Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:021/09
Data do Acordão:10/15/2009
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MOTA MIRANDA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P10958
Nº do Documento:SAC20091015021
Recorrente:A..., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 3º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTARÉM E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos
A… instaurou, em 4/8/2006, no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, acção declarativa, segundo a forma de processo ordinário, contra B…, pedindo que
1) Seja declarado o único proprietário do prédio urbano, sito em Ómnias, Marvila, Santarém e inscrito na matriz sob o art. 2387 e se determine a sua restituição ao seu património;
2) Seja o R. condenado a reconhecer esse direito de propriedade e a abster-se da prática de actos que o impeçam de exercer na plenitude esse seu direito;
3) Seja declarada nula e sem nenhum efeito a venda desse prédio, realizada através de escritura pública de compra e venda, celebrada em 25 de Outubro de 2004 ou, se assim não for entendido, que se declare ineficaz relativamente a si;
4) Se determine o cancelamento de todos os registos realizados com base naquela escritura de compra e venda, incluindo o registo de aquisição a favor do Réu e que se ordene o levantamento das penhoras a favor da Fazenda Nacional que recaem sobre o imóvel.
Para tanto e em síntese, alegou que, no dia 13 de Setembro de 1994, seus pais doaram-lhe aquele prédio urbano, doação que foi inscrita no registo a seu favor em 19.09.94. Há mais de 30 anos, ininterruptos, que têm retirado do prédio todas as utilidades à vista da generalidade das pessoas, sem qualquer oposição, convictos que não lesam interesses de terceiros. Esta doação veio, porém, a ser considerada ineficaz, em relação às Finanças, por sentença proferida na acção de impugnação pauliana que correu termos sob o n.° 189/97 no 2° Juízo de Santarém. Sobre o prédio doado recaíram penhoras empreendidas pelas Finanças de Santarém, que nunca lhe foram notificadas, sendo que os executados pelas dívidas eram os seus pais. No âmbito da execução fiscal n.° 2089-86/160026.5 AP, foi decidida a venda do imóvel por negociação particular, vindo a encarregada da venda a realizar escritura de compra e venda com o R., em 25/10/2004. A decisão para vender e a venda realizada nunca lhe foram notificadas, nem contra si foi instaurada qualquer execução, o que torna nula aquela venda, por ter como objecto coisa alheia (art. 892° e 286° do CC.).
Citado, o R. contestou, pugnando pela improcedência do pedido.
No saneador, decidiu-se serem os Tribunais Judiciais incompetentes em razão da matéria para conhecer da nulidade da venda determinada no âmbito de uma execução fiscal, por competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais (art. 1°, 4°, n.° 1, al. b), 8° e 49°, n.° 1 do ETAF aprovado pela Lei 13/2002 de 19/2) e no restante absolveu o R. do pedido.
Inconformado, apelou para a Relação de Évora sem sucesso.
Interpôs de seguida recurso para o S.T.J., onde foi determinada a remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos por ser o competente.
Nas suas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
1) O pedido de nulidade da venda do prédio urbano referido nos autos e cancelamento de registos e consequentes pedidos é da competência dos tribunais judiciais — art. 211°, n.° 1 da C.R.P., art. 66° do C.P.C. e art. 18°, n.° 1 da LOFTJ.
2) Uma vez que o que está em causa nestes pedidos são questões de direito privado que surgem no âmbito de relações jurídicas de natureza privada e como tal reguladas pelas normas do direito civil comum.
3) Ao decidir de forma diversa, o acórdão da Relação violou os preceitos acima referidos.
Não foram apresentadas contra alegações.
O Ex.mo Magistrado do M.° P.° emitiu parecer no sentido de confirmar o decidido por a competência caber aos Tribunais Administrativos e Fiscais (art.1°, 4º, n.° 1, al. b) e 49°, n.° 1, al. d) do ETAF).
Cumpre decidir.
