Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:011/04
Data do Acordão:02/02/2005
Tribunal:CONFLITOS
Relator:AZEVEDO MOREIRA
Descritores:ACTO DE GESTÃO PRIVADA.
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO.
INSTITUTO PARA A CONSTRUÇÃO RODOVIÁRIA.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:I — São actos de gestão privada os que se compreendem numa actividade em que o agente, despido de poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão a normas de direito privado. São actos de gestão pública os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas.
II — O não cumprimento por parte do Instituto para a Construção Rodoviária do seu dever funcional de fiscalizar e acompanhar a execução dos trabalhos de uma empreitada de obras públicas de que resultaram prejuízos para terceiros qualifica-se como acto de gestão pública.
III — Por via dessa circunstância, são os Tribunais Administrativos competentes para apreciar um pedido de indemnização por danos emergentes dessa conduta omissiva.
Nº Convencional:JSTA00062164
Nº do Documento:SAC20050202011
Data de Entrada:06/16/2004
Recorrente:A... E OUTROS NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE FELGUEIRAS E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:AC TR GUIMARÃES.
Decisão:DECL COMPETENTES OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:CONST97 ART212 N3.
ETAF84 ART51 N1 H.
Jurisprudência Nacional:AC TCONFLITOS PROC10/03 DE 2004/03/04.; AC TCONFLITOS PROC25/03 DE 2004/11/18.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
A... e mulher B..., identificados nos autos, recorrem para o Tribunal de Conflitos, ao abrigo do disposto no art. 107º nº 2 do Código de Processo Civil, de um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que, revogando um despacho saneador do M.mo Juiz do Tribunal Judicial de Felgueiras, julgou os tribunais judiciais incompetentes, em razão da matéria, para decidir de uma acção de indemnização que aqueles interessados haviam proposto contra o Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR).
Alegam no presente recurso apresentando as seguintes conclusões:
“Primeira
Nos presentes autos estamos perante actos de gestão privada do ICOR (actualmente IEP), uma vez que o mesmo, actuando no âmbito das anteriores competências da JAE (cujos direitos e obrigações assumiu), uma empresa pública que desenvolvia a sua actividade despida do poder público, “(…) se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado” (Freitas do Amaral, ob. cit., pp. 139), sendo certo que não estamos no âmbito de relações jurídico-administrativas, uma vez que entre os autores e a Administração não existe qualquer vínculo emergente no exercício da função administrativa.
Segunda
Os actos praticados pela JAE eram de gestão privada e passaram a ser praticados por um Instituto que conforme o Decreto-Lei nº237/99, “assume as competências previstas para a JAE – Construção, S.A.”, ao qual se aplica subsidiariamente o regime das empresas públicas (artigo 6º, nº2 do mesmo diploma), não podem simplesmente ter ganho uma natureza diferente, pelo que apenas podem ser qualificadas como actos de gestão privada.
Terceira
A oposição entre os fundamentos e a decisão constitui uma nulidade, nos termos do disposto na al. c) do nº1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, a qual expressamente se argui para os devidos efeitos legais.
Quarta
De acordo com o disposto no nº2 do art. 6º do Decreto-Lei nº 237/99, de 25 de Junho, o disposto no nº1 deste mesmo preceito legal “não prejudica o conhecimento pelos tribunais comuns das questões que sejam da sua competência em razão da matéria, designadamente os litígios decorrentes das relações regidas pelo direito privado nas quais sejam parte o IEP, o ICOR ou o ICERR” estabelecendo ainda o art.4º nº1, al. f) do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril (ETAF) que “1 – Estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto: (…) f) Questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público”, tudo isto em consonância com o estabelecido no art. 18º nº2 do Decreto-Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro.
Quinta
“Quanto aos pedidos indemnizatórios, é seguro que os actos violadores do direito de propriedade e geradores da alegada obrigação de indemnizar se não integram em qualquer relação jurídica administrativa, regulada pelo direito público, embora destinada à execução de obra – construção de estradas – atribuição do ICOR.” – Cfr.Ac.STJ, de 19/11/02.
Sexta
“Sendo tais obras efectuadas por um particular com base em contrato de empreitada de obras públicas, a natureza administrativa do respectivo contrato é relevante para efeitos de inclusão do conhecimento das questões dele emergentes no âmbito da jurisdição administrativa, mas a existência desse contrato não implica que os actos ou omissões praticados na sua execução que lesem terceiros, emergentes de outros factos jurídicos, sejam considerados como actos de gestão pública.” Ac. do STA de 27/02/2002.
Sétima
O Acórdão Recorrido parte de um pressuposto errado na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, distinguindo-os apenas pela entidade que os pratica e não pela natureza dos mesmos, o que constitui uma contradição.
Oitava
Conforme refere a decisão recorrida em primeira instância, “como decidiu o Tribunal da Relação do Porto – ac. De 07.11.00, entre outros, a competência material depende do “tema decidendum” concatenado com a causa de pedir.
