Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0660/12
Data do Acordão:07/03/2013
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
REQUISITOS
JURISPRUDENCIA CONSOLIDADA
IVA
VENDA DE SALVADOS
ISENÇÃO
Sumário:I - Para efeitos da oposição de acórdãos ao abrigo do artº 284º do CPPT, exige a lei os seguintes requisitos:
a) contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão invocado como fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito;
b) que a decisão impugnada não esteja em sintonia com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
II - Existindo jurisprudência recentemente consolidada na Secção de Contencioso em matéria da não isenção de IVA na venda de salvados por parte das seguradoras, o recurso por oposição de acórdãos não pode ser admitido em face do disposto no nº 3 do artº 152º do CPTA.
Nº Convencional:JSTA000P16045
Nº do Documento:SAP201307030660
Data de Entrada:04/03/2013
Recorrente:A..., S.A.,
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I. A……., SA, com os demais sinais nos autos, veio recorrer do acórdão proferido por este STA em 31.10.12 (v. fls. 143/169), com fundamento em oposição com o acórdão proferido por este mesmo Supremo Tribunal em 19.02.2003 – Processo nº 026435 (v. fls. 370 a 376).

II. Admitido o recurso por despacho do Relator de fls. 192, a recorrente veio produzir alegações tendentes a demonstrar a oposição entre os citados acórdãos (v. fls. 197/199).

III. Por despacho do Relator de fls. 200, foi julgada verificada a oposição entre os citados acórdãos, tendo sido produzidas alegações ao abrigo do nº 5 do artº 284º do CPPT, nas quais a recorrente concluíu:

A). A aquisição de salvados pela seguradora é um elemento do processo de indemnização no âmbito do contrato de seguro, pois a seguradora não celebra como o segurado qualquer contrato de compra e venda.

B). A seguradora adquire a propriedade do salvado unicamente ao abrigo do contrato de seguro, e em resultado do pagamento da indemnização, sendo a transferência de propriedade inerente à obrigação legal de pagamento de indemnização e, portanto, inerente à própria atividade seguradora.

C). A aquisição dos salvados não é, simplesmente, uma “atividade conexa” ou “complementar” da atividade seguradora, mas sim uma das diversas operações em que se decompõe a atividade seguradora, que envolve a prática de vários atos jurídicos, em que se desdobra um negócio jurídico complexo.

D). A tese que recusa a isenção de IVA assenta numa autêntica ficção: de que as seguradoras, para além da respetiva atividade, exercem uma outra, de compra e venda de salvados.

E). Além disso, a AT não pode exigir que a Seguradora apresente fatura ou documento equivalente de acordo com o disposto no nº 5 do artigo 35º do CIVA, ou que a impugnante demonstre que não lhe foi liquidado IVA por parte dos anteriores proprietários dos salvados, dado que a aquisição dos salvados resulta de um processo de pagamento de indemnizações no âmbito de um contrato de seguro e não de um contrato de compra e venda.

F). Por esse motivo, não há lugar à emissão de uma fatura, nem essa aquisição dá origem a liquidação de IVA.

G). Sendo assim, porque os atos e contratos relativos a salvados são inerentes à atividade seguradora e indissociáveis dessa atividade, a aquisição e subsequente venda de “salvados” pelas companhias de seguros, no âmbito de contrato de seguro automóvel, abrangendo bens exclusivamente afetos a atividade isenta (operações de seguro, resseguro e prestação de serviços conexos) que não confere direito à dedução, integra a isenção prevista pelo artº. 9º, nº 29 e 33 do CIVA.

Face ao exposto, deverá a identificada oposição de acórdãos ser resolvida firmando-se jurisprudência no sentido de que a aquisição e subsequente venda de “salvados” pelas companhias de seguros integra a isenção prevista pelo artigo 9º, nºs 29 e 33 do CIVA.
Mais deverá, em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido, e ser substituído por outro que confirme a douta sentença que anulou os atos impugnados, assim se fazendo
JUSTIÇA.

IV. O MºPº emitiu o parecer que consta de fls. 233/234 no qual se pronuncia no sentido de ser julgado findo o recurso, uma vez que o acórdão recorrido está em sintonia com a jurisprudência mais recentemente consolidada deste STA exarada no Acórdão do Pleno desta Secção (votado por unanimidade) de 23.01.2013.

