Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:021/13
Data do Acordão:02/14/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IRS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
Sumário:O n.º 1 do artigo 240.º do CPPT deve ser interpretado em sentido amplo, de modo a terem-se por abrangidos na letra da lei todos os créditos a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente privilégios creditórios.
Nº Convencional:JSTA000P15292
Nº do Documento:SA220130214021
Data de Entrada:01/10/2013
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:BANCO C...., S.A. E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Vem o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, recorrer para este Supremo Tribunal da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, de 28 de Junho de 2012, proferida nos autos de verificação e graduação de créditos n.º 412/10.1BEALM, na parte em que nela se decidiu não admitir à graduação os créditos reclamados pela Fazenda Pública provenientes de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
Termina as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

«1. Nos autos foram reclamados pela F.P. créditos relativos a IRS dos anos de 2006, 2007 e 2008 que gozam de privilégio imobiliário geral sobre o bem objecto de penhora nos autos de execução fiscal pertença do executado;
2. Pese embora a natureza jurídica do privilégio creditório geral, sempre a jurisprudência dos Tribunais Superiores admitiu, expressa ou implicitamente, a possibilidade da reclamação dos créditos que gozam desse privilégio;
3. Mesmo que se entenda que os privilégios creditórios gerais não constituem garantias reais, mas meras preferências de pagamento, o seu regime é o das garantias reais, para efeito de justificar a intervenção no concurso de credores, como defende, maioritariamente, a jurisprudência;
4. Daí que o n° 1 do artigo 240° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ao afirmar que «podem reclamar os seus créditos (...) os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados», deve ser interpretado amplamente, de modo a terem-se por abrangidos na sua estatuição, não apenas os credores que gozem de garantia geral, “stricto sensu”, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios;
5. A Mma. Juiz “a quo”, ao não admitir a graduação dos créditos reclamados relativos
a IRS, violou as disposições conjugadas dos art.s 604°, n°2, do Código Civil, 111° do C.I.R.S., e 240°, n° 1 do CPPT, motivo pelo qual deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que admita e gradue tais créditos no lugar que lhes pertence, ou seja, em terceiro lugar».
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II Fundamentação

II-A
Em sede factual apurou-se na primeira instância a seguinte matéria de facto com relevo para a decisão da causa:
«1. A Fazenda Pública instaurou em 22/05/2006, contra a executada A…… o processo de execução fiscal n° 2186200601017047, do Serviço de Finanças de Moita tendo por objecto dívidas de IMI de 2005, no montante de € 171,45 de que os presentes autos de verificação e graduação de créditos constituem apenso (cfr. cópia certificada do processo de execução fiscal junto aos autos):
2. Ao processo de execução fiscal identificado no ponto anterior foram apensos os processos de execução fiscal n°s 2186200701015370 referente a IMI de 2006 inscrito para cobrança em 2005 referente ao imóvel penhorado nos presentes autos, 2186200801002821 referente a IVA, 2186200801019546 referente a coimas, 2186200801031244 referente a coimas, 2186200801055844 referente a IMI de 2007 referente ao imóvel penhorado nos presentes autos, 2186200801069950 referente a coimas, 2186200801011502 referente a coimas, 2186200701037625 referente a IVA, 2186200701055674 referente a coimas, 2186200801080130 referente a coimas, 2186200801091530 referente a coimas, 21862008011117513 referente a coimas, 2186200901006754 referente a IVA, e 2186200701072471 referente a coimas (cfr. doc. junto a fls. seguintes a fls. 15 - Nota de citação - da cópia do processo executivo junto aos presentes autos e fls. 19 e 21 dos autos):
3. Em 19/10/1989, A…… celebrou com o B……, S.A. um contrato de Mutuo com hipoteca que incidiu sobre a fracção autónoma designada pela letra “BO” correspondente ao ……, destinada à habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ……, ….. — ……, n° ……, ……, freguesia de ……, concelho de Moita, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2734, descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número 1362/199000402-E, com o valor patrimonial actual de € 45.660,00 (cfr. doc. junto a fls. 5 a 14 dos autos): 4. Em 28/06/1989, foi registada hipoteca a favor do B……, S.A., incidente sobre o imóvel melhor identificado em 3), penhorado no processo de execução de que os autos constituem apenso, com vista à garantia da quantia de Esc. 2.029.000$00, referente a capital, à taxa de juro anual de 20,5%, despesas no montante de Esc.: 81.160$00, e com montante máximo de Esc.: 6.061.028$00 (cfr. fls. 7 e 8 da cópia do processo executivo junto aos autos, cujo teor aqui que se dá por integralmente reproduzido);
5. Em 2009 foi inscrito para cobrança o IMI do ano de 2008 do imóvel penhorado nos autos (cfr. doc. junto a fls. 23 dos autos);
6. Em 2009 foram inscritos para cobrança o IRS de 2003, 2004, 2005, 2006, 2007 e 2008 (cfr. doc. junto a fls. 25 e 26 dos autos);
7. Em 03/08/2009, no âmbito do citado processo de execução fiscal, e para pagamento das dívidas nele referidas, foi efectuada a penhora da fracção autónoma designada pela letra “BO” correspondente ao ….., destinada à habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ….., ….. — ……, n° ….., ……, freguesia de ……, concelho de Moita, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2734, descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número 1362/1 99000402-E, com o valor patrimonial actual de € 45.660,00, a qual foi registada a favor da Fazenda Nacional em 18/08/2009, para garantia da quantia de € 7.575,32 (cfr. fls. 9 da cópia do processo executivo junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
8. A executada é devedora à Fazenda Pública dos créditos exequendos e reclamados;
9. A executada é devedora ao Banco C……, S.A. dos créditos reclamados.»

