Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0690/07
Data do Acordão:08/22/2007
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:PERDA DE MANDATO
DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS
NOTIFICAÇÃO PARA REGULARIZAR SITUAÇÃO
CULPA GRAVE
CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO
Sumário:I - No regime da Lei n.º 4/83, de 2/4, alterada pela Lei n.º 25/95, de 18/8, se o titular de cargo político não apresentar a declaração dos seus rendimentos e património após inicio do exercício das suas funções, será notificado para o fazer no prazo de trinta dias sob pena «em caso de incumprimento culposo» incorrer em declaração de perda de mandato.
II - O que quer dizer que o legislador não quis que a perda de mandato pudesse decorrer apenas da omissão do dever de diligência que recaía sobre o eleito e, portanto, de mera culpa mas, ao contrário, quis que aquela perda só pudesse ser decretada quando a referida omissão significasse também o desrespeito pela referida notificação. Isto é, quando essa conduta evidenciasse uma culpa grave.
III – Não é de valorizar a apresentação daquela declaração feita já depois de instaurada a acção para perda de mandato e, portanto, aceitar que essa apresentação significaria a regularização da falta, pois que isso equivaleria a considerar que só nos casos em que houvesse um definitivo e afrontoso incumprimento daquela obrigação é que se poderiam considerar violados o disposto nos art.ºs 1.º e 3.º da Lei 4/83, na redacção que lhes foi dada pela Lei 25/95.
Nº Convencional:JSTA00064496
Nº do Documento:SA1200708220690
Data de Entrada:07/31/2007
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF LEIRIA PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - LOCAL.
DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM ESPECIAL.
Legislação Nacional:L 4/83 DE 1983/04/02 ART1 ART3.
L 25/95 DE 1995/08/18.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC48349 DE 2002/01/09.; AC STA PROC671/03 DE 2003/04/23.
Aditamento:
Texto Integral: O Ilustre Magistrado do Ministério Público junto do TAF de Leiria propôs acção administrativa especial para declaração de perda de mandato contra A..., vereador da Câmara Municipal de ..., pedindo que o mandato para que fora eleito fosse declarado perdido já que este não cumprira a obrigação de apresentar a sua declaração de rendimentos, património e cargos sociais no prazo de 60 dias após o início de funções, incumprimento que persistiu apesar de ter sido notificado para o efeito pelo Tribunal Constitucional.
O Sr. Juiz a quo, porém, não deu satisfação ao referido pedido e, ao invés, julgou extinta a instância por ter entendido que “em função do cumprimento da obrigação em falta, em data posterior à instauração da acção, ficou destituído de objecto o processo sub judice.”
Inconformado, o M.P. interpôs recurso de revista «per saltum» dessa decisão tendo rematado as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
1. Os acórdãos citados na sentença, sendo certo que o de 1996 se reporta à Lei 87/89, de 9/9, não são transponíveis para a situação configurada nos autos, que se reporta à Lei 4/83, na redacção da Lei 25/95, que se refere a culpa e não apenas a culpa grave.
2. Ora, verificando-se que as justificações apresentadas pelo demandado não são suficientes para afastar a sua culpa, e tendo em conta que importa que a declaração seja apresentada em prazo, deverá pois a acção proceder, já que se verifica a ilicitude da conduta, não existindo a necessidade de concluir pela indignidade para a permanência no exercício de funções, atenta a referência a culpa e não apenas a culpa grave, para além de não estar em causa o exercício do mandato.
3. A remessa posterior da declaração não «sana» a não remessa atempada, já que, visando-se o controle da riqueza dos titulares de cargos desde o início do mandato e até ao seu final, tal desiderato apenas se alcança com o conhecimento, nessas fases, dessa riqueza.
4. Daí a necessidade e o dever da renovação anual constante do art. 2°, n.º 3, da Lei 4/83, que não fazia sentido se a declaração não fosse feita em prazo, bastando, neste caso, o legislador referir que a declaração deveria ser feita no decurso do mandato.