V. Antes de mais, e apesar de o Relator ter proferido despacho em que reconhece a alegada oposição de acórdãos, importa reapreciar se a mesma se verifica, pois tal decisão não faz caso julgado e não impede ou desobriga o Tribunal de recurso de a apreciar, em conformidade com o disposto no artigo 687.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (hoje artº 685º-C, nº 5 do mesmo diploma).

Tendo os autos dado entrada posteriormente a 1 de janeiro de 2004, são aplicáveis as normas dos artºs 27º, alínea b) do ETAF de 2002 e 152º do CPTA (neste sentido, entre outros, v. o acórdão de 26/09/2007 do Pleno desta Secção, proferido no Processo nº 0452/07).

Sendo assim, a oposição depende da satisfação dos seguintes requisitos:

a) Existir contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão invocado como fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito;

b) A decisão impugnada não estar em sintonia com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.

Quanto ao primeiro requisito, de acordo com o acórdão de 29.03.2006 – Recurso nº 01065/05, do Pleno desta mesma Secção, relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adotar-se os critérios já firmados no domínio do ETAF de 1984 e da LPTA, para detetar a existência de uma contradição, a saber:
- identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, o que supõe estar-se perante uma situação de facto substancialmente idêntica;
- que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica;
- que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta;
- a oposição deverá decorrer de decisões expressas e não apenas implícitas (Neste sentido podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos:
- de 29.03.2006 – Processo nº 01065/05; de 17.01.2007 – Processo nº 048/06;
- de 06.03.2007 – Processo nº 0762/05; - de 29.03.2007 – Processo nº 01233/06. No mesmo sentido, v. ainda Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha - Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição, págs. 765-766).

A oposição deverá, por um lado, decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta e, por outro lado, a oposição de soluções jurídicas pressupõe identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais.

Vejamos então se, no caso dos autos, se verificam tais requisitos, começando pela questão da oposição entre os arestos acima identificados.

VI. Com interesse para a decisão foram dados como provados os seguintes factos:

A) No acórdão recorrido:

A) A Impugnante dedica-se ao exercício da atividade de seguro e resseguro para todos os ramos técnicos, excluindo o ramo “vida”, sendo que, no âmbito dessa atividade, efetua a aquisição de veículos salvados resultantes de sinistros ocorridos com os seus segurados, procedendo, posteriormente, à sua venda - cfr. 16 a 63 do PA apenso aos autos.

