Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0481/10
Data do Acordão:10/27/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:BRANDÃO DE PINHO
Descritores:IRS
IRC
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
GARANTIA REAL
Sumário:O artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.
Nº Convencional:JSTA00066657
Nº do Documento:SA2201010270481
Data de Entrada:06/07/2010
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A... E B...
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF ALMADA PER SALTUM.
Indicações Eventuais:PROVIDO.
Área Temática 2:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CIRS01 ART111.
CIRC01 ART108.
CPPTRIB99 ART240 N1.
CCIV66 ART8 N3 ART733.
CPC96 ART865.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC169/09 DE 2009/05/13.; AC STAPLENO PROC612/04 DE 2005/05/18.; AC STAPLENO PROC442/04 DE 2005/04/13.; AC STA PROC882/03 DE 2003/07/02.; AC STA PROC2078/03 DE 2004/02/04.; AC STA PROC919/09 DE 2009/11/12.; AC STA PROC920/09 DE 2009/11/18.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A Fazenda Pública, não se conformando com a sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, na parte em que decidiu não reconhecer os créditos, por si reclamados, respeitantes a IRS, relativo ao ano de 2005, e de IRC, relativo ao ano de 2006, dela vem interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
A - Os créditos de IRS e de IRC relativos aos três últimos anos, gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora, nos termos do estatuído no artigo 111.º do CIRS e no artigo 108.º do CIRC;
B - Para aqueles normativos relevam os anos a que respeitam os rendimentos que justificaram a liquidação do imposto e não o momento em que foram postos a cobrança;
C - Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (art. 733.º do Código Civil);
D - A circunstância do privilégio creditório geral ser uma mera preferência de pagamento não implica o afastamento do crédito da reclamação e graduação no lugar que lhe competir;
E - Pois que, ainda que os privilégios creditórios gerais não constituam garantias reais, mas meras preferências de pagamento, o seu regime é o das garantias reais, para o efeito de justificar a intervenção no concurso de credores.” (cf. Salvador da Costa, O Concurso de Credores”, 3. Edição, Almedina, 2005, pág. 388);
F - Motivo porque de harmonia com entendimento jurisprudencial largamente majoritário do STA “O artigo 240.º do CPPT deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.”
(cf. A título de exemplo o Acórdão do STA de 18-05-2005, recurso n.º 0612/04);
G - Ao não admitir os créditos de IRS e IRC, reclamados pela Fazenda Pública, a douta sentença ora recorrida incorreu em erro de direito na interpretação e aplicação das normas constantes nos art.ºs 240º, n.º 1 e 246º, ambos do CPPT, art. 111.º do CIRS e art. 108.º do CIRC.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, com o douto suprimento judicial, requer-se a V. Exas. que o presente recurso seja julgado PROCEDENTE por provado, revogando a douta sentença recorrida, substituindo-a por sentença que admita e gradue os créditos de IRS e IRC reclamados no lugar que lhes competir, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer nos seguintes termos:
Subscrevemos o entendimento da Recorrente, relativamente às questões suscitadas no recurso.
Com efeito, tendo por base o teor dos artigos 111.º do CIRS e 108.º do CIRC e presumindo-se que o Legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento, não é possível outra interpretação que não seja a de que aqueles privilégios creditórios não abrangem o imposto relativo ao mesmo ano a que respeita a penhora, apenas deles beneficiando os impostos relativos aos três anos anteriores.
Tendo a penhora sido efectuada em 2008, beneficiam daquele privilégio os créditos relativos ao IRS de 2005 e ao IRC de 2006, porque relevam para o efeito os anos a que respeitam os rendimentos que justificaram a liquidação do imposto e não o momento em que foram postos a cobrança.
No que respeita à segunda questão, o objecto do recurso passa, essencialmente, pela interpretação a dar ao artigo 240º, n.º 1 do CPPT. Trata-se de uma querela antiga a que a jurisprudência, largamente maioritária, deste STA, já deu resposta, entendendo dever ser feita uma interpretação em sentido amplo, de modo a terem-se por abrangidos na letra da lei não apenas os credores que gozam de garantia real, mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente os privilégios creditórios. Entre outros argumentos, fundamenta este entendimento, a unidade do sistema jurídico, porque não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor privilegiado de acorrer ao concurso de credores.
Deste modo, no caso sub judicio, nada obsta à reclamação e graduação dos créditos reclamados pela Fazenda Pública, apesar dos privilégios àqueles associados não constituírem uma garantia real.
A jurisprudência contrária — acórdãos do STA de 16/06/2004, recurso n.º 442/04 e de 07/07/2004, recurso n.º 612/04, acabou por ser contrariada por acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário, ao julgar recursos por oposição de acórdãos (acórdãos de 13/04/2005 e de 18/05/2005, respectivamente). Pese embora a brilhante argumentação desenvolvida naqueles arestos e o notável discurso jurídico do seu Relator, em anotação ao artigo 240.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, anotado e comentado, II volume, 5.ª edição, fls. 496 e seguintes, a corrente jurisprudencial deste Supremo Tribunal jamais inflectiu.
CONCLUSÃO
É nosso parecer merecer provimento o recurso.
