Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:010881/14.5BCLSB
Data do Acordão:09/05/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL
RESOLUÇÃO DE CONTRATO
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
Sumário:I - No âmbito de contrato de concessão, em que o Estado Português é parte, no qual não se prevê a sua resolução através de acto administrativo, a rescisão do mesmo com fundamento em justa causa, feita através de despacho conjunto de dois Secretários de Estado, deverá ser entendida não como configurando acto administrativo mas como mero exercício do direito potestativo do concedente à resolução;

II - O tribunal arbitral competente para apreciar o litígio em que a concessionária peticiona a declaração de resolução do contrato por incumprimento do Estado, é ainda competente para apreciar a ampliação do objecto do processo arbitral àquele despacho conjunto.
Nº Convencional:JSTA000P24842
Nº do Documento:SA120190905010881/14
Data de Entrada:11/15/2018
Recorrente:INSTITUTO DA MOBILIDADE E DOS TRANSPORTES,IP (IMT,IP)
Recorrido 1:AUTO ESTRADA DO MARÃO, SA E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. O INSTITUTO DA MOBILIDADE E DOS TRANSPORTES, I.P. [IMT], interpõe recurso jurisdicional do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS] a 14.06.2018, que julgou improcedente acção de impugnação de decisão interlocutória do Tribunal Arbitral [processo arbitral 16/2013/AHC/AVS] deduzida nos termos do disposto no artigo 18º nº9 da Lei da Arbitragem Voluntária [LAV - aprovada pela Lei nº63/2011, de 14.12].

Culmina as suas alegações formulando estas conclusões:

A) O TCAS aceitou a argumentação da recorrente de que a EP - Estradas de Portugal, S.A. era, em Junho de 2013, no momento em que foi praticado e publicitado o Despacho 7841-C/2013, de 17.06, e desde tal data, contra-interessada, em virtude de, com a rescisão contratual decretada naquele acto, se verificar o termo inicial a que estava condicionada a inclusão do objecto do contrato de concessão assim rescindido na concessão da própria EP - Estradas de Portugal, S.A., nos termos do disposto no nº5 da Base 2 do DL nº380/2007, de 18.11;

B) A EP, S.A. não foi nem é parte no compromisso arbitral que esteve na origem da constituição do «Tribunal Arbitral» que proferiu a decisão relativa à sua própria competência cuja apreciação é o objecto destes autos;

C) São contra-interessados aqueles «a quem o provimento do processo possa directamente prejudicar ou que tenham um legítimo interesse na manutenção do acto impugnado e possam ser identificados em função da relação material em causa»;

D) O Despacho - e a resolução sancionatória que decretou - produziu efeitos em 17.06.2013, notificada a concessionária através da sua publicação no Diário da República;

E) A licitude do Despacho podia, em abstracto, ser apreciada em sede de procedimento arbitral a título principal, designadamente com vista à sua anulação;

F) A arbitrabilidade [em concreto] desse pedido não era possível nos termos da legislação aplicável;

G) De acordo com artigo 180, nº2, do CPTA, não pode ser objecto de apreciação por tribunal arbitral litígio relativo a relação jurídico administrativa em que existam contra-interessados sem que estes - em nome do princípio do contraditório - possam intervir no processo arbitral e, no caso, a consequência desse regime é que o Tribunal Arbitral não podia ter-se declarado, em Dezembro de 2013, competente para apreciar a legalidade do Despacho sem que a EP - Estradas de Portugal, S.A., contra-interessada, pudesse intervir no processo arbitral;

H) O pedido de apreciação da licitude do Despacho só podia ser apreciado pelo Tribunal Arbitral, se pudesse a EP - Estradas de Portugal, SA, aderir a um compromisso arbitral firmado entre ela, o Estado e a ora recorrida, nos termos da nº2 «in fine» do artigo 180º do CPTA, que não existia nem existe;

I) Tendo visto incluída na sua esfera jurídica, em Junho de 2013 - do ponto de vista da eficácia da sua atribuição à concessionária EP, S.A. - o direito à concessão da via que se desenvolve entre Amarante e Vila Real, e que se designou comumente por «Túnel do Marão», esta passou, por isso, e a partir dessa data, a ser sujeito de um conjunto de direitos e obrigações perante o Estado português, que são típicos da sua condição de concessionária, e que se encontram atribuídos e descritos nas Bases da sua Concessão e no seu Contrato de Concessão;