B) A coberto da ordem de serviço n.º 01200800287, de 21107/2008, a Direção de Serviços de Inspeção Tributária (DSIT), da Direção Geral dos Impostos, levou a cabo um procedimento instrutivo externo à ora Impugnante, em resultado do qual lhe foram efetuadas, além do mais, correções de natureza meramente aritmética, em sede de IVA, no valor de € 117 413,64, relativas ao ano de 2006, com base nos seguintes fundamentos:
“Apurou-se imposto em falta relativo à venda de salvados no montante de 117.413,64€, resultante da aplicação da taxa (de 21%) prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 18º º Código do IVA sobre o valor tributável determinado nos termos do disposto no Despacho n.º 185412002 - XV, de 18 de dezembro, do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (adiante designado SEAF), o qual se encontra apurado conforme Anexo 5.
A venda de salvados é qualificada como transmissão de bens nos termos do artigo 3º do Código do IVA sendo passível de tributação à taxa em vigor, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 18.º do Código do IVA.
Igualmente, por Despacho de 18/12/2002 do SEAF (Despacho nº 1854/2002 - XV), foi confirmado o enquadramento tributário em sede de IVA dado pelo Despacho de 06/10/1999 do Subdiretor Geral da DGC exarado na Informação n.º 1765, de 30/09/1999 da DSIVA, aplicável às operações de venda de Salvados efetuadas pelas Companhias de Seguros, o qual estabelece, por um lado, que “Em relação aos bens em que o segurado, seu anterior proprietário, era um não sujeito passivo do IVA ou, sendo-o, não deduziu o imposto referente à sua aquisição, por ser excluído desse direito, face ao disposto no artigo 21º do CIVA, poderá ser aplicável o regime de tributação pela margem, ao abrigo do D. Lei n.º 199/96, de 18 de outubro”, e, por outro lado, que “Em relação aos bens em que o direito à dedução foi exercido e em que foi liquidado imposto à companhia de seguros, a venda do salvado deverá ficar sujeita a imposto nos termos gerais”.
Assim sendo, foram solicitados ao Sujeito Passivo os elementos indispensáveis ao correto apuramento do IVA a liquidar relativamente à alienação de Salvados, nomeadamente, a identificação do salvado (veículo ligeiro de passageiro, misto ou pesado, e matricula); a identificação do antigo proprietário; o valor de custo do salvado (valor deduzido na indemnização atribuída); a data de venda; o valor de venda e o valor do IVA liquidado.
Da validação efetuada aos registos dos salvados alienados no decorrer do exercício disponibilizados pelo Sujeito Passivo, verificou-se que não foi efetuada qualquer liquidação de IVA, conforme Despacho nº 1854/2002 - XV do SEAF, de 18 de dezembro, não tendo sido aplicado, desta forma, o referido despacho.
Com efeito a Seguradora deveria ter liquidado IVA na alienação dos salvados, nos seguintes termos:
a) Nos casos em que o anterior proprietário exercia a atividade de ALD/Rent a car/Leasing, os salvados alienados pela Seguradora estavam sujeitos ao IVA pelo regime geral - nos termos da segunda parte do Despacho 1854/2002-XV - uma vez que o artigo 21.º do Código do IVA estabelece a não dedução do IVA nas viaturas ligeiras de passageiros ou mistas com exclusão das destinadas ao exercício das atividades supra referidas.
b) Nos casos em que o anterior proprietário era sujeito passivo do IVA com direito a dedução e o bem uma viatura de mercadorias, os salvados alienados pela Seguradora estão, igualmente, sujeitos ao IVA pelo regime geral - nos termos da segunda parte do Despacho 1854/2002-XV - uma vez que o artigo 21.º do Código do IVA apenas estabelece a não dedução do IVA nas viaturas ligeiras de passageiros ou mistas.
c) Nos casos em que o anterior proprietário era uma empresa e o bem viaturas ligeiras de passageiros, os salvados alienados pela Seguradora estão sujeitos a IVA pelo regime da margem nos termos da primeira parte do Despacho 1854/2002-XV.
d) Nos casos em que o anterior proprietário era um Particular, os salvados alienados pela Seguradora estão sujeitos ao IVA pelo regime da margem de acordo com a primeira parte do Despacho 1854/2002-XV.
O IVA liquidado na venda dos salvados deveria ser entregue nos cofres do Estado nos prazos previstos no n.º 1 do artigo 40.º do Código do IVA.
Face ao exposto, dado que o Sujeito Passivo não liquidou o IVA devido, não tendo, consequentemente, efetuado a correspondente entregas nos cofres do Estado, resulta uma correção a favor da Administração Fiscal efetuada nos termos do Despacho acima mencionado, com imposto em falta no montante de 117.413,64€, apurado nos termos do artigo 16.0 conjugado com a alínea c) do n.º 1 do artigo 18º, ambos, do Código do IVA.
Esta correção é efetuada nos termos das disposições legais, despachos e informações, supra mencionadas” - cfr. 16 a 63 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

C) Na sequência da inspeção tributária acima referida, a Direção Geral dos Impostos emitiu as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios ora impugnadas, com data limite de pagamento em 31/03/2009 - cfr. fls. 28 a 51 dos autos.

D) A ora Impugnante efetuou o pagamento das liquidações impugnadas em 24/03/2009, no total de € 128.215,72 - cfr. fls. 28 a 51 dos autos.

B) No acórdão fundamento:

1.º) Em resultado da visita à impugnante efetuada pela Direção de Serviços de Prevenção e Inspeção Tributária foram efetuadas correções técnicas em sede de I.V.A., com referência ao exercício de 1993, resultando o apuramento de imposto em falta, no montante de 5.046.353$00.

2.º) Em resultado daquelas correções foi emitida em 30 de junho de 1998 a liquidação adicional de I.V.A. n.º 9813363, no montante de 5.046.353$00.

3.º Para além da liquidação referida em 2.º foram emitidas as liquidações de juros compensatórios n.ºs 98101355, 98101356, 98101357, 98101358, 98101359, 98101360, 98101361 e 98101362, no valor global de 3.864.591$00.

4.º) Em 27 de novembro de 1998 a impugnante apresentou reclamação das liquidações referidas em 2.º e 3.º.

