipa de arbitragem em funções no jogo de futebol traduz a expressão de um juízo de apreciação técnica em sentido diverso do expresso na decisão da equipa de arbitragem em funções no decurso do jogo disputado.
Não tem a menor sustentação jurídica qualificar como integrando o cometimento do ilícito disciplinar de ofensa ao bom nome e reputação profissional dos árbitros (artº 112º nº 1 e 4 RDCLPFP) e de violação da principiologia da actividade desportiva (artº 3º nº 1 da Lei de bases, Lei 5/2007, 16.01) a divulgação por escrito por parte um agente desportivo, no caso um clube de futebol, da ocorrência discriminada de erros de apreciação técnica por comissão ou omissão imputados às decisões da equipa de arbitragem no decurso de um jogo de futebol por, no entendimento desse agente desportivo, constituírem violações da lex artis própria do futebol profissional, ou seja, em jogo oficial.
Há que distinguir o plano objectivo da apreciação técnica de discrepâncias entre a realidade e a juízo valorativo sobre essa realidade traduzido na decisão dos árbitros, e o plano subjectivo de imputação à decisão dos árbitros um agir pré-ordenado à violação da verdade desportiva.

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Num jogo de futebol entre duas equipas, os erros técnicos nas faltas assinaladas à equipa do clube que perdeu e os erros técnicos por omissão de faltas assinaladas à equipa do clube que ganhou, podem ter como consequência uma influência decisiva na verificação de um nexo de causalidade entre os erros técnicos cometidos pela equipa de arbitragem e o resultado desfavorável do jogo para a equipa do clube que perdeu.
No quadro objectivo, restrito à circunstância concreta ocorrida, os erros técnicos assinalados ou omitidos constituem incompetência na aplicação da lex artis, constituem um minus no padrão profissional da equipa de arbitragem e, nesta vertente objectiva, constituem também o desvirtuamento da lex artis, das regras próprias de um campeonato de futebol oficial.
Questão diferente é o clube perdedor extravasar do plano objectivo dos erros técnicos implicados no resultado desfavorável e passar para o plano subjectivo, afirmando que os erros técnicos nas faltas assinaladas e omitidas foram levados à prática pela equipa de arbitragem por esta prever e querer o resultado desfavorável que veio a verificar-se, ou seja, imputando aos árbitros um agir claramente pré-ordenado e ilícito à luz do princípio da verdade desportiva, dirigido ao cometimento dos erros técnicos assinalados tendo por finalidade o resultado verificado.

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Imputação constante dos itens 8 a 13 das conclusões de recurso pela ora Recorrente FPF no sentido de que a discriminação no escrito do Twitter de
ü um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre …………………… (17’).
ü Aos 57’, porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do SL Benfica, apesar de não existir falta de ………………..
ü Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar, com ………………. (61') e ……………… (78’ e 79’) a escaparem a claras infracções merecedoras de segundo cartão amarelo.
equivale a “lançar suspeitas” sobre a equipa de arbitragem “colocando intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação” e, como tal, integram o comportamento não querido pela norma regulamentar do artº 112º nº 1 e 4 RDCLPFP, conclusão que não tem suporte no texto do escrito no Twitter pela Recorrida.
Todavia, este juízo de parcialidade subjectiva pré-existente imputado à equipa de arbitragem no jogo de futebol disputado em Braga no dia 28.04.2019 não tem o menor apoio no texto do escrito no Twitter pela Recorrida.
Cabe relembrar que no nosso ordenamento jurídico a difamação traduz um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano e, por outro lado, que em contexto escrito a difamação se afere pelas expressões que o texto usa e imputações que o texto faz.
Não tendo existência concretizada no conteúdo declarado por escrito no Twitter a imputação de um agir pré-ordenado ao resultado desfavorável à Recorrida por parte da equipa de arbitragem no jogo de futebol disputado em Braga no dia 28.04.2019, conclui-se pela falta de sustentação jurídica da questão trazida a recurso nos itens 8 a 13 das conclusões pela Recorrente

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Nesta matéria das expressões usadas em contexto desportivo, mormente em matéria de restrições ao direito fundamental à liberdade de expressão e informação (artº 37º nº 1 CRP), a doutrina é muito clara ao afirmar um distinguo de enquadramento jurídico consoante as imputações de erros técnicos à equipa de arbitragem em jogos de futebol se verifiquem antes do jogo ou depois do jogo.
Tendo por base expositiva o disposto nos artºs. 75º, 129º e 152º do RDFPF, diz-nos a doutrina que a emissão de declarações ou juízos pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem antes de jogo oficial configura uma restrição cujo “(.. ) fundamento constitucional .. será, neste caso não primariamente a tutela propriamente dita da honra dos visados (árbitros e observadores) mas a salvaguarda do mérito, ética e verdade desportiva como traves-mestras dos valores do desporto.
A dissuasão de comentários sobre a parcialidade pré-jogos oficiais representa um meio para um fim que é o de evitar o condicionamento da arbitragem e supervisão de jogos oficias que possa, através de um clima de enviesamento, impactar uma correcta e imparcial arbitragem da partida a disputar (..)
A proibição da conduta referida também se verifica a posteriori, mas apenas na hipótese de essa imputação já representar uma ofensa à honra, consideração e dignidade (i.e., apenas no cenário em que a imputação directa de “parcialidade” ou “incompetência” constitua uma ofensa à honra) (..)
Dito de outro modo ao passo que a proibição de declarações ou juízos pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem antes do jogo abstrai da imputação de características e propriedades aos visados que sejam ofensivas da sua honra - sendo apenas relativa ao objecto das declarações (i.e., o jogo a realizar), a proibição de declarações ou juízos pondo em causa a imparcialidade ou competência técnica da equipa de arbitragem após o jogo é já relacionada com o conteúdo das declarações e depende da associação dessas afirmações ao resultado de afectar a honra, consideração ou dignidade dos visados. (..)” ( Pedro Moniz Lopes/Sara Azevedo, A liberdade de expressão no contexto desportivo: Considerações metodológicas, e-Pública/Revista electrónica de Direito Público, Vol. 8 nº 1 Abril/2021, págs.159-160.)

