Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01441/15
Data do Acordão:05/12/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:REGULAMENTO DE AUTARQUIA LOCAL
ILEGALIDADE DE NORMA REGULAMENTAR
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Sumário:I - A nulidade da decisão por infração ao disposto na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC/2013 só ocorre quando, por um lado, se verifique ambiguidade ou obscuridade da decisão que a tornem ininteligível ou, por outro lado, quando a contradição se localiza no plano da expressão formal da decisão redundando num vício insanável do chamado “silogismo judiciário”, sendo que a mesma nada tem que ver com o erro de julgamento, a injustiça da decisão, o erro da construção do silogismo judiciário ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão.
II - Haverá excesso de pronúncia para efeitos da al. e) do n.º 1, do art. 615.º do CPC/2013 apenas quando o tribunal condene ou absolva num pedido não formulado, bem como quando conheça de pedido em excesso parcial ou qualitativo, mormente, quando, utilizando fundamentos admissíveis, aprecie dum pedido que é quantitativa ou qualitativamente distinto daquele que foi formulado pela parte, condenando em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
III - Enferma de erro de julgamento a decisão judicial que declara in totum a ilegalidade duma norma sem haver efetuado a devida e exigida distinção das várias situações a que aquela norma seria aplicável na economia do regulamento autárquico e da função que a mesma nele detinha, considerando a sua estrutura e organização.
Nº Convencional:JSTA00069714
Nº do Documento:SA12016051201441
Data de Entrada:11/06/2015
Recorrente:MUNICÍPIO DO PORTO
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO PER SALTUM
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - IMPUGN NORMAS.
Legislação Nacional:CONST05 ART242.
CPC13 ART3 N1 ART154 ART607 N3 N4 ART608 N2 ART609 ART615 N1 C E ART621.
CE94 ART2 N1 ART70 ART71 ART169.
DL 114/11 DE 2011/11/30.
DL 81/06 DE 2006/04/20 ART1 ART11.
DL 369/99 DE 1999/09/18.
LQC82 ART34 N1.
DRGU 28/12 DE 2012/03/12 ART2 N2 E ART8 N2 B.
PORT 254/13.
CÓDIGO REGULAMENTAR DO MUNICÍPIO DO PORTO - ALTERAÇÃO N2/2013 DR IIS N167 DE 2013/08/30.
Referência a Doutrina:LEBRE DE FREITAS - CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOLII PAG670
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. RELATÓRIO
1.1. MINISTÉRIO PÚBLICO [doravante «MP»], ao abrigo do disposto nos arts. 219.º da CRP, 01.º do EMP, 51.º do ETAF, 72.º, n.º 1, e 73.º, n.º 3, do CPTA, instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto [doravante TAF Porto], contra o MUNICÍPIO DO PORTO [doravante «MdP»], ação administrativa especial de impugnação de normas pedindo a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral do artigo H/3.º, do Código Regulamentar do Município do Porto, sob a alteração 02/2013, que foi publicado no Diário da República, 2.ª série - n.º 167 - 30 de agosto de 2013”[cfr. fls. 03 a 13].

1.2. O TAF Porto, por acórdão de 05.01.2015 [cfr. fls. 130 a 142], julgou a ação procedente e, em consequência, declarou “ilegal o artigo H/3.º, do Código Regulamentar do Município do Porto, na redação dada pela alteração n.º 02/2013, publicado no Diário da República, 2.ª série - n.º 167 - 30 de agosto de 2013”.

1.3. Inconformado o R. «MdP» recorreu [cfr. fls. 147/157], sendo que o Tribunal Central Administrativo Norte, por despacho do Relator de 11.09.2015 sem impugnação, declarou-se incompetente [cfr. fls. 185/186], ordenando a remessa dos autos enquanto recurso per saltum para este STA.

