Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0836/08
Data do Acordão:09/15/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:GASÓLEO
IMPOSTO SOBRE PRODUTOS PETROLÍFEROS
INCONSTITUCIONALIDADE
CARTÃO DE MICROCIRCUITO
Sumário:I - A norma do § 7.º da Portaria n.º 234/97, de 4 de Abril, é organicamente inconstitucional, por violação dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição, na medida em que responsabiliza os proprietários ou os responsáveis legais pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público do gasóleo colorido e marcado pelo pagamento do ISP resultante da diferença entre a taxa do imposto aplicável ao gasóleo rodoviário e a taxa do imposto aplicável ao gasóleo colorido e marcado, em relação às quantidades que venderem e que não fiquem documentadas no sistema de controlo subjacente à obrigatoriedade de a venda ser feita a titulares de cartões com microcircuito.
II - A norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea e) do CIEC (aprovado pelo DL 566/99, de 22/12, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo artigo 69.º da Lei 53-A/2006, de 29/12, ao artigo 74.º deste Código) é organicamente inconstitucional, por violação dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição, quando interpretada no sentido de contemplar previsão normativa idêntica à acima referida.
Nº Convencional:JSTA00066580
Nº do Documento:SA2201009150836
Data de Entrada:10/03/2008
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF VISEU PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - IMPOSTOS ESPECIAIS DE CONSUMO.
Área Temática 2:DIR CONST - SISTEM FINANC FISC.
Recusa Aplicação:CIEC99 ART3 N2 E.
PORT 234/97 DE 1997/04/04 PAR7.
Legislação Nacional:PORT 234/97 DE 1997/04/04 PAR7.
CIEC99 ART3 N2 E ART74.
L 28/82 DE 1982/11/15 ART2 ART80 N1.
L 53-A/2006 DE 2006/12/29 ART69.
CONST76 ART103 N2 ART165 N1 I.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC363/07 DE 2007/10/03.; AC TC N321/2008 DE 2008/06/18.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – O Representante da Fazenda Pública, não se conformando com a sentença do Mmo. Juiz do TAF de Viseu que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…, Lda., com sede em Sever do Vouga, contra a liquidação n.º 900044.6, de 9 de Agosto de 2004, de imposto sobre produtos petrolíferos, e respectivos juros compensatórios, no montante global de € 66.056,98, e, em consequência, ordenou, por ilegal, a sua anulação, dela veio interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
A) A norma contida no n.º 7 da Portaria 234/97, de 4 de Abril, não padece de inconstitucionalidade, quer orgânica quer material, por não ser inovatória face ao preceituado pela alínea e) do n.º 2 do artigo 3.º e pelo artigo 74.º do CIEC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/09, de 22 de Dezembro;
B) A sentença ora recorrida, fundando-se na desaplicação de norma constitucional, faz errada aplicação do direito, enfermando, consequentemente, de ilegalidade.
Contra-alegando, veio a impugnante dizer que:
I) A Portaria n.º 234/97 foi publicada no contexto da subordinação da concessão de taxas reduzidas de ISP ao gasóleo destinado a uso agrícola à utilização de gasóleo colorido e marcado, em cumprimento de directivas comunitárias que já tinham motivado alterações às introduzidas pelas Leis n.ºs 10-B/96 e 52-C/96 aos Decs.-Leis n.ºs 123 e 124/93, que ao tempo estabeleciam as estruturas e as taxas desse imposto, bem como a publicação do Dec.-Lei n.º 15/97 e das Portarias n.ºs 200/96 e 93/97;
II) Com a instituição do gasóleo colorido e marcado, e a decorrente aplicação da taxa reduzida de ISP logo no momento da declaração de introdução no consumo processada à saída dos entrepostos fiscais das empresas petrolíferas, deixou de estar assegurado que essas empresas, em nome das quais o produto é introduzido no consumo, e que estavam assim previstas como sujeitos passivos no n.º 1 do art.º 6.º do Dec.-Lei n.º 123/94, suportariam o imposto à taxa “normal” relativamente a todas as quantidades cuja venda a utilizadores finais não viesse a ficar registada no sistema de controlo do gasóleo agrícola através dos cartões de microcircuito a estes atribuídos;