De direito
II-B- Da admissibilidade de reclamação em execução fiscal de créditos de IRS que gozam apenas de privilégio imobiliário

A questão trazida à apreciação deste Supremo Tribunal consiste em saber se se a decisão recorrida enferma de erro de interpretação e aplicação do direito ao ter julgado que, os créditos reclamados provenientes de IRS (relativos aos anos de 2006, 2007 e 2008), que gozam de privilégio imobiliário geral mas não têm a seu favor qualquer garantia real, não podem ser reclamados em execução fiscal ao abrigo da norma contida no artigo 240.º n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
A sentença recorrida, a fls. 79 a 85 dos autos, decidiu não admitir à graduação os créditos reclamados pela Fazenda Pública relativos a IRS dos anos de 2006 a 2008, graduando os admitidos pela seguinte forma: 1º Créditos exequendos e reclamados pela Fazenda Pública referentes a IMI da fracção penhorada nos autos de 2006 a 2008; 2º Crédito reclamado pelo Banco C……,, S.A. garantido por hipoteca registada em 28/06/1989 e juros até ao limite de três anos; 3º Demais créditos exequendos; (cfr. sentença recorrida, a fls. 84 e 85).
Fundamentou-se o decidido, na parte ora impugnada, no entendimento de que os créditos que gozam apenas de privilégio imobiliário geral e que não tenham, para além dele, uma garantia real, não podem ser reclamados nos termos do artigo 240.º do CPPT, porquanto não gozam de garantia real sobre os bens penhorados, entendimento este sufragado nos Acórdãos deste Supremo Tribunal de 16 de Junho de 2004 (rec. n.º 442/04) e de 7 de Julho de 2004 (rec. n.º 612/04), este último transcrito na decisão recorrida – cf. fls. 61 e segs.

Contra o assim decidido se insurge o Digno Magistrado do Ministério Público no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada alegando que o artigo 240.° do CPPT deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não só os credores que gozem de garantia real, “stricto sensu”, mas também aqueles a que a lei substantiva confere causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios, invocando em abono da sua tese jurisprudência condizente deste Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente, os acórdãos de 13/5/2009, 17/06/2009, 18/11/2009, 02/12/2009, 10/02/2010 e 10/03/2010, in recursos n 185/09, 432/09, 920/09, 724/09, 1035/09 e 1000/09, respectivamente, todos disponíveis no site “www.dgsi.pt”.

Desde já se adiantará que o recurso merece provimento.
Com efeito o entendimento perfilhado na sentença recorrida contraria a jurisprudência largamente dominante neste Supremo Tribunal, nomeadamente a citada pelo ilustre magistrado recorrente, jurisprudência, esta, que foi seguida por inúmeros outros arestos deste Supremo Tribunal Administrativo, dos quais destacamos, por mais recentes, os acórdãos, votados por unanimidade, de 23 de Junho de 2010 (rec. n.º 365/10), de 12 de Janeiro de 2011 (rec. n.º 725/11), de 4 de Maio de 2011 (rec. n.º 44/11), de 14.09.2011 (rec. nº 573/11), de 14.12.2011 (recurso 984/11) e de 07.03.2012 (recurso 1091/11).