1.4. Concluiu aquele R. as alegações nos termos que se passam a reproduzir:

A. A sentença recorrida é nula por: i) excesso de pronúncia (cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. e), do Código do processo Civil); ii) enfermar de uma oposição entre os seus fundamentos e a decisão (cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código do Processo Civil).
B. O artigo cuja ilegalidade com força obrigatória geral foi declarada pelo acórdão recorrido integra a Parte Geral do Código Regulamentar do Município do Porto e é aplicável a uma multiplicidade de situações, que vão do urbanismo ao ambiente e passam pela ocupação do espaço público.
C. Como resulta das alegações apresentadas pelo Ministério Público (que delimitam o âmbito do seu pedido), este apenas solicitou que fosse declarada a ilegalidade com força obrigatória geral da norma constante do Artigo H/3.º, do Código Regulamentar do Município do Porto (norma essa que não identificou) que violava as regras legais constante do Código da Estrada e legislação conexa.
D. Apesar de não ter identificado a norma em questão, concluía-se pela análise da petição inicial e das próprias alegações, que a «norma» que ali estava em questão era apenas aquela que atribuía ao Município do Porto competência para o processamento de aplicação de contraordenações relativas ao estacionamento irregular.
E. Assim, ao declarar a Ilegalidade com força obrigatória geral de todo o artigo H-3.º do Código Regulamentar do Município do Porto, artigo que não só integra diversos preceitos como é aplicável a inúmeras outras situações, o acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia (cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. e), do Código do Processo Civil).
F. O acórdão recorrido é ainda nulo por contradição entre a fundamentação e a decisão.
G. Como resulta da fundamentação do acórdão (e também da causa de pedir constante da petição inicial), nos presentes autos está apenas em causa um dos múltiplos campos de aplicação desse preceito (no caso, a fiscalização e, em especial, a aplicação de sanções às situações de estacionamento irregular).
H. Por isso, ao declarar, sem mais, a ilegalidade com força obrigatória geral do artigo H-3.º do Código Regulamentar do Município do Porto, o douto acórdão recorrido é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão (cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código do Processo Civil).
I. Por fim, e ainda que se considere que o acórdão recorrido das supra apontadas nulidades, o certo é que o acórdão recorrido enferma, por aqueles motivos, de um erro de julgamento, por violação dos artigos 72.º, n.º 1, e 95.º, n.º 1, ambos do Código do Processo nos Tribunais Administrativo.
J. Deste modo, deverá o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que apenas declare a ilegalidade da aplicação do artigo H-3.º às situações de estacionamento irregular reguladas naquele diploma …”.

1.5. Devidamente notificado o A., aqui ora recorrido, ofereceu contra-alegações [cfr. fls. 163 a 1702], formulando o seguinte quadro conclusivo que, igualmente, se reproduz:

Assim, não merece censura o acórdão recorrido, que fez adequado julgamento, de facto e de direito, não padecendo de qualquer vício que lhe seja assacado, nem tendo violado as disposições legais e os princípios de direito enunciados, falecendo todos os argumentos contra ele invocados pelo recorrente, pelo que que deve ser integralmente confirmado, por ter feito correta indicação do regime normativo aplicável, ao ter declarado ilegal o artigo H/3.°, do Código Regulamentar do Município do Porto, na redação dada pela alteração n.º 02/2013, publicado no Diário da República, 2.ª Série - n.º 107 - 30 de agosto de 2013 …”.

1.6. Pelo despacho do Relator de fls. 196 veio a ser admitido o presente recurso como de revista per saltum, decisão essa igualmente sem qualquer impugnação.

1.7. Colhidos os vistos legais, vieram os autos submetidos à Conferência para julgamento.


2. DAS QUESTÕES A DECIDIR
No essencial, constitui objeto de apreciação, nesta sede, aferir se a decisão recorrida que declarou a ilegalidade do art. H/3.º do Código Regulamentar do Município do Porto na redação que lhe foi introduzida em 2013 enferma de nulidades [art. 615.º, n.º 1, als. c) e e), do CPC/2013 - redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos deste Código sem expressa referência em contrário] e de erro de julgamento por alegada infração, nomeadamente, dos arts. 72.º e 95.º do CPTA [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].


3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO
Resulta como assente nos autos o seguinte quadro factual:
I) A Câmara Municipal do Porto, pelo edital n.º 275/2008, anunciou no Diário da República, 2.ª série - n.º 56 - 19 de março de 2008 que, em reunião de 14 de janeiro de 2008, da Assembleia Municipal do Porto, foi aprovado o Código Regulamentar do Município do Porto, sob sua proposta e que havia sido aprovada em reunião de 08 de janeiro de 2008.
II) A Assembleia Municipal do Porto deliberou, em reunião de 15 de julho de 2013, aprovar as alterações ao Código Regulamentar do Município do Porto que foram publicadas sob a alteração n.º 02/2013, no Diário da República, 2.ª série - n.º 167 - 30 de agosto de 2013, com republicação de tal diploma, com menção expressa da legislação habilitante e integralmente consultável no site da Ré.
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3.2. DE DIREITO
Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação das questões que se mostram supra enunciadas e que constituem o objeto deste recurso de revista.