5.º) A impugnante é uma empresa de seguros, legalmente autorizada a exercer a sua atividade.

6.º) No exercício dessa atividade, a impugnante efetua a aquisição de salvados resultantes de sinistros ocorridos com os seus segurados, procedendo posteriormente à sua venda.

7.º) A impugnante não liquidou I.V.A. no montante em que procedeu à venda dos salvados.

8.º) Em 31 de agosto de 1998 a impugnante efetuou o pagamento do valor resultante das liquidações referidas em 1.º e 2.º, no total de 8.910.944$00.

VII. Por sua vez, no acórdão recorrido escreveu-se, para além do mais, o seguinte:

“A sentença recorrida, seguindo a jurisprudência constante do acórdão do STA de 19/2/2003, rec. nº 026435, decidiu que a venda dos salvados adquiridos pela impugnante em resultado das indemnizações pagas aos seus segurados por motivo de perda total de veículos está isenta de IVA.
Tal conclusão assenta na seguinte argumentação: «Na verdade, é de entender que a integração dos salvados na esfera patrimonial da impugnante ocorre por força dos contratos de seguro realizados com os seus segurados e, consequentemente, no âmbito das operações de seguro e resseguro a que alude o art. 9º, nº 29 do CIVA, para efeitos de isenção de IVA, ou seja, tal aquisição resulta exclusivamente da atividade desenvolvida pela Impugnante, uma vez que esta só “adquire” os salvados porque, previamente, celebrou um contrato de seguro automóvel com o seu primitivo proprietário. Sendo assim, a subsequente venda dos salvados continua a ser considerada uma venda de bens exclusivamente afetos à atividade seguradora, ou seja, de bens afetos a uma atividade isenta de IVA. Tal transmissão cai, necessariamente, no âmbito da isenção do art. 9º nº 33, do CIVA, uma vez consubstancia uma transmissão de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta (atividade de seguro e resseguro, isenta nos termos do nº 29 da citada norma) e que não forma objeto de direito à dedução».
Todavia, em jurisprudência mais recente, com a qual se concorda, numa análise mais aprofundada desta questão, chegou-se a um entendimento diferente do julgado pela sentença recorrida. Seguindo o sumário dos acórdãos deste Tribunal de 19/4/2012 e de 2/5/2012, proferidos nos recursos nº 0101/12 e 0642/12, conclui-se que: (i) «considerando a letra e a razão de ser da isenção consagrada no art. 9º, nº 29, do CIVA, ao dizer-se que estão abrangidas na referida isenção as operações de seguro e de resseguro realizadas por companhias de seguros, bem como as prestações de serviço conexas efetuadas pelos corretores e intermediários de seguros, deve entender-se que não cabe na mesma a atividade de venda de salvados pelas companhias de seguros»; (ii) «a venda de salvados também não preenche as condições da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA (que o bem esteja afeto à atividade isenta e que a aquisição do bem pelo sujeito passivo tenha sido feita com exclusão do direito a dedução) porque não se trata de uma atividade isenta, mas apenas de operações isentas e a lei não estabelece que ficam isentas todas as atividades de seguro e resseguro, mas apenas as operações de seguro e resseguro. Por outro lado, também não foram abrangidas as atividades conexas ou complementares em geral, mas só as dos intermediários e corretores de seguro e não todas mas apenas das conexas com as operações de seguro e resseguro. Finalmente, o salvado não deve ser qualificado como bem afeto à atividade seguradora, pois quando se fala de bens afetos à atividade isenta quer-se significar os bens que tenham sido utilizados na empresa transmitente na realização de operações isentas do imposto. Aplicá-la aqui era partir não da utilização do bem para determinar o regime da subsequente venda mas inverter a relação e ir buscar o regime que se pretende para a venda para qualificar a utilização anterior».
Os números 29 e 33 (atuais 28º e 32º do CIVA) estabelecem que, «as operações de seguro e resseguro, bem como as prestações de serviços conexas efetuadas pelos corretores e intermediários de seguro» e que «as transmissões de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta, quando não tenham sido objeto do direito à dedução e bem assim as transmissões de bens cuja aquisição ou afetação tenha sido feita com exclusão do direito à dedução nos termos do n.º 1 do artigo 21.º».
Para desvendar o verdadeiro sentido e alcance destas normas, tendo presente que as normas de isenção do IVA estão sujeitas a um princípio de interpretação “estrita” ou “declarativa”, tal como vem defendendo a jurisprudência comunitária, o acórdão do STA de 19/4/2012, acima referido, socorreu-se dos elementos gramatical, sistemático e racional para concluir que a venda dos “salvados” não é uma operação incluída no âmbito daquelas normas.