III) O controlo de afectação também não podia ser sistemática e eficazmente exercido junto das pessoas que detivessem, utilizassem ou beneficiassem com o consumo dos produtos que constituíam os demais sujeitos passivos do imposto, previstos para os casos de detenção ou introdução irregular no consumo no n.º 2 do referido art.º 6.º, pelo que se tornava necessário centrar a responsabilidade pelo pagamento da diferença entre a taxa reduzida aplicada na introdução no consumo à saída dos entrepostos fiscais e a taxa “normal”, no caso de as vendas aos utilizadores finais não serem registadas através dos cartões electrónicos, no último acto da cadeia de comercialização, colocando-a a cargo dos titulares dos postos de venda ao público;
IV) Sem que as alterações legislativas que haviam sido efectuadas em vista da instituição do gasóleo colorido e marcado tivessem procedido a essas adaptações, nomeadamente modificando o âmbito dos sujeitos passivos de ISP previsto no dito art.º 6.º do Dec.-Lei n.º 123/94, a Portaria n.º 234/97, que lançou as bases da rede de abastecimento desse produto à agricultura, veio estabelecer, no seu n.º 7, que só podendo o mesmo ser fornecido a titulares de cartões de microcircuito seriam os proprietários ou responsáveis legais pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público responsabilizados pelo pagamento da diferença entre a taxa reduzida já aplicada e a aplicável ao gasóleo rodoviário em relação às quantidades que vendessem e não ficassem registadas no movimento contabilístico do posto (pretendendo aludir ao sistema informático de controlo do gasóleo agrícola gerido pela SIBS e a Petrogal referido no n.º 8 seguinte);
V) Ao assim estatuir, o n.º 7 da Portaria n.º 234/97 inovou, se não em matéria de incidência objectiva e de taxas, determinando que a venda ao público de gasóleo colorido e marcado sem registo no sistema informático tornava o ISP devido à taxa legalmente prevista para o gasóleo rodoviário, pelo menos em matéria de incidência subjectiva, ao estabelecer um responsável pelo pagamento distinto dos sujeitos passivos que se achavam contemplados na lei do imposto (dito art.º 6.º do Dec.-Lei n.º 123/94);
VI) Como todas essas matérias estão contidas no âmbito da reserva relativa de lei formal, estabelecida nos art.ºs 106.º, n.º 2 e 168.º, n.º 1, al. i) da CRP, com a numeração que tinham ao tempo, esse n.º 7 da Portaria n.º 234/97, constante de instrumento normativo com natureza regulamentar, nasceu em violação dessas disposições da Lei Fundamental, e por isso inquinado da inconstitucionalidade que, em Acórdão de 03/10/2007, este STA lhe atribuiu;
VII) Posteriormente aprovado pelo Dec.-Lei n.º 566/99, o CIEC incluiu desde o início entre os sujeitos passivos, contemplados na al. e) do n.º 2 do art.º 3.º, as pessoas singulares ou colectivas que, em situação irregular, vendam produtos sujeitos a impostos especiais de consumo e, a partir da redacção dada pela Lei n.º 109-B/2001 ao n.º 4 do seu art.º 74.º, a que corresponde o n.º 5 da redacção do Dec.-Lei n.º 223/2002, passou a determinar que o gasóleo colorido e marcado só pode ser adquirido por titulares de cartões de microcircuito atribuídos aos beneficiários, daí se podendo inferir a irregularidade da venda a não titulares desses cartões;
VIII) Considerando este contexto normativo, que é também o da situação em causa nestes autos, respeitante a vendas efectuadas durante o ano de 2002, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 321/2008, invocado pela Fazenda Pública em fundamento do seu Recurso, entendeu que o n.º 7 da Portaria n.º 234/97, ao responsabilizar os proprietários ou responsáveis legais pela exploração dos postos de venda ao público de gasóleo colorido e marcado pela diferença entre o ISP pago à taxa aplicada a esse produto e o calculado à taxa prevista para o gasóleo rodoviário, não enfermava de inconstitucionalidade, pois não excedia o que já resultaria da lei do imposto;
IX) Todavia, incluindo-se a matéria da incidência subjectiva dos impostos no âmbito da reserva relativa de lei formal, a sua disciplina só pode ser estabelecida ou modificada por lei da AR ou decreto-lei do Governo ao abrigo de autorização legislativa, a qual deve definir com precisão o seu objecto, sentido e extensão, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 165.º da CRP (na numeração posterior à Revisão de 97);
