Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01471/17
Data do Acordão:01/11/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário:I - A análise do nexo de causalidade envolve não só raciocínios imbuídos de alguma subjectividade a qual é, muitas vezes, suficiente para fazer pender esse juízo num ou noutro sentido como, por outro lado, passa pela análise de questões jurídicas de alguma dificuldade.
II - Acresce que atenta a divergência manifestada nas instâncias, designadamente na interpretação da factualidade constante do probatório, e a repercussão que a mesma tem para ambas as partes inclina-nos a pensar que a admissão da revista também é necessária para uma mais esclarecida aplicação do direito.
Nº Convencional:JSTA000P22771
Nº do Documento:SA12018011101471
Data de Entrada:12/20/2017
Recorrente:MUNICÍPIO DE PAÇOS DE FERREIRA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I - RELATÓRIO

A…………. instaurou, no TAF de Penafiel, contra o Município de Paços de Ferreira, acção administrativa comum pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 16.000,00, acrescida dos juros moratórios devidos, a título de ressarcimento de todos os prejuízos sofridos em consequência do acidente de viação de que foi vítima, provocado pela falta de sinalização na estrada por onde seguia ao volante do seu veículo.
Por sentença daquele Tribunal a acção foi julgada improcedente.

O Autor apelou para o TCA Norte e este, concedendo provimento ao recurso, revogou aquela decisão e condenou o Réu a pagar a indemnização que viesse a ser apurada em sede própria.
É este Acórdão que o Réu impugna nesta revista (art.º 150.º do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO
1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O TAF de Penafiel julgou esta acção improcedente, intentada pelo Recorrido contra o Município de Paços Ferreira, com vista ao ressarcimento dos danos provocados pelo acidente de viação que sofreu devido à alegada falta de sinalização da estrada por onde conduzia o seu veículo. Para tanto ponderou:
“…..
Assim, a verificação da omissão de sinalização de aproximação face ao dever que é imposto pelos normativos que se referenciaram é suficiente para a consideração da ilicitude da conduta, presumindo-se a culpa dos serviços nos termos do art.° 10.°, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, que o Réu não logrou afastar.
….
Quanto ao nexo causal, decorre do probatório que a Rua ……….., no local do acidente, configura uma recta de, pelo menos, 200 metros desde os semáforos existentes antes do local do acidente, atento o sentido Carvalhosa-Figueiró até ao local do embate; entre os semáforos existentes antes do local do acidente, atento o sentido Carvalhosa-Figueiró, à data do embate, não se encontravam quaisquer carros estacionados do lado direito da faixa de rodagem, sentido Carvalhosa-Figueiró; no dia e hora da ocorrência do acidente havia chuvisco que não impedia a visibilidade; o piso, à data do acidente, era alcatrão, em bom estado de conservação, sem óleo ou areia na altura do acidente; na data e hora da ocorrência do acidente, a sinalizar o obstáculo existia junto ao mencionado buraco e a ladear o mesmo, um