No que se refere à primeira delas, o nº 29 do artº. 9º do CIVA, partindo do escopo social das empresas de seguros, tal como está definido no nº 1 do artigo 8º do DL nº 94-B de 17/4, só se pode concluir que a 1ª parte da norma se reporta ou remete para a atividade principal das companhias de seguro, de que têm o exclusivo se devidamente autorizadas, que é a realização de «operações de seguro e resseguro» e não para as atividades conexas ou complementares referidas no artigo, onde se inclui o negócio dos “salvados”. Aquele artigo 8º distingue, de forma clara e precisa, a atividade principal de seguro direto e resseguro, que só as companhias de seguro podem exercer, quando devidamente autorizadas, das atividades acessórias ou complementares, que podem ser levadas a cabo por outras entidades, sem sujeição a prévia autorização administrativa. Ora, a letra da 1ª parte do nº 29º do artigo das isenções de IVA, ao referir-se apenas às «operações de seguro e resseguro» só pode comportar um único significado: isentar de IVA as operações incluídas na atividade principal das seguradoras, mas a contrario deixar de fora as atividades conexas ou complementares. Sendo a isenção de natureza excecional, digamos que a partir da norma excecional se deduz um princípio de sentido oposto para os casos nela não abrangidos.
De igual modo, não é através do enunciado linguístico da 2ª parte da norma que se pode chegar à conclusão que a venda dos “salvados” está abrangida pela norma de isenção. Nesse segmente normativo estende-se a isenção «às prestações de serviço conexas efetuadas pelos corretores e intermediários de seguro», querendo referir-se às atividades que o artigo 9º do DL nº 144/2006 inclui no âmbito da sua atividade e que se estão conexionadas com o ramo dos seguros, tais como operações de capitalização ou mediação no âmbito dos fundos de pensões.
O argumento de ordem sistemática, que afasta os “salvados” do âmbito da norma daquele nº 29 do art. 9º, é-nos dado por Maria Odete Oliveira, em anotação ao acórdão do STA referido na sentença recorrida: «o preceito não comporta quanto às companhias de seguros quaisquer outras operações, contrariamente ao que sucede em isenções consignadas em diferentes números do artº. 9º do CIVA em que o legislador entendeu abranger no âmbito da isenção algumas outras transmissões de bens ou prestações de serviços para além das que diretamente justificaram a consagração da isenção, designado essa outras por conexas ou mesmo estritamente conexas. Só que quando assim o quis disse-o expressamente, como aliás se exige em matéria de normas que consagram isenções» (cfr. “Anotação ao Acórdão do STA, de 19 de fevereiro de 2003, Proc. nº 26435”, Jurisprudência Fiscal Anotada, Almedina, Coimbra, 2003, p. 93). Ou seja, no contexto das várias normas de isenção que compõem o artigo 9º do CIVA, que por princípio obedecem a um pensamento unitário, conclui-se que a isenção só é estendia às operações conexas nos casos taxativamente indicados pelo legislador, o que, desde logo, afasta a possibilidade de se incluir a compra e venda dos salvados nas atividade de seguro e resseguro.
Também, a razão de ser da norma em causa afasta a possibilidade de se incluir no seu espírito a compra e venda de salvados. A racionalidade da norma foi encontrada por José Xavier de Bastos, que a ela se refere nestes termos: «O argumento mais corrente a favor da isenção de IVA para as atividades seguradoras é o de que o preço a que os serviços respetivos são vendidos – os chamados “prémios de seguro” - não reflete necessariamente o valor dos serviços efetivamente prestados pelo segurador. A operação de uma companhia seguradora, na sua forma pura, consiste em recolher “prémios” dos clientes, formando um fundo, cujo valor, na sua maior parte, está consignado ao pagamento das “indemnizações”. As somas pagas pelos clientes só em pequena parte se destinam a cobrir os custos de administração e funcionamento; o resto constitui, a bem dizer, transferências. É este o caso da generalidade dos seguros de risco, por exemplo, de incêndio, de acidente de trabalho, etc. No caso de seguros de vida, há, no prémio pago pelos clientes, também um elemento de poupança, o que apela para um tratamento fiscal idêntico ao que recebem outros ativos em que se fazem aplicações financeiras (…). A tributação do prémio bruto, permitindo apenas à seguradora a dedução do IVA contido nas aquisições de bens e de serviços de terceiros, não constituiria, nesta lógica, solução aceitável. Separar, todavia, de modo não arbitrário, a componente que se relaciona com o serviço da seguradora, como coisa distinta da componente que se destina a dar solidez financeira ao fundo segurador, ou da componente de poupança, é a dificuldade técnica principal com que se defronta a tributação pelo IVA das operações de seguro e de resseguro” (Cfr. “A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional”, Ciência e Técnica Fiscal, 362, 1991, p. 148).