2 – Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
1. A Fazenda Pública instaurou em 19/11/2001, contra o executado B……, Lda., o processo de execução fiscal nº 2208-01/102430.2 do Serviço de Finanças de Palmela tendo por objecto dívidas de Contribuição Autárquica de 2000, no montante de € 71746 e de que os presentes autos de verificação e graduação de créditos constituem apenso (cfr, cópia certificada do processo de execução fiscal junto aos autos);
2. Ao processo de execução fiscal identificado no ponto anterior foram apensos os processos de execução fiscal n.ºs 2205200301529390, 2208200301007467, 2208200201080679, 2208200401049585, 2205200401066595, 2208200501024396 e 2208200601015664 referentes a Contribuição Autárquica de 2002, 1999, 2001, 2000, e Contribuição Especial ficando a dívida a valer por € 27.840,44 (cfr. doc. junto a fls. 55 dos auto e cópia do processo executivo junto aos autos);
3. Em 17/04/2006, foi celebrado entre a executada e o A…, SA, um contrato Mútuo no montante de € 187.500,00, com hipoteca incidindo esta sobre a fracção autónoma designada pela letra A, correspondente, ao rés-do-chão esquerdo destinada exclusivamente à habitação, do prédio urbano construído em propriedade horizontal, designado por lote 54, sito na Urbanização …, freguesia da Quinta do Anjo, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número 3439 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 7881, com valor patrimonial de € 71.290,00 (cfr. doc. juntos a fls. 9 a 20 dos autos):
4. Em 17/05/2006, foi registada hipoteca a favor do A…, SA., incidente sobre o imóvel melhor identificado em 3), penhorado no processo de execução de que os autos constituem apenso, com vista à garantia da quantia de € 187.500,00, referente a capital, à taxa de juro anual de 5,50%, acrescido em 4% em caso de mora, despesas no montante de € 7500,00 e com montante máximo de € 248.437,50 (cfr. fls. 25 dos autos, cujo teor aqui que se dá por integralmente reproduzido):
5. Em 26/05/2008, no âmbito do citado processo de execução fiscal, e para pagamento das dívidas nele refendas, foi efectuada a penhora da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente, ao rés-do-chão esquerdo destinada exclusivamente à habitação, do prédio urbano construído em propriedade horizontal, designado por lote 54, sito na Urbanização …, freguesia da Quinta do Anjo, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número 3439 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 7881, com valor patrimonial de € 71.290,00, a qual foi registada a favor da Fazenda Nacional em 12/06/2008, para garantia da quantia de € 27.840,44 (cfr. fls. 25 e 56 a 59 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
6. Em 2005 foi inscrito para cobrança o IRS referente ao exercício de 2005 (cfr. doc. junto a fls, não numeradas da cópia do processo executivo junto aos autos);
7. Em 2007 foi inscrito para cobrança o IMI referente à fracção penhorada do exercício de 2006, no montante de € 334,73 (cfr. doc. junto a fls. 35 dos autos);
8. Em 2008 foi inscrito para cobrança o IRC referente ao exercício de 2006 no montante de € 1.494,84 (cfr. doc. junto a fls. não numeradas da cópia do processo executivo junto aos autos);
9. A executada é devedora à Fazenda Pública dos créditos exequendos e reclamados;
10. A executada é devedora ao A…, SA. da quantia reclamada;
3 – A única questão que vem controvertida no presente recurso consiste em saber se os créditos de IRS e IRC reclamados pela FP, relativos aos anos de 2005 e 2006, respectivamente, devem ou não ser reconhecidos e graduados.
A sentença recorrida não reconheceu e graduou os referidos créditos, por ter entendido que os privilégios imobiliários gerais previsto nos arts. 111º do CIRS e 108.º do CIRC não constituem garantias reais.
Por sua vez, a recorrente, apoiando-se na jurisprudência deste STA, entende que o art. 240º, nº 1 do CPPT deve ser “interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.”
Esta questão foi já amplamente apreciada e decidida por este STA no sentido defendido pela recorrente FP, jurisprudência essa que vamos aqui seguir, já que não vemos motivo para a alterar e para, assim, obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. artº 8º, nº 3 do CC).
A propósito, escreve-se no recente Acórdão desta Secção do STA de 13/5/09, in rec. nº 169/09, que “o legislador fiscal determinou a execução de bens individualizados do património do executado para satisfação do crédito do exequente, permitindo todavia aos credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados que reclamassem os seus créditos na execução. É o que resulta do disposto no artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em consonância com o artigo 865.º do Código de Processo Civil no respeitante à execução comum.
Mas, para alguma doutrina, direitos reais de garantia em sentido próprio serão apenas a penhora, o penhor, a hipoteca, o direito de retenção e a consignação de rendimentos. Já quanto aos privilégios creditórios, que o artigo 733.º do Código Civil define como «a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros», não há unanimidade, entendendo alguns que não serão verdadeiros direitos reais de garantia, mas qualidades do crédito, atribuídas por lei em atenção à sua origem. Praticamente unânime é o entendimento quanto aos privilégios gerais: estes não são qualificáveis como direitos reais de garantia. Em todo o caso, há, na doutrina, como na jurisprudência, concordância quanto a que os privilégios creditórios conferem preferência sobre os credores comuns. Nos termos dos artigos 111.º (antes artigo 104.º) do Código do IRS e 116.º do CIRC (antes art. 108.º), para o pagamento de IRS e IRC relativo aos três últimos anos a Fazenda Pública goza de privilégios mobiliários gerais e imobiliários gerais sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou de acto equivalente. Gozando os créditos reclamados de privilégios imobiliários, não preferindo embora aos credores com garantia real, não deixam, por isso, de poder ser reclamados e graduados no lugar que lhe competir. Neste sentido se têm pronunciado quer o Supremo Tribunal Administrativo quer o Supremo Tribunal de Justiça, em inúmeros acórdãos. Aliás, assim o impõe a unidade do sistema jurídico, pois não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor de acorrer ao concurso. Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o privilégio, pois nesse caso o crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio legal. Assim, afigura-se dever o artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário ser interpretado no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios – cf. neste sentido, quase textualmente, o acórdão do Pleno desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-5-2005, no recurso n.º 612/04, o qual, por sua vez, seguiu o acórdão do Pleno também desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-4-2005, no recurso n.º 442/04, a confirmar os acórdãos fundamento desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 2-7-2003, e de 4-2-2004, proferidos respectivamente nos recursos n.º 882/03, e n.º 2078/03”.
No mesmo sentido pode ver-se, ainda e entre muitos outros, os recentes Acórdãos desta Secção do STA de 12/11/09, in rec. nº 919/09 e de 18/11/09, in rec. nº 920/09.