objecto (separador) em plástico em forma retangular, de cor vermelha, apoiado em quatro estacas de ferro, sendo que o buraco e o separador vermelho ocupavam 1/3 da hemi-faixa direita, atento o sentido do Autor; para além da sinalização mencionada no ponto antecedente, existia antes do Iocal do embate, atento o sentido do Autor, sinal de proibição de velocidade superior a 50 Km, aproximação de cruzamento e proibição de ultrapassagem; o veículo ….BN…., no momento do embate no veiculo ….VX, encontrava-se a contornar o referenciado separador vermelho existente na hemi-faixa de rodagem por onde circulava, sendo que o embate se efetivou na hemi-faixa esquerda de rodagem, atento o sentido de marcha do …..BN….. (Carvalhosa-Figueiró); o buraco na via, para além do separador vermelho, estava sinalizado com fita reflectora vermelha e branca colocada, pelo menos, num ferro; a via tinha candeeiros públicos situados do lado esquerdo, atento o sentido do autor, que iluminavam a faixa de rodagem desde os semáforos até ao local do acidente; ao condutor do veículo BN era possível avistar a faixa de rodagem numa extensão de 200 metros desde o semáforo até ao Iocal do acidente.
…..
Por conseguinte, não estamos perante o surgimento inopinado de um obstáculo, como alega o Autor, visível apenas 2 ou 3 metros, pois um obstáculo inopinado é aquele que surge de forma súbita e inesperada, o que não é o caso dos autos. Nem essa alegação é razoável, tendo em conta que as luzes de cruzamento (médios) cujo uso se impunha por ser de noite permitia ao condutor ver, pelo menos, 30 metros: cf. art.° 60.°, n.º 1, b) do CE. Se o Autor não podia circular a mais de 50 Km (atendendo aos sinais de limitação de velocidade existentes no local, mas mesmo que assim não fosse, era a velocidade imposta por circular dentro duma localidade), circulava numa estrada com a configuração de recta de, pelo menos, 200 metros, numa via iluminada desde o semáforo até ao local do acidente (200 metros), tinha de circular com as luzes de cruzamento (médios), o separador vermelho e a fita são notoriamente dotadas de visibilidade, o Tribunal tem de concluir que estas circunstâncias permitiam ao condutor do BN ver o separador do qual se desviou, parar no espaço visível à sua frente e permitir a passagem dos veículos que circulavam em sentido contrário, o que não sucedeu.
Assim, o embate não se ficou a dever à falta de sinalização de aproximação, pois se estes se destinam a tomar visível os obstáculos ocasionais para os condutores regularem a sua velocidade à sua existência, então se o Tribunal conclui que mesmo sem esta sinalização, o separador e respectivas fitas eram visíveis naquelas circunstâncias e permitiam ao condutor do BN ver o obstáculo, parar no espaço visível à sua frente e permitir a passagem dos veículos que circulavam em sentido contrário, isso significa que não existe nexo causal entre a falta de sinalização de aproximação e os danos sofridos pelo Autor em virtude do embate.
Assim, o condutor do veículo do Autor deu causa ao acidente por não circular com os cuidados que no caso se exigiam, falhando o requisito do nexo de causalidade entre a conduta ilícita do Município e o acidente.”