I. Face aos termos da pronúncia firmada pelo TAF do Porto e daquilo que constitui a motivação da discordância do R. expressa no recurso jurisdicional que interpôs temos que a discussão nos presentes autos mostra-se, neste momento, reconduzida tão-só à amplitude com que a declaração de ilegalidade da norma em crise foi proferida.

II. Com efeito, no entender do R. tal declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, em face dos fundamentos que foram aduzidos pelo A. na sustentação da pretensão impugnatória, teria de ser limitada às situações de estacionamento irregular, já que, no mais, aquele não discute, nem põe em causa, nesta sede o juízo de ilegalidade feito no acórdão recorrido quando, após apelo ao disposto nos arts. 242.º da CRP, 02.º, n.º 1, 70.º, n.º 2, 71.º, 169.º, todos do Código da Estrada, 01.º e 11.º do DL n.º 81/2006, de 20.04, 34.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, 02.º, n.º 2, al. e), 08.º, n.º 2, al. b), do Decreto Regulamentar n.º 28/2012, de 12.03, bem como na Portaria n.º 254/2013 e no DL n.º 369/99, de 18.09 [na redação dada pelo DL n.º 114/2011, de 30.11], considerou que na conjugação do art. H/3.º com os arts. D/3.º, D/3-35.º, D/3-37.º, D/3-42.º, H/27.º, al. h), todos do Código Regulamentar do Município do Porto na redação que lhe foi dada pela alteração de 2013, tal norma seria ilegal dado que a “competência para aplicar a sanção, por via de estacionamento de duração limitado por tempo superior ao estabelecido, por ter sido parcialmente pago ou por ausência total de pagamento, não pertence à Câmara Municipal do Porto, mas antes e unicamente ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária” pelo tal Código não poderia “alhear-se da disciplina do Código da Estrada e demais legislação complementar, uma vez que da conjugação destes diplomas, em execução das normas jurídicas vigentes, apenas pode regular materialmente a circulação e estacionamento de veículos na área da cidade, determinando a localização e condições de utilização das zonas de estacionamento tarifado, bem como a respetiva fiscalização”, termos em que se impunha “julgar procedente a presente ação, declarando-se a ilegalidade do artigo H/3.º do Código Regulamentar do Município do Porto, na redação dada pela alteração n.º 02/2013 (…) referente ao processamento das contraordenações e à aplicação das normas por violação das normas daquele Código Regulamentar”.

III. Presentes a delimitação feita quanto ao objeto de discussão e, bem assim, a factualidade que se mostra apurada supra passemos, então, à análise dos fundamentos do recurso interposto.
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3.2.1. DAS NULIDADES DE DECISÃO

IV. Argumenta o R./recorrente que o acórdão em crise é nulo por infração do disposto no art. 615.º, n.º 1, als. c) e e), do CPC, porquanto ocorre, por um lado, oposição entre os fundamentos e a decisão [já que a motivação expendida como conducente à ilegalidade da norma não justificaria a declaração da mesma em termos gerais, mas apenas parcialmente enquanto reconduzida à falta de competência por parte da edilidade para o processamento de contraordenações e aplicação de coimas por infrações relativas ao estacionamento irregular] e, por outro, excesso de pronúncia [dado a causa de pedir na qual se estribou a pretensão impugnatória respeitar tão-só à referida falta de competência por parte da edilidade para o processamento de contraordenações relativas ao estacionamento irregular e como tal estar em questão apenas uma parte do preceito então a sua declaração de ilegalidade “in totum” constituiria um excesso].

V. Estipula-se no art. 615.º do CPC, sob a epígrafe de “causas de nulidade da sentença” e na parte que ora releva, que é “nula a sentença quando: … c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; … e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido ...” [n.º 1], derivando ainda do mesmo preceito que as “… nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades ...” [n.º 4].

VI. As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem estar viciadas de duas causas que poderão obstar à eficácia ou validade da dicção do direito: - por um lado, podem ter errado no julgamento dos factos e do direito e, então, a consequência é a sua revogação; - por outro, como atos jurisdicionais, podem ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretados e, então, tornam-se passíveis de nulidade nos termos do art. 615.º do CPC.