X) E a Lei n.º 67-B/98, ao abrigo da qual o Governo decretou o CIEC, não definia quaisquer alterações que pudessem ser introduzidas em matéria de sujeitos passivos, e excluía mesmo a alteração do âmbito de incidência que se achava delimitado na legislação do imposto que ao tempo vigorava;
XI) Assim, a al. e) do n.º 2 do art.º 3.º do CIEC, na parte em que passava a considerar como sujeitos passivos as pessoas singulares ou colectivas que, em situação irregular, vendessem produtos sujeitos a ISP, que não se achavam incluídos no âmbito da incidência subjectiva desse imposto estabelecido na lei anteriormente vigente (art.º 6.º do Dec.-Lei n.º 123/94), enfermava de violação do referido princípio de reserva relativa de lei formal em matéria de elementos essenciais dos impostos, agora delimitado no n.º 2 do art.º 103.º e na al. i) do n.º 1 do art.º 165.º da CRP;
XII) Pelo que o n.º 7 da Portaria n.º 234/97, na medida em que pressupusesse aquela determinação do CIEC, ou dispusesse no mesmo sentido, ficava igualmente afectado de violação destas normas da Lei Fundamental, e assim eivado da inconstitucionalidade que já o inquinara de início;
XIII) Enfermando por isso ambas as normas de inconstitucionalidade prevista no art.º 277.º da CRP, devem a al. e) do n.º 2 do art.º 3.º do CIEC, na parte em que previa como sujeitos passivos de ISP as pessoas singulares ou colectivas que, em situação irregular, vendam produtos sujeitos ao imposto, e o n.º 7 da Portaria n.º 234/97, na parte em que previa a responsabilidade dos proprietários ou responsáveis legais pelos postos de venda ao público do gasóleo colorido e marcado pela diferença entre o montante de ISP liquidado e pago e o que seria devido se se tratasse de gasóleo rodoviário, ser desaplicados, em observância do disposto nos art.ºs 204.º da CRP e 1.º, n.º 2, do ETAF;
XIV) E como essa responsabilização dos proprietários ou responsáveis legais dos postos autorizados para a venda ao público de gasóleo colorido e marcado pelo pagamento do valor de imposto correspondente à diferença entre a taxa aplicada a esse produto e a prevista para o gasóleo rodoviário, em relação às quantidades que vendam e não fiquem registadas no sistema informático subjacente aos cartões com microcircuito atribuídos, só veio a ser consagrada, com respeito pelo princípio da reserva de lei, por força do que foi depois estabelecido no n.º 5 do art.º 74.º do CIEC com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, vigente a partir de 01/01/2007 e inaplicável a situações anteriores, por a retroactividade não ter sido prevista e contrariar o disposto no n.º 3 do art.º 103.º da CRP, não pode o presente recurso ser provido.
O Exmo. Magistrado do MP junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso merecia provimento, devendo a sentença impugnada ser revogada e substituída por acórdão declaratório da improcedência da impugnação judicial.
Por acórdão deste STA de 19/3/2009 foi concedido provimento ao recurso da FP, revogada a sentença recorrida e, em consequência, julgada improcedente a impugnação judicial deduzida, com fundamento em que as normas do § 7.º da Portaria n.º 234/97, de 4 de Abril, e do artigo 3.º, n.º 2, alínea e) do CIEC, não eram nem orgânica nem materialmente inconstitucionais.
Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional que, dando-lhe provimento, decidiu julgar organicamente inconstitucional, por violação dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, a norma do § 7.º da Portaria n.º 234/97, de 4 de Abril, na medida em que responsabiliza os proprietários ou os responsáveis legais pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público do gasóleo colorido e marcado, em relação às quantidades que venderem e que não fiquem documentadas no sistema de controlo subjacente à obrigatoriedade de a venda ser feita a titulares de cartões com microcircuito, e também organicamente inconstitucional, por violação dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, a norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea e), do CIEC (aprovado pelo DL 566/99, de 22/12, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo artigo 69.º da Lei 53-A/2006, de 29/12, ao artigo 74.º deste Código), quando interpretada no sentido de contemplar previsão normativa idêntica à acima referida.