5. Foram violados os art.ºs 3°, n.º 1, e 2°, n.º 3, da Lei 4/83, na redacção da Lei 25/95.
O recorrido contra-alegou concluindo do modo seguinte:
1. A douta sentença teve um entendimento correcto ao decidir que o pressuposto da perda de mandato é a verificação do incumprimento definitivo da apresentação da declaração de rendimentos;
2. Entendimento contrário resultaria, isso sim, numa medida excessiva, desadequada e desproporcional às circunstâncias do presente processo;
3. Pelo que o recurso apresentado deve ser considerado improcedente;
4. Ainda que assim não se entendesse, o comportamento do recorrido trata-se de um erro, que não se crê ser censurável, e sendo desculpável o mesmo tal circunstância exclui a sua culpa no comportamento que se pretende agora sancionar;
5. Pelo que o incumprimento tardio da obrigação não determinaria de forma alguma a perda do mandato.
FUNDAMENTAÇÃO
I. MATÉRIA DE FACTO.
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
A. Por sufrágio universal e directo, nas eleições autárquicas realizadas em 9 de Outubro de 2005, o Réu foi eleito para o órgão executivo do Município de ... (doc. n.º 1 anexo à P.I.).
B. No acto de instalação do órgão autárquico, realizado no dia 28 de Outubro de 2005, o Réu tomou posse do cargo de vereador para que foi eleito (doc. n.º 1 anexo à P.I.);
C. O Réu não apresentou a declaração de rendimentos, património e cargos sociais, no período de 60 dias seguinte à data em que foi investido em funções (acordo);
D. Foi endereçada ao Réu, para a Câmara Municipal de ..., o of. n.º 729/06, subscrito pelo escrivão de direito do Tribunal Constitucional, da qual, sob a epígrafe "Declaração de património, rendimentos e cargos sociais (Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com as alterações da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto", consta:
“Em cumprimento do despacho de Sua Excelência o Presidente do Tribunal Constitucional, tenho a honra de notificar V. Ex.cia para, nos termos da al.ª n) do art. 4.º Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, apresentar neste Tribunal, no prazo de trinta dias consecutivos a declaração de património rendimentos e cargos sociais, conforme estabelecem os artigos 1.º e 2.º da referida lei, ou, no mesmo prazo, fazer prova de a já ter entregue.
Mais fica advertido(a) para a parte final do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto: "... sob pena de ... incorrer em declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial".
E. O Aviso de recepção correspondente à notificação supra encontra-se assinado por ..., em 19/10/2006 (doc. n.º 1 anexo à P.I.);
F. Consta da "Declaração sobre o valor do património e rendimentos dos titulares de cargos políticos e equiparados", modo 1649 do INCM, datado de 28 de Maio de 2007, subscrito por rubrica ilegível sob carimbo a óleo do Tribunal Constitucional o seguinte "recibo":
“Declaro que recebi a presente declaração em duplicado, o qual devolvo com a presente nota de recebimento” (doc. n.º 3 anexo à contestação).
II. O DIREITO.
Resulta do antecedente relato que o Ilustre Magistrado do Ministério Público junto do TAF de Leiria interpôs contra A... acção administrativa especial pedindo a declaração de perda do seu mandato de vereador na Câmara Municipal de ..., para que fora eleito nas eleições realizadas em 9/10/2005, alegando que o mesmo não cumprira a obrigação legal de apresentar a sua declaração de património, rendimentos e cargos sociais e que tal incumprimento determinava a perda daquele mandato.
E, efectivamente, Tribunal a quo julgou provado que o ora Recorrido não apresentou, como devia, a referida declaração nos 60 dias seguintes ao início de funções nem a apresentou nos 30 dias imediatos à notificação que lhe foi feita pelo Tribunal Constitucional, apresentação que só veio a ocorrer já depois de instaurada a presente acção.
Todavia, e apesar disso, considerou que essa falta não era motivo para deferir o pedido formulado pelo M.P. já que, por um lado, “a situação de incumprimento encontra-se regularizada através da remessa da declaração em falta, ainda que para além de todos os prazos legalmente fixados” e, por outro, resultava dos textos legais ser “pressuposto da perda de mandato a verificação de um incumprimento definitivo de apresentação da declaração” e este não ocorrera. E, porque assim, concluiu que, muito embora o atraso no comprimento constituísse uma conduta censurável, certo era que o mesmo não integrava “uma violação dos deveres inerentes ao cargo político em causa, passível de justificar o inapelável afastamento do cidadão inadimplente.” E daí ter julgado extinta a instância.