Ora, se a isenção das operações de seguro e resseguro assenta na dificuldade em apurar o valor acrescentado dos prémios de seguro, o mesmo não ocorre na compra e venda dos salvados, em que facilmente se determinava tal valor.
E afastada também está a possibilidade de se incluir o negócio dos salvados no âmbito da norma do nº 33 do artigo 9º do CIVA, acima transcrita, que inclui duas espécies de «transmissões»: (i) «de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta», quando não tenham sido objeto do direito à dedução; (ii) «de bens cuja aquisição ou afetação tenha sido feita com a exclusão do direito à dedução nos termos do nº 1 do artigo 21º».
Como se refere no Ac. de 19/4/2012, não se inclui na primeira parte da norma, por vários motivos: (i) a aquisição dos salvados não resulta do cumprimento do contrato de seguro, porque, em caso de sinistro, a companhia de seguros fica obrigada a pagar uma indemnização, mas tal não implica necessariamente a aquisição dos salvados; (ii) a compra e venda dos salvados, apesar de complementar dos seguros, é uma atividade meramente eventual que pode ser despenhada por outras entidades; (iii) a norma refere-se a uma “atividade isenta” e não a “operação isenta”, como é o caso da compra e venda de salvados; (iv) mesmo que a compra do salvados decorresse das cláusulas do contrato de seguro, ainda assim só a aquisição poderia eventualmente beneficiar de isenção de IVA, caso se entendesse que não tem subjacente um preço, mas sim o pagamento do prémio de seguro; (v) no caso do transmitente da propriedade do salvado ser um particular sujeito passivo de IVA, está fora da incidência do imposto, pelo artigo 1º do CIVA, faltando o pressuposto de que se trate de um bem que não tenha sido objeto do direito à dedução.
E também não está ao alcance da segunda parte da norma, porque, como se refere no referido acórdão, citando o artigo de Maria Odete Oliveira: (i) «(…) escapando à incidência do imposto, a entrega da viatura sinistrada à seguradora pelo segurado, não se poderá com propriedade dizer que a seguradora a adquiriu sem que tenha havido exercício do direito a dedução. Este direito de dedução é do IVA suportado. Se não houve IVA suportado nunca poderá falar-se em exercício ou não do respetivo direito a dedução»; (ii) «a estender-se o âmbito da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA, no sentido do defendido na jurisprudência do Acórdão do STA, que serviu de fundamento à sentença “a quo”, implicaria aceitar-se que sempre que um qualquer sujeito passivo, uma vez que o preceito é de aplicação genérica, adquirisse um qualquer bem a um particular estaria em condições de isentar a sua posterior transmissão. Ora, acontece que, no caso mais frequente de comercialização de bens em segunda mão, em que os bens são adquiridos a particulares com intenção de os voltar a reintroduzir no circuito da comercialização, foi necessário prever uma disposição especial para cobrir tais situações, que não ficaram desta forma isentas de IVA. A questão foi objeto da emissão de diretiva própria (Diretiva 94/5/CE do Conselho, de 14 de fevereiro de 1994 (7ª Diretiva de IVA), transposta para o direito interno por força do Decreto-Lei nº 199/96, de 18 de outubro. Segundo o regime decorrente da mencionada Diretiva, nas situações em que o segurado seja um particular ou um sujeito passivo que não deduziu o IVA suportado aquando da aquisição do veículo aplica-se à venda pela companhia de seguros o regime da margem, uma vez que se verifica também aqui de bens usados adquiridos para venda»; (iii) acresce que, no caso particular da aquisição/venda de salvados, o alargamento do âmbito da isenção levaria a questionar se o mesmo seria igualmente extensível às demais atividades conexas ou complementares previstas no art. 8º, nº1, do Decreto-Lei nº 94-B/98 (2ª parte), uma vez que também em relação às mesmas se pode argumentar que ocorrem ainda no seguimento ou decorrência do pagamento do prémio do seguro e no quadro dos contratos de seguros, entendido num sentido amplo.
Em suma: a aquisição e venda de “salvados” pelas companhias de seguros é uma atividade complementar das operações de seguro e resseguro não incluída nas normas de isenção de IVA previstas nos nºs 28º e 32º do CIVA.”

