Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0281/11.4BEMDL 0623/18
Data do Acordão:05/06/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NEVES LEITÃO
Descritores:CASO JULGADO
RECLAMAÇÃO DE DECISÃO DO ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL
ANULAÇÃO DA VENDA
Sumário:I - A excepção dilatória do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença transitada em julgado, tendo por fim evitar que o tribunal seja conduzido a contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (arts.577º al.i) e 580º nºs 1e 2 CPC).
II - A repetição da causa pressupõe a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir (art.581º CPC).
III - Não se verifica a excepção do caso julgado, determinante da absolvição da Fazenda Pública da instância, quando no processo de reclamação de decisão proferida pelo órgão da execução fiscal foi apreciada a causa de pedir invocada (erro sobre as qualidades do imóvel penhorado, por desconformidade entre as reais características do imóvel penhorado e as constantes do anúncio para venda) e no pedido de anulação de venda são invocadas como causas de pedir (para além da supra indicada), a existência de alegados ónus reais sobre o imóvel penhorado, consistentes na vigência de um contrato de arrendamento industrial e numa garantia real resultante de privilégio creditório (art.257º nº1 primeiro segmento CPPT).
Nº Convencional:JSTA000P25838
Nº do Documento:SA2202005060281/11
Data de Entrada:06/27/2018
Recorrente:A........................
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO
1.1. A………… interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte (TCANorte) da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela em 1.07.2013, que julgou procedente a excepção dilatória do caso julgado, absolvendo a Fazenda Pública da instância no processo de anulação de venda efectuada no âmbito da execução fiscal nº 2496200201018370 (Serviço de Finanças de Vila Real)

1.2. O recorrente apresentou alegações que sintetizou com a formulação das seguintes conclusões:
1º Existe erro de direito, na douta sentença revidenda, a qual considera existir caso julgado aplicável aos presentes autos, tendo em vista uma alegada coincidência, quanto às partes e ao objecto da acção, entendimento este que se funda, na opinião do ora Recorrente em claro erro,
2º De facto, a decisão preferida em sede de Reclamação, encontra-se limitada objectivamente pela decisão sobre decisão da administração, que no caso se encontra delimitada pela acta de abertura de propostas e tendo como objecto o não reconhecimento do erro do ora Recorrente, sobre o prédio efetivamente em venda, e não sobre as características do bem alienado, depois de requerida retirada da proposta, tudo os termos do art. 276° do CPPT.
3º Na acção onde, o Tribunal "a quo" indeferiu a pretensão de anulação da venda por erro sobre o objecto do negócio, atenta a não identificação e publicitação de que o imóvel em causa se encontrava ocupado, e com empresa a laborar com alegado contrato de arrendamento, em sede de Edital de venda, está em causa uma anulação da venda, com fundamento diverso do que esteve subjacente à Reclamação, uma vez que a administração fiscal, não decidiu sobre tal pedido,
4º Razão pela qual, se viu o Recorrente obrigado a lançar mão da acção prevista o art. 257º, nº1, do CPPT, como único meio de ver reconhecido o erro sobre o objecto do negócio, tal como de resto o mesmo se encontra reconhecido pelo STA,
5º Não existindo, assim, por impossibilidade de Direito, qualquer caso julgado, que apenas por manifesto lapso poderá considerar, razão pela qual deve a douta sentença ser objeto de revogação, ordenando-se o prosseguimento dos autos, para aferição da existência, ou não, de erro, e da eventual responsabilidade da administração pelo mesmo, com a consequente; se for esse o caso, anulação da venda

1.3. A recorrida não apresentou contra-alegações.

1.4 Por decisão proferida em 9 abril 2018 o Tribunal Central Administrativo Norte declarou-se incompetente para o conhecimento do recurso, em razão da hierarquia, indicando como tribunal competente o Supremo Tribunal Administrativo (processo electrónico p. 251)

1.5. O Ministério Público emitiu parecer no sentido do provimento do recurso e da devolução do processo ao tribunal de 1ª instância para apreciação do mérito da causa (processo electrónico p.273)

1.6. Após os vistos dos juízes conselheiros adjuntos cumpre apreciar e decidir em conferência

2.FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DE FACTO
A sentença recorrida julgou provada a seguinte factualidade:
Neste Tribunal correu termos o processo n.º 196/11.6BEMDL, no âmbito do qual o autor - ora autor também - pediu a anulação do despacho proferido pela chefe adjunta do Serviço de Finanças de Vila Real no processo de execução fiscal n.º 2496 2002 0101 8370 que indeferiu a anulação da proposta por aquele apresentada no final do acto de abertura e aceitação de propostas para venda de imóvel, invocando, para o efeito, a divergência entre as características do bem anunciado para venda e as que efectivamente detém pela existência de um arrendamento, tendo já sido proferida sentença com trânsito em julgado - cfr. fls. 66 e ss.