Transitado em julgado este acórdão do TC, há que reformular, então, o acórdão recorrido em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade (artigo 80.º, n.ºs 2 e 3 da Lei 28/82, de 15/11).
II – Mostra-se assente a seguinte factualidade:
A) Em 21 e 22 de Abril de 2004, o Núcleo de Informações e Fiscalização da Alfândega de Aveiro procedeu a inspecção à Impugnante e elaborou o relatório de fls. 543 e segs. dos presentes autos, que aqui se dá por inteiramente reproduzido e donde resulta com interesse para a decisão:
«(…)
ORIGEM DA ACÇÃO
Despacho proferido em 08/07/2003, pelo Sr. Director da Alfândega de Aveiro.
OBJECTIVO DE ACÇÃO:
Esta acção teve como objectivo averiguar a forma como a empresa “A…, Lda.,” procedeu à comercialização de gasóleo colorido e marcado no ano de 2002, assim como apurar as quantidades vendidas.
METODOLOGIA UTILIZADA:
Visita ao local e inquirição de funcionários responsáveis. Recolha de documentação relevante. Análise comparativa das compras e vendas de gasóleo colorido e marcado.
RESULTADOS APURADOS:
Da análise da documentação recolhida junto da empresa e dos dados fornecidos pelo Instituto de Desenvolvimento Rural e Hidráulica apurámos os seguintes resultados:
As vendas registadas pelo POS em 2002 foram 264.728,4 litros (anexo II);
As compras referenciadas na contabilidade para o mesmo período foram 550.316 litros (anexo III);
As existências iniciais em 2002 foram 18.330,51 litros (anexo IV);
As existências finais em 2002 foram 14.420 litros (anexo IV).
Calculando-se as vendas efectuadas (anexo V) encontramos fortes divergências em relação às vendas registadas pelo POS. Assim:
Vendas registadas: 264.728,4 litros
Vendas calculadas: 554.226,1 litros
O que perfaz a diferença: 289.498,11 litros
CONCLUSÕES DO PROJECTO DE CONCLUSÕES:
A diferença encontrada entre as vendas do gasóleo colorido e marcado efectuadas a titulares de cartão de microcircuito e as vendas calculadas revela-nos a quantidade desse gasóleo vendido a pessoas não titulares de cartão microcircuito.
DÍVIDA APURADA (anexo VI):
Das diferenças encontradas apura-se, assim, uma dívida total de 61.483,61 Euros (sessenta e um mil quatrocentos e oitenta e três Euros e sessenta e um cêntimos), resultante da diferença das taxas de gasóleo colorido e marcado e do gasóleo rodoviário multiplicada pela quantidade de gasóleo colorido vencido a pessoas não detentoras de cartão microcircuito. Visto não ser possível determinar o momento exacto dessas vendas, foi utilizada a diferença de taxas mais favorável ao operador, no ano de 2002, registada no mês de Fevereiro (212,38 Euros/Klt).
AUDIÇÃO PRÉVIA:
Nos termos do artigo 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, anexo ao Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de Dezembro, o sujeito passivo foi notificado do Projecto de Conclusões (Anexo VII) através da nota n.º 4591 de 28/05/2004 (Anexo VIII).
No exercício do seu direito de audição prévia veio em 05/07/2004 alegar que:
A venda desse combustível só era efectuada a quem tivesse feito o pedido para atribuição do cartão de microcircuito;
O cliente comprometia-se a descontar a quantidade de litros vendidos sem estar na posse do cartão quando aquele lhe fosse entregue;
O tempo que decorria entre o pedido e a entrega do cartão chegou a demorar um ano, pelo que, era natural que as quantidades vendidas não coincidissem com as registadas no POS. O gasóleo colorido e marcado podia ser vendido num ano e só ser descontado no ano seguinte;
Alguns clientes chegaram a pagar multas por terem ultrapassado o plafond atribuído ao cartão, facto este que tem a ver com aquele desfasamento de tempo;
Só vendeu aquele combustível por presumir que a lei não tinha sido alterada.
Exposta a argumentação, é nosso entendimento que estas justificações não são suficientes para alterar as conclusões referidas no Projecto de Conclusões do Relatório. Embora o gasóleo tenha sido vendido a pessoas que já tinham efectuado o pedido de atribuição de cartão de microcircuito e, portanto, não se verificando um desvio de fim, o n.º 5 do artigo 74.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99 de 22 de Dezembro (anterior n.º 4, aditado pelo artigo 38.º da Lei n.º 109-B/2001, de 27/12 – Orçamento de Estado para 2002) é bem claro: “O gasóleo colorido e marcado só poderá ser adquirido por titulares de cartão de microcircuito …”.