J) A verificação do requisito do prejuízo que o desfecho do pleito judicial pode causar a terceiro que nele não seja parte - mas que por ele possa ser afectado - não se realiza pelo concreto desfecho do processo;

K) Não era possível antecipar, em Dezembro de 2013, quando o Tribunal Arbitral decidiu sobre a sua própria competência, qual o sentido da sua decisão final, e, muito menos, sobre se o Tribunal iria ou não decidir manter os efeitos extintivos do Despacho, declarando, todavia, a sua nulidade, ou por outra qualquer forma decidir pela produção dos efeitos extintivos da própria decisão sobre a relação concessória entre o Estado e a recorrida à data do Despacho ou a outra qualquer;

L) Se o Despacho viesse a ser anulado pelo Tribunal Arbitral ainda assim não era forçoso que a essa decisão correspondesse a procedência do pedido original, em qualquer uma das suas formulações, principal ou subsidiária. Nada impediria, nem do ponto de vista jurídico, nem do ponto de vista lógico, que assim acontecesse, justamente porque os pedidos não se encontram numa lógica de dependência decisória, no sentido de que a decisão de um «num certo sentido» implicasse a decisão do outro no mesmo sentido;

M) Era, efectivamente, possível, em Dezembro de 2013, configurar um desfecho da lide arbitral em que do mesmo passo fosse anulado o Despacho e negado provimento aos pedidos, principal e subsidiário - da recorrida - com imediatos efeitos repristinatórios sobre o contrato de concessão, ao contrário do que julgou o TCAS;

N) O mais provável, em Dezembro de 2013, era que a anulação do Despacho prejudicasse a EP, S.A., na medida em que destruiria o título ao abrigo do qual esta havia exercido as funções de concessionária, desde Junho de 2013;

O) Repugna ao direito que o momento em que o tribunal «de recurso» decide da licitude da decisão sobre a própria competência de um tribunal arbitral influencie o sentido da decisão;

P) A competência para decidir um conflito multipolar sem intervenção do contra-interessado não pode ser averiguada em função de apenas alguns dos cenários possíveis de decisão do pleito.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido, assim se fazendo justiça.

2. A recorrida AUTO-ESTRADA DO MARÃO, S.A. [AE/MARÃO] contra-alegou e concluiu assim:

A) A Auto Estrada do Marão peticionou a apreciação da legalidade do Despacho exclusivamente para efeitos de apuramento da responsabilidade pelos factos que conduziram à impossibilidade de manutenção da relação contratual. Por isso, formulou esse pedido na estrita dependência da demonstração da «existência de uma situação de impossibilidade de execução» do Contrato de Concessão que lhe conferisse o direito à respectiva resolução, de modo que a procedência do pedido de apreciação da validade do Despacho tivesse por pressuposto necessário a manutenção integral dos efeitos extintivos do Contrato de Concessão. Não lhe interessava, pois, a destruição integral do Despacho ou a repristinação do Contrato de Concessão, mas tão só a apreciação da responsabilidade pelos factos que tornaram insustentável a manutenção da relação contratual;

B) Assim, a «EP» jamais poderia ser afectada na sua posição de concessionária geral do Estado [relativamente às vias que integravam o Contrato de Concessão] por eventual decisão favorável à AE/MARÃO que viesse a ser proferida no âmbito da arbitragem, se nela fosse conhecida, a título principal, a legalidade do Despacho, já que, atendendo ao modo como a recorrida conformou o objecto do processo, a manutenção da extinção do Contrato de Concessão constitui pressuposto necessário da procedência do pedido de anulação. E foi também essa a leitura que o «Tribunal Arbitral» e, posteriormente, o «Tribunal a quo» fizeram do modo como a AE/MARÃO formulou o seu pedido, e conformou o objecto do processo;

