Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:091/21.0BALSB
Data do Acordão:10/19/2022
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:TRIBUTAÇÃO AUTONOMA
IRC
ENCARGO
PRESUNÇÃO
Sumário:As disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.
Nº Convencional:JSTA00071578
Nº do Documento:SAP20221019091/21
Data de Entrada:07/08/2021
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A…………..
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:CIRC ART88 N3 N9
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA veio, ao abrigo do disposto nos artigos 152.º, n.º 1 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro [doravante “RJAT”], interpor recurso por oposição entre a decisão arbitral singular proferida em 27 de maio de 2021 no processo n.º 189/2018-T que correu termos no CAAD e que julgou procedente o pedido de declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a requerente A……………, NIPC ………….., com sede na Rua ……….., n.º…, 2714-… Sintra, deduziu contra a autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) do exercício de 2014 – a que se reporta a nota demonstrativa de liquidação n.º 2016 2910449506 – e o acórdão do Pleno desta Secção, proferido em 24 de março de 2021 no âmbito do recurso para uniformização de jurisprudência n.º 021/20.7BALSB, já transitado em julgado.

Com a interposição do recurso apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões:

«(…)

1.º Por via do presente Recurso vem a Recorrente reagir contra a decisão proferida a 2018-12-07, pelo Tribunal Arbitral Singular constituído no CAAD;

2.º Nos termos do artigo 25.º/2 do RJAT, «A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é ainda suscetível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo», devendo o recurso ser interposto no prazo de 30 dias;

3.º Apesar de a decisão arbitral sub judice ter sido proferida a 2018-12-07, o referido prazo de 30 dias foi interrompido por força do artigo 75.º/1 da Lei do Tribunal Constitucional;

4.º Considerando que a decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional foi notificada à Recorrente a 2021-06-04, que ela só transitou a 2021-06-14 e que o termo do prazo dos 30 dias subsequentes ocorrerá a 2021-07-14, é de concluir que o presente Recurso é tempestivo;

5.º O objeto do presente recurso é o acórdão arbitral de 2018-12-07, o qual colide frontalmente com o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, proferido a 2021-03-24 no âmbito do recurso para uniformização de jurisprudência n.º 021/20.7BALSB e já transitado em julgado, mostrando-se justificado o recurso à presente via processual para uniformização de jurisprudência;

6.º O recurso para uniformização de jurisprudência tem como finalidade a resolução de um conflito sobre a mesma questão fundamental de direito, devendo o STA proceder à anulação da decisão arbitral e realizar nova apreciação da questão em litígio quando suscitada e demonstrada tal contradição pela parte vencida (ou pelo Ministério Público);

7.º No caso vertente verifica-se uma patente e inarredável contradição quanto à mesma questão fundamental de direito: saber se o artigo 88.º/3 do CIRC consagra uma “presunção de empresarialidade” em matéria de encargos com viaturas ligeiras de passageiros;

8.º Para que se considere que há oposição de soluções jurídicas entende a jurisprudência do STA que ambos os acórdãos devem versar sobre situações fácticas substancialmente idênticas, entendida não como uma total identidade dos factos, mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais;

9.º Subjacente à decisão arbitral recorrida encontrava-se a seguinte factualidade; (i) um sujeito passivo (a Recorrida) apresentou a sua declaração de IRC, na qual apurou um montante de tributações autónomas de € 12.724,31 relativo a encargos com viaturas ligeiras de passageiros; (ii) a Recorrida deduziu pedido de constituição de tribunal arbitral junto do CAAD, defendendo que o artigo 88.º/3 do CIRC consagra uma “presunção de empresarialidade” em matéria de encargos com viaturas ligeiras de passageiros e que dispunha de prova suscetível de a ilidir; (iii) o tribunal arbitral constituído sob a égide do CAAD concluiu que o artigo 88.º/3 do CIRC consagra uma “presunção de empresarialidade” em matéria de encargos com viaturas ligeiras de passageiros e que a Recorrida logrou ilidi-la;