Por outro lado, não é legítimo invocar o desconhecimento da lei para justificar os actos cometidos.
Quanto à responsabilidade pelo pagamento do imposto, ela advém do ponto 7.º da Portaria 234/97, de 4 de Abril – I Série-B.
CONCLUSÕES:
São mantidas as conclusões enunciadas no Projecto de Conclusões do Relatório.
INFRACÇÕES:
A venda de gasóleo colorido e marcado a pessoas não titulares de cartão com microcircuito viola o disposto no n.º 5 do artigo 74.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de Dezembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 109-B/2001, de 27 de Dezembro, facto tipificado com crime aduaneiro pela alínea d) do n.º 1 do artigo 96.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
PROPOSTAS:
Notificação da empresa das conclusões do presente relatório;
Comunicação do mesmo ao Núcleo de Impostos Especiais de Consumo da Alfândega de Aveiro;
Elaboração do processo de cobrança “a posteriori” pelo Núcleo de Conferência Final da Alfândega de Aveiro, nos termos do artigo 101.º da Reforma Aduaneira, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 472/99, de 8 de Novembro.
(…)».
B) Em 09/08/2004, o Núcleo de Procedimentos Aduaneiros e Fiscais emitiu o seguinte parecer:
«Parecer de Serviço
No seguimento da acção de fiscalização levada a cabo pela equipa inspectiva desta Alfândega – relatório de acção 64/2004, relativo ao período de 2002, ao posto de combustível sito em …, …, Sever do Vouga, propriedade de A…, Lda., NIF …, através da análise dos registos contabilísticos da firma, designadamente através do confronto entre as vendas registadas na contabilidade, as vendas registadas no POS e as existências iniciais e finais de 2002, foi possível apurar uma diferença de 289.498,11 lt relativo a vendas de gasóleo colorido e marcado não registadas no POS.
Da diferença registada entre as vendas reflectidas na contabilidade e as vendas reflectidas no POS, pressupõe-se que aquele posto vendeu gasóleo colorido e marcado a não titulares de cartão de microcircuito, violando o disposto no n.º 5 do art.º 74.º do Decreto-Lei n.º 566/99, de 22/12, com a redacção dada pelo art.º 38.º da Lei 109-B/2001, de 27/12 e o disposto no art.º 7.º da Portaria 234/97, de 4 de Abril.
O imposto é exigível ao abrigo do art.º 7.º da referida portaria, conjugado com a alínea a) do n.º 3 do artigo 7.º do DL 566/99, de 22/12, uma vez que os proprietários ou responsáveis legais pela exploração dos postos autorizados de venda ao público de gasóleo colorido e marcado são responsáveis pelo pagamento do ISP e do IVA resultantes da diferença entre a taxa do imposto aplicável ao gasóleo colorido e marcado em relação às quantidades que venderam e que não ficaram documentadas no movimento contabilístico do posto.
De acordo com o n.º 4 do referido artigo, a taxa a aplicar é a que estiver em vigor à data da exigibilidade, neste caso, dada a impossibilidade da determinação do momento exacto da(s) infracção (ões), considera-se a data de 31/12/2002 como a da exigibilidade da dívida, considerando-se a taxa mais baixa verificada no ano de 2002, relativa à diferença entre a taxa aplicável ao gasóleo rodoviário e a taxa aplicável ao gasóleo colorido e marcado, no caso, verificada no mês de Fevereiro, no valor de 212, 38 €klt, para efeitos de cálculo da dívida.
É devido imposto sobre os produtos petrolíferos no valor de € 61.483,61 (289498, 11 x 0,21238).
O n.º 5 do art.º 74.º refere claramente que o gasóleo colorido e marcado só poderá ser adquirido por titulares de cartão de microcircuito e o n.º 6 do mesmo artigo dispõe que a venda de gasóleo colorido e marcado com violação do disposto no n.º 5 está sujeita às sanções previstas no RGIT e em legislação especial.