O TCA revogou esta decisão e julgou a acção procedente com a seguinte fundamentação:
No caso em concreto, dúvidas não subsistem, em face da sentença proferida, inexistir qualquer sinalização prévia a alertar quem circulava em tal via, da existência de obstáculo.
…..
Resulta dos autos que o Réu Município não demonstrou terem sido cumpridos os deveres de vigilância que legalmente lhe eram impostos, nomeadamente a colocação da sinalização prévia a informar os condutores da existência de uma depressão na via.
O Recorrente configurou a acção, como causa do acidente, a falta de sinalização do local. Certo é que a sinalização na via em apreço - Estrada Regional 209 - é da competência do Réu Município. ……
Ora, a questão que se coloca é a de saber se tal circunstância permitiria ao condutor do veículo BN, mesmo assim, evitar a ocorrência do sinistro dos autos (nexo de causalidade).
Conforme advogado por este, as regras de experiência comum, das quais o Tribunal a quo não se socorreu, diz-nos que, a existência de um buraco na via (depressão da via), sem qualquer sinalização de aproximação, num dia de chuva intensa, sendo noite, representa uma situação potenciadora de elevadíssimos riscos para a segurança do trânsito que exige cuidados especiais para minorar os riscos para os utentes.

Assim, a falta de sinalização, pelo Réu Município, da existência de um obstáculo - depressão na via - por onde circulava o veículo sinistrado constitui omissão ilícita, que se presume culposa, nos termos do já falado art.º 493°/1.
….
Por seu turno, existe nexo de causalidade se as omissões do Réu Município constituíram, em concreto, no plano naturalístico e constituem, em abstracto, segundo as regras de experiência comum, causa adequada para a produção dos danos sofridos pelo veículo do aqui Recorrente.
……
Conclui-se, assim, contrariamente ao entendimento do tribunal a quo, que há nexo causal entre as apontadas omissões do Réu Município e a produção do acidente dos autos, que seria devido exclusivamente à omissão deste. É que, desde logo, não resulta da matéria contida no probatório que o condutor do veículo seguisse em violação das normas estradais, que circulasse com excesso de velocidade atenta a via em que seguia e as condições da mesma. E do facto de se ter provado que existia boa visibilidade não decorre automaticamente que a ocorrência do sinistro lhe possa ser assacada.
Por outro lado, conforme alegado, os sinais de sinalização devem ser colocados a uma distância adequada dos condicionamentos ou obstáculos que pretendem sinalizar, com vista a chamar a atenção dos condutores, com a antecipação necessária e suficiente, de modo a que possam ajustar a sua condução àqueles condicionamentos ou obstáculos da via por onde circulam, até mesmo para redobrar a atenção dos condutores de forma a tentarem visualizar o obstáculo antecipadamente.
A própria conduta do condutor do BN, ora Recorrente e a dinâmica do sinistro demonstram que o mesmo se depara com o obstáculo sem um prévio conhecimento do mesmo, efectuando uma manobra brusca, tentando evitar o impacto com o separador vermelho que, repete-se, se encontra colocado na hemi-faixa de rodagem por onde circulava o veículo BN sem qualquer sinalização prévia (aliás, o Réu Município nunca colocou em causa a inexistência de sinalização prévia).
Não resulta, pois, dos factos provados que o condutor do veículo BN tenha visto o separador vermelho na sua hemi-faixa de rodagem quando iniciou a sua marcha a tempo de adequar a sua condução a esse obstáculo, sendo que é do conhecimento geral, que a existência de um mero separador vermelho no meio da hemi-faixa de rodagem, num dia chuvoso, já noite, não é facilmente perceptível à distância. Dos factos provados resulta antes que o condutor do veículo BN foi surpreendido com um separador vermelho; portanto, a materialidade apurada, por si só, não permite concluir, como fez o Tribunal a quo, que o acidente ocorreu sendo possível ao condutor do veículo BN avistar tal obstáculo, concluindo ainda que, o facto de estar a chover e ser noite não reduz a visibilidade do condutor do mencionado veículo.
Verifica-se, pois, contrariamente ao decidido, o nexo causal entre o facto ilícito (omissão de sinalização adequada) e o dano.”

3. Conforme resulta do anterior relato as instâncias divergiram, frontalmente, no tocante à verificação do nexo causal entre a sinalização existente no local do acidente e a ocorrência deste. O que originou decisões divergentes.
Queixa-se o Recorrente que o Acórdão para decidir como decidiu não só alterou a factualidade constante do probatório - pois onde aqui se lia “chuvisco que não impedia a visibilidade” o Acórdão traduziu esse facto para “dia de chuva intensa” - como desvalorizou a sinalização que estava no local a qual era bastante para assinalar devidamente o obstáculo ali existente. E que, sendo assim, não se podia concluir, como fez o Aresto sob censura, que existia um nexo causal entre a sinalização (ou falta dela) existente no local e o acidente dos autos.
A análise do nexo de causalidade entre o facto e as causas de que ele decorreu é, por vezes, complexa visto, como se vê no caso dos autos, envolver não só raciocínios que, apesar da sua lógica, não deixam de estar imbuídos de alguma subjectividade, sendo que esta é, muitas vezes, suficiente para fazer pender esse juízo num ou noutro sentido.
Por outro aquela análise passa pela análise de questões jurídicas de algum melindre e dificuldade.
O que, por si só, aconselha a admissão desta revista.
Acresce que atenta a divergência manifestada nas instâncias, designadamente na interpretação da factualidade constante do probatório, e a repercussão que a mesma tem no julgamento da causa inclina-nos a pensar que a admissão da revista também é necessária para uma mais esclarecida aplicação do direito.

DECISÃO
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.