Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01106/13
Data do Acordão:07/09/2014
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:DULCE NETO
Descritores:REFORMA DE DECISÃO JUDICIAL
Sumário:A possibilidade de reforma de decisão judicial ao abrigo do nº 2 do art.º 616º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, (a que correspondia idêntica norma contida no art.º 669º do anterior CPC) destina-se unicamente a eliminar lapsos manifestos, erros evidentes, ostensivos, juridicamente insustentáveis e incontroversos.
Nº Convencional:JSTA000P17809
Nº do Documento:SAP2014070901106
Data de Entrada:06/26/2013
Recorrente:A............ E OUTRA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Por acórdão proferido pelo Pleno desta Secção em 22 de Janeiro de 2014 foi julgado findo o recurso por oposição de acórdãos interposto por A………… e B…………, do acórdão que o Tribunal Central Administrativo Sul proferira no processo n.º 03410/09, na consideração de que não ocorria a invocada oposição com o acórdão que o Tribunal Central Administrativo Norte proferira no processo nº 00219/05.8BEBRG.

2. Notificados que foram as partes desse acórdão, veio A………… pedir a sua reforma, ao abrigo do disposto nos artigos 614º, nº 1, e 616º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil, com fundamento em erro manifesto quanto à qualificação jurídica dos factos e quanto à decisão proferida.

Sustenta o Recorrente, ora Requerente, que ao contrário do decidido, era a mesma a questão jurídica que se colocava nos dois acórdãos – recorrido e fundamento – e que consistia em saber se «não tendo a administração cumprido o ónus da prova que lhe incumbia, de demonstrar que o contribuinte auferira um rendimento não declarado, devia a liquidação ser anulada por falta de cumprimento desse pressuposto de tributação», razão por que advogara que, tal como no acórdão fundamento, também no acórdão recorrido se deveria ter julgado que a Administração Tributária não cumprira o ónus da prova que sobre si impendia.

Em defesa da sua tese, expõe e desenvolve extensas considerações, de que se extraem, em suma, os seguintes argumentos:

- dizer que «esta procedência não decorre impressiva e inequívoca dos elementos disponíveis» (acórdão recorrido), equivale a afirmar que não foi dado «como provado qualquer facto que seja susceptível de integrar a previsão abstracta da norma de incidência tributária que serviu de fundamento jurídico ao acto de liquidação de imposto aqui impugnado» (acórdão fundamento).

- ao julgar que a Administração Tributária cumpriu o ónus que lhe incumbia, com o fundamento de que «esta procedência não decorre impressiva e inequívoca dos elementos disponíveis, mas como soe dizer-se o dinheiro não cai do céu...», o tribunal recorrido postergou as regras do ónus da prova.

3. Notificada a Fazenda Pública para se pronunciar sobre o requerido, nada disse.

4. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir em conferência, tendo em conta que a reforma da sentença contemplada no art.º 616º do actual CPC é aplicável aos acórdãos proferidos em recurso jurisdicional pelo Supremo Tribunal Administrativo, por força do preceituado no art.º 666º, aplicável ex vi do art.º 685º, ambos do actual CPC [aplicável ao contencioso tributário por força do disposto no art.º 2º, alínea e), do CPPT].

5. Segundo a norma contida no nº 2 do art. 616º do CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho [a que correspondia idêntica norma contida no art. 669º do anterior CPC), não cabendo recurso da decisão, é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, «Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos» [alínea a)] ou «Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida» [alínea b)].

Tal possibilidade de reforma de sentenças/acórdãos, porque constitui uma excepção legal ao princípio do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, é circunscrita às situações tipificadas na norma, tendo em vista o suprimento de erro de julgamento mediante a reparação da decisão pelo próprio juiz decisor nos casos em que, por manifesto lapso de determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, a sentença tenha sido proferida com violação de lei expressa ou quando constem dos autos elementos documentais ou outros meios de prova plena que, só por si e inequivocamente, impliquem decisão em sentido diverso.