É contra este julgamento que o presente recurso se dirige onde se sustenta que, nos termos da lei em vigor, a não entrega culposa da declaração de rendimentos era, por si só, e independentemente da gravidade dessa culpa, razão suficiente para ser declarada a perda de mandato e, in casu, era manifesto que o Recorrido tinha agido com culpa grave já que, nem a solicitação do Tribunal Constitucional, entregara a mencionada declaração no tempo próprio. Acrescia que “a remessa posterior da declaração não «sana» a não remessa atempada, já que, visando-se o controle da riqueza dos titulares de cargos desde o início do mandato e até ao seu final, tal desiderato apenas se alcança com o conhecimento, nessas fases, dessa riqueza.”
Vejamos, pois, se o Tribunal a quo ao decidir como decidiu fez correcto julgamento.
1. Nos termos do art.º 1 da Lei n.º 4/83, de 2/4 - na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 25/95, de 18/8 - «Os titulares de cargos políticos apresentam no Tribunal Constitucional, no prazo de 60 dias contado da data do início do exercício das respectivas funções, declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais», sendo certo que se tal apresentação não for feita «a entidade competente para o seu depósito notificará o titular do cargo a que se aplica a presente lei para a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos, sob pena de, em caso de incumprimento culposo …. incorrer em declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos …» (n.º 1 do art.º 3.º da mesma Lei).
O que significa que o incumprimento culposo da referida obrigação basta, por si só, para determinar a perda de mandato do titular do cargo político. Ou seja, a aplicação desta sanção não depende do dolo do agente mas de sim de um comportamento culposo.
A lei, porém, não esclarece qual o grau de culpa indispensável para desencadear esse procedimento e, portanto, não nos diz se a mesma terá de ser grave ou se bastará a mera culpa, pelo que nos cabe identificar qual o grau de culpa necessário à prolação de decisão que determine a perda de mandato.
E nesse labor a primeira observação a fazer é a de que a perda de mandato por parte de um detentor de cargo político eleito não decorre, imediata e automaticamente, da falta de apresentação, por iniciativa própria, do mencionado documento, uma vez que mesma só pode ser declarada depois de se ter provado que o interessado ignorou a notificação que lhe foi feita nesse sentido pelo Tribunal Constitucional. O que quer dizer que o legislador não quis que a perda de mandato pudesse decorrer apenas da omissão do dever de diligência que recaía sobre o eleito e, portanto, de mera culpa mas, ao contrário, quis que aquela perda só pudesse ser declarada quando a referida omissão significasse também o desrespeito pela notificação do Tribunal Constitucional, isto é, quando evidenciasse que a conduta do eleito envolvia culpa grave. E isto porque ter-se-á de considerar que age com culpa grave quem, apesar de notificado expressamente pelo Tribunal Constitucional para cumprir uma determinada obrigação, ignora essa notificação e persiste num comportamento que sabe ser ilegal.
Aliás, a jurisprudência deste Tribunal - nos processos destinados a obter a perda de mandato - vem afirmando isso mesmo, isto é, que sendo inexigível o dolo na configuração da infracção, aquela perda só pode ser decretada se o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não a título de negligência ou mera culpa.
Assim, e por exemplo, nos casos em que tem estado em causa a violação da norma que proíbe o autarca de intervir em procedimento, acto ou contrato onde possa obter vantagem patrimonial para si ou para terceiro, tem sido decidido que a violação desse impedimento legal só é determinante da perda do mandato quando se mostre que aquele tinha interesse directo, pessoal e relevante nessa intervenção e que esse interesse é impeditivo duma actuação rigorosa, isenta e imparcial na defesa do interesse público posto a seu cargo. E por isso é que vem sendo afirmado que, nesta matéria, a interpretação dos textos legais não deve ser “puramente conceitualista mas ser caldeada pela relevância da lesão aos referidos princípios, sob pena de lesão dos próprios desígnios expressos na lei fundamental, no caso sobremaneira grave, considerando a curtíssima distância entre o Poder e o administrado. Efectivamente, só um grau de culpa relativamente elevado sustentará a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo.” (Acórdão de 9/01/2002, rec. 48.349, com sublinhado nosso No mesmo sentido podem ver-se, entre outros, Acórdãos de 24/04/96 (rec. 39.873), de 14/05/96 (rec. 40.138) e de 23/04/2003 (rec. 671/03)).