10.º Subjacente ao “acórdão fundamento” encontrava-se a seguinte factualidade; (i) um sujeito passivo apresentou a sua declaração de IRC, na qual apurou um montante de tributações autónomas de € 584.127,02 relativo a encargos com motociclos e viaturas ligeiras de passageiros; (ii) esse sujeito passivo deduziu pedido de constituição de tribunal arbitral junto do CAAD, defendendo que o artigo 88.º/3 do CIRC consagra uma “presunção de empresarialidade” em matéria de encargos com motociclos e viaturas ligeiras de passageiros e que dispunha de prova suscetível de a ilidir; (iii) o tribunal arbitral ali constituído sob a égide do CAAD concluiu que o artigo 88.º/3 do CIRC não consagrava uma “presunção de empresarialidade” suscetível de ilisão; (iv) o STA confirmou a decisão arbitral, ao concluir igualmente que o artigo 88.º/3 do CIRC não consagrava qualquer “presunção de empresarialidade”;

11.º Por conseguinte, verifica-se que entre a decisão arbitral recorrida e o “acórdão fundamento” há uma identidade de situações de facto;

12.º Para que haja oposição de acórdãos é necessário que as decisões em confronto se pronunciem sobre a mesma questão fundamental de direito;

13.º O tribunal arbitral constituído no âmbito da decisão ora colocada em crise propôs-se resolver as seguintes questões: (i) saber se o artigo 88.º/3 do CIRC consagrava uma “presunção de empresarialidade” em matéria de encargos com viaturas ligeiras de passageiros e (ii) no caso de a questão antecedente ser respondida de forma afirmativa, se a presunção poderia ser afastada mediante a produção de prova por parte do sujeito passivo;

14.º No “acórdão fundamento”, o STA foi confrontado com as mesmas questões: «A questão que se coloca no presente recurso para uniformização de jurisprudência é saber se os n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, ao delimitarem as situações em que há lugar a tributação autónoma, consagram presunções implícitas iuris tantum, suscetíveis de serem ilididas por prova em contrário em conformidade com o artigo 73.º da LGT»;

15.º Por conseguinte, verifica-se que entre a decisão recorrida e o “acórdão fundamento” há uma evidente identidade quanto à questão fundamental de direito;

16.º Para que haja oposição de acórdãos é ainda necessário que os acórdãos em confronto hajam perfilhado soluções opostas de forma expressa sobre a mesma questão fundamental de direito;

17.º Perante a problemática da eventual presença de uma “presunção de empresarialidade” suscetível de ilisão em matéria de tributações autónomas relativas a encargos com viaturas ligeiras de passageiros, decidiu o Tribunal Arbitral Singular que «Este TAS, em coerência com a decisão colegial que se assinou – Processo CAAD 80/2014 -T - adere ao decidido nas decisões arbitrais colegiais Processos CAAD 187/2013-T e 628/2014-T, quer quanto à “ratio” das tributações autónomas, quer quanto às implicações que daí resultam, uma vez que, como a seguir se tentará justificar, parece ser a leitura da lei mais adequada face ao princípio constitucional da isonomia (igualdade material) e ainda face à leitura conjugada das normas dos artigos 23º, 88º nºs 3 e 6 do Código do IRC, mormente da conjugação da alínea b) do nº 6 do artigo 88º do Código do IRC com a alínea 9) do nº 3 do artigo 2º e com o nºs 5 e 6 do nº 24º do Código do IRS. Adere-se, assim, ao referido na decisão arbitral colegial Processo CAAD nº 628/2014-T, citada pela Requerente, que tratou de uma situação em tudo semelhante, a saber: “Assim, e em suma, o que ora se trata é de apurar a ratio legis da previsão do artigo 81.º/3/a) acima transcrito [actual artigo 88.º], verificar se a mesma assenta numa presunção e, em caso de resposta afirmativa, se a mesma foi, ou não, in casu, ilidida. Tem obtido acolhimento recorrente na jurisprudência do CAAD, o entendimento de que as tributações autónomas sobre encargos dedutíveis, como as que estão em causa nos presentes autos, integram, ainda, o regime dos impostos regulados pelos códigos onde se integram, visando, ainda que de uma forma enrevesada, o rendimento tributado por aqueles.»;