E para resolver há apenas uma única questão, como resulta das conclusões das alegações do recorrente (art. 684°, n.° 3 e 690º, n.° 1 do C.P.C.) — decidir a quem cabe a competência, em razão da matéria (se ao foro comum se ao foro administrativo) para apreciar e proferir decisão sobre o objecto dos autos (pedido de declaração de nulidade ou de ineficácia da compra e venda, determinada no âmbito de uma execução fiscal e consequentes cancelamentos do registo).
Ora, sabe-se que as causas que não estejam atribuídas a outra jurisdição são da competência dos Tribunais Judiciais, de acordo com o art. 66° do C.P.C. e com o art. 18° da Lei 3/99 de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).
Por isso, sendo os Tribunais Administrativos e Fiscais os órgãos que exercem a jurisdição administrativa e fiscal (cf. art. 1° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002 de 19/2, com as alterações introduzidas pela Lei n.° 4-A/2003 de 19/2 e pela Lei n.° 107-D/2003 de 31/12) a sua competência determina-se pela análise directa das espécies de acções que podem ser submetidas a sua apreciação e decisão, segundo o que vem estabelecido na sua lei orgânica.
E que, por isso, conhecida a competência material que lhes foi especialmente atribuída por lei e integrando-se a matéria da acção proposta nessa competência, fica logo determinada a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais e necessariamente excluída a competência dos restantes (cf. Varela, Bezerra e Nora em Manual de Processo Civil, pág. 208 e Alberto dos Reis no Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, pág. 201).
Para tanto, para se poder determinar a competência em razão da matéria, há que atentar aos termos em que a acção é proposta ou instaurada, aos termos em que vem estruturada a causa de pedir e o pedido; há que determinar a natureza da relação jurídica pleiteada, como vem apresentada pelo A. e concluir se ela se integra em qualquer das situações previstas nos preceitos legais com que o legislador procedeu à repartição das diversas competências em razão da matéria (cf. Acórdão do STJ de 1211/94, de 9/5/95 e de 3/2187, nas C.J. — STJ — 1994-1-38, 1995-2-68 e BMJ, 364-591 e ainda Manuel de Andrade em Noções Elementares de Processo Civil, pág. 89).
Ora, perante a factualidade alegada e considerada na decisão recorrida, para onde se remete ao abrigo do disposto no art. 713°, n.° 6 do C.P.C., há que afirmar que o A. formula uma pretensão (declaração de nulidade da compra e venda do imóvel, celebrada no âmbito de uma execução fiscal ou sua ineficácia) e que, como causa de pedir, como fundamento concreto donde faz derivar aquele seu pedido, invoca a falta de notificação da penhora e da venda.
Daqui se conclui que o A. baseia a sua pretensão em alegadas ilegalidades cometidas no processo de execução fiscal, onde se penhorou e determinou a venda forçada do imóvel.
Trata-se de uma questão que decorre de uma relação jurídica de natureza fiscal/administrativa, de uma relação jurídico-tributária, de uma questão que deriva de um processo de execução fiscal, cujo objectivo foi a cobrança coerciva de créditos tributários, onde a venda executiva se encontra regulamentada por normas de direito público e onde a Fazenda Nacional é colocada em posição de supremacia.
Ora, os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, são os Tribunais da Jurisdição Administrativa e Fiscal (art. 1° do ETAF).
A estes Tribunais cabe, nomeadamente, a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração (art. 4º, n.° 1 al. b) do ETAF).
Por outro lado, estabelece-se no art. 49º, n.° 1, al. d) do ETAF que compete aos Tribunais Tributários conhecer: — “Dos incidentes, embargos de terceiro, verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de actos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal”.
Acresce que no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) aprovado pelo Dec.-lei 433/99 de 26/10, ao regulamentar a execução fiscal, se determina no seu art. 10º, n.° 1, al. f), que cabe aos serviços de administração tributária instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.° 1 do art. 151° (aqui atribui-se ao Tribunal Tributário de 1ª Instância da área onde correr a execução, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos de execução fiscal).