Do mesmo modo - num caso em que a perda do mandato resultava do incumprimento de decisão judicial - foi entendido que “pode ser decretada a perda de mandato ao abrigo do art.º 9.º A da Lei 27/76 ainda que não haja dolo do agente, mas negligência. Todavia pode aproveitar-se para adiantar o entendimento num aspecto essencial para a decisão da causa: não basta um qualquer grau de culpa é necessário que a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira). Na verdade, atendendo: (i) à natureza sancionatória da medida da perda de mandato, (ii) à intrínseca gravidade desta medida, equivalente às penas disciplinares expulsivas, com potencialidade destrutiva de uma carreira politica, iii) a que a conduta dos titulares de cargos políticos electivos é periodicamente apreciada pelo universo dos respectivos eleitores, há que concluir que a aplicação de tal medida só se justifica a quem tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções «violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso» (cfr. Acórdão STA de 21/03/96). Violaria o princípio da proporcionalidade das medidas sancionatórias que restrinjam direitos políticos aplicar uma tal sanção a incumprimentos veniais”.» Sublinhados nossos. - Acórdão deste Tribunal de 11/03/99 (rec. 44.576).
E, se assim é, como é, podemos concluir com a necessária segurança que, inexistindo dolo e não sendo este exigível na configuração da infracção, a perda do mandato do autarca só pode ser decretada quando o comportamento em que a mesma se fundamenta envolver culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal.
2. Descendo ao caso dos autos verificamos que a razão porque vem pedida a perda do mandato de vereador para que o Recorrido foi eleito foi o facto deste não ter apresentado a declaração de rendimentos a que legalmente estava obrigado, nem de motu próprio nem a solicitação do Tribunal Constitucional em notificação que lhe foi feita nesse sentido “sob pena de ... incorrer em declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial", apresentação que só veio a ser feita já depois de instaurada a presente acção (vd. ponto D e F do probatório).
Factos esses que o Tribunal recorrido considerou provados.
E, portanto, podemos concluir que, objectivamente, a falta cometida pelo Recorrido integra violação do disposto nos citados art.ºs 1.º e 3.º da Lei 4/83, na redacção que lhes foi dada pela Lei 25/95.
O Recorrido, porém, justificou o seu comportamento dizendo que só agira dessa forma Veja-se a sua contestação. por estar convencido que a referida obrigação se dirigia apenas aos vereadores com funções executivas, o que não era o seu caso, e que persistiu nesse erro apesar da notificação do Tribunal Constitucional por nas anteriores eleições também ter sido eleito, também ter ficado sem funções executivas e também não ter apresentado a declaração de rendimentos e, apesar disso, não lhe ter sido instaurada acção semelhante a esta. Acrescia que a sua situação tinha sido, entretanto, regularizada e, por isso, a legalidade tinha sido reposta.
Ou seja, o Recorrido alega que só por negligência desculpável agira como agiu e que a sua falta tinha sido, entretanto, sanada.
Será que, admitindo-se como verdadeiros os factos e as razões invocadas, o comportamento do Recorrido poderá ser qualificado como meramente culposo e, portanto, incapaz de fundamentar a perda de mandato?
Não nos parece.
Com efeito, e muito embora seja certo, como já se disse, que o incumprimento da mencionada obrigação só seja determinante da perda de mandato quando esta falta persista para além da notificação feita pelo Tribunal Constitucional, o que quer dizer que essa sanção só pode ser decretada quando haja culpa grave, também o é que o comportamento que o Recorrido assumiu deve ser qualificado como gravemente culposo, uma vez que persistiu no erro apesar de lhe ter sido dito que essa persistência determinaria a perda do seu mandato. Culpa essa que não é diminuída pelo facto de, posteriormente à instauração desta acção, ter regularizado a sua situação e apresentando documento em falta.