Destarte, a decisão caberá aos tribunais administrativos quando se esteja perante um facto ilícito, gerador de danos, mas inserido na gestão pública do Estado ou de outras entidades equiparadas ou englobadas no conceito mais amplo de Estado; e é atribuído aos tribunais comuns, i.é, aos tribunais judiciais, o julgamento das acções que respeitem à gestão privada daquelas entidades.”
Nona
O Acórdão Recorrido faz uma errada interpretação e aplicação da lei processual quando considera como competente o Tribunal Administrativo (cfr. artigo 755º, nº1, al. b) do Código de Processo Civil)
Décima
O Acórdão Recorrido viola o disposto nos arts.7º nº1 e 18º nº2, ambos do Decreto-Lei nº558/99, de 17 de Dezembro; arts.1º nº2, 4º, 6º, nº2, do Decreto-Lei nº237/99, de 25 de Junho; art.4º nº1, al.f) do Decreto-Lei nº129/84, de 27 de Abril (ETAF); art.66º, al.c) do nº1 do art.668º e al.b) do nº1 do artigo 755º, do Código de Processo Civil, além de se encontrar em manifesta oposição com toda a jurisprudência supra referida do Tribunal da Relação do Porto, do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo.”
Contra-alegou o Instituto das Estradas de Portugal (IEP), entidade pública que sucedeu ao ICOR, concluindo da seguinte forma:
“a) A fiscalização da execução da empreitada “Variante à E.N. 101 em Felgueiras entre a E.M. 562 e a E.M. 564” adjudicada ao consórcio .../... insere-se no âmbito das atribuições do ex ICOR-IEP, nos termos do estatuído no artigo 4º dos Estatutos do Instituto publicados em anexo ao DL 237/99 de 25 de Junho.
Os actos ou omissões relacionados com a fiscalização, imputados inserem-se no âmbito do desempenho das atribuições do ICOR, com vista à prossecução dos seus fins, pelo que, os actos praticados no âmbito dessas atribuições e delas decorrentes são necessariamente actos de gestão pública.
a) O ICOR nunca poderia pois actuar como qualquer particular numa posição de paridade, o que no caso constitui um completo absurdo.
b) A responsabilidade do ex ICOR actual IEP terá que o ser apurada no âmbito do estipulado no DL 48 051 de 21 de Novembro de 1967, responsabilidade civil por actos de gestão pública.
c) Por determinação da al.h) do nº1 do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e nº1 do artigo 7º do D.L.227/02 de 30 de Outubro, é da competência dos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade do IEP ou dos seus órgãos de gestão, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.
d) O acórdão recorrido, considerando competente para o julgamento da acção interposta, o Tribunal Administrativo, observa o estatuído no nº3 do artigo 214 da Constituição da República Portuguesa, o artigo 66º do Código de Processo Civil, o artigo 3º e a al.h) do nº1 do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, bem como o nº1 do artigo 7º do D.L. 227/02 de 30 de Outubro e também o artigo 4º da Lei nº13/2002 de 22 de Fevereiro.”
Por seu lado, o Digno Magistrado do Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
“O exercício do dever de fiscalização da execução da empreitada do empreendimento rodoviário em causa, cuja violação integra a causa de pedir que integra a causa de pedir que serve de fundamento ao pedido de indemnização formulado contra o IEP, que legalmente assumiu a posição jurídica do ex-ICOR, sob o domínio de normas de direito público, conforme entendeu o douto Acórdão recorrido e bem sustenta o ora recorrido IEP.
Em consequência, configura-se como responsabilidade por actos de gestão pública a responsabilidade extracontratual emergente de inobservância de tal dever, imputada ao R., inerente à prossecução da sua actividade institucional.
Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 5/11/81, BMJ 311, 195; de 6/5/04, rec. 14/03 e, em situação idêntica à dos autos, de 4/3/04, rec. 10/03 e bem assim os Acórdãos do STA-1ª Secção, de 27/11/97, rec. 34366; de 20/11/02, rec. 864/02; de 3/6/03, rec. 024/03 e de 29/4/04, rec.01537/03.
Pelo exposto, deverá negar-se provimento ao recurso e confirmar-se o douto Acórdão recorrido, declarando-se competente, em razão da matéria, a jurisdição administrativa para conhecimento da acção de indemnização deduzida contra o R. IEP.”
Decidindo.
Começaremos por afastar a nulidade que os recorrentes imputam ao acórdão em análise (por contradição entre os fundamentos e a decisão).
Não existe contradição alguma entre uma primeira afirmação segundo a qual a JAE-CONSTRUÇÕES, antecessora do ICOR, se regia pelo direito privado e uma segunda dizendo que esta última entidade está subordinada ao direito público. O acórdão explica claramente a razão dessas afirmações: enquanto a JAE-CONSTRUÇÕES era uma empresa pública, de capitais públicos, disciplinada pelo direito privado, o legislador concebeu o ICOR como um instituto público regido pelo direito administrativo.
Passando ao mérito.
A questão que se discute nos presentes autos é a da competência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais ou dos tribunais administrativos para julgar a acção de indemnização que os autores, ora recorrentes, propuseram, em sede de responsabilidade civil extra-contratual, contra o réu ICOR.