VII. Caracterizando em que se traduz a nulidade da decisão por infração ao disposto na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC temos que a mesma, na sua primeira parte, assenta na contradição localizada no plano da expressão formal da decisão, redundando num vício insanável do chamado “silogismo judiciário”, ou seja, traduz-se numa contradição de ordem formal quanto aos fundamentos estabelecidos e utilizados na mesma e não aos que resultam do processo.

VIII. Esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos arts. 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC do juiz fundamentar as suas decisões e, por outro lado, com o facto de se exigir que a decisão judicial constitua um silogismo lógico-jurídico, em que o seu inciso decisório deverá ser a consequência ou conclusão lógica da conjugação da norma legal [premissa maior] com os factos [premissa menor].

IX. Tal significa que, como referia J. Lebre de Freitas, que entre “os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial” [in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, pág. 670].

X. Temos, pois, que, sob pena de incorrer em nulidade, os fundamentos de facto e de direito insertos no acórdão devem ser logicamente harmónicos com a sua pertinente conclusão decisória, enquanto corolário do princípio de que o acórdão deve ser fundamentado de facto e de direito e que tal não se verifica quando haja contradição entre esses fundamentos e a decisão nos quais assenta.

XI. Mas uma coisa é a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão do acórdão, e outra, radicalmente diversa, é o erro de interpretação dos factos ou do direito ou a aplicação deste.

XII. É que a nulidade em questão nada tem que ver com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro da construção do silogismo judiciário, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão, porquanto não existe a oposição, geradora desta nulidade, se o julgador erra na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável ou se, porventura, ele errou na indagação da norma aplicável ou na sua interpretação, visto que, quanto muito, estaremos em face de erro de julgamento mas não desta nulidade.

XIII. Cientes dos considerandos caracterizadores da nulidade de decisão sob análise temos que na situação vertente, à luz do enquadramento supra efetuado e uma vez analisada a estrutura global da decisão judicial impugnada, a respetiva conclusão decisória [declaração da ilegalidade da norma em referência] está logicamente encadeada com a respetiva motivação fáctico-jurídica desenvolvida.

XIV. Com efeito, o seu segmento decisório mostra-se, no essencial, na linha do raciocínio que foi expendido na fundamentação do acórdão, apontando esta logicamente para a conclusão que foi tirada, sem oposição ou divergência conducente a esta nulidade

XV. Inexiste, por conseguinte, uma contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, já que, ao invés, o problema em causa radicará antes ou numa eventual falta de especificação de fundamentos de direito que permitam justificar a decisão tomada ou numa inidoneidade dos fundamentos para conduzirem à concreta decisão tomada.

XVI. Não ocorre, por conseguinte, o vício de nulidade invocado pelo R./recorrente enquanto fundado na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

XVII. Passando, agora, à caracterização da nulidade de decisão por alegada infração ao disposto na al. e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC temos que com a mesma se visa sancionar a infração ao dever que impende sobre o tribunal de, na sua pronúncia, se conter nos limites do pedido [cfr. art. 609.º do CPC].

XVIII. De tal dever, constituindo uma decorrência dos princípios da necessidade do pedido [cfr. art. 03.º, n.º 1, do CPC] e da vinculação do juiz ao pedido [congruência ou correspondência entre decisão e pedido - arts. 608.º, n.º 2 in fine e 609.º do CPC], deriva a imposição ao julgador duma obrigação de na decisão a proferir o mesmo observar aquilo que é o petitório da ação.

XIX. Assim, neste quadro haverá excesso de pronúncia sempre que o tribunal condene ou absolva num pedido não formulado, bem como quando conhece de pedido em excesso parcial ou qualitativo, mormente, quando, utilizando fundamentos admissíveis, aprecie dum pedido que é quantitativa ou qualitativamente distinto daquele que foi formulado pela parte, condenando em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

XX. Munidos dos considerandos caracterizadores da nulidade de decisão ora em análise temos para nós que a decisão judicial sob impugnação não se mostra proferida em infração do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. e), do CPC.

XXI. Com efeito, a pronúncia firmada corresponde ao pedido que foi formulado, sem que aquela o tenha conhecido com qualquer excesso parcial ou qualitativo, mormente, apreciando de pedido que fosse quantitativa ou qualitativamente distinto daquele que foi formulado pelo A., ou condenando em quantidade superior ou em objeto diverso do que se mostrava peticionado.