Assim e pelo que fica exposto, resulta que os créditos em causa devem ser reconhecido e graduado no lugar que lhe couber.
4 – Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e, julgando reconhecidos os créditos reclamados pela Fazenda Pública referentes ao IRS do ano de 2005 e IRC do ano de 2006, proceder à respectiva graduação pela seguinte forma, saindo as custas precípuas do produto do bem penhorado:
1º - Os créditos reclamados pela Fazenda Pública relativos IMI de 2006;
2.º Os créditos reclamados pelo A…, S.A., garantidos por hipoteca registada em 17/05/2006 e juros até ao limite de três anos;
2º - Os créditos reclamados de IRS relativo ao ano de 2005 e IRC relativo ao ano de 2006 e respectivos juros, que gozam dos privilégios imobiliários dos arts. 111º e do CIRS e 116.º do CIRC (anterior art. 108.º);
3º - Os créditos exequendos e respectivos juros.
Sem custas.
Lisboa 27 de Outubro de 2010. – Brandão de Pinho (relator por vencimento) - Pimenta do Vale – Jorge de Sousa (vencido conforme declaração junta).
1 – À face do preceituado no art. 157.º do CPPT, tem de considerar-se assente, no direito e contencioso tributário, que os privilégios imobiliários gerais não são direitos reais de garantia, por não atribuírem ao seu titular direito de sequela, que é a característica que distingue os direitos reais de garantia das outras garantias.
Assim, a questão a apreciar reconduz-se a saber se, apesar o privilégio imobiliário geral não ser qualificável como direito real de garantia, os titulares de créditos que não gozem de outra garantia podem reclamá-los ao abrigo do art. 240.º, n.º 1, do CPPT que estabelece que «podem reclamar os seus créditos no prazo de 15 dias após a citação nos termos do artigo anterior os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados».
Fazendo equivaler a expressão «garantia real» a «direito real de garantia», como vem entendendo este Supremo Tribunal Administrativo, a uma questão equacionada nestes termos, é sugerida de imediato uma resposta negativa.
Na verdade, sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil), se aquele art. 240.º, n.º 1, apenas admite a reclamação por parte dos credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados e os privilégios gerais não são garantias reais, não se vê como poderá encontrar-se nesta norma suporte textual para adopção da interpretação adoptada nos citados arestos deste Supremo Tribunal Administrativo. De facto, aquela referência aos «credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados» tem um evidente alcance restritivo, impedindo que se englobem na possibilidade de reclamação os créditos que não gozem de qualquer garantia e os que gozem de garantia que não seja qualificável como garantia real.
Assim, não podendo ser considerado, na reconstituição do pensamento legislativo, aquele que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art. 9.º, n.º 2, do Código Civil), o dever de obediência à lei a que os tribunais estão vinculados (arts. 203.º da CRP e 3.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) impedirá que se dê uma resposta positiva àquela questão da possibilidade de reclamação.
A questão da existência ou não de suporte textual naquele art. 240.º, n.º1, do CPPT não se esgota, porém, nos termos em que tem vindo a ser colocada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo que admite a possibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégio geral, pois a expressão «garantia real», que tem sido interpretada como tendo significado a «direito real de garantia», designadamente como implicando a atribuição de direito de sequela ao respectivo titular, não tem necessariamente esse alcance.
Com efeito, o conceito de «garantia real» contrapõe-se ao de «garantia pessoal» e poderá interpretar-se como reportando-se a todas as garantias que reconduzem ao poder de o credor aproveitar o valor de coisas para a cobrança do seu crédito, enquanto as garantias pessoais (como a fiança e o aval) assentam na extensão do dever de pagamento da dívida, além do devedor, a outras pessoas.
Uma interpretação deste tipo, no sentido de que no conceito de «garantia real» se poderia abranger, para além dos direitos reais de garantia (aqueles que atribuem ao respectivo credor o direito de sequela imprescindível para a qualificação de um direito como real, por ser a característica de todos os direitos reais, de qualquer tipo) também os direitos de garantia que recaem sobre coisas mas não conferem ao seu titular o poder de fazer valer o seu direito perante terceiros, forneceria o imprescindível suporte textual para a adopção da tese adoptada pela citada jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, embora, naturalmente, a adoptar-se esta interpretação, fosse necessário rever a interpretação que tem vindo a ser dada ao conceito de «garantia real», como sinónimo de «direito real de garantia».
Por isso, é necessário aprofundar a apreciação da questão, para apurar se, ao usar a referência a garantia real, naquele art. 240.º, n.º 1, se pretendeu apenas aludir aos direitos reais de garantia ou a todos aqueles direitos que não constituem garantias pessoais, com o alcance referido.
2 – Analisando o uso que em diplomas legislativos se faz das expressões «garantias reais» e «direitos reais de garantia», constata-se que no Código Civil nunca se emprega esta última.
Por outro lado, nesse Código usa-se aquela expressão em situações em que é manifesto que se pretende aludir aos direitos reais de garantia (com o sentido acima definido):
– é o caso do art. 639.º, n.ºs 1 e 3, em que se alude a «garantia real constituída por terceiro» (Os privilégios creditórios só podem constituir-se por lei, e não pelos próprios titulares do crédito ou por terceiros, como resulta do disposto no art. 733.º do Código Civil, em que se estabelece que «privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros».);
– do art. 674.º, n.º 3, em 1 que se refere que «o autor do penhor tem a faculdade de impedir a venda antecipada da coisa, oferecendo outra garantia real idónea» (Também aqui, o facto de não se tratar de garantia constituída por lei, leva a concluir que, com a expressão «garantia real», se está a aludir a outro direito real de garantia.);
– do art. 1146.º, n.ºs 1 e 2, em que se faz variar o conceito de mútuo usurário da taxa do contrato de mútuo, conforme e «conforme exista ou não garantia real».