C) Assim, só no caso de o Tribunal Arbitral concluir que a AE/MARÃO teria direito à resolução do contrato - por impossibilidade de execução do mesmo - é que poderia anular o Despacho, determinando que o contrato se manteria resolvido e extraindo as consequências ao nível da responsabilidade pelos factos que conduziram à citada impossibilidade de execução contratual. Diversamente, caso concluísse pela improcedência do «pedido de resolução do contrato» - por impossibilidade de execução do mesmo - o Tribunal Arbitral julgaria improcedente o pedido de anulação do Despacho;

D) Assim sendo, não merecem qualquer reparo o acórdão arbitral e o acórdão recorrido quanto à conclusão de a EP não poder ser qualificada como contra-interessada, nos termos e para os efeitos do artigo 180º, nº2, do CPTA, nenhum obstáculo se colocando, por isso mesmo, a que o Tribunal Arbitral aprecie a legalidade do Despacho, por «erro quanto aos pressupostos»;

E) Ainda que assim não fosse, o que só por cautela de patrocínio se concebe, sempre seria de considerar, no tocante à EP [actualmente, IP] - uma empresa pública detida integralmente pelo recorrente -, que o interesse jurídico supostamente susceptível de ser afectado pela apreciação da legalidade do Despacho não é distinto daquele de que é titular o próprio recorrente, o que se torna claro pela explicitação do modo como o Estado atribuiu à EP a concessão das vias que integravam a concessão;

F) Com efeito, a «EP» surge na posição de concessionária actual das vias, que integravam a concessão, por força de um «contrato de concessão» que lhe foi adjudicado, directamente, sem qualquer concurso público, o que apenas se explica no quadro da relação próxima existente entre a «EP» e o recorrente, que justifica, à luz da jurisprudência do «Tribunal de Justiça da União Europeia», que se considere que, em bom rigor, o Estado - entidade adjudicante - e a EP - adjudicatário - sejam tidos por uma só pessoa;

G) No processo arbitral em apreço, a «EP» não é titular de um interesse distinto daquele que é prosseguido pelo Estado, pelo que a circunstância de o Estado prosseguir a sua actividade administrativa pública por meio de ente personalizado não pode servir para impedir a execução do compromisso que assumiu no sentido de dirimir o litígio em causa com recurso a arbitragem. Destinando-se o artigo 180º, nº2, do CPTA, a proteger a posição de «verdadeiros» terceiros, titulares de interesses distintos daqueles de que é titular o recorrente, deve, assim, entender-se que a «EP» não constitui «verdadeira» contra-interessada, nenhum obstáculo se colocando a que o Tribunal Arbitral aprecie integralmente a legalidade do Despacho.

Termina pedindo que seja «negado provimento» à revista, e mantido o acórdão recorrido.

3. O Ministério Público não se pronunciou [artigo 146º, nº1, do CPTA].

4. Colhidos que foram os «vistos» legais, cumpre apreciar e decidir a revista.

II. De Facto

A factualidade dada como provada no acórdão recorrido é esta:

A) Em 11.07.2012, por carta que então dirigiu ao «Instituto de Infra-Estruturas Rodoviárias, IP», com conhecimento ao Governo, a empresa «Auto Estrada do Marão, S.A.» requereu a constituição de «Tribunal Arbitral» para dirimir o litígio que identificou na sua petição inicial, anexa à dita carta, tendo definido o objecto do mesmo nos seguintes termos [ver documento 1 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido]:

a) Declaração do incumprimento definitivo pelo concedente da obrigação de proceder à reposição do equilíbrio financeiro do contrato de concessão ou, se assim não se entender, à modificação desse contrato ou à atribuição de uma compensação financeira;

b) Subsidiariamente, declaração da impossibilidade definitiva de cumprimento das obrigações emergentes do contrato de concessão para a concessionária, por motivos não imputáveis a esta;

c) Resolução do contrato de concessão;

d) Condenação do concedente ao pagamento de indemnização pelos danos sofridos pela concessionária em razão do incumprimento e da resolução do contrato de concessão;

e) Condenação do concedente à assunção de todas as obrigações da concessionária, emergentes dos contratos de financiamento;

f) Condenação do concedente ao pagamento dos honorários dos árbitros, custas e todas as despesas do processo, incluindo honorários de advogados e peritos;