18.º Sobre a mesma questão se pronunciou o “acórdão fundamento” em sentido totalmente oposto: «Em conclusão, tal como a decisão recorrida entendeu, as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário, pelo que o recurso não merece provimento»;

19.º Por conseguinte, verifica-se que entre a decisão arbitral recorrida e o “acórdão fundamento” existe uma patente e inarredável contradição sobre a mesma questão fundamental de direito;

20.º A oposição entre a decisão recorrida e o “acórdão fundamento” decorre de decisões expressas e não apenas implícitas, como uniformemente vem sendo exigido pela Jurisprudência e pela Doutrina, sendo que no caso vertente também não ocorreu alteração substancial na regulamentação jurídica;

21.º A decisão recorrida assenta num manifesto erro de julgamento em matéria de direito, sendo que o Tribunal Arbitral Singular adotou uma interpretação em patente desconformidade com a CRP, o quadro jurídico vigente, a jurisprudência do CAAD e do STA;

22.º O artigo 88.º/3 do CIRC não contém qualquer “presunção de empresarialidade” suscetível de ilisão por parte do sujeito passivo, como advoga determinada linha jurisprudencial nada no CAAD e de que é exemplo a decisão arbitral ora colocada em crise;

23.º Tal como refere SÉRGIO VASQUES, há que distinguir normas que contêm presunções em sentido próprio e normas que têm um juízo presuntivo na sua razão de política legislativa;

24.º Enquanto as primeiras serão suscetíveis de ilisão (designadamente por via do artigo 73.º da LGT), já as segundas não a admitem;

25.º O artigo 88.º do Código do IRC insere-se nesta segunda categoria de normas;

26.º O Tribunal Constitucional deixou bem claro que o combate à evasão e as exigências da praticabilidade podem constituir razões de política legislativa válidas e que a presunção inilidível da “empresarialidade parcial” de certas despesas pode servir para assegurar os princípios materiais da igualdade e da justiça fiscal;

27.º Pelas razões expostas e sobretudo pelas que dimanam do “acórdão fundamento”, a decisão arbitral ora colocada em crise não tem condições para subsistir na ordem jurídica.».

Concluiu pedindo fosse o presente recurso por oposição de acórdãos aceite e que, a final, fosse julgado procedente, com decisão no sentido preconizado no acórdão fundamento.

O recurso foi admitido, com efeito suspensivo da decisão arbitral recorrida.

Foi cumprido o disposto no artigo 25.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

A Digna Magistrada do M.º P.º foi notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e lavrou douto parecer no sentido de ser admitido o recurso e, apreciando o seu mérito, conceder-lhe provimento.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir, em conferência, no Pleno da Secção.


***

2. Dos fundamentos de facto

2.1. A decisão arbitral recorrida relevou e deu como provados os seguintes factos: «(...)

1. A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto social o comércio de produtos alimentares e de consumo, restauração e bebidas, bem como a prospeção, compra, venda, arrendamento, gestão de imóveis próprios, construção, remodelação e gestão de propriedades e ainda a edição, publicação e distribuição de jornais e outros produtos de imprensa, bem como a prestação de serviços de apoio ao cliente – conforme artigo 1º do PPA e falta de impugnação especificada, apreciada nos termos do artigo 110º-7 do CPPT;