Emprega-se a expressão garantia real noutras normas do Código Civil, mas em situações em que não há elementos que permitam excluir forçosamente do seu âmbito as garantias que não englobam direito de sequela:
– é o caso do art. 822.º, n.º 1, e que se refere que «salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior»; – do art. 2070.º, n.º 3, em que se refere que «as preferências mantêm-se nos cinco anos subsequentes à abertura da sucessão ou à constituição da dívida,
– se esta é posterior, ainda que a herança tenha sido partilhada; e prevalecem mesmo quando algum credor preterido tenha adquirido garantia real sobre os bens hereditários»;
– e do art. 2272.º, n.º 2, em que se refere que «havendo foros ou outras prestações atrasadas, serão pagas por conta da herança; e por conta dela serão pagas ainda as dívidas asseguradas por hipotecas ou outra garantia real constituída sobre coisa legada».
No CPC, emprega-se também a expressão «garantia real» com o alcance de referenciar os direitos reais de garantia, com o sentido acima referido:
– é o que sucede com os n.ºs 2 e 3 do art. 56.º e com o n.º 2 do art. 94.º, em que se prevê a possibilidade de a execução ser dirigida, ab initio, contra terceiro, nos casos de execução por dívida provida de garantia real; uma vez que os bens sobre que recai o privilégio mobiliário geral só são determinados no momento da penhora, como resulta do disposto no art. 735.º, n.º 2, do Código Civil, a possibilidade de serem executados inicialmente bens de terceiro supõe a existência de uma garantia que confira ao seu titular direito de sequela;
– com o art. 823.º, n.º 1, em que se estabelece isenção de penhora de bens afectados à realização de fins de utilidade pública, «salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real»; também aqui, trata-se de uma garantia real existente antes da penhora, pelo que aquela expressão não pode reportar-se aos privilégios mobiliários gerais;
– com o art. 835.º, n.º 1, em que se estabelece que «executando-se dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução», pois está subjacente a esta norma que a garantia abranja determinados bens do devedor;
– com o art. 864.º, n.º 1, alínea b), na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, em que se referia a citação dos «credores com garantia real, relativamente aos bens penhorados», que na redacção dada por aquele diploma passou a referir os «credores que sejam titulares de direito real de garantia, registado ou conhecido»;
– com o art. 864.º-A, na redacção anterior àquele Decreto-Lei n.º 38/2003, que estabelecia que previa a possibilidade de «o credor com garantia real» reclamar espontaneamente o seu crédito na execução, até à transmissão dos bens penhorados, norma esta que, na nova redacção, incluída no n.º 3 do art. 865.º, passou a referir os «titulares de direitos reais de garantia»;
– com o art. 866.º, n.º 3, que estabelece que «Dentro do prazo concedido ao exequente, podem os restantes credores impugnar os créditos garantidos por bens sobre os quais tenham invocado também qualquer direito real de garantia, incluindo o crédito exequendo, bem como as garantias reais invocadas, quer pelo exequente, quer pelos outros credores», norma esta em que os termos direito real de garantia e garantias reais parecem ter significado idêntico;
– com o art. 866.º-B, em que se refere que «a requerimento do executado, a venda dos bens penhorados sustar-se-á logo que o produto dos bens já vendidos seja suficiente para pagamento das despesas da execução, do crédito do exequente e dos credores com garantia real sobre os bens já vendidos», norma esta que implicitamente afasta a possibilidade de os privilégios creditórios gerais serem considerados garantias reais, pois, incidindo eles sobre todos os bens (Esta norma não implica que os credores com privilégios creditórios gerais possam reclamar créditos, pois, para além do exequente e dos credores com direitos reais de garantia sobre os bens já vendidos, pode haver outros bens penhorados, sobre que existam também direitos reais de garantia, e que ainda não tenham sido vendidos.
O mesmo sucede com o art. 894.º, n.º 3, e o art. 901.º-A, n.º 1.
– com o artigo 901.º-A, em que se prevê «a venda de estabelecimento comercial de valor consideravelmente elevado tem lugar mediante propostas em carta fechada, quando o juiz o determine, sob proposta do agente de execução, do exequente, do executado ou dum credor que sobre ele tenha garantia real».
– com o art. 920.º, n.º 3, em que se prevê a possibilidade de requerimento de prosseguimento da execução somente quanto aos bens sobre que incida a garantia real invocada pelo requerente, que assumirá a posição de exequente, norma esta que parece não ser aplicável aos privilégios creditórios gerais, pois incidindo eles sobre a generalidade dos bens, não poderia a execução prosseguir apenas em relação a uma parte deles, pelo menos no casos de créditos que gozam simultaneamente de privilégio imobiliário geral e privilégio mobiliário geral;
– com o art. 1013.º, relativo à venda antecipada de penhor, em que se refere que «enquanto a venda não for efectuada, o autor do penhor pode oferecer em substituição outra garantia real, cuja idoneidade será logo apreciada, suspendendo-se entretanto a venda.
É certo que com o Decreto-Lei n.º 38/2003, foram introduzidas no CPC normas que dão a entender que os privilégios creditórios gerais seriam considerados não meramente garantias reais, com o sentido referido de garantias que não assentam em prestações, mas sim em coisas, e até seriam mesmo direitos reais de garantia.
É o que sucede com o art. 832.º, n.º 4, alínea a), na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, em que se alude ao «exequente seja titular de um direito real de garantia sobre bem penhorado nesse processo, que não seja um privilégio creditório geral», o que parece ter ínsito que o legislador considerou o privilégio creditório geral como um direito real de garantia. Porém, não poderia, sem grande confusão conceitual, dar-se valor apreciável à qualificação jurídica atribuída nesta norma aos privilégios gerais, pois a sua aceitação, em face do regime que para eles prevê o art. 749.º do Código Civil e o referido art. 157.º, n.º 2, do CPPT, teria de implicar uma revisão do conceito de direito real naquilo que, precisamente, é o seu elemento distintivo dos direitos sem natureza real, que é o eles conferirem aos seus titulares direito de sequela, a possibilidade de fazerem valer o seu direito perante terceiros.