B) A «Auto Estrada do Marão, S.A.» é a sociedade que outorgou com o Estado, em 31.05.2008, o «contrato de concessão» da «concessão do Túnel do Marão» [ver documento 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido];

C) Aceite a constituição de Tribunal Arbitral, e contestada a acção, foi o mesmo constituído em Abril de 2013, tendo sido fixado o «regulamento aplicável à arbitragem» [ver documentos 3 e 4 juntos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido];

D) No decurso da lide foi proferido pelo «Secretário de Estado das Finanças» e pelo «Secretário de Estado das Obras Públicas, Transportes e Comunicações», o Despacho nº7841-C/2013, de 17 de Junho [publicado no DR, 2ª Série, desse dia] através do qual «o Estado decidiu rescindir, com justa causa, o contrato de concessão» [documento 5 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido];

E) Em 30.07.2013 a «Auto Estrada do Marão, S.A.» requereu ao Tribunal Arbitral que fosse admitida a ampliação do «objecto do processo e anulado o Despacho nº7841-C/2013, de 17 de Junho, e, consequentemente, [que fosse] julgado procedente o pedido de declaração da resolução do contrato de concessão por incumprimento do concedente ou, subsidiariamente, por motivos não imputáveis a qualquer das partes» [documento 6 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido];

F) O Estado Português pronunciou-se sobre o pedido dito em E), pugnando pela incompetência do Tribunal Arbitral, nos termos do disposto no artigo 180º, nº2, do CPTA [ver documento 7, junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido];

G) À pronúncia do Estado Português respondeu a «Auto Estrada do Marão, S.A.» [ver documento 8 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido], e sobre esta resposta pronunciou-se novamente aquele [documento 9 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido];

H) O Tribunal Arbitral proferiu «decisão» em 11.12.2013, tendo os árbitros acordado «em julgar improcedente a excepção de incompetência deste Tribunal que foi deduzida pelo Demandado e, consequentemente, em admitir a ampliação do objecto do processo requerida pela Demandante através da dedução do douto pedido de impugnação do Despacho nº7841-C/2013, de 17.06, que determinou a rescisão do Contrato de Concessão dos autos» [documento 10 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido];

I) Em 13.12.2013 o Estado Português solicitou ao Tribunal Arbitral a aclaração da referida decisão [documento 11 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido];

J) O pedido de aclaração foi objecto de decisão por parte do Tribunal Arbitral de 31.12.2013, no sentido de que «o Tribunal […] se considera competente para apreciar a legalidade do acto em causa a título principal, e não apenas a título incidental» tendo assumido expressamente que «se a acção for julgada procedente, deve apreciar a legalidade do acto impugnado e, sendo caso disso, anulá-lo» e que «a decisão não deixará, por isso, de ter a mesma autoridade de caso julgado que corresponderia a sentença de conteúdo equivalente que fosse proferida por tribunal administrativo estadual» [ver documento 12 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido];

K) Em 08.06.2015 foi proferido acórdão final, pelo Tribunal Arbitral, nos termos do qual, foi [i] anulado parcialmente o Despacho nº7841-C/2013, [ii] mantidos os seus efeitos na parte em que determinou a resolução do Contrato de Concessão, [iii] reconhecido que a relação contratual entre as partes se extinguiu por impossibilidade, sem que se possa apontar responsabilidades a nenhuma delas [ver documento de folhas 270 e seguintes dos autos].

III. De Direito

1. Esta acção foi intentada pelo IMT no TCAS - ao abrigo dos artigos 3º, nº4, alínea r), do DL nº236/2012, de 31.10 [diploma que aprova a «orgânica do IMT»], e 18º, nº8, da Lei nº63/2011, de 14.12 [LAV - «Lei da Arbitragem Voluntária»] - visando a «revogação da decisão interlocutória do Tribunal Arbitral [TA] relativa à sua competência para apreciar a legalidade do Despacho nº741-C/2013, de 17.06 - publicado no DR, 2ª Série» desse dia - decisão referida nos pontos H), I), e J) do provado.