É sujeito do imposto o proprietário/responsável legal pela exploração do posto de venda de combustível, ao abrigo do art.º 7.º da Portaria n.º 234/97 e da al. a) do n.º 2 do art.º 3.º do DL 566/99, de 22/12, no caso, a firma A…, Lda..
Assim, de harmonia com as disposições conjugadas da alínea e) do n.º 2 do art.º 3.º e do art.º 10.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, instituído pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22/12, há lugar a registo de liquidação “a posteriori” relativamente à dívida atrás indicada e não paga, pelo que deverá ser processado o correspondente Impresso de Liquidação para a quantia de (cod. 514) € 61.483,61, liquidação essa que deverá ser acrescida de € 4.573,37 referente a juros compensatórios (código 651), contados desde a data da infracção, tendo-se considerado a data de 31-12-2002 até 09-08-2004, nos termos do n.º 7 do art.º 35.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro, sendo notificado o devedor para proceder ao pagamento de € 66.056,98, dentro de 15 (quinze) dias, conforme o previsto no art.º 10.º do CIEC.».
C) Em 09/08/2004, o Director da Alfândega de Aveiro proferiu o seguinte despacho:
«Visto. Concordo com o parecer de serviço exarado a folhas 86 a 87 do presente processo. Registe-se a dívida e notifique-se o devedor para proceder ao pagamento dos montantes em débito.».
D) A Impugnante foi notificada por carta registada com aviso de recepção, em 11/08/2004, para pagar o montante de € 66.056,98, relativo a Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e respectivos Juros Compensatórios, objecto do registo de liquidação n.º 900044.6 de 2004-08-09, efectuado nos termos do art.º 10.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, no prazo de 15 dias.
E) A petição inicial dos presentes autos foi apresentada em 26/11/2004.
III – Vem o presente recurso interposto da sentença do Mmo. Juiz do TAF de Viseu que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação de imposto sobre produtos petrolíferos e, em consequência, anulou esta por ilegal, com o fundamento de que o n.º 7 da Portaria n.º 234/97, de 4 de Abril, em que aquela se baseou, é orgânica e materialmente inconstitucional.
Sustenta o recorrente, porém, que tal norma não padece de qualquer inconstitucionalidade por não ser inovatória face ao preceituado pela alínea e) do n.º 2 do artigo 3.º e pelo artigo 74.º do CIEC.
A fundamentação da sentença recorrida aderiu à doutrina do acórdão deste STA de 3/10/2007, proferido no processo 363/07, no qual se exprime o entendimento de que a norma em causa – n.º 7 da Portaria 234/97, de 4 de Abril, é material e organicamente inconstitucional, por ampliar a incidência subjectiva de ISP em termos que não resultavam do CIEC.
De tal aresto fora, entretanto, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, tendo este decidido, em acórdão de 18/6/2008, com o n.º 321/2008, e publicado no DR II Série, n.º 154, que a norma constante do n.º 7 da Portaria 234/97, de 4 de Abril, não revestia carácter inovatório, limitando-se a precisar mecanismos de cobrança do imposto devido nos termos dos artigos 3.º, n.º 2, alínea e) e 74.º do CIEC, não sendo, por isso, inconstitucional na parte em que prevê a responsabilidade dos proprietários ou dos responsáveis legais pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público do gasóleo colorido e marcado pela diferença entre o montante do ISP liquidado e pago e a que seria devida se se tratasse de gasóleo rodoviário.
E, sendo essa, no entender do TC, a interpretação do n.º 7 da Portaria n.º 234/97 que é conforme à Constituição, mesmo antes da referida Lei n.º 53-A/2006, de 31/12, não se viu, então, razão para não aderir a tal doutrina, ainda que a decisão do TC tenha sido proferida em processo de fiscalização concreta (e, portanto, com força de caso julgado limitada ao processo onde foi proferida), atenta a prevalência das decisões do TC em questões de constitucionalidade (artigos 2.º e 80.º, n.º 1 da Lei n.º 28/82, de 15/11).
Razão por que se concluiu, assim, no acórdão proferido em 19/3/2009 que o acto de liquidação impugnado não enfermava, por isso, da apontada ilegalidade.
Do mesmo modo, em tal aresto se concluiu também que não tendo o Governo, com a publicação do CIEC, alterado a incidência subjectiva do imposto, a norma da alínea e) do n.º 2 do artigo 3.º deste Código não enfermava, por isso, de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP, como igualmente se alegava.