2.2. DE DIREITO
2.2.1. Questão decidenda: apreciação da verificação da excepção dilatória do caso julgado

2.2.2. Apreciação jurídica
2.2.2.1. Inspirado nos princípios da economia processual e da segurança jurídica, o instituto do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja conduzido a contradizer ou reproduzir decisão anterior (art.580º nº2 CPC vigente).
A repetição da causa pressuposta no caso julgado exige identidade das accões em confronto quanto aos sujeitos (identidade das partes quanto à sua qualidade jurídica), quanto ao pedido (identidade do efeito jurídico pretendido) e quanto à causa de pedir (a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico) (art.581º CPC vigente)
O caso julgado constitui excepção dilatória obstativa do conhecimento do mérito da causa e determinante da absolvição da instância (art.576º nº2 e 577º al.i) CPC vigente)
O caso julgado material exprime o efeito imperativo da sentença transitada em julgado que tenha apreciado a relação material controvertida (art.619º nº1 e 621º CPC vigente)
A força do caso julgado material abrange, para além da decisão da questão expressamente submetida à apreciação do tribunal, a decisão das questões instrumentais que constituam o antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado (cf.acórdão STJ 12.07.2011 processo nº 129/07.4)
O caso julgado cumpre uma dupla função:
a) positiva, exercida pela autoridade do caso julgado que se traduz na sua força obrigatória dentro e fora do processo;
b) negativa, manifestada na excepção dilatória do caso julgado que impede a reapreciação da mesma causa pelo tribunal
(Alberto dos Reis Código de Processo Civil Anotado Volume III Coimbra Editora 1950 pp.93 e sgs).

2.2.2.2. No caso concreto não se verifica a tríplice identidade exigível para a procedência da excepção dilatória, na medida em que são distintas as causas de pedir invocadas nas acções em confronto:
No requerimento de anulação de venda o recorrente invocou como fundamentos do pedido de anulação da venda:
- a desconformidade entre a descrição do imóvel penhorado constante do anúncio para venda e as suas reais características;
- a existência de um contrato de arrendamento industrial tendo por objecto o imóvel penhorado;
- uma garantia real resultante de privilégio creditório com idêntico objecto
No processo de reclamação 196/11.6BEMDL foi formulado o pedido imediato de anulação de proposta de venda apresentada pelo reclamante e o pedido consequencial de anulação da venda.
Apesar da tríplice fundamentação (supra enunciada) apenas foi apreciado um dos fundamentos: o erro sobre as qualidades por desconformidade entre as reais características do imóvel penhorado e as constantes do anúncio para venda (art.257 nº1 al.a) último segmento CPPT)
Inequivocamente, esta conclusão resulta do discurso jurídico da sentença proferida pelo tribunal tributário no processo de reclamação, de onde se transcreve com relevância:
A reclamação aqui sob apreciação, atendendo aos termos em que vem redigida, assenta na invocada divergência entre as características do bem anunciado para venda e as que efectivamente detém; na invocada existência de um arrendamento industrial e ainda de uma garantia real com privilégio creditório
Mas o que é certo é que o despacho reclamado apenas se deteve na análise da questão relativa à conformidade dos elementos constantes do anúncio para venda, quando compaginado com as características do imóvel em causa
(…)
Temos portanto que a decisão reclamada nos presentes autos é tão somente a que se debruçou sobre as objecções opostas pelo então proponente e que se prendiam, exclusivamente, com o facto de este se ter equivocado na identificação do armazém.
(…)
A presente reclamação só pode ter por objecto as pretensões que foram apresentadas no requerimento para subsequente despacho do chefe do serviço de finanças e que este indeferiu (a saber, as objecções opostas pelo então proponente e que se prendiam, exclusivamente, com o facto de este se ter equivocado na identificação do armazém) e não quaisquer outras (tal como agora pretende o reclamante a propósito da invocada existência de um arrendamento industrial e ainda de uma garantia real com privilégio creditório)
Termos em que, não se verificando qualquer divergência entre o bem anunciado para venda e o bem penhorado, a presente reclamação terá que improceder
Assim sendo, a autoridade e a força vinculativa do caso julgado formado pela decisão proferida no processo de reclamação circunscreve-se ao fundamento específico apreciado pelo tribunal; não abrangendo os demais fundamentos invocados que não foram objecto de pronúncia juridicamente relevante, apenas de considerações colaterais, com resulta da seguinte transcrição:
Vimos já que o objecto da presente reclamação terá que ficar circunscrito à matéria constante das objecções apresentadas pelo reclamante no acto de abertura das propostas e ao teor da decisão que sobre elas recaiu.
No entanto, sempre se dirá que o alegado arrendamento do imóvel em causa nos autos, não foi, nem tinha que ser referido nos anúncios para a venda
Neste contexto deve o TAF Mirandela apreciar no processo para anulação de venda as causas de pedir expressamente excluídas do perímetro do caso julgado formado pela decisão proferida no processo de reclamação, legalmente invocáveis como fundamentos de anulação da venda, na medida em que abstractamente configurantes de ónus reais sobre o imóvel penhorado: vigência de arrendamento industrial e incidência de garantia real resultante de privilégio creditório (art.257º nº1 al.a) primeiro segmento CPPT)

3.DECISÃO
Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso e, em consequência:
- revogar a decisão recorrida;
- ordenar a devolução do processo ao tribunal de 1ª instância para apreciação dos fundamentos da anulação da venda que não foram apreciados no processo de reclamação (nos termos indicados na fundamentação), se outro motivo obstativo não se verificar
Custas pela Fazenda Pública, sem taxa de justiça na fase de recurso em virtude de não ter apresentado contra-alegações (art.527º nºs 1/2 CPC; art.7º nº2 Regulamento das Custas Processuais)

Lisboa, 6 de maio 2020. – Neves Leitão (relator) – Nuno Bastos – Francisco Rothes.