Este despacho foi proferido durante a pendência de acção arbitral na qual a AEM [Auto Estrada do Marão, S.A.] formulara o pedido inicial que consta das «alíneas do ponto A) do provado», e veio rescindir, com justa causa, o contrato de concessão a que se refere o ponto B) do provado.

A AEM, tendo pedido ao TA a «ampliação do objecto do processo», nos termos constantes do ponto E) do provado, viu tal ampliação «admitida» - decisão dos pontos H), I) e J) do provado - e decidida pelo TA no sentido da «anulação parcial do referido despacho» - decisão dos pontos D) e K) do provado.

O autor IMT defende que o TA carece de competência para apreciar esse pedido objecto da ampliação, essencialmente por um motivo: - é que existe, a seu ver, um contra-interessado na manutenção desse despacho - a EP-ESTRADAS DE PORTUGAL, S.A. - que não subscreveu a cláusula compromissória, de modo a poder fundar a competência do TA para conhecer de um pedido cujo desfecho o pode prejudicar. E alicerça a sua tese no nº2 do artigo 180º do CPTA.

2. O TCAS, interpretando a pretensão do autor IMT, definiu e apreciou a seguinte «questão» que considerou fulcral para a decisão desta acção: - saber se a «EP-ESTRADAS DE PORTUGAL, S.A.» é contra-interessada no âmbito da decisão do pedido objecto da ampliação, e, caso afirmativo, se ela aderiu, ou tinha possibilidades de aderir ao compromisso arbitral.

E concluiu que a «EP-ESTRADAS DE PORTUGAL, S.A.» não é contra-interessada para efeitos da decisão desse pedido porque, e em jeito de conclusão, da procedência da acção arbitral e concretamente da anulação do despacho, «nenhum efeito resulta no que respeita à titularidade do direito à concessão das vias que integravam a concessão do Túnel do Marão detido pela EP-ESTRADAS DE PORTUGAL, e, porque assim é, de tal decisão não advém para esta quaisquer prejuízos».

O IMT discorda, e, como sobressai das «conclusões» deste recurso jurisdicional, aponta ao acórdão do TCAS erro de julgamento, uma vez que, segundo defende, o TA carece de competência para decidir o pedido objecto de ampliação uma vez que a EP-ESTRADAS DE PORTUGAL é contra-interessada na decisão desse pedido, sendo certo que não está verificada a condição imposta pelo nº2 do artigo 180º do CPTA.

Vejamos.

3. Em Maio de 2008 foi outorgado entre a sociedade AUTO-ESTRADA DO MARÃO, S.A. [AEM] e o ESTADO PORTUGUÊS [EP] o contrato de atribuição por este, àquela, da «concessão» designada por «Concessão do Túnel do Marão».

Este contrato de concessão, na sua cláusula 89ª, prescreve que «1. Os eventuais conflitos que possam surgir entre as Partes em matéria de aplicação, interpretação e integração das regras por que se rege a Concessão serão resolvidos por arbitragem», e na cláusula 90ª estipula sobre a constituição e o funcionamento do tribunal arbitral.

De acordo com a LAV [Lei 63/2011, de 14.12], a convenção de arbitragem poderá ter por objecto um litígio actual ou litígios eventuais, sendo que no primeiro caso leva a designação de compromisso arbitral e no segundo caso de cláusula compromissória - artigo 1º, nº1 e nº3 da LAV. E note-se que está assim previsto desde a primeira versão da LAV - artigo 1º, nº1 e nº2, da Lei nº31/86, de 29.08, e do DL nº38/2003, de 08.03.

Daqui decorre que a «convenção arbitral» que está prevista nas cláusulas 89ª e 90ª do contrato de concessão outorgado entre a AEM e o EP configura, segundo a designação legal, uma cláusula compromissória.

4. Foi ao abrigo desta cláusula compromissória que a AEM pediu - em Julho de 2012 - a constituição do tribunal arbitral para decidir um diferendo entre as partes com o objectivo de obter a resolução do contrato com fundamento no «incumprimento do concedente» [EP], bem como a indemnização a que entende ter direito.

O EP opôs-se a este pedido, e, em Junho de 2013, mediante despacho conjunto dos Secretários de Estado das Finanças e das Obras Públicas, decidiu rescindir o contrato de concessão invocando justa causa - «Despacho» referido no ponto D) do provado.