Por outro lado ainda, o processo judicial tributário, de acordo com o art. 97º n.° 1 daquele CPPT, e à semelhança do que dispõe o art. 96°, n.° 1 do C.P.C. (o tribunal competente para a acção é também o competente para os incidentes) compreende o recurso dos actos praticados na execução fiscal, bem como todos os incidentes jurisdicionais suscitados na execução fiscal
No caso concreto, como o A. funda a invalidade do contrato de compra e venda em ilegalidades praticadas no processo de execução fiscal que invalidam aquela compra e venda, tem de se afirmar integrar-se o objecto da acção (definido pelo pedido e causa de pedir) nas normas legais que atribuem a jurisdição aos Tribunais Administrativos e Fiscais, mais precisamente aos Tribunais Tributários, o que exclui desde logo a competência dos Tribunais Judiciais para apreciar e decidir o objecto da acção.
E que a competência, em razão da matéria, se encontra atribuída aos Tribunais Tributários, tem sido decidido em situações semelhantes, designadamente, no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 7/7/2009 no Conflito 10/09; Acórdão de 12/10/2004 no Conflito 03/04; e no Acórdão 21/5/2008, no Conflito 01/08.
Pelo exposto, acordam neste Tribunal dos Conflitos em negar provimento ao recurso e declarar competente para conhecer daquele pedido de declaração de nulidade ou de ineficácia da venda, o Tribunal Tributário da área da execução.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Outubro de 2009. – Artur José Alves da Mota Miranda (relator) – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho – Alberto de Jesus Sobrinho – Custódio Pinto Montes – Jorge Artur Madeira dos Santos (vencido, nos termos da declaração que junta) – Adérito da Conceição Salvador dos Santos (vencido nos termos da declaração de voto do Cons. Madeira dos Santos)
VOTO DE VENCIDO
A acção dos autos visa, essencialmente, convencer o réu de que determinado prédio por ele adquirido numa execução fiscal pertence ao autor. A que acrescem outros três pedidos: o de declaração de nulidade ou ineficácia da venda executiva; o de cancelamento dos registos subsequentes; e o de levantamento das penhoras a favor da Fazenda nacional e recaídas sobre o imóvel vendido.
No que toca a esses pedidos de declaração e cancelamento, as instâncias interpretaram erradamente a petição inicial; e a posição vencedora secunda-as, ao dizer que essas pretensões se baseiam «em alegadas ilegalidades cometidas no processo de execução fiscal».
É certo que o autor alegou que não foi notificado das penhoras que incidiram sobre o prédio, da decisão de o vender e da venda realizada; mas não qualificou tais omissões como ilegalidades e, sobretudo, não extraiu delas uma consequência qualquer, designadamente a de que a venda seria inválida por esses supostos vícios processuais. O que a petição evidencia é o intuito de obter a declaração de nulidade (ou ineficácia) da venda por ela ser de bens alheios.
O que bem se compreende: o autor não parte do antecedente de que a venda executiva é nula (ou ineficaz) para, daí, extrair a consequência de que é ele o «dominus»; ao invés, parte da ideia de que é o proprietário e, por isso, a venda foi «a non domino» e é nula (ou ineficaz).
Ora, se o pedido principal, de reconhecimento da propriedade, procedesse, seguir-se-ia necessariamente a ineficácia da venda realizada na execução fiscal, «ex vi» do art. 909°, n.° 1, al. d), do CPC.; e seguir-se-ia, também, o cancelamento dos registos fundados nessa venda. É seguro que estes assuntos, que radicam no problema de saber quem é o titular do direito de propriedade sobre o prédio vendido, apenas concernem ao autor e ao réu e têm índole privada — pelo que o respectivo conhecimento incumbe à jurisdição comum.
Decerto que o mesmo não sucede com o pedido de levantamento de penhoras feitas a favor da Fazenda Nacional. Tal questão só pode ser apreciada e decidida nas execuções fiscais onde as penhoras foram impostas — pelo que a jurisdição competente para conhecer da matéria é a administrativa e fiscal.
Jorge Artur Madeira dos Santos