2. Em 31 de Julho de 2015 e quanto ao período de tributação de 2014-03-01 a 2015-02-28, a Requerente procedeu à entrega da correspondente primeira declaração de rendimentos (Modelo 22 de IRC), tendo procedido em 29 de Julho de 2016, à apresentação de uma declaração de substituição – conforme artigo 2º do PPA, teor do Documento nº 2 junto com o PPA e falta de impugnação especificada, apreciada nos termos do artigo 110º-7 do CPPT;

3. Em 02 de Agosto de 2016 a AT, na sequência das declarações apresentadas pela Requerente, procedeu à emissão da nota demonstrativa da liquidação de imposto, liquidação nº 2106 2910449506, que notificou à Requerente em data não apurada, e onde consta na coluna “descrição” no número 30 “pagamento de autoliquidação: 4 897 055,23 euros” – conforme artigo 3º do PPA, teor do Documento nº 3 junto com o PPA e falta de impugnação especificada, apreciada nos termos do artigo 110º-7 do CPPT;

4. Em 31 de Julho de 2017 a Requerente, tendo apurado que procedeu a errónea quantificação e autoliquidação de IRC, apresentou uma reclamação graciosa que tomou o nº 562201704001664, tendo-lhe sido notificado, em data não apurada, o projecto de decisão para audição prévia, o qual exerceu em data também não apurada, e foi-lhe notificada a decisão final de indeferimento parcial com data de 11 de Janeiro de 2018 – conforme artigos 4º e 5º o PPA, teor do documento nº 1 junto com o PPA e páginas 35 a 47 do PA8 junto pela AT com a Resposta.

5. Relativamente à questão das tributações autónomas, a fundamentação da decisão de indeferimento que foi expressa no projeto de decisão e na decisão final considerada reproduzida, é a seguinte:

“37.Em nosso entender, a questão central que se coloca relaciona-se com a determinação da natureza das despesas sujeitas a tributação autónoma e verificar se as mesmas, sendo hipoteticamente consideradas como gastos da atividade, deixam então de ser tributadas nos termos do artigo 88º do CIRC, conforme pretende fazer inferir a Reclamante.

38. Após leitura cuidada dos argumentos insertos na petição inicial, verificamos, contudo, que não lhe assiste qualquer razão. Pois,

39. Não estamos diante de uma presunção, muito menos ilidível, e, mesmo que o fosse, ainda assim de modo algum se encontra feita nos autos a comprovação que se teria como necessária para alcançar os efeitos pretendidos pela Reclamante. Senão vejamos:

40. As várias incursões legislativas evidenciadas ao longo do tempo revelam como a tributação autónoma em sede de impostos sobre o rendimento visa combater formas de evasão fiscal ou comportamentos empresariais que o legislador fiscal considerou suscetíveis de causar injustificável erosão da base tributária daqueles impostos. Isto de um modo geral.

41. Por sua vez, em particular, relativamente a despesas com veículos afetos à atividade da empresa o legislador terá procurado, numa situação identificada como de difícil definição exata, e passível de evasão fiscal, uma solução baseada no seguinte equilíbrio:

·Tributar autonomamente, como regra geral, os encargos relativos a despesas relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, indústria ou agrícola (nº 3 do artigo 88º do CIRC), deixando de fora os encargos referentes a pesados e a ligeiros de mercadorias;

·Excecionar da tributação contida na regra definida no n.º 3, os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, afetos à exploração do serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo (nº 6 do artigo 88º do CIRC).

42. A razão da opção do legislador foi, com efeito, a de considerar que este tipo de veículos é, em abstrato, suscetível de utilização indiferenciada, simultaneamente privada e empresarial, pelo que, tornando-se extremamente difícil apurar a realidade, o legislador fiscal consignou ab initio uma tributação autónoma que significa, na prática, porque aplicada conjuntamente com a dedutibilidade do encargo, uma limitação na dedução destes custos da atividade.

43. Da dificuldade em efetuar a prova da real distribuição entre afetação empresarial e privada são excluídos casos em que os veículos São, indiscutivelmente, utilizados como instrumento do desenvolvimento de uma atividade, sendo descritos na lei como afetos à exploração de "serviço público de transporte, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo", conforme se extrai da alínea a) do nº 6 do artigo 88º do CIRC.