Neste domínio, compete à jurisdição administrativa, por disposição expressa da lei [arts.212º nº3 da CRP e 51º nº1 al. h) do ETAF], conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, cabendo aos tribunais judiciais (cfr. art.66º do Código de Processo Civil) conhecer dessas acções se, porventura, tais prejuízos decorrerem de actos de gestão privada.
O conceito de um e de outro tipo de actos foi objecto de larga elaboração jurisprudencial e doutrinária, podendo dar-se como assente [cfr. os acs. do Trib. de Confl. de 20.10.83 (proc. nº153) e de 12.05.99 (proc. nº338)] que são de considerar: “a) actos de gestão privada, os que se compreendem numa actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão a normas de direito privado; b) actos de gestão pública, os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda das regras, técnicas ou de outra natureza, que, na prática dos actos, devam ser observadas.”
Vejamos, pois, se o acto ilícito e culposo, gerador de danos, em que se funda o pedido formulado pelos autores na sua petição – pagamento de determinada importância a título indemnizatório – é qualificável com acto de gestão pública ou como acto de gestão privada. Sendo inquestionável que, para efeito desta análise da causa de pedir, se há-de atender à forma como os seus elementos constitutivos são apresentados no articulado inicial.
Os autores, ora recorrentes, alegam nessa peça, fundamentalmente, o seguinte.
O ICOR adjudicou ao consórcio ... uma empreitada de obras públicas para construção da variante à E.N.101 em Felgueiras, entre a E.M.562 e a E.M.564.
Na execução dessa empreitada, entre Novembro de 1999 e Janeiro de 2000, o referido consórcio utilizou um martelo compressor de grande porte para demolir um muro pertencente a uns vizinhos dos autores, tendo ainda utilizado compactadores de grande dimensão na construção de um acesso à casa desses vizinhos.
O trabalho das mencionadas máquinas, e de outras, provocou vibrações fortes, contínuas e demoradas, as quais, transmitidas através do solo, causaram avultados danos na casa dos autores.
Entendem estes que o ICOR também é responsável pela reparação dos danos que sofreram, uma vez que lhe cabia fiscalizar e acompanhar o empreendimento na sua fase de execução.
Sendo esta a matéria de facto relevante para a caracterização do pedido e da causa de pedir, vejamos qual o seu enquadramento jurídico na perspectiva da questão de competência que importa resolver.
O ICOR foi criado pelo Decr.-Lei nº 237/99 de 15 de Janeiro, sob a forma de instituto público dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio (art.1º nº1 do citado diploma), tendo sucedido em parte das competências, direitos e obrigações da ex-JAE.
De acordo com o estipulado nos arts. 1º e 5º daquele decr.-lei e 3º e 4º do seu estatuto, compete-lhe basicamente:
a) Assegurar a construção de novas estradas, pontes e túneis planeados pelo Instituto de Estradas de Portugal (IEP) e a execução de trabalhos de grande reparação ou reformulação do traçado ou características de pontes e estradas existentes que lhe forem cometidos;
b) Promover a realização dos projectos de empreendimentos rodoviários que forem necessários ao exercício das suas atribuições:
c) Assegurar a fiscalização, acompanhamento e assistência técnica nas fases de execução de empreendimentos rodoviários;
d) Promover a expropriação dos imóveis e direitos indispensáveis à execução de empreendimentos rodoviários da sua responsabilidade;
e) Zelar pela qualidade técnica e económica dos empreendimentos rodoviários em todas as suas fases de execução:
f) Assegurar a participação em colaboração relativamente a outras instituições nacionais e internacionais que prossigam finalidades no âmbito da construção de empreendimentos rodoviários.
A construção e a manutenção das vias rodoviárias constitui, pois, matéria que se inscreve nas finalidades públicas da Administração, prosseguidas, nos termos legais apontados, pelo presente instituto público.
Ora, como a conduta ilícita que os autores atribuem a esta entidade – falta ou deficientes fiscalização e acompanhamento da execução da obra – de que teriam resultado os alegados danos decorreu, segundo a sua descrição, no âmbito daquelas atribuições funcionais, forçoso é qualificá-la como de gestão pública no sentido atrás indicado.
E não se argumente, em sentido contrário com o disposto no nº2 do art.1º do supra-citado diploma legal que submete este instituto público, a título subsidiário, ao regime (de direito privado) das empresas públicas. Pois tal regime, como esse preceito expressamente determina, em nada contende com as atribuições públicas que lhe estão legalmente confiadas.
Aliás, em sentido idêntico se pronunciou este Tribunal de Conflitos em casos análogos (cfr. os acs. de 4.03.04 e de 18.11.04 proferidos respectivamente nos procs. nºs 10/03 e 25/03)
Bem andou, pois, o Tribunal da Relação de Guimarães ao seguir esta linha de raciocínio declarando, consequentemente, a incompetência dos tribunais judiciais, em razão da matéria, para conhecer da questão.
Pelo que se acorda em negar provimento ao recurso e declarar competentes os tribunais administrativos para conhecer da presente acção.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2005. – Azevedo Moreira – (relator) – Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira – Edmundo Moscoso – António Alberto Moreira Alves Velho – António Samagaio – Camilo Moreira Camilo.