É certo que este Tribunal já considerou - num caso em que a perda de mandato decorria do eleito manter um contrato com a autarquia - que era incompreensível e inaceitável que se decretasse “a perda de mandato se já tiver desaparecido a situação de inelegibilidade e afastada a sua razão de ser, isto é, o perigo de lesão dos princípios de independência e imparcialidade no desempenho dos cargos autárquicos”. Mas também o é que para decidir desse modo considerou que a perda de mandato com aquele fundamento não se destinava a “sancionar qualquer conduta irregular e do que se trata é apenas de evitar uma situação que pode comprometer a isenção e a imparcialidade, impedindo que se mantenha em funções quem é portador de interesses particulares potencialmente conflituantes com os interesses autárquicos (art.º 50.º, n.º 3 da CRP), só tem justificação enquanto a situação de inelegibilidade subsistir.” Acórdão de 23/04/2003 (rec. 671/03)..
Todavia, a situação figurada nos autos não só não é da mesma natureza daquele que motivou a referida decisão como também, do ponto de vista do legislador, as razões da perda do mandato num e noutro caso destinam-se a proteger bens jurídicos diferentes.
Com efeito, enquanto que a perda de mandato decorrente da não apresentação da declaração de rendimentos destina-se a viabilizar o controlo público da riqueza dos titulares dos cargos políticos e, dessa forma, evitar os casos de corrupção e preservar o prestígio da classe política num tempo em que a opinião pública está muito sensibilizada para esse problema E daí a necessidade de apresentação de nova declaração no final do mandato ou no caso de reeleição (n.º 2 da mesma Lei), a perda de mandato resultante do eleito ter um contrato com a autarquia destina-se a afastar “o perigo de lesão dos princípios de independência e imparcialidade no desempenho dos cargos autárquicos.”
E, porque assim, não se podem transpor para este caso as considerações e os fundamentos que justificaram a decisão proferida no citado Aresto.
Nesta conformidade, e tendo-se em atenção que as normas ora em causa visam sancionar uma conduta irregular e que esta subsistiu apesar do Recorrido ter sido notificado para regularizar a falta cometida, “sob pena de ... incorrer em declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial", é forçoso concluir que a actuação do Recorrido envolve, manifestamente, culpa grave e que a alegação de que a irregularidade foi sanada e que a apresentação do documento em falta foi feita não é desculpabilizante dessa falta nem pode ser atendida.
Com efeito, aceitar, agora, a alegação de desconhecimento daquela obrigação legal e valorizar a sua tardia regularização – que, de acordo com a sentença recorrida, ocorreu “seguramente depois da citação” – significaria interpretar a lei de uma forma em que a perda de mandato só poderia ser decretada nos casos em que o infractor, apesar de proposta contra ele uma acção para perda de mandato, persistisse no incumprimento da obrigação legal.
Ou seja, significaria que só nos casos em que houvesse um definitivo e afrontoso incumprimento daquela obrigação é que se poderiam considerar violados o disposto nos art.ºs 1.º e 3.º da Lei 4/83, na redacção que lhes foi dada pela Lei 25/95.
Ora, manifestamente, não é isso que a lei prescreve.
E, porque assim, é forçoso concluir que a falta imputada ao Recorrido foi cometida com culpa grave e que a mesma é fundamento da perda de mandato.
Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso e, revogando-se a decisão recorrida, julgar a acção procedente e declarar a perda do mandato para que o Recorrido A... foi eleito.
Custas pelo Recorrido em ambas as instâncias, fixando a taxa de justiça em 4 UC no Tribunal recorrido e em 8 UC neste Supremo Tribunal, com a redução prevista na al.ª b) do n.º 1 do art.º 73-E do CCJ.
Lisboa, 22 de Agosto de 2007. Costa Reis (relator) - Rui Botelho - Brandão de Pinho.