44. Sendo assim, não parece curial que o regime regra previsto no nº 3 do artigo 88º do CIRC seja afastado em casos diferentes dos que se encontram por seu turno previstos no alínea a) do nº 6, fazendo depender a aplicação do nº 3 do mesmo artigo da produção de prova, a realizar casuisticamente e em qualquer setor de atividade, sobre a efetiva afetação da utilização dos veículos abrangidos pela norma.

45. É que se o legislador fiscal procurou desenhar a solução jurídica de balanceamento por nós atrás referida por entender tratar-se de situações muito difíceis de controlar rigorosamente (a veracidade, apesar de existência de contabilidade, da distribuição de gastos imputados a diferentes tipos de veículos, a dificuldade de controlo da efetiva utilização, etc.), admitindo apenas a exceção prevista no nº 6, uma interpretação que aceite a admissibilidade de prova, a fazer caso a caso, de que os veículos estão exclusivamente afetos à atividade da empresa parece tornar inútil a redação adotada.

46. A admissibilidade de qualquer ilisão casuística, sem exigências reforçadas de controlo, torna inútil o objetivo pretendido pelo legislador fiscal, que reduziu, com exceção de situações de âmbito muito limitado, o montante dedutível com certo tipo de custos devido à dificuldade do seu efetivo controlo.

47. Recorde-se a norma contida no já amplamente mencionado nº 3 do artigo 88º do CIRC, na redação em vigor à data dos factos em apreço:

"São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, as seguintes taxas:

a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a (euro) 25 000;

b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 25 000 e inferior a (euro) 35 000;

c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 35 000."

48. Ao lermos atentamente o disposto na primeira norma deparamo-nos de imediato com o facto de a questão da "empresarialidade" dos encargos não se colocar, pois repare-se que a lei apenas faz referência aos encargos efetivamente suportados, não existindo qualquer distinção entre os que são dedutíveis por força do artigo 23º, do CIRC, e os que não são.

49. Mais concretamente, a norma exige apenas que os sujeitos passivos, cuja atividade principal seja de natureza comercial, industrial ou agrícola, não estejam isentos de imposto sobre o rendimento englobando-se todos os custos suportados com veículos ligeiros de passageiros ou mistos.

50. Por outras palavras, ao assumir uma natureza de matriz antiabuso especialmente importante, aquele preceito legal prevê que independentemente dos custos se relacionarem ou não com a atividade empresarial estes são objetivamente tributados autonomamente através da aplicação da respetiva taxa.

51. Ainda que por mera hipótese se admita a dedutibilidade daqueles encargos, estes por força da letra da lei, isto é, por terem sido efetivamente contraídos, estariam sempre sujeitos a tributação autónoma, pelo que a questão de serem ou não de natureza empresarial não se coloca nem nunca se colocou.

52.Considerando o exposto, entende-se que o nº 3 do artigo 88º do CIRC não contém uma presunção ilidível por aplicação do artigo 73º da LCT. Trata-se antes de uma norma que, tendo subjacente um juízo presuntivo da dificuldade de controlo rigoroso de certos casos, opta objetivamente por tipificar situações de aplicação de tributação autónoma, traduzidas, na prática, na redução do montante dos gastos dedutíveis na determinação da matéria coletável. Aliás,

53. Por ser assim é que o legislador fiscal, naquele nº 3 do artigo 88º do CIRC não acolheu neste caso uma solução tal qual a que, por exemplo, se encontra por sua vez plasmada na alínea r) do nº 1 do artigo 23º-A do CIRC, ou a que vigorava no então nº 1 do artigo 65º do CIRC. Mais, sem prescindir,

54. Mesmo que vingasse a posição sugerida pela Reclamante, tratando-se de questão pelo menos duvidosa, pareceria, no mínimo, razoável que a admissibilidade de aplicação do regime de exclusão fosse acompanhada de especiais cuidados na comprovação e representação da situação factual que nos importa,

55. Ou seja, mesmo a admitir-se a tese da possibilidade de ilidir o juízo presuntivo subjacente ao disposto no nº 3 do artigo 88º do CIRC, o tipo de provas que a Reclamante invoca nos autos não estatuem taxativamente no sentido de representar a estrita empresarialidade de tais encargos. Destarte,

56. Atento o exposto, por força das razões atrás consideradas, parece-nos de improceder esta parte da pretensão ora formulada pela Reclamante.”