XXII. Definir se os fundamentos e segmento decisório firmado são ou não os corretos à luz da pretensão e quadro legal invocados tal envolverá eventual erro de julgamento a conhecer em sede e momento próprios, mas não nulidade de decisão.

XXIII. Improcede, pelo exposto, também a arguição de nulidade por pretensa infração da al. e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

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3.2.2. DO ERRO DE JULGAMENTO

XXIV. Alega o R./recorrente que o acórdão recorrido padece de erro de julgamento dado haver declarado a ilegalidade in totum das normas vertidas no art. H/3.º do Código Regulamentar do Porto pelo facto do mesmo se mostrar desconforme e em violação do quadro normativo atrás citado relativo às infrações por estacionamento irregular, seu processamento e sancionamento, quando aquele Código é composto de diversas partes nas quais são reguladas várias outras matérias como, por exemplo, urbanismo, ambiente, gestão do espaço público, intervenção sobre o exercício de atividades privadas, sendo que aquela norma integra a parte H, capítulo I relativo a «disposições gerais», e como tal é aplicável a “inúmeras situações que vão muito para além daquelas (todas relativas ao estacionamento irregular) que estiveram na base do pedido formulado pelo Ministério Público, e que são abordadas no douto acórdão recorrido, mais concretamente as relativas ao estacionamento em zona de duração limitada (reguladas nos artigos D-3/35.º, D-3/36, D-3/37 e D-3/42)”, termos em que nada justificaria a declaração de ilegalidade com alcance com que foi proferida dado se impor a adoção de declaração apenas com efeitos restritos ao segmento de ilegalidade invocado e considerado verificado.

XXV. É certo que a sede do julgado reside ou se encontra na decisão, sendo que na definição daquilo que é a extensão do julgado importa atender, antes de mais nada, à parte dispositiva da decisão judicial, já que é aí que o julgador expressa a sua vontade quanto ao efeito jurídico que teve em vista declarar ou produzir, na certeza de que aquela decisão constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga [cfr. art. 621.º do CPC] dado ser pelo próprio teor da decisão que se mede a extensão objetiva do caso julgado.

XXVI. Ocorre, porém, que na e para a captação do pensamento do julgador expresso na sua decisão importa que recorramos à motivação ou aos fundamentos que foram expendidos e nos quais aquele se baseou para a tomar, sendo à luz dos mesmos que caberá interpretar a decisão e, assim, fixar o seu sentido e alcance.

XXVII. Ora analisados, por um lado, os termos do acórdão recorrido, mormente, a linha argumentativa e fundamentadora do juízo de declaração de ilegalidade da norma em questão por infração ao regime legal que nele foi convocado, que, frise-se, não foi alvo da discordância e impugnação por parte do R. através do presente recurso e, como tal, não cumpre nesta sede sindicar, e feita, por outro lado, a confrontação dos mesmos fundamentos e motivação com a decisão proferida, resulta para nós claro que, efetivamente, no segmento decisório o tribunal recorrido errou no julgamento que fez ao declarar in totum a ilegalidade da norma em crise sem haver efetuado a devida e exigida distinção das várias situações a que aquela norma seria aplicável na economia do Código e da função que a mesma nele detinha, tal como bem sustenta o R./recorrente e se pode comprovar facilmente através da mera leitura e análise do âmbito ou das matérias que são alvo de disciplina naquele Código, daquilo que é estrutura e organização do mesmo, bem como da articulação e teor dos vários normativos que constam e integram aquele regulamento autárquico.

XXVIII. Assim, na procedência do recurso sub specie impõe-se a reformulação do juízo de declaração de ilegalidade da norma quanto ao seu âmbito ou alcance de harmonia com o posicionamento sustentado pelo R./recorrente.


4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em conceder provimento do recurso jurisdicional sub specie e, em consequência, alterar o segmento decisório do acórdão recorrido, declarando a ilegalidade do artigo H/3.º do Código Regulamentar do Município do Porto, na redação que lhe foi dada pela alteração n.º 02/2013 publicada no Diário da República, 2.ª série - n.º 167 - 30 de agosto de 2013, mas tão-só na parte relativa à aplicação às infrações por estacionamento irregular, seu processamento e sancionamento.
Não são devidas custas neste Supremo.
D.N..


Lisboa, 12 de maio de 2016. – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires UrbanoVítor Manuel Gonçalves Gomes.