O art. 865.º, n.º 4, na mesma redacção, parece supor a possibilidade de reclamação de créditos com privilégios creditórios gerais, mobiliários ou imobiliários, ao abrigo do anterior n.º 3, que estabelece que os titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente o seu crédito até à transmissão dos bens penhorados. Porém, também aqui, não pode dar-se relevo à designação de direitos reais de garantia que é atribuída, pela sua manifesta incorrecção. Por outro lado, se os privilégios creditórios gerais fossem direitos reais de garantia, extinguir-se-iam com a venda ou adjudicação dos bens (art. 824.º, n.º 2, do Código Civil), pelo que a previsão uma situação em que o desaparecimento jurídico do direito poderia ocorrer sem garantir a seu titular, através do chamamento ao processo, a possibilidade real de o fazer valer seria incompatível com o princípio constitucional da proibição da indefesa, ínsito no princípio do acesso aos tribunais consagrado no art. 20.º da CRP
A interpretação que, sem estilhaçar o conceito de direito real de garantia, é possível fazer de tais normas é a de que, no primeiro caso, se pretendeu apenas, para a hipótese de haver dúvidas sobre a natureza dos privilégios creditórios gerais (que se colocam, com pertinência, relativamente aos privilégios imobiliários gerais, por o seu regime de oponibilidade a terceiros e a sua natureza jurídica não estarem expressamente previstos na lei) esclarecer que eles não tinham o regime previsto naquele art. 832.º, n.º 4, alínea a), para os casos em que o exequendo fosse titular de um direito real de garantia, o que até se justifica, precisamente, por os privilégios gerais não serem direitos reais de garantia. No segundo caso, embora se preveja a possibilidade de serem reclamados créditos garantidos com privilégio creditório geral, não é forçoso concluir que se prevê a possibilidade de serem reclamados créditos que não gozem cumulativamente de uma verdadeira garantia real. Na verdade, o titular de crédito com privilégio creditório geral pode ser simultaneamente titular de outras garantias com natureza real, como hipoteca legal, pelo que aquele art. 865.º, n.º 4, ao não admitir a reclamação de crédito com privilégio creditório geral, nas situações aí indicadas, não pode ser interpretado como um afastamento absoluto daqueles credores, mas apenas como o não reconhecimento da preferência conferida pelos privilégios creditórios gerais; mas, haverá possibilidade de reclamação pelos credores com privilégios creditórios gerais se tiverem outra garantia, qualquer uma que tenha natureza real, sobre os bens penhorados. Isto é, esta norma não quer dizer que os créditos com privilégios creditórios gerais são direitos reais de garantia e que, por o serem podem ser reclamados fora dos casos indicados neste n.º 4 do art. 865.º, mas sim que as preferências por eles conferidas não são reconhecidas nos casos aí indicados, mas serão nos outros. Mas, não é decisiva quanto à possibilidade de reclamação de créditos com privilégios creditórios gerais, pois aquele n.º 3, ao referir a possibilidade de reclamação apenas por titulares de direitos reais de garantia está a afastar explicitamente e possibilidade de reclamação de créditos que não gozem de outra garantia que não seja o privilégio creditório geral, que, seguramente, não tem natureza real, pelo menos nos casos dos privilégios mobiliários.
De qualquer modo, a conclusão que se retira desta análise global das referências feitas na lei a garantias reais, revela que a expressão é na maior parte das vezes utilizada com o sentido de direito real de garantia, tal como a vem interpretando a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal Administrativo, que defende a possibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégio geral.
Por outro lado, o facto de haver evidentes imprecisões na terminologia utilizada naqueles arts. 832.º, n.º 4, e 865.º, n.º 4, que vão ao ponto de se designarem os privilégios creditórios gerais como direitos reais de garantia, revela que não houve por parte do legislador do Decreto-Lei n.º 38/2003 uma adequada ponderação dos conceitos a que se reportava a expressão «direito real de garantia», pretendendo apenas explicitar que o que estabelecia não se referia aos privilégios creditórios gerais, exclusão esta que se justifica, precisamente, por eles não serem direitos reais de garantia.
Os argumentos literais relativos à natureza jurídica de direitos, sem qualquer prova de que tenha havido uma ponderação da adequação dos conceitos utilizados e quando, pelo contrário, há indícios evidentes de uma falta de cuidado na escolha das expressões utilizadas não podem, obviamente, considerar-se meios seguros para a determinação do verdadeiro alcance dessas expressões, designadamente as de direito real de garantia e de garantia real.
Assim, é pouco curial, com base nesta patente imprecisão terminológica, retirar do argumento literal conclusões seguras sobre o alcance da expressão «garantia real» utilizada no art. 240.º, n.º 1, do CPPT.
Porém, houve recentemente uma clarificação legislativa explícita do alcance destes conceitos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
Na verdade, como se refere no respectivo preâmbulo, «a categoria dos créditos garantidos abrange os créditos, e respectivos juros, que beneficiem de garantias reais – sendo como tal considerados também os privilégios creditórios especiais – sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias» (ponto 23) e «os créditos privilegiados são os que gozam de privilégios creditórios gerais sobre bens integrados na massa insolvente, quando tais privilégios não se extingam por efeito da declaração de insolvência». (ponto 24)
Ao longo do texto daquele Código, concretiza-se a distinção entre as duas categorias de créditos, garantias reais e privilégios creditórios gerais, como pode ver-se, entre outros, pelos arts. art. 47.º, 48.º, 97.º, 140.º, n.º 2, 196.º, n.º 2, 197.º, alínea a), 216.º, n.º 1, alínea b), e 252.º, n.º 1.