- conforme o artigo 6º do PPA, o documento nº 4 em anexo ao PPA e as páginas 35 a 47 do PA8 junto pela AT com a Resposta;.

6. A Requerente dispõe de um conjunto de 36 viaturas que se encontram estacionadas nas suas instalações, para utilização em “pool” pelos trabalhadores que necessitem de se deslocar, ao seu serviço e a diversos pontos do país, os quais podem requerer a utilização, mediante o cumprimento de requisitos para a sua utilização aferidos no âmbito do procedimento interno de requisição instituído na empresa, caracterizado por uma requisição formal, mediante o preenchimento e assinatura de um formulário para indicação (i) da hora de início de utilização, (ii) a hora de fim de utilização, (iii) o destino da deslocação, e o respetivo (iv) propósito, devendo a viatura ser estacionada no parque da Requerente ao fim do dia de trabalho – conforme artigos 24º, 25º, e 66º a 68º do PPA , documentos 6 e 7 juntos com o PPA e depoimento da testemunha………………..;

7. Os documentos nºs 5 e 8 (lista das 36 viaturas referidas no ponto anterior) e nºs 6 e 7 (documentos contendo o “formulário requisição viatura de serviço”, as “regras para a utilização das viaturas de serviço” e várias declarações de recepção e devolução de viaturas) que foram juntos em anexo ao PPA, já tinham sido apresentados à AT juntamente com o pedido de reclamação graciosa a que se alude no nº 4 supra – conforme páginas 66 a 85 do PA7 junto pela AT com a resposta e depoimento da testemunha ……………;

8. Em anexo a cada “formulário requisição viatura de serviço” consta uma folha autónoma que refere o seguinte:

9.

[IMAGEM]

- conforme documentos 6 e 7 juntos com o PPA, páginas 66 a 85 do PA7 junto pela AT com a resposta e depoimento da testemunha B...;

10. Fazendo parte do sistema de uso das viaturas “em pool” pelos colaboradores da Requerente, consta uma declaração emitida pelo utilizador relativa à hora e dia da recepção da viatura e à hora e dia da sua devolução, identificando a viatura, os seus documentos e acessórios, o cartão galp frota usado e o seu código, a carta verde (seguro) e o identificador via verde – conforme declarações que integram os documentos 6 e 7 juntos com o PPA e páginas 66 a 85 do PA7 junto pela AT com a resposta;

11. Durante o período de tributação de 2014-03-01 a 2015-02-28, as 36 viaturas referidas no ponto 6 supra, originaram um total de despesas de 90 707,20 euros, o que conduziu a uma tributação autónoma ao nível do IRC – artigo 88º do CIRC – de 12 724,31 euros – conforme artigos 26º e 77º do PPA, documentos nºs 5 e 8 juntos com o PPA e páginas 66 a 85 do PA7 junto pela AT com a resposta, alegação e documentos juntos pela Requerente avaliados face à falta de impugnação especificada, apreciada nos termos do artigo 110º-7 do CPPT

12. A título excepcional é admissível a "não entrega" da viatura utilizada nas instalações da Requerente, por exemplo, nas situações em que as necessidades da empresa o justificam, em função da deslocação que é feita no dia a seguir (nomeadamente, quando ocorre uma saída muito cedo para unta deslocação para muito longe) – artigos 70º e 71º do PPA, avaliados face à falta de impugnação especificada, apreciada nos termos do artigo 110º-7 do CPPT

13. Em 11 de Abril de 2018 a Requerente entregou no CAAD o presente pedido de pronúncia arbitral (ppa) – registo de entrada no SGP do CAAD do pedido de pronúncia arbitral.».