No mês seguinte - Julho de 2013 - a AEM dirigiu-se ao «tribunal arbitral» pedindo a ampliação do objecto do processo à anulação deste despacho e que, por via disso, fosse julgado procedente o pedido de resolução do contrato por incumprimento do concedente ou - subsidiariamente - por motivos não imputáveis a qualquer das partes - ponto E) do provado.

O concedente, EP, entende que «existe uma circunstância de facto e de direito» que impede que o litígio sobre o referido despacho conjunto possa ser dirimido pelo tribunal arbitral e que se traduz, no fundo, na observância do disposto «no artigo 180º, nº2, do CPTA», o qual estipula que «Quando existam contra-interessados, a regularidade da constituição do tribunal arbitral depende da sua aceitação do compromisso arbitral».

Ora, para o EP existe um contra-interessado que não aceitou nem podia aceitar o compromisso arbitral, que é a sociedade «EP-ESTRADAS DE PORTUGAL, SA» e, além disso, entende que a norma acabada de citar refere a aceitação de compromisso arbitral e aqui estamos, antes, perante cláusula compromissória. O que significa, a seu ver, que o tribunal arbitral constituído não podia apreciar e decidir o pedido objecto de ampliação porque não estava regularmente constituído para o efeito, isto é, porque para isso carecia de «competência».

A questão da legalidade desse despacho, que rescindiu o contrato de concessão, emitido em Junho de 2013, não pode, portanto, na tese do concedente EP, ser submetida a tribunal arbitral cuja competência reside em cláusula compromissória à qual a contra-interessada «ESTRADAS DE PORTUGAL» não pode, por natureza, aderir, e à qual, de facto, não aderiu.

5. A questão trazida pelo autor IMT ao tribunal administrativo - relativa à «competência do TA para apreciar a legalidade do Despacho Conjunto» - faz todo o sentido «nos termos em que surge», isto é, alicerçada nos pressupostos fácticos e jurídicos que a suportam.

Efectivamente, a admissibilidade da arbitragem, em matéria administrativa, não resulta apenas do regime geral que consta da LAV [Lei nº63/2011], mas também de «normas específicas» que se encontram no âmbito do direito administrativo. É assim que, nomeadamente, os critérios e os limites do recurso à arbitragem no «âmbito das relações jurídico-administrativas» estão previstos nos artigos 180º a 187º do CPTA.

O nº2 desse primeiro artigo, já citado, «impede» que os litígios em que estejam identificados contra-interessados sejam decididos por tribunal arbitral, protegendo-os deste modo de decisões em que não podem tomar parte. Mas «admite» que os contra-interessados possam aceitar o compromisso arbitral, sendo que, nesse caso, a sua aceitação de facto viabiliza a regular constituição do tribunal arbitral.

No dizer do Professor PAULO OTERO - Admissibilidade e Limites da Arbitragem Voluntária nos Contratos Públicos in «Intervenções - II Congresso de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria», a páginas 84 e 85 - o que o nº2 do artigo 180º do CPTA consagra é um «verdadeiro poder de veto sobre a arbitragem administrativa» conferido aos contra-interessados, já que «a existência de contra-interessados que não aceitem o compromisso arbitral trava a existência da arbitragem».

De facto, ninguém poderá ser «obrigado a submeter-se a arbitragem contra sua vontade» porque a todos assiste o direito ao juiz estadual natural, sendo portanto certo que, os terceiros em relação à respectiva convenção arbitral, só podem ser submetidos ao poder dos árbitros se a ela aderirem voluntariamente - sobre o tema do «princípio da eficácia relativa das convenções de arbitragem» ver o Professor AROSO DE ALMEIDA in «Intervenções no VI Congresso do Centro de Arbitragem Comercial» página 209.

Por conseguinte, o funcionamento do regime dos «tribunais arbitrais», no âmbito do direito administrativo, está condicionado à existência de contra-interessados, pois só pode efectivar-se se eles aceitarem o compromisso arbitral.