Por conseguinte, a possibilidade de reforma de uma decisão judicial ao abrigo do n.º 2 do art. 616.º do CPC tem carácter de excepção, sendo que «quanto ao alcance do mesmo preceito legal, o STA tem construído um critério orientador para a definição do carácter manifesto do lapso cometido e que possibilita a imediata reparação do erro de julgamento que o originou. Tem sido, com efeito, sublinhada a excepcionalidade desta faculdade, que insere um desvio aos princípios da estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 666º, nº 1, do CPC), salientando-se que a mesma só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto» - Cfr. “Cadernos de Justiça Administrativa”, nº 25, pág. 54, citado por JORGE LOPES DE SOUSA no “Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado”, 6ª edição, II volume, pág. 388.

Deste modo, e como tem sido reiteradamente salientado pela jurisprudência, a possibilidade de reforma de decisão judicial ao abrigo do nº 2 do art. 669º do anterior CPC (e do idêntico nº 2 do art. 616º do actual CPC) destina-se unicamente a eliminar lapsos manifestos, erros evidentes, ostensivos, palmares, juridicamente insustentáveis e incontroversos - vide, entre outros, os seguintes acórdãos do STA: de 24/03/2010, no proc. nº 0511/06; de 26/09/2012, no proc. nº 211/12; de 21/11/2012, no proc. nº 155/11; de 19/12/2012, no proc. nº 740/12; de 13/03/2013, no proc. nº 822/12; de 3/07/2012, no proc. nº 629/13, de 18/06/2014, no proc. nº 951/11.

Admitindo a lei, em abstracto, a reforma do acórdão, cumpre verificar se a alegação do Requerente integra situação em que ela seja legalmente autorizada.

Ora, da leitura do acórdão em questão resulta à evidência que inexiste qualquer lapso manifesto ou erro juridicamente insustentável e incontroverso. Na verdade, foi entendimento de todos os Senhores Juízes Conselheiros desta Secção, reunida em Pleno, que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento recaíram sobre situações fácticas distintas, que levaram à apreciação de questões jurídicas diversas, situadas em vertentes diferentes dos princípios e regras jurídicas do ónus da prova, e que influenciaram decisivamente a solução adoptada num e noutro aresto.

Como nele se deixou explicado, enquanto no acórdão recorrido a questão fundamental de direito se reconduzia a saber se, tendo a administração cumprido o ónus de prova que lhe competia de demonstrar que o contribuinte auferira um rendimento não declarado e não tendo este provado o que alegara quanto à proveniência/natureza desse rendimento para efeitos de exclusão da tributação, devia ou não concluir-se pela existência de fundada dúvida ou de um non liquet conducente à anulação da liquidação em conformidade com o disposto no art. 100º do CPPT, já no acórdão fundamento a questão fundamental de direito reconduzia-se a saber se, não tendo a administração cumprido o ónus de prova que lhe competia de demonstrar que o contribuinte auferira um rendimento não declarado, devia a liquidação ser anulada por falta de cumprimento desse pressuposto de tributação em conformidade com o disposto no art. 74º da LGT.

O que significa, para além do mais, que enquanto no acórdão recorrido a Administração lograra fazer a prova de que o contribuinte auferira um rendimento não declarado, já no acórdão fundamento a Administração não demonstrara esse facto. E foi esse distinto contexto fáctico que conduziu à apreciação de questões jurídicas diversas, situadas em vertentes diferentes dos princípios e regras jurídicas do ónus da prova, e que influenciaram decisivamente a solução adoptada num e noutro aresto.

O que o Requerente vem pôr em causa neste pedido de reforma é o raciocínio lógico-dedutivo prosseguido pelo tribunal recorrido (TCA) para ajuizar da referida factualidade nos termos em que o fez. Todavia, nem essa questão tem enquadramento no acórdão do Pleno ora em questão, nem o Requerente identifica qualquer erro manifesto ou ostensivo de que este pudesse padecer na análise da questão que apreciou e que se reconduziu a aferir da invocada oposição de julgados entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido.

Nesta circunstância, não tendo o Requerente invocado qualquer motivo susceptível de fundamentar a reforma do acórdão reclamado, a sua pretensão terá necessariamente de soçobrar.

6. Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, indeferir o pedido de reforma do acórdão.

Custas pelo Requerente.



Lisboa, 9 de Julho de 2014. – Dulce Manuel da Conceição Neto (relatora) - Joaquim Casimiro Gonçalves - Isabel Cristina Mota Marques da SilvaJosé da Ascensão Nunes Lopes - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Pedro Manuel Dias DelgadoAna Paula da Fonseca Lobo - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia José Maria da Fonseca Carvalho.