2.2. Dá-se aqui por reproduzido o acórdão fundamento, na parte em que, por sua vez, transcreve a fundamentação de facto do acórdão arbitral ali recorrido – ponto 2.1. do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 1/2021, publicado no Diário da República, 1.ª série (n.º 110), de 8 de junho de 2021, páginas 37 a 39.


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3. Dos fundamentos de Direito

Vem o presente recurso interposto da decisão arbitral proferida no processo n.º 189/2018-T, do CAAD, que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral sobre o indeferimento da reclamação graciosa de autoliquidação de IRC de período de março de 2014 a fevereiro de 2015 e, em consequência, anulou essa decisão e esta autoliquidação na parte referente a «despesas e encargos com veículos exclusivamente afectos à atividade da empresa».

Com o assim decidido não se conforma a ali Requerida (ora Recorrente) por entender, de um lado, que a decisão arbitral recorrida «colide frontalmente» com o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de março de 2021, tirado no âmbito do recurso para uniformização e jurisprudência n.º 021/20.7BALSB [5.ª a 20.ª conclusões do recurso].

E por entender, de outro lado, que a decisão recorrida assenta num manifesto erro de julgamento em matéria de direito, já que «[o] artigo 88.º/3 do CIRC não contém qualquer “presunção de empresarialidade” suscetível de ilisão por parte do sujeito passivo». E que, por isso, não tem condições para subsistir na ordem jurídica [21.ª a 27.ª conclusões do recurso].

A primeira questão a decidir é, por isso, a de saber se existe oposição entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão fundamento. E se, por isso, os autos de encontram em condições de prosseguir para apreciação da questão que a decisão arbitral recorrida apreciou.

A segunda questão a decidir é a de saber se – no pressuposto de a decisão arbitral recorrida e o acórdão fundamento se opõem quanto à mesma questão fundamental de direito – a decisão recorrida assente num erro de julgamento em matéria de direito.

À primeira questão respondemos afirmativamente.

Isto é, que entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão fundamento existe a alegada contradição.

Em primeiro lugar, porque as situações de facto subjacentes eram substancialmente idênticas e era suscitada a mesma questão fundamental de direito.

Estava em causa, em ambos os casos, a legalidade da tributação autónoma de encargos com viaturas ligeiras de passageiros (e motociclos, no caso do acórdão fundamento) efetuados ou suportados, em 2014 (março de 2014 a fevereiro de 2015, no caso da decisão arbitral recorrida), por sujeitos passivos que exerciam a título principal atividade de natureza comercial.

Quer no caso da decisão arbitral recorrida, quer no caso do acórdão fundamento, as viaturas eram utilizadas exclusivamente ao serviço da empresa, sendo as viaturas automóveis de acordo com uma organização em “pool” e tendo sido adotados procedimentos adequados a assegurar que assim sucedia.

Quer num caso, quer no outro, os encargos foram declarados pela empresa e foram sujeitos a tributação autónoma nos termos do artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC.

Em ambos os casos, o sujeito passivo concluiu que sujeitou erradamente esses encargos a tributação autónoma, por entender que estava demonstrado que os veículos estavam exclusivamente afetos à atividade empresarial e que os encargos dessa natureza que sejam dotados de total empresarialidade não se encontravam sujeitos a tributação autónoma. E, por isso, reclamou (no caso da decisão arbitral recorrida) ou pediu a revisão (no caso do acórdão fundamento) da autoliquidação.