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Com especial relevo no caso concreto, o distinguo de enquadramento jurídico entre factos e juízos de valor, que a doutrina e a jurisprudência também sufragam.
Ou seja, “(..) O que importa apurar em casos do género, é se afirmações – que embora sugestivas, sejam em si dubitativas – equivalem a predicar a propriedade da “parcialidade” a um agente desportivo ou, por outro lado, traduzem um juízo de valor induzido a partir de desempenhos desportivos, no contexto em que o emissor crê haver verdade ou verosimilhança no substracto das suas afirmações.
A existência de uma base factual mínima é frequentemente a factor relevante na resolução de questões jurídicas relativas ao exercício da liberdade de expressão, tendência para a qual contribuiu decisivamente o TEDH. Alertando para a distinção entre factos e juízos de valor o TEDH esclarece que apenas os primeiros podem ser qualificados como verdadeiros ou faltos, sendo inviável a demonstração de exactidão dos segundos. [Ac. do TEDH, de 07.Maio.2002, Queixa nº 46311/99 (McVicar v. Reino Unido].
Nessa medida, exigir a prova da veracidade de um juízo de valor equivaleria, na visão do TEDH, à negação da própria liberdade de opinião, algo não admitido pelo artº 10º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (doravante CEDH). É neste contexto que surge o critério da base factual mínima: segundo o TEDH, os juízos de valor devem apresentar o mínimo de respaldo factual, ancorando-se em factos, sob pena de serem excessivos. Contudo, esse conteúdo factual mínimo varia consoante as circunstâncias de cada caso. (..)” ( Pedro Moniz Lopes/Sara Azevedo, A liberdade de expressão …, e-Pública, Vol. 8 nº 1 Abril/2021, págs.164-165.)

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Como já mencionado supra, no escrito no Twitter da Recorrida, além dos juízos de valor constantes dos primeiros dois parágrafos, nos terceiro e quarto parágrafos são descritos com referência aos minutos 17, 57, 61, 78 e 79 do jogo, “um penálti por assinalar”, “indevidamente marcada uma grande penalidade” e “infracções merecedoras de segundo cartão amarelo”, sendo referidos os jogadores em causa, ……………., ……………, …………. e ……………...
Acresce que na imprensa desportiva escrita e reportada pela televisão tendo por objecto precisamente o desempenho profissional da equipa de arbitragem no decurso do jogo de futebol disputado em Braga no dia 28.04.2019, são assinalados erros técnicos cometidos, conforme matéria de facto levada ao probatório nos itens 12 a 19 do probatório e acima descrita:
ü “Em jogos desta natureza estar A…………….. com a ajuda de um VAR como B………………. é meio caminho para muitas análises. Sem estaleca nem andamento!”;
ü "A……………… errou demasiado no aspeto técnico e disciplinar e mostrou uma condição física deficiente. O VAR optou por não ajudar"; "Atuação muito medíocre do árbitro e do VAR, pois cometeram lapsos graves, influenciando o resultado final em prejuízo do Braga";
ü "DUAS CARAS E UM PASSO GIGANTE RUMO AO TÍTULO. A perder ao intervalo, o Benfica goleia e isola-se na frente da Liga. Um penálti inexistente e outro duvidoso ajudaram a concretizar uma reviravolta que pode ter decidido o campeonato";
ü "O primeiro penalti do Benfica não existiu - ……………. não toca em ……….. - e o segundo das águias é duvidosos. Poupou a expulsão a ……………, já amarelado, após carga sobre ……………..”;
ü "…………… contesta primeiro penalti a favor do Benfica: ''Ridículo". Treinador criticou a decisão de A……….. em assinalar penalti sobre ………….., no lance que deu empate ao Benfica. …………. criticou a decisão de A……….. em assinalar penálti sobre …………, no lance que deu empate diante do Sp.Braga. "Ridículo!", disparou o treinador no instagram, colocando uma imagem do lance entre o avançado encarnado e ………………., em que o árbitro apitou castigo máximo";
ü programa "Jornal da noite" do canal SIC, que “o SL Benfica jogou com 11 jogadores e meio", contando com a ajuda do árbitro; mais admitindo, no programa televisivo "Play-Off', a existência de uma ''arbitragem a favor da SL Benfica";

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Pelo que vem dito improcede o erro de julgamento assacado nos itens 9 a 17 das conclusões de recurso.




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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Conselheiros da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo em julgar improcedente o recurso e confirmar o acórdão proferido.

Custas a cargo da Recorrente.



A Relatora Cristina Gallego Santos atesta, nos termos do disposto no artº 15º-A do DL 10-A/2020 de 13.03 aditado pelo artº 3º do DL 20/2020 de 01.05, o voto de conformidade ao presente acórdão dos restantes Conselheiros integrantes desta formação de conferência, Conselheiros José Veloso e Ana Paula Portela.

Lisboa, 9 de Setembro de 2021