6. Porém, este Supremo Tribunal não poderá aceitar, sem mais, o pressuposto jurídico que suporta a tese do recorrente, segundo o qual o Estado, concedente, rescindiu o contrato de concessão mediante um acto administrativo destacável, isto é, mediante um acto autoritário e juridicamente definidor do dissídio entre os contraentes, única hipótese em que faz sentido suscitar, como foi, a questão da existência ou não de um contra-interessado - EP - na manutenção desse acto administrativo. E é sabido que os tribunais são livres no plano do direito - «jura novit curia».

Vejamos.

O «contrato de concessão» [ponto B) do provado] não previa que o concedente - EP - o pudesse resolver através de acto administrativo, ou seja, que pudesse resolvê-lo através de uma decisão de autoridade, surgida fora do âmbito da paridade das partes. O que significa que, «a ser resolvido o contrato de concessão» fora desta paridade negocial, mediante uma decisão autoritária, este acto só poderia ser nulo, por usurpação de poder, já que o Governo, ao arrogar-se um poder de definir o direito numa relação negocial, «de paridade», ter-se-ia substituído aos tribunais.

Estranhamente, porém, tanto as partes como os próprios tribunais - TA e TCAS - encararam a rescisão do contrato de concessão por parte do concedente, e sem problematizar, como uma decisão de autoridade, definidora do dissídio entre as partes contratuais, enfim, como um acto administrativo destacável.

Mas este enquadramento jurídico não se mostra correcto. De facto, da consulta dos próprios termos do referido «Despacho Conjunto», onde se faz referência, em sede de motivação, às cláusulas contratuais que prevêem «fundamentos de resolução do contrato de concessão» pelas partes, deveremos concluir que, em substância, o concedente, através desse acto, apenas pretendeu exercer o «seu direito potestativo» de resolver o contrato, com justa causa. Embora revestido de uma forma anómala, a substância é o exercício desse direito potestativo.

E assim, o «acto resolutivo» do Governo constitui uma tomada de posição do concedente sobre aquilo que basicamente se discutia no TA: - se havia motivo para o contrato de concessão findar por «resolução fundada no incumprimento do Estado Português». E ao contrapor ao pedido resolutivo da concessionária a sua declaração potestativa de resolução do contrato com justa causa, o Estado Português manteve-se dentro do objecto do processo arbitral, ampliando-o.

Deste modo, o TA deveria passar a averiguar, então, se o concedente Estado realmente incumprira o contrato de concessão e se a concessionária tinha, por isso, o direito de o resolver. E essa averiguação não poderia deixar de abranger a bondade da oposta resolução do contrato, com justa causa, enunciada pelo concedente. E neste âmbito, estranho à emissão de actos administrativos, certo é que não haveria lugar à convocação de quaisquer contra-interessados, pois estes apenas intervêm no plano da impugnação de actos.

Afinal, e porque relativo a um contrato, o problema dos autos só poderia pôr-se e discutir-se «inter partes», exactamente como aconteceu.

Ora, colocada a questão nestes termos, que temos por correctos, constatamos que o TA encontrou, ainda que encarando a «resolução do contrato pelo Estado como acto administrativo destacável», uma solução razoavelmente certa: o acto do Governo - que correspondia, no fundo, ao exercício de um direito potestativo contratual, a discutir inter partes - podia ser trazido à instância arbitral, para, a final, se determinar se alguma das partes «estava em condições de resolver o contrato de concessão» por incumprimento da outra, ou se podia e devia declarar-se extinto o contrato por impossibilidade superveniente absoluta, como veio a suceder.

7. Ressuma, pois, desta interpretação do presente litígio, e que, a nosso ver, o repõe nos trilhos jurídicos mais correctos, que assistia competência ao TA para apreciar e decidir a «ampliação do objecto do processo arbitral» requerida pela concessionária AEM.

Destarte, e embora por diferentes razões, deve ser mantido o acórdão recorrido - que julgou improcedente a acção de impugnação de decisão interlocutória do TA - negando-se provimento ao presente recurso do IMT.

E nestes precisos termos se decidirá.

IV. Decisão

Nestes termos decidimos negar provimento ao recurso e manter, embora por diferentes razões, o decidido no acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente

Lisboa, 5 de Setembro de 2019. – José Veloso (relator) – Ana Paula Portela – Madeira dos Santos.