E em ambos os casos a Administração Tributária decidiu desfavoravelmente ao ali Requerente, por entender que o n.º 3 do artigo 88.º não pressupõe que os veículos em causa não estejam exclusivamente afetos à atividade empresarial e que, por conseguinte, não se consagra ali nenhuma presunção ilidível pelo sujeito passivo, por aplicação do artigo 73.º da Lei Geral Tributária.

Entendimento com que os sujeitos passivos respetivos não se conformaram por entenderem que a ratio legis do preceito tem subjacente a presunção de que os encargos não possuem uma natureza exclusivamente empresarial. Presunção essa que consideram ter ilidido.

Pelo que a questão de direito era a mesma: a de saber se o n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC assenta na presunção de que os veículos ali mencionados não estão exclusivamente afetos ao serviço da atividade das empresas e se essa presunção é ilidível.

Em segundo lugar, porque os arestos em causa, responderam de forma diametralmente oposta a essa questão.

Assim, o Tribunal Arbitral veio a concluir – aderindo à fundamentação da decisão arbitral proferida no processo n.º 628/2014-T também do CAAD – que a tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC tem subjacente uma presunção de empresarialidade (meramente) parcial das despesas sobre que incide, presunção esta que o sujeito passivo pode ilidir a coberto daquele artigo 73.º.

E, em consequência, por considerar que a presunção tinha, no caso, sido ilidida, deu procedência ao pedido de pronuncia arbitral.

E o acórdão fundamento – que, de resto, considerou também a fundamentação da decisão arbitral proferida no processo n.º 628/2014-T do CAAD, que tinha ali sido indicada como fundamento do respetivo recurso – concluiu, pelo seu lado, que as disposições que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.

E, em consequência, não relevou a prova apresentada tendo em vista a elisão da indicada presunção e confirmou a decisão ali recorrida que a tinha também desconsiderado e julgado improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação correspondente.

Importa, por isso, concluir preliminarmente no sentido de que a decisão arbitral recorrida e o acórdão fundamento se opõem quanto à mesma questão fundamental de direito. E que, por isso, o recurso deve prosseguir para apreciação do mérito da decisão arbitral recorrida.

À segunda questão respondemos também afirmativamente.

Isto é, que a decisão arbitral recorrida não fez a melhor interpretação do artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC e que foi em resultado do erro em que assim incorreu que decidiu o que decidiu.

Importa começar por assinalar que o acórdão indicado como fundamento foi tirado, ele próprio, num recurso por uniformização de jurisprudência.

O seu teor, como está bem de ver, não poderia ter sido considerado pelo Tribunal Arbitral. Porque a decisão que ali foi proferida lhe é anterior.

No entanto, o sentido do que ali foi decidido não pode deixar de ser convocado para o caso dos autos, tendo em conta a finalidade com que aquele recurso foi instituído (uniformizar jurisprudência).

Não significa isto que o Pleno não pudesse agora rever posição. Mas a verdade é que não houve a aposição de novos e relevantes argumentos que justificassem a sua reponderação.

Assim sendo, deve concluir-se, também aqui, no sentido da jurisprudência uniformizada: o de que as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.

Remetendo, neste âmbito, para o discurso fundamentador do acórdão respetivo, publicado no Diário da República, 1.ª série (n.º 110), de 8 de junho de 2021.

E, tendo em conta que a decisão de procedência do pedido de pronúncia arbitral resultou diretamente do facto de se ter ali entendido que a ali Requerente logrou ilidir a presunção de «empresarialidade parcial» que considerou ínsita naquela norma, deve concluir-se desde já que o recurso merece provimento, que a decisão arbitral recorrida tem que ser anulada e que o pedido formulado no processo arbitral deve improceder.


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4. Conclusão

As disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.

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5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em tomar conhecimento do mérito do recurso e, concedendo-lhe provimento, anular a decisão arbitral recorrida e julgar improcedente a pretensão formulada no processo arbitral.

Custas pela RECORRIDA.

Registe, notifique e comunique ao CAAD.

Lisboa, 19 de outubro de 2022. – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Anabela Ferreira Alves e Russo.