VIII. No acórdão fundamento escreveu-se, para além do mais, o seguinte:

“Na verdade e atentando na específica atividade que estatutária e legalmente está acometida às companhias de seguros, designadamente no âmbito do ramo automóvel, já perante a inevitável e legal aquisição dos salvados ainda e exclusivamente em sede de cumprimento dos respetivos contratos de seguro, imperioso é também considerar a subsequente venda/transmissão daqueles bens como de bens exclusivamente afetos à atividade seguradora.
Venda que, sob pena de correspondente e, de todo, injustificado prejuízo material, tal como atentamente anota o Ex.mo Magistrado do Ministério Público e decorre das regras da experiência comum, se impõe àquelas seguradoras promover ainda como desenvolvimento ou no âmbito da respetiva, específica e isenta atividade.
Para assim ser importa tão só e ainda que, já perante o disposto no convocado e aplicável n.º 33 do art.º 9º do CIVA, seja caso de se poder concluir que as consequentes transmissões daqueles bens ( salvados ) não tenham sido objeto de direito à dedução – primeira parte do referido preceito -, já que esta é a que expressamente rege, aplicando-se, situações como a adquirida nos presentes autos – transmissão de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta -,
Uma vez que a segunda e última parte deste preceito – a exclusão do direito à dedução nos termos do art.º 21º n.º 1 do CIVA – não logra aqui, apesar da evidenciada e peculiar forma de aquisição dos bens, aplicação.
Com efeito e tal como vem de dizer-se, atento o disposto nos art.º 19º do CIVA e a especial forma/processo de aquisição/afetação pelas companhias de seguros dos salvados, bem pode afirmar-se que o perseguido direito à dedução não se verifica ocorrer não só porque naquela especial aquisição se não efetuou qualquer liquidação de imposto, por de operação não tributável se tratar que, assim e consequentemente, não confere, depois, direito à dedução,
Como, já perante o disposto no art.º 20º, n.º 1 al. a) do CIVA e atenta ainda a apontada e especial forma de aquisição dos referidos bens pelas companhias de seguros, bens que, como se deixou evidenciado e decorre da definição legal, entram “ ... na esfera patrimonial de uma companhia de seguros por força de contrato de seguro ... “, também não viabilizam o direito à dedução nos termos deste último preceito, não só por não ter incidido imposto na respetiva e especial forma de aquisição inicial ou originária, como porque, como vai também referido, já perante a particular natureza jurídica e a especialidade das atividades que estatutária e legalmente ( cfr. DL n.º 102/94, de 20.04 e DL n.º 94-B/98, de 17.04 ) cabem às companhias de seguros, não pode deixar de concluir-se também que a subsequente e controvertida venda dos questionados salvados não se mostra suscetível de integrar o conceito de transmissão de bens antes adquirido pelo sujeito passivo com o referido escopo – venda –, suscetível de caber no âmbito da especificidade das atividades próprias das seguradoras.
Procede assim e integralmente a argumentação desenvolvida pela Recorrente, sendo, por isso, de concluir que a aquisição e subsequente venda de salvados pelas companhias de seguros no âmbito de contrato de seguro automóvel, porque de bens exclusivamente afetos a atividade isenta (operações de seguro, resseguro e prestação de serviços conexos) integra a isenção prevista pelo art.º 9º n.º 29 e 33 do CIVA.
Termos em que acordam os Juízes desta Secção em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional e revogar a sindicada sentença, assim julgando antes procedente a impugnação judicial apresentada”.