Não se trata, aqui, de uma utilização imponderada de conceitos, como aconteceu com o Decreto-Lei n.º 38/2003, mas sim de uma abordagem legislativa explícita e ponderada do conceito de garantia real e da natureza dos privilégios creditórios gerais. Por isso, depois desta posição explícita do legislador sobre a natureza que atribui aos privilégios creditórios gerais e sobre o conceito legislativo de garantia real, a questão que com alguma pertinência se poderá colocar sobre a interpretação do art. 240.º do CPPT não é já a de saber se aqueles privilégios são garantias reais, que o próprio legislador reconhece não serem, mas sim a de saber se, apesar de não o serem os respectivos credores podem ser considerados «credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados».
A esta questão, equacionada nestes termos, impõe-se dar uma resposta negativa, pois assente legislativamente que os privilégios creditórios gerais não cabem no conceito legal de garantia real, a restrição da possibilidade de reclamação apenas aos credores que gozem de garantia real que emana do n.º 1 do art. 240.º do CPPT terá de produzir os efeitos que lhe são próprios, num Estado de Direito, assente no primado da Lei (arts. 2.º e 203.º da CRP). Na verdade, uma afirmação com alcance restritivo em função de uma determinada característica não pode ter simultaneamente esse alcance restritivo que lhe é inerente e um alcance amplo que significaria a eliminação da característica usada para expressar os termos da restrição. Isto é, se se referiu no art. 240.º do CPPT que podem reclamar os seus créditos os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados, e tendo esta referência a estes credores o evidente alcance de afastar da possibilidade de reclamação os credores que não gozem de garantia real, não poderá, por falta de um mínimo de suporte no texto legal entender-se que se pretende aludir tanto aos que gozem como aos que não gozem de garantia real.
3 – Os argumentos em que se baseou este Supremo Tribunal Administrativo, nos arestos citados, para decidir sobre a possibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégio geral, não abalam esta conclusão.
Nos acórdãos de 2-7-2003, proferido no recurso n.º 882/03, e de 22-10-2003, proferido no recurso n.º 946/03, a fundamentação consiste no seguinte: Segundo o n.º 1 do artigo 865º do Código de Processo Civil – diploma aplicável ex vi artigo 246º do CPPT – só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos.
Como realça Salvador Costa, Concurso de Credores, p.292, "os pressupostos essenciais da reclamação são a titularidade de um crédito com garantia real sobre os bens penhorados – pressuposto material – e a disponibilidade de um título executivo – pressuposto formal."
Ora, "os direitos reais de garantia são o arresto, a penhora, o penhor, a hipoteca, os privilégios creditórios (Vide, ac. STJ de 18.XI.1997, B.M.J. 471-325.) e o direito de retenção (...)"- op. cit., p. 243 (aditado nosso).
Pois bem, de harmonia com os sobreditos artigos 10º e 11º, os créditos por contribuições patronais para a Segurança Social gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração da execução do processo executivo.
Do que vem de referir-se decorre resposta afirmativa à questão de que nos ocupamos, sendo que mal se compreenderia que apontando a lei (sobreditos preceitos do DL n.º 103/80) o lugar preferente (cfr. artigo 733º do CC) reservado a tais créditos na graduação, se vedasse atinente reclamação visando, justamente, a sua consideração na fase derradeira da sentença de verificação e graduação de créditos.
Como se vê, não é dada qualquer explicação para o entendimento de que os privilégios creditórios gerais sejam direitos reais de garantia, designadamente a nível da verificação em relação a eles da característica essencial dos direitos reais, que é conferir ao seu titular direito de sequela.
Por outro lado, o acórdão do S.T.J. citado, também não contém qualquer explicação da razão por que entende que os privilégios gerais são direitos reais de garantia. (O citado acórdão do S.T.J. limita-se a afirmar:
Na realidade, a lei confere ao crédito reclamado o privilégio creditório (Dec-Lei 103/80, de 09.05 - arts. 10 e 11).
Em ordem à sua satisfação, goza dessa garantia real. No que concerne à citação efectuada de SALVADOR COSTA, embora este Autor defenda que podem ser reclamados em execução créditos que apenas gozem de privilégios gerais, não afirma que os privilégios gerais tenham natureza de garantias reais, afirmando antes o seguinte: «No que concerne porém, aos privilégios mobiliários especiais e aos privilégios imobiliários especiais, porque envolvidos de sequela, assumem a natureza de garantia real de cumprimento de obrigações. Todavia, nos que respeita aos privilégios mobiliários e imobiliários gerais, como, em razão da sua indeterminibilidade, não são envolvidos de sequela, a qualificação que melhor lhes quadra é a de mera preferência de pagamento de determinados direitos de crédito».(O Concurso de Credores, 2.ª edição, páginas 164-165.)
Quanto ao argumento de que não se compreenderia que, apontando a lei o lugar preferente dos créditos com privilégio creditório geral, se vedasse atinente reclamação visando, justamente, a sua consideração na fase derradeira da sentença de verificação e graduação de créditos, a própria lei prevê expressamente, no referido art. 865.º, n.º 4, casos em que apesar de existirem créditos com tal privilégio se afasta a possibilidade de eles serem reclamados e considerados em graduação, o que basta para invalidar este argumento. Por outro lado, para a tese que defende a inadmissibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégio creditório geral, não se trata de proibição de reclamação, mas sim de ela ocorrer quando para seu titular não goza, cumulativamente de uma garantia real, inclusivamente penhora ou arresto, e, ocorrendo a possibilidade de reclamação apenas nestas condições, o privilégio creditório geral não deixará de ser relevante, designadamente por dar preferência ao respectivo credor sobre os titulares de créditos que gozem de penhora ou arresto anterior.
No referido acórdão proferido no recurso n.º 2078/03, o S.T.A., embora continue a entender que podem ser reclamados ao abrigo do art. 240.º, n.º 1, do CPPT créditos que apenas gozem de privilégios gerais reconheceu que eles não são direitos reais de garantia.