Todavia, agora, em face do trânsito em julgado do acórdão do TC proferido nos presentes autos, há apenas que interpretá-lo e dar-lhe execução.
No presente recurso, considerou o TC não estar apenas em causa o carácter inovatório do § 7.º da Portaria n.º 234/97 mas também o carácter inovatório do próprio artigo 3.º, n.º 2, alínea e) do CIEC.
Tendo concluído que o § 7.º da Portaria 234/97, na medida em que responsabiliza os proprietários ou os responsáveis legais pela exploração dos postos de abastecimento pelo pagamento da diferença de ISP nos casos em que efectuem abastecimentos sem darem cumprimento às disposições que obrigam à utilização dos cartões de microcircuito em todos os abastecimentos, é organicamente inconstitucional, por violação do princípio constitucional da reserva de lei fiscal (artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, na sua redacção actual).
Mais acrescenta que essa inconstitucionalidade não pode ser apagada pelo disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 3.º do CIEC.
De facto, embora a situação aqui questionada possa equivaler a uma “situação irregular” de “venda” de “produtos sujeitos a imposto especial de consumo”, a que alude esta alínea, a verdade é que a versão originária do CIEC não fazia qualquer alusão ao cartão de microcircuito, cuja titularidade era, à data, exigida pelo § 7.º da Portaria 234/97, para a venda do gasóleo colorido e marcado à taxa reduzida.
Só com a Lei 109-B/2001, de 27/12, o artigo 74.º, do CIEC, no seu n.º 4, passou a prever expressamente que o gasóleo colorido e marcado só poderia ser adquirido pelos titulares do cartão de microcircuito instituído para efeitos de controlo da sua afectação aos destinos referidos no número anterior.
Isto é, de acordo com a orientação do TC, não é na alínea questionada que se vem a reflectir legislativamente a nova realidade dos mecanismos de concessão de um benefício ao gasóleo afecto a certos fins e do seu controlo através da utilização de um cartão de microcircuito, mas antes no artigo 74.º, n.ºs 4 e 5 do CIEC.
E coexistindo ambos os preceitos no interior do mesmo diploma assim se comprova que a irregularidade a que se referia o § 7.º da Portaria 234/97 não estava co-englobada na previsão da alínea e) do n.º 2 do artigo 3.º do CIEC, não sendo por acaso que quando finalmente aquela norma obteve assento legislativo, através da Lei 53-A/2006, de 31/12, foi no n.º 5 do artigo 74.º que ela foi inserida.
Assim sendo, sobre a norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea e) do CIEC, conclui o TC que não pode recair outro juízo que não seja o de inconstitucionalidade, tal como anteriormente emitido quanto ao § 7.º da mencionada Portaria.
De facto, tendo-se interpretado no acórdão recorrido a referência à venda “em situação irregular” como se reportando à situação prevista no § 7.º da Portaria 234/97, não se distinguindo tais normas, mas antes as encarando como prevendo, de forma idêntica, a mesma responsabilização dos proprietários ou dos responsáveis legais pela exploração dos postos de abastecimento, forçoso é estender-lhe a conclusão do seu carácter inovatório, em relação ao disposto no artigo 6.º do DL 123/94.
E, não estando a inovação coberta pela lei de autorização, conclui-se que a norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea e) do CIEC (aprovado pelo DL 566/99, de 22/12, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo artigo 69.º da Lei 53-A/2006, de 29/12, ao artigo 74.º deste Código), é organicamente inconstitucional, quando interpretada no sentido de contemplar a responsabilização dos proprietários ou dos responsáveis legais pela exploração dos postos de abastecimento.
Ora, no caso em apreço, estando o acto impugnado baseado em tais normas, cuja inconstitucionalidade agora o TC reconheceu, é evidente que o mesmo enferma de vício de violação de lei que justifica a sua anulação, como bem se decidiu na sentença recorrida.
O conhecimento das demais questões suscitadas mostra-se prejudicado pela solução dada ao litígio.
IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em negar provimento ao recurso.
Custas pela FP na 1.ª instância e neste STA, fixando-se a procuradoria devida em 1/8.
Lisboa, 15 de Setembro de 2010. - António Calhau (relator) – Jorge de Sousa – Miranda de Pacheco.