Jurisprudência esta que também aqui se acolhe e cuja argumentação jurídica se acompanhará, por economia de meios e tendo em vista uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. artigo 8.º n.º 3 do CC).

Assim, como se consignou no Acórdão 573/11, de 14.09.2011, « …o legislador fiscal determinou a execução de bens individualizados do património do executado para satisfação do crédito do exequente, permitindo todavia aos credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados que reclamassem os seus créditos na execução. É o que resulta do disposto no artigo 240º, nº 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em consonância com o artigo 865º do Código de Processo Civil no respeitante à execução comum.
Mas, para alguma doutrina, direitos reais de garantia em sentido próprio serão apenas a penhora, o penhor, a hipoteca, o direito de retenção e a consignação de rendimentos. Já quanto aos privilégios creditórios, que o artigo 733º do Código Civil define como «a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros», não há unanimidade, entendendo alguns que não serão verdadeiros direitos reais de garantia, mas qualidades do crédito, atribuídas por lei em atenção à sua origem.
Praticamente unânime é o entendimento quanto aos privilégios gerais: estes não são qualificáveis como direitos reais de garantia. Em todo o caso, há, na doutrina, como na jurisprudência, concordância quanto a que os privilégios creditórios conferem preferência sobre os credores comuns. Nos termos do artigo 111º (antes artigo 104º) do Código do IRS, para o pagamento de IRS relativo aos três últimos anos a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou de acto equivalente.

Gozando o crédito reclamado de privilégio imobiliário, não preferindo embora aos credores com garantia real, não deixa, por isso, de poder ser reclamado e graduado no lugar que lhe competir. Neste sentido se têm pronunciado quer o Supremo Tribunal Administrativo quer o Supremo Tribunal de Justiça, em inúmeros acórdãos. Aliás, assim o impõe a unidade do sistema jurídico, pois não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor de acorrer ao concurso. Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o privilégio, pois nesse caso o crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio legal. Assim, afigura-se dever o artigo 240º, nº 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário ser interpretado no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios – cf. neste sentido, quase textualmente, o acórdão do Pleno desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-5-2005, no recurso nº 612/04, o qual, por sua vez, seguiu o acórdão do Pleno também desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-4-2005, no recurso nº 442/04, a confirmar os acórdãos fundamento desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de
2-7-2003, e de 4-2-2004, proferidos respectivamente nos recursos nº 882/03, e nº 2078/03» (fim de citação).

Em face do exposto, no caso dos autos, atendendo a que os créditos de IRS reclamados (2006 a 2008) gozam do privilégio imobiliário previsto no artigo 111.º do Código do IRS (porque relativos aos três últimos anos) e não foram impugnados, deviam ter sido admitidos à reclamação, verificados e graduados no lugar próprio, ou seja, em terceiro lugar, após o crédito reclamado garantido por hipoteca e precedendo os créditos exequendos, que, como decidido e não contestado, apenas gozam da garantia da penhora, havendo, pois, que assim decidir concedendo provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida no segmento impugnado e julgando reconhecidos os créditos reclamados pela Fazenda Pública relativos a IRS de 2006 a 2008, que se graduarão em terceiro lugar.


III. DECISÃO
Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida no segmento impugnado, que no demais se mantém, e, em consequência, julgar reconhecidos os créditos reclamados pela Fazenda Pública relativos a IRS de 2006, 2007 e 2008 e respectivos juros que vão graduados em terceiro lugar (3.º), após os créditos exequendos e reclamados pela Fazenda Pública referentes a IMI da fracção penhorada nos autos de 2006 a 2008, e também após os créditos reclamados pelo Banco C……, garantidos por hipoteca registada em 28/06/1989 e juros até ao limite de três anos (graduados em primeiro e segundo lugar, respectivamente) e precedendo os créditos exequendos, apenas garantidos pela penhora, que assim ficam graduados em quarto e último lugar, saindo as custas precípuas do produto da venda.

Sem custas.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013. - Pedro Delgado (relator) - Ascensão Lopes - Valente Torrão.