A fundamentação da posição assumida sobre a possibilidade de reclamação é, essencialmente a seguinte:
– faz-se um paralelo com o arresto, afirmando-se que embora «o arresto não seja mais do que uma medida cautelar, um meio de conservação da garantia patrimonial dos credores, cuidando de evitar a sua dissipação, visando prevenir a possibilidade de o crédito ficar insatisfeito por inexistência de bens do devedor, mas que não constitui, antes de convertido em penhora, uma garantia real, tem os efeitos que lhe atribuem os artigos 662º nº 2 e 822º nº 1 do Código Civil, sendo admitido a disputar o concurso de credores conjuntamente com créditos que gozam de garantia real.
– afirma-se que o facto de a preferência atribuída pelo privilégio imobiliário geral ser anómala, ou seja, não resultar de uma garantia real, em sentido próprio, não significa que o credor que goza do privilégio não deva ser admitido a requerer a verificação e graduação do seu crédito, tendo em vista obter pagamento pelas forças do produto da venda do imóvel penhorado. De resto, o nº 2 do artigo 604º do Código Civil aponta como «causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção». E «para não prejudicar as causas legitimas de preferência é que o Código de Processo Civil não obstante a natureza singular que a execução passou a revestir depois de 1961, manda citar para a execução, na altura própria, todos os credores que tenham garantia real, relativamente aos bens penhorados (art. 864º, nº 1)» – FERNANDO ANDRADE PIRES DE LIMA e JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, nota ao artigo 604º;
– refere-se que não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito, como faz o artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor privilegiado de acorrer ao concurso; e que
– exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o falado artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80 pois, nesse caso, o seu crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio, que, acrescenta-se, só na execução singular pode ser frutuoso, não o sendo já na execução universal, por força do estatuído no artigo 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência;
– concluir-se que, deste modo, o artigo 240º nº 1 do CPPT deve ser interpretado amplamente, de modo a terem-se por abrangidos na sua estatuição, não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios.
Porém, como sempre com o maior respeito, entendemos que nenhum destes argumentos é convincente.
No que se refere ao paralelismo com o arresto, a posição do STA assenta no pressuposto errado de que ele não tem natureza de garantia real, antes de convertido em penhora, mas os arts. 622.º, n.º 1, e 822.º que se citam, determinando a ineficácia dos actos de disposição dos bens em relação ao arrestante revelam, precisamente, que ele confere a este o direito de sequela imprescindível para tal qualificação, pois essa ineficácia significa que o direito de crédito pode ser exercido coercivamente sobre os bens arrestados, mesmo que eles tenham sido transferidos para a titularidade de terceiros, e é mesmo a partir dele que se determina a anterioridade do direito do exequendo sobre os bens arrestados (art. 822.º, n.º 2). Aliás, sendo os efeitos do arresto os mesmos da penhora, a nível da oponibilidade a terceiros, remetendo-se mesmo expressamente para as regras da penhora (art. 622.º, n.ºs 1 e 2), não se vê como pode encontrar-se fundamento para uma diversidade de qualificação jurídica. Ora, o mesmo não sucede com os privilégios creditórios gerais, pois não existe qualquer norma que proíba que os bens sobre que eles incidem sejam transferidos nem norma que determine a ineficácia de actos de transferência em relação ao titular dos créditos privilegiados. (Neste sentido, pode ver-se também SALVADOR COSTA, O Concurso de Credores, 2.ª edição, página 185, que refere, porém, a possibilidade de impugnação pauliana.)
No entanto, a possibilidade de o titular do crédito que goza de privilégio geral poder impugnar o acto de transferência dos bens, se se verificarem os pressupostos previstos no art. 610.º do Código Civil para a impugnação pauliana, não é uma consequência da existência do privilégio, pois tal possibilidade existe relativamente a quaisquer créditos independentemente de gozarem de garantia ou privilégio.)
O facto de os privilégios gerais serem «causas legítimas de preferência» significa que eles atribuem essa preferência ao respectivo credor nos concursos de créditos a que a lei permita que sejam admitidos, desde que sejam reclamados nos termos legais, mas não significa, só por si, que esses créditos privilegiados tenham de ser admitidos a todos os concursos de créditos. Uma prova evidente disso encontra-se no citado n.º 4 do art. 865.º do CPC (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003), que, precisamente em relação aos privilégios gerais, vem estabelecer várias situações em que os créditos respectivos não podem ser reclamados, embora, obviamente, continuem a ser «causas legítimas de preferência».
No que concerne ao argumento de não fazer sentido que a lei substantiva estabeleça uma prioridade no pagamento do crédito, como faz o artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, e a lei adjectiva obste à concretização da preferência, impedindo o credor privilegiado de acorrer ao concurso, basta examinar o mesmo n.º 4 do art. 865.º para se concluir que, na perspectiva legislativa, isso faz sentido, pelo menos nas situações nele indicadas. Aliás, como se referi, quando se fala de inadmissibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégios gerais nunca se trata de impedimento absoluto a que esses os créditos sejam reclamados, mas sim a que possam ser reclamados quando não disponham, cumulativamente, de uma garantia real que, designadamente nos casos de imóveis e móveis sujeitos a registo, que são normalmente bens de maior valor e justificam maior preocupação garantística, possa proporcionar a terceiros adquirentes informação sobre os ónus que recaem sobre os bens que adquirem.