VIII. Em face do que ficou transcrito acima, podemos então concluir que em ambos os arestos a matéria de facto é semelhante, sendo que, em termos jurídicos, se adotaram soluções diversas:
a) no acórdão recorrido entendeu-se que a aquisição e venda de “salvados” pelas companhias de seguros é uma atividade complementar das operações de seguro e resseguro que não está incluída nas normas de isenção de IVA previstas nos nºs 28º e 32º do artigo 9º do CIVA;
b) no acórdão fundamento, pelo contrário, foi decidido que a aquisição e subsequente venda de salvados pelas companhias de seguros, no âmbito de contrato de seguro automóvel, porque de bens exclusivamente afetos a atividade isenta (operações de seguro, resseguro e prestação de serviços conexos ) que não confere direito à dedução, integra a isenção prevista pelo art.º 9º n.º 29 e 33 do CIVA.

Verifica-se, assim, o primeiro requisito acima enunciado.

Vejamos agora se ocorre o requisito enunciado no artº 152º do CPTA.

IX. De acordo com o disposto no artº 152º, nº 3 do CPTA, o recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão impugnado estiver de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.

Sobre o alcance da expressão ”jurisprudência mais recentemente consolidada”, no acórdão do Pleno desta Secção, de 02.05.2012- Processo nº 0895/2011, de que fomos também relator, escreveu-se o seguinte:

“Sobre a expressão “jurisprudência recentemente consolidada”, escreveram Mário Aroso e Carlos Cadilha - Comentário ao CPTA, 3ª edição, pág. 1010: “Se o acórdão impugnado seguir o entendimento expresso pelo Pleno no âmbito de um julgamento ampliado de revista ou em anterior acórdão uniformizador, não tem, na verdade, justificação submeter a questão de novo à apreciação do Pleno. Face à literalidade do preceito, a possibilidade de não admissão do recurso também existe quando o acórdão impugnado se conforme com a jurisprudência pacífica e uniforme do STA, mesmo quando tirada pelas subsecções ou, pelo menos, com a jurisprudência firme que se tenha consolidado mais recentemente”.

Por sua vez, no acórdão do STA (Pleno) de 18 de setembro de 2008 (Processo nº 212/08), escreveu-se o seguinte: “… a diferença entre haver uma jurisprudência «tout court» e uma «jurisprudência consolidada» há de necessariamente advir de um «plus» desta última, que cause ou revele uma estabilidade de julgamento; e esse acréscimo detetar-se-á por um critério quantitativo, significador de uma constância decisória - seja esse critério o do número dos Juízes subscritores da solução, seja o do número das decisões do STA que a acolheram. Assim, a consolidação jurisprudencial transparecerá, ou do facto de a pronúncia respetiva constar de um acórdão do Pleno assumido pela generalidade dos Conselheiros em exercício na Secção (consoante prevê o artº. 17º, n.º 2, do atual ETAF), ou do facto de existir uma sequência ininterrupta de várias decisões no mesmo sentido e obtidas por unanimidade ou por maiorias inquebráveis, exigindo-se um maior número delas se os acórdãos provierem das Subsecções e um seu menor número se forem do Pleno (na formação de nove Juízes, referida no art. 25º, n.º 1, do anterior ETAF)”.

No caso concreto dos autos, o acórdão recorrido adotou o entendimento que já vinha sendo seguido por este STA, nesta matéria, nos acórdãos de 19.04.2012 – Processo nº 0101/12 e de 02.05.2012 – Processo nº 0642/12. Acresce, por outro lado, que, posteriormente, a mesma doutrina veio a ser afirmada no acórdão de 07.11.2012 – Processo nº 0748/12 e ainda, mais recentemente, no acórdão do Pleno desta Secção de 23.01.2013 – Processo nº 0642/12

Sendo assim, temos de concluir que existe jurisprudência recentemente consolidada neste Supremo Tribunal Administrativo, sobre a questão em apreço nos autos, pelo que, tendo a decisão recorrida seguido essa jurisprudência, o recurso não pode ser admitido (artº 152º, nº 3 do CPTA).

X. Nestes termos e pelo exposto, não se admite o recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de julho de 2013. – João António Valente Torrão (relator) – Dulce Manuel da Conceição Neto – Joaquim Casimiro Gonçalves – José da Ascensão Nunes Lopes – Pedro Manuel Dias Delgado – Isabel Cristina Mota Marques da Silva – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – Maria Fernanda dos Santos Maçãs.