Por outro lado, também não pode dizer-se que seria inútil a atribuição do privilégio geral se fosse exigível que, cumulativamente, o seu titular obtivesse arresto, penhora ou hipoteca, pois, obviamente, nos casos de arresto ou penhora, o privilégio conferir-lhe-á uma preferência que não disporia se ele não existisse (se não existir garantia real), designadamente perante o exequente com anterioridade de penhora. A sobreposição dos créditos com privilégio geral à penhora anterior é o efeito normal da atribuição do privilégio a um crédito, sendo precisamente a efectivação dessa sobreposição que justifica a atribuição de um privilégio; na verdade, embora o art. 822.º, n.º 1, do Código Civil se estabeleça a regra de que «o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior», na sua parte inicial ressalvam-se «os casos especialmente previstos na lei», um dos quais é o dos privilégios, que concedem aos respectivos credores o direito de serem pagos com preferência a outros (art. 733.º do Código Civil), segundo as regras respectivas, mas sempre com preferência em relação aos credores comuns (Sobre este ponto, pode ver-se MOTA PINTO, Direitos Reais, páginas 76-77.); o crédito que apenas goze de penhora, encontra-se no escalão inferior dos créditos graduáveis, só prevalecendo sobre créditos que também gozem apenas de penhora e esta tenha sido efectuada posteriormente; com privilégio creditório geral, o crédito que goze também de penhora poderá sobrepor-se a crédito que apenas goze de penhora anterior.
Mesmo no caso de hipoteca, a existência cumulativa de privilégio geral não é inútil, pois o âmbito da preferência por este proporcionada é maior do que o proporcionado pela hipoteca, designadamente quanto a juros, pois não vale em relação aos privilégios a limitação temporal de três anos que, por força do disposto no n.º 2 do art. 693.º do Código Civil, vigora para a hipoteca.
Por isso, a «interpretação ampla» que se refere no acórdão em apreço, não encontra suporte consistente em qualquer dos argumentos invocados.
4 – De qualquer forma, e é o que mais importará, a resposta negativa à questão da possibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégio geral é a solução mais congruente.
A possibilidade de reclamação concedida aos credores com garantia real sobre os bens penhorados, não é visa premiar, imerecida e injustificadamente, a sua negligência em providenciar para a cobrança coerciva dos seus créditos em processo executivo próprio, mas é antes justificada pela extinção dos seus direitos que resulta da venda em processo executivo,
No esquema da nossa lei processual civil, só são convocados os credores que gozam de garantia real sobre o bem penhorado (arts. 864-b e 865-1). Esta delimitação do âmbito do concurso de credores dá-nos a finalidade que é visada com a sua convocação: visto que a penhora será, normalmente, seguida da transmissão dos direitos do executado, livres de todos os direitos reais de garantia que os limitam (art. 824-2 CC), os credores vêm ao processo, não tanto para fazerem valer os seus direitos de crédito e obterem pagamento, como para fazerem valer os seus direitos de garantia sobre os bens penhorados.
(...)
Qualquer resultado da acção executiva que deixe incólume o direito real de garantia pode ser obtido sem atenção ao credor. Ora o direito real de garantia só caduca com a transmissão do bem onerado na acção executiva (art. 824-2 CC), pelo que, quando ela não ocorra, o direito do credor não tem de ser atendido na execução.
Sendo esta a razão que justifica a possibilidade de reclamação de créditos, tem de reconhecer-se que ela não vale em relação aos privilégios mobiliários gerais, pois se os respectivos créditos não forem reclamados, o privilégio não se extinguirá, mantendo-se relativamente aos bens que existirem no património do devedor à data em que for efectuada penhora no respectivo processo executivo. Na verdade, não sendo, ou não tendo de ser, os mesmos os bens existentes no património do devedor no momento da constituição da dívida e no momento da penhora e sendo claro que os bens que entre a constituição da dívida e o momento da penhora saiam do património do devedor, assim como os seus bens que não forem objecto de penhora e venham a sair desse património posteriormente, não poderão ser utilizados para a satisfação do crédito privilegiado, não poderá entender-se que o privilégio, como preferência de pagamento sobre o valor de bens, se constitua antes da determinação, através da penhora dos bens sobre os quais essa preferência se vai materializar. Aliás, se no momento em que se for efectuar a penhora de imóveis não existirem quaisquer bens penhoráveis, não se constituirá essa preferência sobre quaisquer bens, só passando a existir quando, eventualmente, venham a ser encontrados e penhorados. Por isso, o privilégio geral, como direito de preferência sobre os bens penhoráveis que forem encontrados no património do devedor no momento da penhora, não será alterado pelo facto de não ser admitido à reclamação sobre bens relativamente aos quais não tem qualquer relação de preferência.
Por outro lado, nos casos em que, além do privilégio existir penhora ou outro direito real de garantia sobre os bens penhorados, já se justificará a admissibilidade de reclamação, por estes direitos se extinguirem com a venda.
A isto acresce que a solução de restringir a possibilidade de reclamação aos casos em que os titulares de créditos que gozam de privilégio geral gozam também de uma garantia real, obrigando o credor tributário privilegiado a obter uma garantia real proporcionada à satisfação do seu crédito, em vez de lhe permitir reclamá-lo múltiplas vezes em todas as execuções fiscais em que seja penhorado um bem, atingindo um montante global reclamado várias vezes superior ao do seu crédito, é a solução que está em sintonia com o princípio da proporcionalidade, que impõe que, estando suficientemente assegurado o pagamento de um crédito privilegiado que goza cumulativamente de garantia real, sejam criados inutilmente obstáculos à cobrança de outros créditos, designadamente, com possibilidade de pagamento simultâneo em mais que um processo.
À aceitação desta solução não pode sequer objectar-se com eventual prejuízo para o credor que é titular de privilégio geral, pois, nos casos em que ele não dispõe de garantia real que lhe permita reclamar o crédito ao abrigo do referido art. 240.º, n.º 1, poderá obtê-la com rapidez, através de arresto e subsequente penhora dos mesmos bens que foram penhorados no processo em que se colocava a possibilidade de reclamação, podendo entrar reclamar ao abrigo do n.º 4 do mesmo artigo. Por isso, embora a referida jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que defende a possibilidade de reclamação de créditos que apenas gozem de privilégio geral seja, naturalmente, digna do maior respeito, a solução adoptada na sentença recorrida, para além de ser a que está em sintonia com o texto legislativo, é também a mais acertada, pelo que deve presumir-se ter sido legislativamente adoptada (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Lisboa, 27 de Outubro de 2010
Jorge Manuel Lopes de Sousa